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Desdobramentos das desigualdades raciais na pandemia da Covid-19

Developments in racial inequalities in the Covid-19 pandemic

Resumo:

O presente estudo tematiza o racismo na sociedade de classes e tem como objetivo analisar os desdobramentos das desigualdades raciais na pandemia da Covid-19. Logo, utilizou-se o método materialismo histórico-dialético e uma abordagem qualitativa. Dessa forma, foi realizada uma pesquisa bibliográfica e documental, além de um trabalho de mapeamento a partir dos dados secundários do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2019; Atlas da violência de 2020, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA); e o Boletim especial 20 de novembro de 2021, do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), para dialogar com a realidade dos afro-brasileiros em cenário pandêmico. Dos resultados do estudo, destacamos: que o racismo tem sido um eixo estruturante da sociedade brasileira mesmo numa fase pós-abolicionista; e que a questão racial tem sido uma das expressões da questão social na sociedade do capital, de tal modo que as desigualdades são conexas na contemporaneidade; e ainda, que a pandemia acentuou as desigualdades raciais no Brasil.

Palavras-Chave:
Racismo; Capitalismo; Desigualdades

Abstract:

The present study thematizes racism in class society and aims to analyze the consequences of racial inequalities in the covid-19 pandemic. Therefore, the Historical-Dialectical Materialism method and a qualitative approach were used. In this way, a bibliographic and documentary research was carried out, in addition to a mapping work based on secondary data from the Brazilian Institute of Geography and Statistics (IBGE) of 2019, Atlas of Violence of 2020 made by the Institute of Applied Economic Research (IPEA) and the Special Bulletin 20 November 2021 of the Inter-union Department of Statistics and Socioeconomic Studies (DIEESE) to dialogue with the reality of Afro-Brazilians in a pandemic scenario. From the results of the study, we highlight that racism has been a structuring axis of Brazilian society even in a post-abolitionist phase; that the Racial Question has been one of the expressions of the Social Question in the society of Capital, in such a way that inequalities are connected in contemporaneity; and, that the pandemic accentuated racial inequalities in Brazil.

Keywords:
Racism; Capitalism; Inequalities

Introdução

A partir de uma reflexão histórico-critica, é possível analisar as desigualdades raciais dentro de uma sociedade de classes na coetaneidade, o capital entra em um processo de crise que se constitui em mais um momento de reparo e de remodelação. Para tanto, ele necessita se reestruturar e, ao se reestruturar, precisa, obrigatória e simultaneamente, tecer um projeto ideopolítico que lhe confira legitimidade e sustentação. Desse modo, nota-se uma correlação da questão racial atrelada à questão social. Nesse sentido, os percursos aqui eleitos têm como objetivo analisar os desdobramentos das desigualdades raciais na pandemia da Covid-19, sem olvidar que o racismo se transformou na força social e eixo estruturante da sociedade brasileira mesmo numa fase pós-abolicionista.

Logo, usamos abordagem qualitativa por meio do método do Materialismo Histórico-Dialético. Triviños (2008)TRIVIÑOS, A. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 2008. afirma que o método dialético, além de exigir capacidade reflexiva ampla, precisa do apoio de vasta informação e de sensibilidade para captar os significados e explicações dos fenômenos não só em nível de sua aparência, mas também, muitas vezes, de sua essência. Pretende-se aqui ir além das aparências e fenômenos, imergindo nas formas de existência, totalidade e dialogando com horizontes de uma práxis revolucionária e anticolonial. Dessa forma, partimos de uma pesquisa bibliográfica e documental combinada ao uso de dados secundários do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 2019; Atlas da violência de 2020; e o Boletim especial 20 de novembro de 2021, do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), para dialogar com a realidade dos afro-brasileiros em cenário pandêmico.

O fio condutor do artigo centra-se na correlação entre desigualdades, classes sociais e racismo e, do ponto de vista da organização da discussão, o texto está dividido em três seções além da introdução e conclusão, a saber: no primeiro momento, ocupamo-nos do debate sobre o ideal de brancura que permeia a sociedade brasileira, e que se coloca na esteira da estruturação e perpetuação do racismo à brasileira; na sequência, demonstramos a interseção primordial entre as questões social e racial para o exercício de compreensão das expressões das desigualdades raciais; e, por fim, a última seção do artigo aborda os desdobramentos dessas questões no cenário da pandemia da Covid-19.

O ideal de brancura no Brasil

Questões sobre a raça tem sido pontos centrais de discussões pelo mundo da ciência, de acordo com Miranda (2010, pMIRANDA, M. Classificação de raça/cor e etnia: conceitos, terminologia e métodos utilizados nas ciências da saúde no Brasil. 2010. 139 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2010.. 5), “a ideia de raça atravessa os séculos, habitando o imaginário dos seres humanos e sendo utilizada nas relações entre os indivíduos e povos a partir de diversas concepções e finalidades”. Surgiu baseada numa ideia e definição eurocêntrica e branca, pelo que Miranda (2010, pMIRANDA, M. Classificação de raça/cor e etnia: conceitos, terminologia e métodos utilizados nas ciências da saúde no Brasil. 2010. 139 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2010.. 5) afirma ainda que “a palavra raça entrou na língua inglesa no começo do século XVI, sendo que as mudanças no seu uso refletem a compreensão popular das diversidades físicas e culturais”. Para Munanga (2003)MUNANGA, K. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: SEMINÁRIO NACIONAL RELAÇÕES RACIAIS E EDUCAÇÃO (PENESB-RJ), 3., 5 nov. 2003, Programa de educação sobre o negro na sociedade brasileira. Rio de Janeiro, 2003. Disponível em: https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racismo-dentidade-e-etnia.pdf. Acesso em: 21 out. 2021.
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, os cientistas naturalistas dos séculos XVIII-XIX desenvolveram suas pesquisas baseadas na designação de grupos humanos por meio dos atributos físicos e, infelizmente, desde o início, eles se deram o direito de hierarquizar e estabelecer uma escala de valores entre as chamadas raças, elegendo uma relação intrínseca entre o biológico e as qualidades psicológicas, morais, intelectuais e culturais, reforçando pseudociências fundamentadas na raciologia e em teorias racistas.

Consequentemente, essa hierarquização ajudava a validar o sistema de dominação racial humano que sucedeu com a escravidão de pessoas negras no Brasil, na sua continuidade mesmo no pós-abolição e nas experiências da primeira e segunda guerras mundiais, como foi o caso da replicação do Fascismo na Itália e do holocausto nazista na Alemanha. Conforme Hasenbalg (1979)HASENBALG, C. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979., Nascimento (1978)NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978., Cashmore (2000)CASHMORE, E. Dicionário de Relações Étnicas e Raciais. São Paulo: Selo Negro, 2000., Hall (2003)HALL, S. Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003., Munanga (2003)MUNANGA, K. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: SEMINÁRIO NACIONAL RELAÇÕES RACIAIS E EDUCAÇÃO (PENESB-RJ), 3., 5 nov. 2003, Programa de educação sobre o negro na sociedade brasileira. Rio de Janeiro, 2003. Disponível em: https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racismo-dentidade-e-etnia.pdf. Acesso em: 21 out. 2021.
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e Moura (1991)MOURA, C. As injustiças de Clio: o negro na historiografia brasileira. Belo Horizonte: 1991., dentre outros, a raça definitivamente não é um conceito regularizado pela biologia e com certeza padece de influências sociopolíticas no constructo ideopolítico, promovendo a manutenção das desigualdades e regalias sociais. Desse modo, não usamos aqui raça em um sentido biologista para demarcar nosso posicionamento, mas como uso sociológico e político para analisar a questão étnico-racial brasileira.

Sendo assim, questões do racismo, da mestiçagem cultural e da miscigenação racial ainda persistem como amarras fundamentais para o entendimento do Brasil contemporâneo. Para Fry (2005)FRY, P. A persistência da raça: ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África austral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005., enquanto no Brasil um mestiço pode se tornar branco, dependendo de seu fenótipo, nos Estados Unidos prevalece a regra da hipodescendência, que pressupõe o “não purismo”, logo, a existência do mestiço está condicionada a quem tem sangue negro ou indígena pertence às comunidades negras ou indígenas, sendo rejeitados no universo dos brancos. Para Zarur (2003), aZARUR, G. A utopia Brasileira: etnia e construção da nação no pensamento social brasileiro. en: Etnia e Nação na América Latina. Rio de Janeiro: FLACSO, Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales, 2003. utopia brasileira se fortaleceu com a expansão da perspectiva culturalista, a qual consistia exatamente na crença da chegada inevitável de uma civilização nova, mestiça e original, cuja ideia de branqueamento era reforçada no imaginário popular. No Brasil, após a abolição da escravatura, a miscigenação começou a partir de investimentos governamentais, na intenção de clarear a pele da população brasileira, houve em trinta anos a vinda de mais de três milhões de europeus — além de atos de violências sexuais cometidos contra mulheres negras e índias. Em concordância com Santos (2014), oSANTOS, M. História de reencontro: ancestralidade, pertencimento e enraizamento na descoberta de ser negra. 2014. 117 p. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. surgimento desta sociedade brasileira está intimamente ligado aos abusos e estupros sofridos por mulheres negras e indígenas.

A predominantemente racista orientação da política migratória foi outro instrumento básico no processo de embranquecer esse país. A assunção prevalecente, inspirando nossas leis de imigração, considerava a população brasileira como feia e geneticamente inferior por causa da presença do sangue negro-africano. (NASCIMENTO, 1978, pNASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.. 70).

É a partir desse contexto que Jesus (2011)JESUS, R. Ações Afirmativas, Educação e Relações Raciais: conservação, atualização ou reinvenção do Brasil? 2011. 278 p. Tese (Doutorado em Conhecimento e Inclusão Social) - Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011. lembra o estopim da crença e defesa da Eugenia, sendo esta considerada a ciência responsável pelo aprimoramento da raça. E se buscou aumentar o contingente das raças consideradas “superiores”, ao passo que coibia o aumento das raças consideradas inferiores, como forma de atenuar os riscos de degeneração da sociedade brasileira, profetizados pelo racismo científico, idealizado e reforçado pelo Darwinismo social1 1 “O darwinismo social pode ser definido como a lei de aplicação das leis da teoria da seleção natural de Darwin na vida da sociedade humanas. Seu grande mentor foi o filósofo Herbert Spencer (1820-1903), que inclusive criou a expressão “sobrevivência dos mais aptos”, que mais tarde seria utilizada por Darwin. O darwinismo social que os seres humanos são, por natureza, desiguais, ou seja, dotados de diversas aptidões inatas, algumas, superiores outras inferiores” (BOLSANELLO, 1996, p. 154). . O projeto de embranquecimento racial, moral e intelectual da nação passou a constituir o cerne do movimento nacionalista da Primeira República. Para Fanon (2008)FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008., é o colono que cria o colonizado, ou o racista é que cria o inferiorizado. Essas reflexões ajudam a estabelecer a conexão de uma sociedade historicamente fundamentada no racismo estrutural, científico, cultural e político que não respeita as diversidades multiculturais de sua genealogia. Muitas vezes desconsidera a população preta, indígena e todos os corpos que não são representados nessa hegemonia e ideal de brancura brasileira.

A Questão Social e a Questão Racial

Para subsidiar nossos entendimentos, vale a pena revisitar o pensamento de Ianni (1992)IANNI, O. A ideia do Brasil Moderno. São Paulo, Brasiliense, 1992., que afirma que a Questão social é dada conforme a época e o lugar, mescla aspectos raciais, regionais e culturais, em consonância com o contexto econômico e político. Assim, para o autor, o tecido da Questão Social mescla desigualdades sociais e antagonismos de significação estrutural. Na mesma linha teórica, Iamamoto (2006)IAMAMOTO, M. V. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. 10. ed. São Paulo, Cortez, 2006. assevera que a Questão social compreende um conjunto de expressões das desigualdades sociais geradas no âmago das relações sociais de produção na sociedade capitalista. De tal modo, a Questão social expressa as desigualdades de classe que se manifestam nas problemáticas de gênero, raça, etnia, nacionalidade, meio ambiente entre outras. E na mesma esteira reflexiva, Fernandes (2008)FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes: o legado da “raça branca”. 5. ed. São Paulo: Globo, 2008. v. 1. (Obras reunidas de Florestan Fernandes). argumenta que a questão racial foi forjada, sobretudo, na transição da ordem econômica escravagista e senhorial interligadas às transformações do sistema Capitalista, e culminou nessa exclusão dos afrodescendentes quando situamos elementos como a qualificação educacional e ascensão social, econômica, qualidade de vida e acesso à saúde. Para os autores mencionados, a questão racial também é produto da Questão social e nasce no âmago de todas as disputas inerentes ao sistema capitalista2 2 “Capitalismo é um sistema econômico baseado na propriedade privada dos meios de produção e sua operação com fins lucrativos” (ZIMBALIST; SHERMAN, 1988, p. 6-7). .

Para Marx (2004), aMARX, K. Manuscritos econômicos-filosóficos. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2004. produção não apenas lança o homem como mercadoria humana, mas forma o homem como um ser mental e fisicamente desumanizado. Imoralidade, aborto, escravidão do trabalho, a partir do momento em que a humanidade se compõe especialmente de trabalhadores, dos quais deserdados são os proletários. Reconhece-se nesse processo de produção a superexploração da mão de obra do proletariado e uso de sua força de trabalho para acúmulos de riqueza e lucro do que Marx (2004)MARX, K. Manuscritos econômicos-filosóficos. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2004. designa como capitalista. Assim, conforme Iamamoto (2006, pIAMAMOTO, M. V. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. 10. ed. São Paulo, Cortez, 2006.. 31), “Capital e trabalho são uma unidade de diversos; um se expressa no outro, um recria o outro, um nega o outro. O capital pressupõe como parte de si mesmo o trabalho assalariado”.

O capitalismo monta toda uma arquitetura teórica para justificar cientificamente o que antes era justificado através de razões bíblicas, morais ou de competições locais. Com isto, o racismo como hoje é conhecido racionaliza-se, isto é, deixa de considerar essas diferenças raciais como simples opiniões teológicas ou empíricas, para afirmar que cientificamente as raças não brancas e o negro em particular encontram-se oprimidos e discriminados por incapacidade biológica de acompanharem o processo civilizatório, aqui confundido e identificado com expansão capitalista. (MOURA, 1991, pMOURA, C. As injustiças de Clio: o negro na historiografia brasileira. Belo Horizonte: 1991.. 214).

Portanto, é extremamente contraditório defender uma justiça social e racial sem entender as desigualdades pertinentes do sistema capitalista, que são fortalecidas pela meritocracia liberal e pelo mito da democracia racial3 3 Domingues (2005, p. 119) afirma que “o mito da democracia racial remonta o século XIX, a) respaldados pela literatura produzida pelos viajantes que visitaram o país b) pela produção da elite intelectual e política c) pela direção do movimento abolicionista institucionalizado e d) pelo processo de mestiçagem”. Para o autor havia uma elite científica que sustentava o pensamento de que o Brasil vivia uma suposta harmonia racial entre pretos, índios e brancos por ser um país mestiço. , contribuindo assim para a complexidade da questão racial brasileira. A partir desses movimentos, apresentamos alguns contornos e expressões da Questão Social em conexão com a Questão racial nos aspectos como: pobreza, violência, morte, exclusão, marginalização, preconceito, racismo, desigualdades raciais e sociais, seus desdobramentos contemporâneos, sobretudo na ausência de políticas públicas antirracistas. Sinalizamos, ainda, tais questões no cenário da pandemia da Covid-19, onde as desigualdades sociais e raciais se tornaram mais evidente dentro do sistema do capitalista.

O racismo na pandemia da Covid-19: desdobramentos das desigualdades raciais e o estatuto dos mortos vivos

É impraticável apresentar um estudo contemporâneo retratando as desigualdades sociais e raciais sem dialogar com o tempo presente e a situação da pandemia trazida pelo novo coronavírus 2019 (SARS-Cov-2 e suas variantes), problemas esses que angustiam o mundo inteiro após a origem de uma doença de alta contaminação e letalidade. Sabe-se que o surgimento desse vírus, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), teve notificação em 31 de dezembro de 2019 em Wuhan, na China, descritos os primeiros casos de pneumonia causada por um agente desconhecido. Logo, a China compartilhou a sequência genética com a OMS e países através do banco de dados internacional Global Initiative on Sharing All Influenza Data (GISAID) no dia 12 de janeiro de 2020. Desde então, essa enfermidade se espalhou velozmente e todas as nações assistiram incrédulas tal propagação com a superlotação dos hospitais, pelo que a doença do coronavírus causou várias crises no sistema de saúde global.

Uma pandemia sem precedentes se tornou um dos grandes desafios da humanidade em pleno século XXI e acabou por impactar todo o caminho da história e das nossas vidas. Existem alguns anos que a comunidade científica vem alertando sobre novas possíveis doenças e surtos pandêmicos, afiançando que não era uma questão de “se”, mas de “quando” surgiria tal mazela. O fato é de que, neste século, houve diversas epidemias que foram contidas estrategicamente em níveis geográficos e pontuais, como exemplos temos: a síndrome respiratória do Oriente Médio- MERS, os surtos do Ebola na África e a epidemia de gripe aviária (H5N1) e uma das mais devastadoras que matou entre 150 a 575 mil pessoas, a influenza H1N1 de 2009, embora a vacina dela tenha sido criada e disponibilizada no mesmo ano de seu surgimento, essa epidemia não deixou der ser extremamente grave. Contudo, nem de longe se compara com as mortes provocadas pelo atual coronavírus, que têm superado todas essas doenças juntas no quesito contaminação e letalidade. De acordo com estudos da Johns Hopkins University Medicine e seu Coronavirus Resource Center no ano de 2022 mostra a marca mundial de 6,64 milhões de óbitos. Nesse cenário, o Brasil se encontra no terceiro lugar no ranking dos países que mais mataram devido ao coronavírus, registrando até dezembro do respectivo ano o número de 690.229 mil mortos. Ficando atrás somente de dois países, nomeadamente: Estados Unidos da América e Índia.

O primeiro caso no Brasil de infecção pela doença ocorreu em fevereiro de 2020, na cidade de São Paulo, tratava-se de um homem de 61 anos de idade, que foi contaminado durante uma viagem internacional até a Itália. Porém, umas das primeiras vítimas letais do Covid-19 no país e que chamou muita atenção e comoção nacional foi o caso da Cleonice Gonçalves, 63 anos de idade, mulher negra que vivia na cidade do Rio de Janeiro e trabalhava desde os seus 13 anos de idade como empregada doméstica. Cleonice foi contaminada pelos empregadores, essa família sabia que estava com Covid-19, haviam positivado para a doença na semana anterior, mesmo assim não cumpriram o isolamento social e expuseram a trabalhadora doméstica, que faleceu em poucos dias após o contágio. Conforme Oliveira (2020)OLIVEIRA, A. A quarentena é branca: classe, raça, gênero e colonialidade. Realis, Recife, v. 10, n. 01, 2020. p. 193-203., esse exemplo emblemático demonstra como a disponibilidade de recursos médicos e financeiros determinam, em grande medida, quem sobreviverá e quem perecerá à pandemia. Outra história de vida que causou grande enternecimento e revolta nos brasileiros durante o período pandêmico foi a situação de Mírtes Souza, que igualmente às outras empregadas domésticas, continuou trabalhando durante a pandemia, pois esse trabalho ironicamente constituiu em um “serviço essencial”.

Mírtes Souza foi obrigada a levar seu filho consigo para o trabalho, e quando desceu para passear com o cachorro da família para a qual trabalhava ocorreu o incidente, no qual o filho entrou sozinho no elevador do prédio, impedido num primeiro momento por Sarí Côrte Real e, posteriormente, deixado sozinho. O menino morreu ao cair do nono andar, ao tentar ver sua mãe. No dia 3 de junho a polícia autuou a patroa em flagrante por homicídio culposo e, após pagar uma fiança de 20 mil reais, ela pôde responder o processo em liberdade. Concluído o inquérito em 1 de julho, Sarí Côrte Real foi indiciada pelo crime de abandono de incapaz. O caso teve grande repercussão e houve protestos em diversas partes do Brasil, com destaque para os protestos realizados em Recife, onde manifestantes se deitaram no chão em frente ao edifício onde ocorreu a morte de Miguel e entoaram “Eu só queria a minha mãe” (OLIVEIRA, 2020, pOLIVEIRA, A. A quarentena é branca: classe, raça, gênero e colonialidade. Realis, Recife, v. 10, n. 01, 2020. p. 193-203.. 4).

Na prática, o que aconteceu com essas mulheres negras dos exemplos acima, bem como outras brasileiras de origem humilde, vem sendo respaldado por um direcionamento de políticas neoliberais orientadas a partir de uma racionalidade da “cidadania sacrificial”. Assevera Reis (2021REIS, D. Pandemia e desigualdades raciais na educação brasileira: olhares crí(p)ticos. SciELO Preprints, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1590/SciELOPreprints.2711. Acesso em: 28 abr. 2022.
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, p. 2) que “não é novidade a constatação do caráter sistêmico e estrutural das desigualdades raciais no Brasil. São perceptíveis os impactos dessas desigualdades na manutenção das diferenças econômicas e sociais, com as barreiras interpostas entre brancos e negros”. A pandemia do recente coronavírus ratificou de modo mais contundente as agruras e disparidades sociais do país. Além disso, percebe-se uma postura do governo federal que incentiva políticas negacionistas totalmente na contramão de políticas de saúde, como a vacinação, o isolamento social e a quarenta, procedimentos esses que são preconizados pela OMS e por cientistas e pesquisadores de saúde que alertam e buscam a contenção da pandemia.

O capital humano, no linguajar neoliberal, não possui gênero, sexualidade, raça ou qualquer outra posição subjetiva. Porém, é claro, o neoliberalismo se intersecciona com poderes existentes de estratificação, marginalização e estigmatização, reconfigurando e reafirmando esses poderes. A necessidade de marcação desse sujeito “sem rosto”, na contramão do que é defendido pelos teóricos neoliberais, é essencial para se ressaltar as disparidades estruturais e os efeitos diferenciados que atingem mais determinados segmentos do que outros. E que interseccionam vulnerabilidades e violências no discurso e na prática da “cidadania sacrificial” vigentes na racionalidade neoliberal. (BROWN, 2018, pBROWN, W. Cidadania sacrificial, neoliberalismo, capital humano e políticas de austeridade. Tradução de Juliane Bianchi Leão. Cidade: Zazie Edições, 2018.. 54).

O Brasil demorou comprovadamente a atender medidas sanitárias mundiais e consequentemente a própria contenção do surto causado pelo coronavírus. Não é à toa que o país se encontra entre os mais afetados globalmente e essa ameaça se estende nas novas variantes.

O problema do negacionismo não diz respeito apenas à ignorância ou desconhecimento da doença e de seus efeitos nocivos à sociedade como um todo, ele também evidencia o perfil de um Estado neoliberal que tende a reduzir sua intervenção perante a problemática social instalada, operando, no campo ideológico, uma permanente e ampliada inversão da realidade. Tal posicionamento mostra um Estado que não planeja uma tomada de atitude de contenção e combate à pandemia, que não se preocupa com as condições sociais dos indivíduos e que prioriza o caráter economicista da crise sanitária. (COSTA; SILVA; ARRAIS NETO, 2021COSTA, R.; SILVA, A.; ARRAIS NETO, E de A. Aspectos nefastos da pandemia da Covid-19 sobre a política de educação no Brasil. Research, Society and Development, v. 10, n. 3, e29310313313, 2021., p. 4).

Destarte, é inquestionavelmente o cenário de caos que afeta, sobretudo, a população mais vulnerável e desfavorecida economicamente que em sua maioria são os afro-brasileiros e os povos indígenas. Quando sobrevivem, são relegados ao abandono estatal e a políticas que não os incorporam nem os favorecem. As reflexões postas parecem dialogar com aquilo que o filósofo camaronês Achille Mbembe (2017, pMBEMBE, A. Políticas da inimizade. Tradução de Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2017.. 152) tematiza em “Políticas da inimizade”, ao destacar as “[...] vastas populações que estão sujeitas as condições de vida muito próximas do estatuto dos mortos-vivos”. Para Mbembe (2018, pMBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução: Renata Santini. São Paulo: n-1 edições, 2018.. 41), “é essa capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é “descartável” e quem não é, é uma herança histórica e cultural”.

Sobre o racismo, Barzano e Melo (2020, pBARZANO, M.; MELO, A. A pandemia como propulsora de insurgências no porvir do ensino de biologia e educação ambiental: alguns apontamentos. Revista Sergipana de Educação Ambiental: REVISEA, São Cristóvão, v. 7, Número especial, 2020.. 4) asseveram que “as vidas ameaçadas são as das comunidades tradicionais, principalmente das comunidades quilombolas e indígenas e os bairros periféricos das cidades”. Para os autores, esse exemplo clássico é chamado de racismo ambiental e na esteira de Herculano (2006)HERCULANO, S. Lá como cá: conflito, injustiça e racismo ambiental. In: SEMINÁRIO CEARENSE CONTRA O RACISMO AMBIENTAL, 2006, Fortaleza. Anais [...]. Fortaleza, 2006., uma vez que estes corpos têm cor e, por séculos, de acordo com a história, jazeram invisíveis e abandonados em situações de completas de subalternizações no que se refere à ascensão de políticas públicas conexas às questões socioambientais, quais sejam: saneamento básico precário; repartição de água insuficiente; poluição; enfermidades parasitárias além de serem os corpos que mais circundam e, mais que isso, residem nas ruas. Muitas famílias vivem gerações de desumanização, por vezes, têm somente a rua como espaço para (sobre)viver.

Grande parte da população do mundo não está em condições de seguir as recomendações da Organização Mundial de Saúde para nos defendermos do vírus porque vive em espaços exíguos ou altamente poluídos, porque são obrigados a trabalhar em condições de risco para alimentar as famílias, porque estão presos em prisões ou em campos de internamento, porque não têm sabão ou água potável, ou a pouca água disponível para beber e cozinhar. (SANTOS, 2020, pSANTOS, B. A Cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Edições Almedina, 2020.. 23-24).

Observamos também outro modo de racismo, quando refletimos sobre as medidas sanitárias e a possibilidade de execução delas, no geral durante a pandemia ou até mesmo antes foi e é impraticável o cumprimento das medidas sanitárias, uma vez que os brasileiros não têm boa cobertura de saneamentos básicos, além de viverem em moradias abarrotadas.

No que diz respeito às condições de vida, as desigualdades por cor ou raça revelam-se também nas condições de moradia, tanto na distribuição espacial dos domicílios, como no acesso a serviços, quanto nas características individuais dos domicílios. Em relação à distribuição espacial, o Censo Demográfico 2010 verificou que, nos dois maiores municípios brasileiros, São Paulo e Rio de Janeiro, a chance de uma pessoa preta ou parda residir em um aglomerado subnormal era mais do que o dobro da verificada entre as pessoas brancas [...] Indicadores relacionados à cobertura de serviços de saneamento básico também apontam uma significativa desigualdade, segundo a cor ou raça. Em 2018, verificou-se maior proporção da população preta ou parda residindo em domicílios sem coleta de lixo (12,5%, contra 6,0% da população branca), sem abastecimento de água por rede geral (17,9%, contra 11,5% da população branca), e sem esgotamento sanitário por rede coletora ou pluvial (42,8%, contra 26,5% da população branca), implicando condição de vulnerabilidade e maior exposição a vetores de doenças (IBGE, 2019, p. 5).

A pobreza é visível a olho nu, inclusive antes da pandemia. Segundo Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADc) de 2018BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADc) COVID-19. Microdados [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2021. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 29 jun. 2022.
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do (IBGE), mais de 11,5 milhões de brasileiros moram em casas superlotadas, ou seja, que abrigam mais de três pessoas por dormitório. Os cômodos cheios são uma realidade mais comum entre os pretos e pardos. Nesse último recorte, há ainda um abismo entre as mulheres chefes de família brancas (8%) e mulheres chefes de família negras (12%). Santos (2020, pSANTOS, B. A Cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Edições Almedina, 2020.. 15) ressalta que “qualquer quarentena é sempre discriminatória, mais difícil para uns grupos sociais do que para outros”.

Entre o 1º e o 2º trimestre de 2020, 8,9 milhões de homens e mulheres saíram da força de trabalho - perderam empregos ou deixaram de procurar colocação por acreditarem não ser possível conseguir vaga no mercado de trabalho. Desse total, 6,4 milhões eram negros ou negras e 2,5 milhões eram trabalhadores e trabalhadoras não negros. [...] A comparação do volume da força de trabalho do 2º trimestre de 2021 com o mesmo período de 2020 mostra que a força de trabalho negra cresceu 3,8 milhões (1,79 milhões de homens e 1,97 milhões de mulheres). Já entre os nãos negros, o aumento foi de 2,3 milhões (963 mil homens e 1,38 milhões de mulheres). Porém, quando se compara 2021 com o 1º trimestre de 2020, antes da pandemia, nota-se que parcela expressiva de negros não voltou para a força de trabalho: 1,1 milhão de negras e 1,5 milhão de negros. Pode-se dizer que, no 2º trimestre de 2021, enquanto a força de trabalho não negra já equivalia a 92% do total registrado antes da pandemia (1º trimestre de 2020), entre os negros, esse percentual foi de quase 59%, número que levanta a questão sobre o destino desses quase 2,6 milhões de negros e negras (DIEESE, 2021, pDEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICAS E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS (DIEESE). Desigualdades entre negros e não negros se aprofunda durante a pandemia. Boletim especial 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, 2021. Disponível em: https://www.dieese.org.br/boletimespecial/2021/conscienciaNegra.html Acesso em: 28 abr. 2022.
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. 2-3).

Os dados da DIEESE (2021, pDEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICAS E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS (DIEESE). Desigualdades entre negros e não negros se aprofunda durante a pandemia. Boletim especial 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, 2021. Disponível em: https://www.dieese.org.br/boletimespecial/2021/conscienciaNegra.html Acesso em: 28 abr. 2022.
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. 4) comprovam que para os negros, a taxa de desemprego é sempre maior do que a dos não negros. Os campos de maiores atuação destinados às mulheres são os serviços domésticos ou “diaristas”, as mulheres representam mais de 92% inclusas nessas profissões, observamos também que 65% das vagas são ocupadas por mulheres negras e pardas. Isso posto, há um aprofundamento das disparidades conectando diretamente campos de raça/cor e sexo.

“Enquanto para os homens negros, ficou em 13,2%, no 2º trimestre de 2021, para os não negros, foi de 9,8%. Entre as mulheres, a cada 100 negras na força de trabalho, 20 procuravam trabalho, proporção maior do que a de não negras, 13 a cada 100”. (DIEESE, 2021, pDEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICAS E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS (DIEESE). Desigualdades entre negros e não negros se aprofunda durante a pandemia. Boletim especial 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, 2021. Disponível em: https://www.dieese.org.br/boletimespecial/2021/conscienciaNegra.html Acesso em: 28 abr. 2022.
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. 4).

Um ponto a ser analisado e refletido são as expressões das desigualdades raciais nos aspectos estatísticos relacionados mais diretamente com fatores como violência. São os trazidos pelo Atlas da Violência (2020, p. 68), elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), que fala sobre as vítimas de violência letal aqui no País, “indicam superioridade dos homicídios entre homens e mulheres negros (pretos e pardos) em relação a homens e mulheres não negros, chegando a ser 74,4% superior para homens negros e 64% para mulheres negras”.

Uma das principais expressões das desigualdades raciais existentes no Brasil é a forte concentração dos índices de violência letal na população negra. Enquanto os jovens negros figuram como as principais vítimas de homicídios do país e as taxas de mortes de negros apresentam forte crescimento ao longo dos anos, entre os brancos os índices de mortalidade são muito menores quando comparados aos primeiros e, em muitos casos, apresentam redução (IPEA, 2020, p. 47).

Ainda de acordo ao respectivo estudo do IPEA em seu Atlas da Violência (2020)IPEA. Atlas da Violência. Brasília, 2021. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/1375-atlasdaviolencia2021completo.pdf. Acesso em: 28 abr. 2022.
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, o retrato desolador significa em detalhes que a cada vinte e três minutos morre uma pessoa jovem negra ou parda. Ou seja, este número equivale a vinte e três mil jovens negros mortos por ano, cerca de sessenta e três diariamente. Viu-se que a chance de um jovem negro ou pardo ser morto é 2,5 vezes maior do que a de um jovem branco.

Da mesma forma, quando afunilamos nosso olhar para a questão de gênero “as mulheres negras representaram 68% do total das mulheres assassinadas no Brasil, com uma taxa de mortalidade por 100 mil habitantes de 5,2, quase o dobro quando comparada à das mulheres não negras.” (IPEA, 2020IPEA. Atlas da Violência. Brasília, 2021. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/1375-atlasdaviolencia2021completo.pdf. Acesso em: 28 abr. 2022.
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, p. 47). Entre 2008 e 2018, percebeu-se que a taxa de homicídios de negros no Brasil saltou de 34 para 37,8 por 100 mil habitantes, o que representou o aumento de 11,5% aos homens e mulheres negros e pardos. “A morte incendeia a vida, como se essa estopa fosse. [...]. Na lixeira, corpos são incinerados. A vida é capim, mato, lixo, é pele e cabelo. É e não é. Na televisão deu: Mataram a mulher, puseram o corpo na lixeira e atearam fogo!” (EVARISTO, 2015, pEVARISTO, C. Olhos d’Água. Rio de Janeiro: Pallas, 2015.. 62).

Quando se trata da violência policial, a polícia também extermina mais a população preta, esse fenômeno é retratado com precisão a partir do conceito da necropolítica. Seguindo essa reflexão, Ayub (2014, p. 109) aponta que “o racismo é o mais novo disfarce com o qual entra em cena o poder de soberania.”. Destarte, conclui Mbembe (2017, pMBEMBE, A. Políticas da inimizade. Tradução de Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2017.. 65): “o racismo é motor do princípio necropolítico enquanto este é epíteto da destruição organizada, em nome de uma economia sacrificial, cuja o funcionamento requer que de um lado, se reduza o valor da vida, e por outro se crie o hábito da perda”.

No entanto, o que pesa sobre a sustentação das democracias atuais é menos a recriação literal dessa violência, digamos, que nova, e mais ativa, invasiva, assentada dentro das comunidades dado que não mais se podem recompor as mesmas fronteiras coloniais entre o “nós e eles”, separar os amigos dos inimigos, aliados dos não aliados, por mais que se busque fazê-lo por meio de guerras ao terror e segregações étnicas, religiosas, raciais e nas nossas análises também potencializadas nas sociedades de classes. Consequentemente, o racismo estrutural brasileiro fortalece o nosso próprio caos e a conveniência do “estatuto dos mortos vivos” é responsável direto pela naturalização da morte, pobreza e destruição. Munanga (2017, pMUNANGA, K. As Ambiguidades do Racismo à Brasileira. In: KON, N. M.; SILVA, M. L.; ABUD, C. C. (org.). O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise. São Paulo: Perspectiva, 2017. p. x-y.. 41) afirma: “Eu resumiria o racismo brasileiro como difuso, sutil, evasivo, camuflado, silenciado, em suas expressões e manifestações, porém eficiente em seus objetivos”. Mediante ao exposto e devido às dificuldades no mundo e no Brasil antes, durante e pós pandemia refletimos o direito à dignidade humana. Em conformidade com a nossa Constituição Federal (CF) de 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso: 2 mar. 2019.
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, temos como direitos fundamentais:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I-a soberania; II-a cidadania; III-a dignidade da pessoa humana;

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I-construir uma sociedade livre, justa e solidária; II-garantir o desenvolvimento nacional; III-erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV-promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. [...];

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (EC nº 26/2000, EC nº 64/2010 e EC nº 90/2015) [...]; (BRASIL, 1998, p. 11, 18, 123, grifo nosso).

É notória a falta de cumprimento dos artigos que asseguram os direitos fundamentais dos brasileiros nos dias coevos, aos quais o atual governo de Jair Messias Bolsonaro e sua ofensiva neoliberal e negacionista demonstram seu descompromisso com a classe trabalhadora, sua aliança com a classe abastada, sua investida nos desmontes dos direitos sociais e fundamentação de suas políticas racistas, quando se trata do extermínio dos corpos negros. Observa-se assim, no desalento pandêmico da Covid-19, a defesa intransigente não pela vida, mas sim pela morte. A morte nessa imponderação não mais nos causa comoção coletiva nem estranheza, e no centro, os desdobramentos das desigualdades raciais se fazem presentes e persistentes.

Considerações finais

Analisar os desdobramentos das desigualdades raciais na pandemia da Covid-19 significou mostrar as agruras de todo um sistema que, além de privilegiar determinadas classes socais, também exclui e marca alguns corpos, sendo esses desumanizados sistematicamente e culturalmente na sociedade brasileira. Além disso, vimos uma pandemia das desigualdades que se expressou com muito mais rigor para população mais vulneráveis que não tiveram como cumprir as medidas sanitárias porque sequer possuíam habitações salubres para sua preservação e dignidade humana.

Nas constatações reveladas a partir das análises documentais no que tange à população afro-brasileira, as desigualdades raciais paradoxalmente às desigualdades sociais estão conectadas às escassas condições econômicas, sociais e familiares, na falta de infraestrutura, na carência de saneamento e serviços sociais básicos, na ausência de uma qualidade de vida, no enfrentamento da violência, vulnerabilidade social, completo abandono estatal, racismo e preconceito e descaso político para contenção da pandemia no País.

Ainda assim, nesse cenário que remonta à realidade de um país em guerra, de uma parcela populacional grande e ainda assim vulnerável, o povo preto tem sido resistente, protagonista e um grande antagônico às supressões da sociedade do Capital, dispondo-se ao ato corajoso de sobreviver, viver e resistir. Ao qual, parafraseando Conceição Evaristo (2015, pEVARISTO, C. Olhos d’Água. Rio de Janeiro: Pallas, 2015.. 62): “eles combinaram de nos matar, mas a gente combinou de não morrer”.

Desse modo, é importante fazer uma conexão da Questão Social e Racial na sociedade do capital, atentando-se para as desigualdades raciais que são diametralmente sistematizadas nesse processo para romper com as práticas racistas de nosso passado e presente alienante, que, conforme vimos, interfere intimamente no nosso modo de viver e se reproduz, inclusive nos tempos pandêmicos, que mostraram ser os mais difíceis e dilacerantes quando pensamos a coetaneidade.

Agradecimentos

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) e ao Programa Nacional de Cooperação Acadêmica na Amazônia (PROCAD-AM), pelo apoio à investigação.

  • 1
    “O darwinismo social pode ser definido como a lei de aplicação das leis da teoria da seleção natural de Darwin na vida da sociedade humanas. Seu grande mentor foi o filósofo Herbert Spencer (1820-1903), que inclusive criou a expressão “sobrevivência dos mais aptos”, que mais tarde seria utilizada por Darwin. O darwinismo social que os seres humanos são, por natureza, desiguais, ou seja, dotados de diversas aptidões inatas, algumas, superiores outras inferiores” (BOLSANELLO, 1996, pBOLSANELLO, M. Darwinismo social, eugenia e racismo “científico”; sua repercussão na sociedade e na educação brasileira. Revista Educar, Curitiba, p. 153-165, n. 12, 1996. DOI https://doi.org/10.1590/0104-4060.166
    https://doi.org/10.1590/0104-4060.166...
    . 154).
  • 2
    “Capitalismo é um sistema econômico baseado na propriedade privada dos meios de produção e sua operação com fins lucrativos” (ZIMBALIST; SHERMAN, 1988, pZIMBALIST, A.; SHERMAN, H. J. Comparing Economic Systems: A Political-Economic Approach. Orlando, Flórida: Harcourt College Pub, 1988. Disponível em: https://books.google.com.br/books?hl=pt-PT&l. Acesso em: 24 out. 2021.
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    . 6-7).
  • 3
    Domingues (2005, pDOMINGUES, P. O mito da democracia racial e a mestiçagem no Brasil (1889-1930). Aarhus, México. Redalcy, 2005.. 119) afirma que “o mito da democracia racial remonta o século XIX, a) respaldados pela literatura produzida pelos viajantes que visitaram o país b) pela produção da elite intelectual e política c) pela direção do movimento abolicionista institucionalizado e d) pelo processo de mestiçagem”. Para o autor havia uma elite científica que sustentava o pensamento de que o Brasil vivia uma suposta harmonia racial entre pretos, índios e brancos por ser um país mestiço.
  • Agência financiadoraCoordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)-PROCAD AMAZÔNIA: UFPA/PPGEDUC-UFMT/PPGE-UFAM/PPGE (Auxílio nº: 88887 200466/2018-00). Modalidade: Auxílio Moradia. Período: junho de 2022 a janeiro de 2023.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participaçãoNão se aplica.
    Consentimento para publicaçãoConsentimos a publicação do artigo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2022
  • Aceito
    07 Out 2022
  • Revisado
    07 Dez 2022
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