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Conflitos socioambientais em áreas de complexos portuários na Amazônia paraense: ameaças, agentes e resistências

Socio-environmental conflicts in areas of port complexes in the Amazon of Pará: threats, agents and resistance

Resumo:

Este artigo aborda conflitos socioambientais decorrentes da construção de complexos portuários no estado do Pará a partir de três parâmetros de análise: ameaças às comunidades tradicionais, agentes envolvidos e formas de resistências daquelas comunidades. Em função da pandemia do novo coronavírus (SARS-COV-2), os procedimentos metodológicos foram redefinidos, utilizando-se da técnica de Revisão Sistemática de Literatura (RSL) agregada à pesquisa documental, observação in loco e entrevistas realizadas na comunidade de Guajará de Beja, município de Abaetetuba, um dos lócus da pesquisa. Da aplicação do Protocolo de Pesquisa (PP) da RSL resultaram dez estudos selecionados, os quais, após análise agregada aos demais procedimentos metodológicos, indicaram que as disputas por recursos naturais/locacionais, em especial para instalação de complexos portuários no estado do Pará, têm produzido conflitos socioambientais entre agentes econômicos, agentes públicos e comunidades tradicionais na Amazônia paraense.

Palavras-chave:
Conflitos Socioambientais; Complexos Portuários; Estado do Pará

Abstract:

This article addresses socio-environmental conflicts arising from the construction of port complexes in the state of Pará from 03 (communities) parameters of analysis - threats to traditional communities, agents involved and forms of complex resistance. Due to the new coronavirus (SARS-COV-2) pandemic, the methodological procedures were redefined, using the Systematic Literature Review (RSL) technique combined with documentary research, on-site observation and interviews carried out in the community of Guajará de research Beja, municipality of Abaetetuba, one of the locus of the research. The application of the RSL Research Protocol/PP resulted in 10 (ten) selected studies which, after being added to the other methodological procedures, indicating that as natural/locational resources, especially for the analysis of port complexes in the state of Pará, companies socio-environmental producers between local agents for audiences and traditional communities in the Amazon.

Keywords:
Socio-environmental Conflicts; Port Complexes; State of Pará

Introdução

A Amazônia brasileira é historicamente afetada por processos de exploração e apropriação de suas riquezas naturais pelo capital e de violência praticadas contra os povos originários. Estes processos remontam ao período de sua colonização e estão relacionados à exploração da região como espaço de acumulação capitalista, o que se reproduziu nos séculos seguintes e alcançou o século XXI com a intensificação das ameaças à natureza e à sobrevivência da própria humanidade. Os chamados “grandes projetos” de desenvolvimento, que foram designados por Leal (1996, p. 10 apud FIALHO NASCIMENTO, 2006, pFIALHO NASCIMENTO, N. S. Amazônia e desenvolvimento capitalista: elementos para uma abordagem da “Questão Social” na região. 2006. 195 p. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social, 2006.. 112) para caracterizar “[...] os empreendimentos-enclaves que operam retirando recursos naturais em grande quantidade, mandando-os para fora [...]”, tem produzido impactos sobre a natureza e nas condições de vida e trabalho da população amazônica, no geral, e dos povos e comunidades tradicionais em particular.

Esses impactos têm sido agravados pelas ações do Estado, em suas diferentes instâncias, promovendo a flexibilização das leis ambientais e de regularização fundiária que facilitam a grilagem de terras públicas, além do desmatamento, da queimada e da poluição do ar, do solo e das águas ocasionadas por atividades produtivas, principalmente a mineração e o agronegócio. O cerne da questão deste artigo aborda sobre a circulação de mercadorias via complexos portuários no estado do Pará, onde o Estado brasileiro, por meio do planejamento e de políticas públicas de infraestrutura que incentivam a Produção de Complexos Portuários (PCP), viabilizou a construção de portos privados em diversas regiões do Brasil, com destaque para a Amazônia (RODRIGUES, 2018RODRIGUES, J. C. O Estado a contrapelo: lógica, estratégias e efeitos de complexos portuários no oeste do Pará. 2018. 383 p. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Socioambiental) - Universidade Federal do Pará, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Belém, 2018.).

Os resultados desta pesquisa foram coletados a partir da redefinição dos procedimentos metodológicos, quando optamos por utilizar a técnica de Revisão Sistemática de Literatura (RSL) importante recurso no contexto da pandemia em curso, agregando a ela os demais procedimentos metodológicos: pesquisa bibliográfica e documental, observação in loco e as entrevistas realizadas na comunidade de Guajará de Beja1 1 A utilização das quatro entrevistas disponibilizadas e da observação in loco se justifica em função: 1) do contato direto com parte das famílias da comunidade Guajará de Beja, quando tivemos a oportunidade de dialogar sobre os impactos ambientais para a comunidade ocasionados ainda pelo complexo portuário, industrial e urbanístico na Vila do Conde, em Barcarena/PA e as novas ameaças à comunidade com a construção do empreendimento portuário da Terminais Líquidos da Amazônia (TLA) em Abaetetuba/PA; 2) da observação in loco do território, durante a viagem de campo, possibilitar o registro das alterações em curso na natureza (especialmente o desmatamento), a partir das obras da construção do empreendimento portuário da TLA. , localizada no município de Abaetetuba/PA.

A organização da comunidade de Guajará de Beja, contando com o apoio de diferentes agentes coletivos, resultou na elaboração de uma Carta Denúncia (COMBATE RACISMO AMBIENTAL, 2018COMBATE RACISMO AMBIENTAL. Carta-denúncia elaborada por comunidades tradicionais do município de Abaetetuba, Pará. 13 ago. 2018. Disponível em: https://racismoambiental.net.br/2018/08/13/carta-denuncia-elaborada-por-comunidades-tradicionais-do-municipio-de-abaetetuba-para/. Acesso em: 2 dez. 2020.
https://racismoambiental.net.br/2018/08/...
) expondo as ameaças às comunidades com a construção do porto da Terminais Líquidos da Amazônia (TLA). A luta pelo território, em favor da vida, da soberania popular e dos direitos dos povos e comunidades tradicionais nos chamou a atenção e consolidou nosso interesse em aprofundar o estudo acerca dos conflitos socioambientais ocasionados pela expansão de complexos portuários no estado do Pará. Das reflexões suscitadas surgiram os seguintes questionamentos: quais ameaças as comunidades tradicionais estão enfrentando face à construção de complexos portuários no estado do Pará? Quais agentes envolvidos nos conflitos socioambientais a partir da construção de complexos portuários no estado do Pará? Quais formas de resistências estas comunidades estão desenvolvendo frente à expansão de complexos portuários no estado do Pará?

A partir dessas questões e da utilização do materialismo histórico e dialético como método de análise, destaca-se como objetivo geral deste estudo: analisar conflitos socioambientais decorrentes da implantação de complexos portuários no estado do Pará. Como objetivos específicos, visamos caracterizar ameaças às comunidades tradicionais a partir da implantação de complexos portuários no estado do Pará, identificar agentes envolvidos nos conflitos socioambientais e mapear formas de resistências desenvolvidas pelas comunidades tradicionais em decorrência da construção de complexos portuários no estado do Pará.

Para a apresentação dos resultados da pesquisa, iniciamos com uma seção sobre os processos de “acumulação primitiva”, originalmente analisados por Marx (2003), eMARX, K. O capital: crítica da economia política: livro I, v. II. 19. ed. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 966 p. sobre a análise de Harvey (2014)HARVEY, D. O Novo Imperialismo. 8. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014. sobre o que este autor denominou de “Acumulação por espoliação”, referindo-se a (re)produção da “questão ambiental” como resultado da acentuação das contradições do Modo de Produção Capitalista. Na sequência, abordamos a emergência de conflitos socioambientais partindo das reflexões de Acselrad (2004)ACSELRAD, H. Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Fundação Heinrich Böll, 2004. e Little (2006)LITTLE, P. E. Ecologia política como etnografia: um guia teórico e metodológico. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 12, n. 25, p. 85-103, 2006. e, na última seção, são apresentados alguns dos resultados alcançados com a redefinição dos procedimentos metodológicos em função da pandemia da Covid-19, quando foi utilizada a técnica da RSL, agregada à pesquisa documental, observação in loco e entrevistas. Estas foram realizadas na comunidade de Guajará de Beja, município de Abaetetuba, distante aproximadamente 219km de Belém — capital do estado, onde as relações de homens e mulheres, nativos ou não, que ocupam territórios tradicionais na Amazônia, se dão em interação com a natureza, relações materiais e simbólicas que se contrapõem a lógica capitalista de produção.

Da “acumulação primitiva” à “acumulação por espoliação”

A crise ambiental se manifesta, segundo Foladori (1999), aFOLADORI, G. O Capitalismo e a crise ambiental. Raízes, Ano XVIII, n. 19, 1999. partir das relações sociais e de produção da sociedade capitalista, onde na relação com o meio ambiente a sociedade humana estabelece relações de maneira desigual entre grupos e classes sociais, manifestando “[...] em primeiro lugar pelas restrições impostas pelas outras classes sociais da mesma espécie humana; só a partir destes condicionantes é que se estabelecem os relacionamentos com os outros seres vivos e o material abiótico” (FOLADORI, 1999, pFOLADORI, G. O Capitalismo e a crise ambiental. Raízes, Ano XVIII, n. 19, 1999.. 32). Segundo Chesnais e Serfati (2003)CHESNAIS, F.; SERFATI, C. “Ecologia” e condições físicas de reprodução social: alguns fios condutores marxistas. Crítica marxista, 2003. p. 39-75., é necessário fazer uma análise das palavras “ecologia” e “meio ambiente”, o que deve ser feito através da crítica ao capitalismo, vinculando de forma indissociável a exploração da força de trabalho e a destruição da natureza e da biosfera.

Marx (2010)MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução, apresentação e notas de Jesus Ranieri. 4. reimpr. São Paulo: Boitempo, 2010. afirma que o ser humano mantém uma relação metabólica com a natureza, necessitando desse intercâmbio permanente para viver, pois ele é uma parte da natureza, como é apresentado pelo autor:

A natureza é o corpo inorgânico do homem, ou seja, natureza na medida em que não é o próprio corpo humano. O homem vive da natureza, ou também a natureza é o seu corpo, com o qual tem de manter-se em permanente intercâmbio para não morrer. Afirmar que a vida física e espiritual do homem e a natureza são interdependentes significa apenas que a natureza se inter-relaciona consigo mesma, já que o homem é uma parte da natureza. (MARX, 2010, pMARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução, apresentação e notas de Jesus Ranieri. 4. reimpr. São Paulo: Boitempo, 2010.. 116, grifo nosso).

O autor aborda que o homem faz parte da natureza através de uma relação intrínseca, não podendo existir sem manter essa relação permanente. Para reflexão da ruptura da relação metabólica do homem com a natureza, Marx (2003)MARX, K. O capital: crítica da economia política: livro I, v. II. 19. ed. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 966 p. aborda o fenômeno que antecede o modo capitalista de produção e possibilita as condições necessárias para o seu desenvolvimento, caracterizado pelo autor de Acumulação Primitiva.

A chamada acumulação primitiva pressupõe a retirada violenta de grandes massas humanas de seus meios de produção, transformando-as em proletários destituídos de direitos, lançados como força de trabalho no mercado. Podemos observar, com base em Marx (2003)MARX, K. O capital: crítica da economia política: livro I, v. II. 19. ed. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 966 p., alguns pontos essenciais da acumulação primitiva, que são a expropriação do produtor direto de seus meios de produção, transformando-os em “trabalhadores livres” e a propriedade capitalista, fundado na exploração do trabalho alheio, sendo que “[...] o modo capitalista de produção e de acumulação e, portanto, a propriedade privada capitalista exigem, como condição existencial, o aniquilamento da propriedade privada baseada no trabalho próprio, isto é, a expropriação do trabalhador” (MARX, 2003, pMARX, K. O capital: crítica da economia política: livro I, v. II. 19. ed. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 966 p.. 891).

Harvey (2014)HARVEY, D. O Novo Imperialismo. 8. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014. trabalha com a perspectiva do que ele chama de acumulação por espoliação, advertindo que a acumulação primitiva abordada por Marx (2003)MARX, K. O capital: crítica da economia política: livro I, v. II. 19. ed. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 966 p. se encontra presente na geografia histórica do capitalismo até os dias atuais. O autor, por indicar que é um processo em andamento, apenas substituiu o termo de acumulação primitiva por acumulação por espoliação, destacando suas características, que são: privatização da terra e a expulsão violenta da população camponesa; conversão de várias formas de direitos de propriedade — em destaque os direitos comuns, coletivos, do Estado, entre outros — em direitos exclusivos de propriedade privada; supressão dos direitos camponeses às terras comuns, que outrora eram compartilhadas; transformação da força de trabalho em mercadoria e a supressão de formas alternativas que eram tradicionais, de produção e consumo; processos coloniais, neocoloniais e imperiais de apropriação de ativos, inclusive de recursos naturais; monetização da troca e também a taxação, particularmente da terra; comércio de escravos; usura, dívida nacional e o sistema de crédito.

Todas as características da acumulação primitiva que Marx menciona permanecem fortemente presentes na geografia histórica do capitalismo até os nossos dias. A expulsão de populações camponesas e a formação de um proletariado sem terra tem se acelerado em países como o México e a Índia nas três últimas décadas; muitos recursos antes partilhados, como a água, têm sido privatizados (com frequência por insistência do Banco Mundial) e inseridos na lógica capitalista da acumulação; formas alternativas (autóctones e mesmo, no caso dos Estados Unidos, mercadorias de fabricação caseira) de produção e consumo têm sido suprimidas. Indústrias nacionalizadas têm sido privatizadas. O agronegócio substituiu a agropecuária familiar. E a escravidão não desapareceu (particularmente no comércio sexual). (HARVEY, 2014, pHARVEY, D. O Novo Imperialismo. 8. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.. 121).

De acordo com o autor, a ordenação espaço-temporal do modo capitalista de produção constitui substrato essencial para a acumulação capitalista, onde o domínio de outros territórios se constituiu um elemento vital para a resolução das crises de sobreacumulação. Harvey (2014)HARVEY, D. O Novo Imperialismo. 8. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014. aponta que o modo de produção capitalista (para resolver essas crises) passa a criar demandas tanto de bens de investimentos, como de bens de consumo, onde os países do capitalismo central lançam uma luta sem precedentes para se apropriar, dominar e explorar outras regiões do mundo. Neste sentido, os países periféricos foram obrigados a abrir seus territórios para os investimentos capitalistas, onde o capital passa a investir em empreendimentos lucrativos através da apropriação de terras e matérias-primas por baixo custo, exploração da força de trabalho e o incentivo do Estado, que legaliza e proporciona a infraestrutura adequada para que a acumulação capitalista se realize (HARVEY, 2014HARVEY, D. O Novo Imperialismo. 8. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.).

“Conflitos socioambientais”: aspectos conceituais e históricos

Acselrad (2004)ACSELRAD, H. Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Fundação Heinrich Böll, 2004. aborda a questão ambiental se opondo aos pressupostos do consensualismo e do autoritarismo ecológicos, onde explora o debate a partir da diversidade sociocultural do conflito, estando este inserido pela disputa de projetos antagônicos de apropriação e significação do mundo material. O autor apresenta três tipos de práticas ao abordar a interconexão entre o mundo social e sua base material, que se movem a partir de formas técnicas, sociais e culturais. A primeira prática, apropriação técnica do mundo material, se realiza através da ação técnica em diferentes territórios baseados num conjunto de atos que tem como fim a base puramente material, sendo que esses atos constituem as formas técnicas de apropriação do mundo material.

Nessa prática, o autor destaca que acontece a transformação do meio biofísico pela ação de diferentes atores sociais, como os agricultores, mineradores, extrativistas animais ou vegetais, produtores de resíduos físicos ou químicos entre outros. A segunda prática é a apropriação social do mundo material, chamadas de formas sociais de apropriação do mundo material onde prevalece as “[...] estruturas desiguais de distribuição, acesso, posse e controle de territórios ou de fontes, fluxos e estoques de recursos materiais [...]” (ACSELRAD, 2004, pACSELRAD, H. Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Fundação Heinrich Böll, 2004.. 10). Já a terceira, caracterizada pelo autor de prática de apropriação cultural do mundo material, no mundo material do espaço biofísico, são atribuídos inúmeros significados a partir das chamadas formas culturais de apropriação do mundo material (ACSELRAD, 2004ACSELRAD, H. Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Fundação Heinrich Böll, 2004.).

Quando se trata da análise dos conflitos ambientais, Acselrad (2004, pACSELRAD, H. Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Fundação Heinrich Böll, 2004.. 13) reflete sobre a necessidade de identificar o tipo específico de capital que está em jogo, verificando “[...] o modo como as remissões ao meio ambiente afirmam ou contestam a distribuição de poder sobre o território e seus recursos [...]”. O autor destaca dois tipos de espaços onde as relações de poder se manifestam nas sociedades. O primeiro é o espaço da distribuição do poder sobre diferentes tipos de capitais, e o segundo é o espaço onde prevalecem as representações dos modos de distribuição de poder verificados no primeiro espaço.

Dessa forma, Acselrad (2004)ACSELRAD, H. Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Fundação Heinrich Böll, 2004. destaca que os conflitos ambientais devem ser analisados a partir dos espaços de apropriação material e simbólica dos recursos do território, sendo que no primeiro espaço as lutas de cunho social, econômico e político — pela apropriação dos diferentes tipos de capital — são desenvolvidas em torno da “[...] mudança ou conservação da estrutura de distribuição de poder. No segundo, desenvolve-se uma luta simbólica para impor as categorias que legitimam ou deslegitimam a distribuição de poder sobre os distintos tipos de capital” (ACSELRAD, 2004, pACSELRAD, H. Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Fundação Heinrich Böll, 2004.. 14). A partir dessas reflexões, o autor conceitua os conflitos ambientais, sendo:

[...] aqueles envolvendo grupos sociais com modos diferenciados de apropriação, uso e significação do território, tendo origem quando pelo menos um dos grupos tem a continuidade das formas sociais de apropriação do meio que desenvolvem ameaçada por impactos indesejáveis — transmitidos pelo solo, água, ar ou sistemas vivos — decorrentes do exercício das práticas de outros grupos. O conflito pode derivar da disputa por apropriação de uma mesma base de recursos ou de bases distintas, mas interconectadas por interações ecossistêmicas mediadas pela atmosfera, pelo solo, pelas águas etc. Este conflito tem por arena unidades territoriais compartilhadas por um conjunto de atividades cujo “acordo simbiótico” é rompido em função da denúncia dos efeitos indesejáveis da atividade de um dos agentes sobre as condições materiais do exercício das práticas de outros agentes (ACSELRAD, 2004, pACSELRAD, H. Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Fundação Heinrich Böll, 2004.. 16).

Como apresentado por Acselrad (2004), oACSELRAD, H. Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Fundação Heinrich Böll, 2004. conflito se origina pela disputa entre diferentes agentes que possuem formas distintas de uso e apropriação de uma mesma base ou de bases distintas de recursos naturais, onde a ação de um grupo ocasiona ameaças e impactos indesejáveis na vida de outros grupos. Contribuindo com as análises do autor, destacam-se os estudos de Little (2006)LITTLE, P. E. Ecologia política como etnografia: um guia teórico e metodológico. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 12, n. 25, p. 85-103, 2006., que aborda o surgimento de um novo campo de pesquisa que é designado como “ecologia política”. Esse campo, produto da discussão de diversas disciplinas dentro das ciências naturais e sociais, relaciona análises sobre a ecologia humana — que estuda as relações que sociedades humanas realizam com seus ambientes biofísicos —, com conceitos da economia política, que aborda as relações estruturais de poder entre as sociedades.

A palavra “ecologia” foi utilizada pela primeira vez no ano de 1858, pelo naturalista norte-americano Henry David Thoreau, no entanto, tal palavra ganhou uma concepção científica em 1866 através do biólogo alemão Ernst Haeckel. A ecologia, segundo Bramwell (1989 apud LITTLE, 2006LITTLE, P. E. Ecologia política como etnografia: um guia teórico e metodológico. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 12, n. 25, p. 85-103, 2006.), ganhou um duplo e simultâneo desenvolvimento: um relacionado no seio da sociedade civil através do movimento social ecologista; o outro, por sua vez, dentro da academia e por meio de disciplina científica. Little (2006)LITTLE, P. E. Ecologia política como etnografia: um guia teórico e metodológico. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 12, n. 25, p. 85-103, 2006. acrescenta que os conflitos socioambientais se referem a partir de um conjunto complexo de embates entre grupos sociais, em função de seus distintos modos de inter-relacionamento ecológico. O autor acrescenta que os conflitos socioambientais vêm sendo abordados, nas últimas décadas, nas ciências sociais através da ecologia política, onde não podemos separar o ambiental do social; pelo contrário, se torna necessário abordar a inter-relação das dimensões social e biofísica, utilizando o termo socioambiental.

Ameaças, agentes e formas de resistências em complexos portuários no Estado do Pará

Os procedimentos metodológicos que subsidiaram a elaboração deste trabalho (levantamento documental, observação in loco e coleta/sistematização de dados a partir de entrevistas) foram agregados à Revisão Sistemática de Literatura/RSL e que objetivou, a partir da identificação de três parâmetros de análise — ameaças às comunidades tradicionais, agentes envolvidos e formas de resistências das comunidades —, alcançar uma aproximação analítica dos conflitos socioambientais decorrentes da construção de complexos portuários no estado do Pará.

A partir da leitura na íntegra dos estudos selecionados da RSL, foram identificadas 20 evidências de ameaças às comunidades tradicionais em decorrência da construção de complexos portuários no estado do Pará. O que primeiro se destaca, na análise das evidências identificadas, é a grande quantidade e diversidade de ameaças às comunidades tradicionais. As 20 evidências, levantadas nos dez estudos selecionados, englobam ameaças ambientais, econômicas, sociais, culturais e políticas e, para sua análise, elas foram organizadas em quatro grupos que estão diretamente relacionadas entre si: 1) ameaças ao meio ambiente; 2) ameaças aos direitos territoriais; 3) ameaças as condições de vida e; 4) ameaças as condições de trabalho (Figura 1).

Figura 1
- Esquema de Ameaças às Comunidades Tradicionais a partir da construção de complexos portuários no estado do Pará

O objetivo da Figura 1 é demonstrar a relação intrínseca entre os quatro grupos de ameaças, agrupados para efeito de organização, uma vez que não é possível separá-las, isolando-as da vida social e natural, como ainda é realizado na análise de algumas das ciências. Little (2006)LITTLE, P. E. Ecologia política como etnografia: um guia teórico e metodológico. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 12, n. 25, p. 85-103, 2006. faz uma crítica quando as ciências sociais e naturais são abordadas de forma isolada, e acrescenta que a abordagem dessas ciências de forma separada está sendo superada através de um novo campo de pesquisa que é a “Ecologia Política”.

Nesse campo de estudo, Little (2006)LITTLE, P. E. Ecologia política como etnografia: um guia teórico e metodológico. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 12, n. 25, p. 85-103, 2006. busca analisar a inter-relação das dimensões social e biofísica, onde o termo socioambiental é utilizado para estabelecer o diálogo entre ambas as dimensões. Na análise do social, o autor destaca como um dos desafios a necessidade de incorporar nas suas apreciações as dinâmicas do mundo biofísico no seu meio e, ainda, na abordagem do biofísico devem ser levadas em consideração as estruturas políticas e socioeconômicas que regem a sociedade.

No grupo das ameaças ao meio ambiente (Grupo 1) estão as evidências que se relacionam diretamente com a degradação ao meio ambiente, dentre as quais podemos destacar, como identificado na análise dos estudos selecionados, o “desmatamento para a construção dos portos”. Sabe-se dos efeitos que os desmatamentos provocam nos ecossistemas e do avanço dessa prática em várias atividades econômicas, particularmente na Amazônia brasileira.

Ao abordar a questão do desmatamento — tomando como lócus os municípios paraenses de Itaituba e Rurópolis, às margens do rio Tapajós, Rodrigues (2018)RODRIGUES, J. C. O Estado a contrapelo: lógica, estratégias e efeitos de complexos portuários no oeste do Pará. 2018. 383 p. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Socioambiental) - Universidade Federal do Pará, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Belém, 2018. apresenta a área desmatada para a construção do Porto da Rio Tapajós Logística (RTL) desde a abertura de estradas de acesso, como também do espaço previsto para a construção do porto. No caso desse porto, o autor acrescenta que o licenciamento ambiental e a participação social das comunidades não foram levadas em consideração, e para acelerar a obra “[...] primeiro se desmata, pavimenta-se e desterritorializa-se em seguida apresenta-se o EIA/RIMA [...]” (RODRIGUES, 2018, pRODRIGUES, J. C. O Estado a contrapelo: lógica, estratégias e efeitos de complexos portuários no oeste do Pará. 2018. 383 p. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Socioambiental) - Universidade Federal do Pará, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Belém, 2018.. 279).

É com base nas reflexões de Marx (2003)MARX, K. O capital: crítica da economia política: livro I, v. II. 19. ed. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 966 p. sobre a acumulação primitiva que Harvey (2014)HARVEY, D. O Novo Imperialismo. 8. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014. desenvolve o que chamou de acumulação por espoliação, que analisamos as ameaças relacionadas aos direitos territoriais das comunidades tradicionais a partir da construção de complexos portuários no estado do Pará. Estas ameaças foram reunidas no Grupo 2, e entre elas se destacam a insegurança das comunidades tradicionais ao direito de propriedade que se manifesta através da transformação do uso coletivo da terra em uso privado.

As ameaças às condições de vida das comunidades tradicionais foram reunidas no Grupo 3, que são resultados do processo de expropriação dos meios de produção (objetos e instrumentos de trabalho), resultando em poluição e contaminação do ar, das águas e do solo produzidas pelas atividades produtivas, de infraestrutura e logística capitalistas. Outros determinantes destacados nos estudos selecionados foram o adoecimento físico e mental das comunidades tradicionais que se expressam através do agravamento e/ou surgimento de doenças e a insuficiência e/ou ausência de políticas públicas e sociais que atendam as demandas das comunidades. Já as ameaças às condições de trabalho (Grupo 4) são expressões do processo de expropriação das comunidades tradicionais de seus territórios, onde foram identificados aqueles/as trabalhadores/as que foram expropriados/as dos seus meios de produção e vendem sua força de trabalho aos capitalistas e, aqueles/as que ainda detém os seus meios de produção.

O avanço do capital em territórios ocupados por povos e comunidades tradicionais na Amazônia vem ocasionando, como destacado por Fialho Nascimento (2006)FIALHO NASCIMENTO, N. S. Amazônia e desenvolvimento capitalista: elementos para uma abordagem da “Questão Social” na região. 2006. 195 p. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social, 2006., alterações nas condições de vida e trabalho dos povos nativos ou não, tanto no meio urbano, quanto rural, colocando a centralidade das expressões da “questão social” na região. Teixeira (2008)TEIXEIRA, J. B. Meio Ambiente, Amazônia e Serviço Social. Revista da Faculdade de Serviço Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Revista Em Pauta, n. 21, 2008. chama a atenção para a expansão sem limite do capital na região, que agrava a polaridade capital x trabalho, tendo como desdobramentos a relação pobreza x riqueza e suas determinações, identificando as demandas regionais para o Serviço Social que se manifestam através de:

[...] escassez (onde antes havia fartura), poluição das águas (rios, igarapés, lagos, praias), devastação da floresta (último reduto da maior biodiversidade ainda existente). Mas não só isso. Desencadeou também um processo de destruição e desvalorização da maior pluralidade cultural e heterogeneidade linguística do território regional — as etnias amazônicas, cuja riqueza e valor estão por ser medidos. Trata-se de sociedades com experiência de socialização da propriedade dos meios de produção e do poder há milênios e que, por isso, ancoram suas relações em princípios e valores que perseguimos desde o século XIX e ainda não alcançamos: os da solidariedade e igualdade (TEIXEIRA, 2008, pTEIXEIRA, J. B. Meio Ambiente, Amazônia e Serviço Social. Revista da Faculdade de Serviço Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Revista Em Pauta, n. 21, 2008.. 141-142).

Teixeira (2008)TEIXEIRA, J. B. Meio Ambiente, Amazônia e Serviço Social. Revista da Faculdade de Serviço Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Revista Em Pauta, n. 21, 2008. destaca que é possível caracterizar os aspectos fundamentais da gênese histórica da “questão social”2 2 Para Behring e Boschetti (2007), há alguns processos históricos centrais que vão requisitar respostas do Estado e da burguesia e que levam à tona a “questão social, são eles: 1) base para o processo de acumulação do capital: subsunção do trabalho ao capital, extraindo o mais-valor; 2) emersão do pauperismo, são aqueles que não se inserem ao assalariamento, compondo o exército de reserva ou superpopulação relativa e; 3) presença dos trabalhadores na cena política, colocando em foco a “questão social” em suas diversas expressões. e do empobrecimento de populações na região onde o processo se assemelha ao da expansão do capitalismo em outras áreas, como também se distinguem em suas singularidades. A partir das reflexões da autora, e da identificação das ameaças às comunidades tradicionais pelos estudos selecionados na RSL, foi possível identificar essas ameaças a partir da construção de complexos portuários no estado do Pará que têm ocasionado — para as comunidades tradicionais — fome, violência, adoecimento, empobrecimento, intensificando as expressões da “questão social” na região.

Já os agentes identificados nos estudos selecionados pela RSL foram agrupados, para efeito de análise, em três grupos, a saber: agentes estatais, agentes econômicos e agentes sociais. Para a abordagem desses agentes, partimos da perspectiva de Acselrad (2004)ACSELRAD, H. Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Fundação Heinrich Böll, 2004. considerando que os conflitos entre diferentes agentes surgem na disputa pelo uso e acesso aos recursos naturais.

No primeiro grupo de agentes envolvidos nos conflitos socioambientais, decorrentes de complexos portuários no estado do Pará, os estudos selecionados indicam a presença de diferentes agentes estatais. De acordo com Carnoy (1990)CARNOY, M. Estado e Teoria Política. 3. ed. [Tradução pela equipe de tradutores do Instituto de Letras da Puccamp]. Campinas, SP: Papirus, 1990., em diferentes contextos históricos do desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais de produção, o Estado teve papel fundamental no processo de legitimar e propiciar as condições necessárias para a reprodução do capital. Essa evidência do incentivo do Estado na Produção de Complexos Portuários (PCP), como destacado por Rodrigues (2018)RODRIGUES, J. C. O Estado a contrapelo: lógica, estratégias e efeitos de complexos portuários no oeste do Pará. 2018. 383 p. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Socioambiental) - Universidade Federal do Pará, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Belém, 2018., é ampliada a partir da identificação nos estudos selecionados pela RSL, dos agentes estatais — distribuídos pelos três poderes constituídos: Executivo, Legislativo e Judiciário — e nos três níveis de governo: federal, estadual e/ou municipal — envolvidos em conflitos socioambientais a partir da construção de complexos portuários no estado do Pará.

Os agentes econômicos envolvidos em conflitos socioambientais, em decorrência da construção de complexos portuários no estado do Pará, são abordados a partir das contribuições de Rodrigues et al. (2020)RODRIGUES, J. C. et al. Produção territorial portuária na Amazônia: ajustes, ordenamentos e práticas espaciais face a produção do complexo portuário de Santana, Amapá, Brasil. Rev. Tamoios, São Gonçalo (RJ), ano 16, n. 3, 2020. p. 85-113., que ao analisar o Complexo Portuário de Santana (CPS), estado do Amapá, nos apontam que não podemos abordar de forma separada os portos, mas considerar a rede cooperativa e sociotécnica compartilhada nesses empreendimentos. A identificação desses agentes ligados à logística de transporte e portuária nos remete aos estudos de Harvey (2014, pHARVEY, D. O Novo Imperialismo. 8. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.. 114), que segundo o autor a expansão geográfica e a reorganização espacial se constituem estratégias do capital onde “[...] territórios não capitalistas deveriam ser forçados não só a abrir-se ao comércio (o que poderia ser útil), mas também a permitir que o capital invista em empreendimentos lucrativos usando força de trabalho e matérias-primas mais baratas, terra de baixo custo e assim por diante [...]”.

Já os agentes sociais têm as comunidades tradicionais envolvidas em conflitos socioambientais em decorrência da expansão de complexos portuários no estado do Pará. Essas comunidades tradicionais, como forma de defender seus direitos e garantir sua reprodução social e cultural, possibilitando, assim, a permanência nos territórios que tradicionalmente ocupam, vêm se organizando em diferentes frentes de lutas e resistências, com o apoio de movimentos sociais, entidades, pesquisadores/as de instituições de ensino, Organizações Não Governamentais entre outros sujeitos coletivos.

Nos estudos selecionados pela RSL, identificou-se como forma de resistência a organização e participação das comunidades tradicionais em movimentos de resistência em defesa dos seus territórios, o que resultou na realização de diversas ações por estas comunidades — em conjunto com outros agentes sociais —, contra a construção de complexos portuários no estado do Pará. Entendemos com Gohn (2000, pGOHN, M. G. 500 Anos de Lutas Sociais no Brasil movimentos sociais ONGs e terceiro setor. Revista Mediações, Londrina, v. 5, n. 1, p. 11-40, 2000.. 12-13) que o movimento social, como a ação dos homens na história, “[...] envolve um fazer por meio de um conjunto de práticas sociais, e um pensar por meio de um conjunto de ideias que motiva ou dá fundamento à ação [...]”.

As cartografias sociais, os Protocolos de Consulta e Consentimento Prévio, Livre e Informado, a criação de Projetos de Assentamentos Agroextrativistas (PAEs) foram identificados nos estudos selecionados pela RSL como instrumentos de resistências, onde expressam as reivindicações dessas comunidades em torno do acesso e permanência nos territórios que tradicionalmente ocupam. Isso implica no reconhecimento, fortalecimento e garantia dos seus direitos, sejam eles territoriais, sociais, ambientais, econômicos e/ou culturais, respeitando e valorizando os aspectos étnicos e identitários, suas formas de organização e suas instituições.

Considerações finais

A expropriação dos produtores diretos dos seus meios de produção marca o desenvolvimento do modo de produção capitalista desde sua origem, período denominado por Marx (2003)MARX, K. O capital: crítica da economia política: livro I, v. II. 19. ed. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 966 p. de “acumulação primitiva”. Na fase atual desse modo de produção, sob a égide do capitalismo contemporâneo, Harvey (2014)HARVEY, D. O Novo Imperialismo. 8. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014. aborda a intensificação dessa expropriação, caracterizando-a por “acumulação via espoliação”. Com base nesse aporte teórico, Fialho Nascimento (2006)FIALHO NASCIMENTO, N. S. Amazônia e desenvolvimento capitalista: elementos para uma abordagem da “Questão Social” na região. 2006. 195 p. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social, 2006. reflete sobre o papel que a Amazônia desempenha na totalidade do desenvolvimento do modo capitalista de produção, destacando a intensa exploração dos recursos naturais e da força de trabalho que, na Amazônia, se dá sobre homens e mulheres, nativos ou não da região.

O estudo da autora demonstra o caso emblemático do estado do Pará, onde a expansão sem limites do grande capital — especialmente, mas não só pela exploração mineral —, possibilita altas taxas de lucros para os capitalistas e, ao mesmo tempo, intensifica a pobreza e a desigualdade social, tanto no campo como na cidade, colocando a centralidade da “questão social” na região. Nos estudos selecionados pela RSL foi observado que a expropriação de povos e comunidades tradicionais se dá pela ação de agentes econômicos e estatais, que incentivam a construção de complexos portuários na Amazônia paraense, com vista à circulação de mercadorias para atender outras frentes de expansão capitalista (CASTRO et al., 2014CASTRO, E. M. R. et al. Mega projetos e novos territórios do capital: infraestrutura de transportes e portuária na Amazônia. In: CASTRO, E. M. R.; FIGUEIREDO, S. L. (org.). Sociedade, campo social e espaço público. Belém: NAEA, 2014.).

A produção de riqueza se materializa em diversas atividades produtivas — com destaque para a mineração e mais recentemente o agronegócio —, todas elas demandando não apenas recursos naturais, como também a ação do Estado como agente promotor das condições para o favorecimento das empresas capitalistas. A disputa por aqueles recursos se dá — principalmente, embora não unicamente —, com povos e comunidades tradicionais que mantém com a natureza uma relação metabólica. Estão criadas, assim, as condições para o surgimento de conflitos socioambientais que Acselrad (2004)ACSELRAD, H. Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Fundação Heinrich Böll, 2004. destaca surgirem na disputa de projetos antagônicos de apropriação e significação do mundo material pelo uso/acesso aos recursos naturais.

Os resultados alcançados com este trabalho nos permitiram uma aproximação analítica aos conflitos socioambientais decorrentes da implantação de complexos portuários no estado do Pará — como parte dos fenômenos sociais produzidos pela sociedade do capital, decifrando a produção de manifestações das expressões da “questão social” na Amazônia paraense a partir da expansão de complexos portuários em territórios ocupados por povos e comunidades tradicionais. Neste processo, os conflitos socioambientais daí decorrentes expressam a disputa entre distintas formas de uso da natureza que se dão entre diferentes grupos, em função de modos distintos de inter-relacionamento ecológico (LITTLE, 2006LITTLE, P. E. Ecologia política como etnografia: um guia teórico e metodológico. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 12, n. 25, p. 85-103, 2006.).

Dialogando com Acselrad (2004), eACSELRAD, H. Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Fundação Heinrich Böll, 2004. tomando como referência os dados levantados sobre ameaças às comunidades tradicionais, foi possível identificar que a presença de complexos portuários no estado do Pará, incentivados por agentes estatais e econômicos, está ocasionando diversos impactos socioambientais sobre a natureza e o modo de vida/trabalho de comunidades tradicionais. Das disputas entre os diferentes agentes, emergem conflitos pelo uso e acesso de recursos naturais, uma vez que a presença do grande capital e/ou do Estado, vem impactando os bens naturais e, por conseguinte, a população que vive na região e que se relaciona com a natureza. Os estudos selecionados também indicam que as comunidades tradicionais organizam frente de resistências com o apoio de movimentos sociais, entidades, pesquisadores/as de instituições de ensino, Organizações Não Governamentais entre outros sujeitos coletivos.

Como parte da análise dos conflitos socioambientais decorrentes de complexos portuários no estado do Pará, foram mapeadas as formas de resistência dos povos e comunidades tradicionais. Segundo Iamamoto (2015, pIAMAMOTO, M. V. O serviço social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. 26. ed. São Paulo: Cortez, 2015. 326 p.. 114), as relações sociais e de produção entre classes “[...] em seus recortes de gênero, raça, etnia, religião, nacionalidade, meio ambiente etc. [requerem] decifrar, também, as formas de resistência e rebeldia com que são vivenciados pelos sujeitos sociais”. A resistência frente a esses processos se dá através da organização dos povos e comunidades tradicionais, sendo identificadas, nos estudos selecionados pela RSL, formas diversas de luta.

As lutas sociais no campo e na cidade possuem como horizonte a garantia dos direitos fundamentais para a reprodução das condições subjetivas e objetivas do ser social, como alimentação, saúde, habitação, educação, renda, transporte, lazer, acesso e posse da terra, trabalho e um meio ambiente seguro incluindo, como nos afirma Acselrad, Mello e Bezerra (2009)ACSELRAD, H.; MELLO, C. C. A.; BEZERRA, G. N. O que é justiça ambiental. Rio de Janeiro: Garamond, 2009., as dimensões ecológicas, físicas, sociais, políticas, estéticas e econômica. Nos estudos selecionados pela RSL, identificamos que a expropriação das terras e dos territórios dos povos e comunidades tradicionais, produzindo o deslocamento forçado desses segmentos e a degradação ambiental, traz rebatimentos para a questão agrária, urbana e ambiental, intensificando as expressões da “questão social” que se manifestam por meio da fome, empobrecimento das famílias, adoecimento físico e mental entre outras.

Os resultados da pesquisa que realizamos evidenciam, entre outros aspectos, não apenas a histórica reprodução das expressões da “questão social” no contexto amazônico. Indicam também que o avanço de múltiplas expressões produtivas (agronegócio, pecuária, mineração etc.), e de sua correspondente infraestrutura — como é o caso dos complexos portuários aqui analisados —, conduzem a destruição da natureza e, consequentemente, da própria vida humana no planeta. Como destacado por Wallace (2020, pWALLACE, R. Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. Tradução: Allan Rodrigues de Campos Silva. São Paulo: Elefante, 2020. p. 608.. 20), abordando as mudanças na produção e no uso do solo associados à monocultura do capital intensivo, as origens da cepa do novo coronavírus guardam relação com o circuito do capital, em que “[...] a produção capitalista de alimento mostra sua insustentabilidade também do ponto de vista das doenças globais que são geradas em fábricas, laboratórios de melhoramento genético e campos de cultivo”. Segundo o autor, a forma de produção e acumulação capitalista incentiva o desmatamento, ocasionando o aparecimento de patógenos e sua transmissão para animais selvagens, destes para os da pecuária e consequentemente para os/as trabalhadores/as.

Agradecimentos

Agradecemos ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS/UFPA) e ao Grupo de Pesquisa em Políticas Urbanas e Movimentos Sociais na Amazônia (GPPUMA/UFPA) pelas oportunidades de aprendizado coletivo. Da mesma forma agradecemos à Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), na pessoa do seu Coordenador José Guilherme Carvalho e ao Pesquisador Jondison Cardoso Rodrigues, a ambos pela contribuição no trabalho de campo. Por fim agradecemos àqueles(as) que, direta e indiretamente, contribuíram para os resultados da pesquisa, em especial às comunidades tradicionais do município de Abaetetuba/Pa.

  • 1
    A utilização das quatro entrevistas disponibilizadas e da observação in loco se justifica em função: 1) do contato direto com parte das famílias da comunidade Guajará de Beja, quando tivemos a oportunidade de dialogar sobre os impactos ambientais para a comunidade ocasionados ainda pelo complexo portuário, industrial e urbanístico na Vila do Conde, em Barcarena/PA e as novas ameaças à comunidade com a construção do empreendimento portuário da Terminais Líquidos da Amazônia (TLA) em Abaetetuba/PA; 2) da observação in loco do território, durante a viagem de campo, possibilitar o registro das alterações em curso na natureza (especialmente o desmatamento), a partir das obras da construção do empreendimento portuário da TLA.
  • 2
    Para Behring e Boschetti (2007)BEHRING, E. R.; BOSCHETTI, I. Política Social: fundamentos e história. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2007. 212 p. v. 2., há alguns processos históricos centrais que vão requisitar respostas do Estado e da burguesia e que levam à tona a “questão social, são eles: 1) base para o processo de acumulação do capital: subsunção do trabalho ao capital, extraindo o mais-valor; 2) emersão do pauperismo, são aqueles que não se inserem ao assalariamento, compondo o exército de reserva ou superpopulação relativa e; 3) presença dos trabalhadores na cena política, colocando em foco a “questão social” em suas diversas expressões.
  • Agência financiadoraO Curso de Mestrado realizado no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS) da Universidade Federal do Pará (UFPA) foi realizado com Bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) no período de 01 de janeiro de 2020 a 31 de maio de 2021. Código de Financiamento 001. Número do Processo: 88887.474372/2020-00.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participaçãoProjeto de Pesquisa submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Pará (UFPA), Certificado de Apresentação de Apreciação Ética - CAAE nº 41636920.9.0000.0018, aprovado em 18 de fevereiro de 2021 pelo Parecer nº 4.546.779.
    Consentimento para publicaçãoAs Autoras consentem a publicação do presente manuscrito.

REFERÊNCIAS

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    » https://racismoambiental.net.br/2018/08/13/carta-denuncia-elaborada-por-comunidades-tradicionais-do-municipio-de-abaetetuba-para/
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    29 Jun 2022
  • Aceito
    07 Out 2022
  • Revisado
    06 Dez 2022
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