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Breve história da crítica marxista ao fascismo: disputas e elementos de análise

Brief history of Marxist criticism of fascism: struggle and elements of analysis

Resumo:

Em 2022, a ascensão fascista ao poder na Itália completou seu centenário. Desde as primeiras manifestações do fascismo, o marxismo se deteve à análise deste fenômeno com notável acuidade. Durante todo o período de ascensão do fascismo, a tradição marxista disputou internamente a compreensão e, consequentemente, seu enfrentamento, desenvolvendo três estratégias distintas, que se confrontaram no seio da Internacional Comunista. Dessas estratégias, apenas uma se deteve aos elementos metodológicos próprios do marxismo, analisando o fenômeno como vinculado à luta de classes e o situando no contexto da reprodução ampliada de capital em crise. Consequentemente, esta estratégia, delineada na década de 1920 e que alcança seu apogeu na década seguinte, mostra-se ainda mais pertinente diante do retorno do tema nos últimos anos. Assim, o presente texto resgata as categorias de análise da tradição marxista, traçando suas disputas e destacando suas conquistas a fim de qualificar o debate da atual quadra histórica e os riscos da volta do fascismo ao mundo do capital e suas possibilidades de enfrentamento.

Palavras-chave:
Fascismo; Marxismo; Crise

Abstract:

In 2022, the fascist victory in Italy completes one hundred years. Since the first manifestations of fascism, Marxism analyzes this phenomenon with remarkable accuracy. Throughout the period of the rise of fascism, the Marxist tradition disputed understanding internally and, consequently, the ways of combating fascism, developing three distinct strategies, which confronted each other. Of these strategies, only one dealt with the methodological elements inherent to Marxism, analyzing the phenomenon as linked to the class struggle and placing it in the context of capital in crisis. Consequently, this strategy, outlined in the 1920s and reaching its peak in the 1930s, is even more pertinent in the face of the return of the theme in recent months. Thus, the present text rescues the categories of analysis of the Marxist tradition, tracing its disputes and highlighting its achievements to analyze the current historical period and the imminent risks of the return of fascism to the world of capital.

Keywords:
Fascism; Marxism; Crisis

Introdução

Quando completou o centenário da posse de Benito Mussolini na Itália, ocorrida em 1922, o fascismo já ocupava o debate teórico-político há anos. Não somente em símbolos e atividades de grupos paramilitares e milícias, mas enquanto ações concatenadas e de influência e participação ativa em governos de economias relevantes como Hungria, Brasil, Ucrânia, Índia e Estados Unidos. Nesse momento, portanto, retomar o arsenal teórico mais consistente é imprescindível para superar a nova ofensiva fascista que confirma o predito pela tradição marxista de possível retorno diante da manutenção da sociabilidade capitalista.

Em contraposição à tentativa de apagamento da história, no presente trabalho apresentaremos uma breve síntese da história da tradição marxista na teorização e definição de estratégias de luta contra o fascismo. Longe de ser um relato idílico de consensos, os embates entre as diferentes compreensões sobre o fenômeno apontam a distintas estratégias, das quais a apreensão mais radical, que aglutina nomes como Antonio Gramsci, José Carlos Mariatégui, Clara Zetkin, Leon Trotsky e Ernest Mandel, saiu sempre derrotada. Este registro, todavia, não se limita ao resgate histórico. Ao serem sintetizadas as concepções e disputas, visamos trazer ao debate contemporâneo as categorias de análise da tradição marxista, agora já passíveis de crítica pelos combates realizados durante a ascensão, apogeu e declínio do fascismo entre 1920 e 1970.

Dessa forma, esse movimento de mergulhar ao fundo de um rio em que são depositadas as mais radicais críticas ao fascismo não se realiza para colocar artefatos em um museu, mas sobretudo para sua restauração ao uso como instrumento de luta e enfrentamento desta ameaça.

Com o objetivo de resgatar a história e, ainda, as categorias e o método da mais radical tradição marxista naquilo que denominamos antifascismo revolucionário, o presente texto busca qualificar o debate na atual quadra histórica em suas determinações e tendências de desenvolvimento, sem perdermos de vista sua inseparável unidade entre teoria e prática. Portanto, longe de esgotar o debate, nos propomos a iniciá-lo a partir dos marcos da Crítica da Economia Política, expondo os fundamentos do que se apresentaram como as três principais teses antifascistas da tradição marxista, com destaque ao antifascismo revolucionário.

A aurora do antifascismo revolucionário: Gramsci, Mariátegui e a Itália de 1920

Em 1920, Antonio Gramsci redige seu primeiro artigo sobre o fascismo. Na ocasião, o marxista italiano já observa o movimento de classes que fundamenta o fenômeno, tornado público e organizado a partir da fundação do Partido Fascista, em 1915 — posteriormente renomeado para Partido Nacional Fascista, após o fracasso eleitoral em 1919. À época, Gramsci associa o fascismo à contrarrevolução, baseada na violência paraestatal para restauração do Estado liberal em crise. É nítida a acuidade do revolucionário sardo em perceber que o fascismo, já em seus primórdios, não se restringe à Itália e se direciona a “[...] um aguçamento da luta capitalista contra as exigências mais vitais da classe operária” (GRAMSCI, 2004a, pGRAMSCI, A. Escritos Políticos: Volume 1, 1910-1920, São Paulo: Civilização Brasileira, 2004a.. 429).

No ano seguinte, 1921, Gramsci avança em sua teorização do fascismo, apontando à base social da pequena burguesia que perdia poder no espaço da produção e buscava “resolver os problemas da produção e da troca através de rajadas de metralhadora” (GRAMSCI, 2004b, pGRAMSCI, A. Escritos Políticos: Volume 2, 1921-1926. São Paulo: Civilização Brasileira, 2004b.. 46). É neste mesmo ano que, residindo na Itália e atento à ascensão fascista, o revolucionário peruano José Carlos Mariátegui publica em sua terra natal seu primeiro artigo crítico ao tema. Assim como Gramsci, Mariátegui caracteriza o fascismo enquanto um movimento contrarrevolucionário, de ação paraestatal, enquanto milícia que defende os interesses da burguesia em sua luta contra o avanço revolucionário do proletariado (MARIÁTEGUI, 2010).

Importante destacar que naquele momento a Itália vive um processo político intenso, protagonizado pelo operariado industrial da região de Piemonte. As greves e ocupações de fábricas levadas a cabo por este movimento se chocam abertamente ao Estado italiano, à época conduzido por Giovanni Giolitti. Ligado à democracia liberal burguesa e defensor dos interesses econômicos do capital industrial, o governo italiano não tem sucesso na contenção do movimento. Nesse período, tanto Gramsci quanto Mariátegui veem a Revolução Italiana florescer. O desaguar dessa história, contudo, termina em 1922, com a ascensão do fascismo ao governo e no golpe de Estado promovido pelos camicies neres, após a capitulação do Partido Socialista Italiano (PSI) e posterior cooptação do movimento operário pelo governo liberal.

No alvorecer da segunda década do Século XX, este final trágico não era, no entanto, um fato dado. A organização do proletariado colocou o governo italiano em xeque e enquanto a revolução era impulsionada concretamente pelos comunistas, o fascismo crescia nas bordas da sociedade, porém sem passar despercebido. Em princípio, as milícias dos camisas negras davam vazão a ex-militares descontentes com o próprio Estado italiano do primeiro pós-guerra, porém, em pouco tempo seu caráter de classe torna-se explícito e sua ação contra o proletariado fica mais visível à acuidade de revolucionários do quilate de Gramsci e Mariátegui.

As primeiras aproximações do marxismo com o fascismo assinalam, portanto, o caráter reacionário e antirrevolucionário deste movimento, voltado ao ataque frontal à possível ação revolucionária dos trabalhadores. Ao acentuarem o caráter paraestatal das milícias fascistas, Gramsci e Mariátegui alertam para a dialética entre aparência e essência do fenômeno: discurso de restauração da ordem a partir da ação violenta contra a classe trabalhadora revolucionária.

Já naquele momento, tanto Gramsci quanto Mariátegui apontavam à cumplicidade liberal diante do crescimento do fascismo. Merece relevo ainda que a caracterização de classe e a ação política reacionária do fascismo anterior à posse de Benito Mussolini como primeiro-ministro da Itália —ocorrida em outubro de 1922 —, que por si só elimina uma das mais marcantes definições de nazismo e fascismo como um autoritarismo de extrema-direita centrado em uma liderança carismática, populista e quase hipnótica, posto já ter alguns de seus principais elementos elencados antes do crescimento da popularidade do principal líder do Partido Nacional Fascista e ainda distante da ascensão da figura de Hitler na Alemanha.

O desenvolvimento do fascismo na Itália na década de 1920 suscita em Gramsci (2004a)GRAMSCI, A. Escritos Políticos: Volume 1, 1910-1920, São Paulo: Civilização Brasileira, 2004a. e Mariátegui (2010) o aprofundamento de suas análises. Suas conclusões se assemelham e tocam em diversos pontos, principalmente na consideração de que o fascismo apenas poderia ter dado frutos sobre as cinzas da revolução não realizada.

Para Mariátegui (2010, p. 317): “o fascismo italiano representa, plenamente, a antirrevolução ou, como se prefira chamá-la, a contrarrevolução. A ofensiva fascista se explica e se realiza na Itália como consequência de uma retirada ou de uma derrota revolucionária”. Na mesma esteira, Gramsci (2004a)GRAMSCI, A. Escritos Políticos: Volume 1, 1910-1920, São Paulo: Civilização Brasileira, 2004a. acentua o terrorismo paraestatal durante as greves e ocupações de fábrica em Piemonte, seguida da cooptação do movimento pelo governo conciliador de Giolitti.

Ambos os revolucionários apontam que o fascismo já em seus primórdios atua em defesa dos interesses do grande capital contra a classe trabalhadora revolucionária, mas que possui como base social a pequena-burguesia, desesperada diante de sua crescente proletarização. A retórica fascista aponta a um movimento aparentemente anticapitalista, como no caso italiano com a evocação da restauração do Império Romano. Sua ação concreta, contudo, atende aos interesses político-econômicos do capitalismo monopolista e atenta violentamente contra os quadros revolucionários e as conquistas do movimento proletário, como sua organização em sindicatos e partidos.

Dessa forma, as primeiras críticas marxistas ao fascismo encontram muitos pontos em comum em Gramsci e Mariátegui, que desde o princípio deste fenômeno apontam à reação burguesa contrarrevolucionária. Assim, desde o princípio, o fascismo foi compreendido pela tradição marxista enquanto uma ação de classe voltada a impedir a revolução proletária e que somente triunfa (o fascismo) quando o movimento revolucionário é derrotado, cooptado ou se retira da ação ofensiva. Com isso, a estratégia antifascista é uma só: a ofensiva revolucionária dos trabalhadores. Como sabemos, esta ofensiva não ocorreu naquele tempo e a Segunda Guerra Mundial é explícita quanto a isso.

Entretanto, tanto Gramsci quanto Mariátegui não viveram nem mesmo até o princípio da Segunda Guerra Mundial. O marxista italiano foi aprisionado em 1926 por Mussolini e morreu em 1937, pouco após sua libertação, enquanto o marxista peruano foi assassinado em 1930, com apenas 36 anos. E o que se seguiu após esse período permitiu analisar o fascismo em seus mais sombrios matizes e em todo seu processo de ascensão, maturidade e declínio.

A disputa pela estratégia antifascista marxista: social-fascismo e Frentes Populares

No IV Congresso Mundial da Internacional Comunista, o fascismo é pela primeira vez debatido, na esteira da posse de Benito Mussolini na Itália, poucos dias antes do evento. O convidado à análise do tema é Amadeo Bordiga, secretário-geral do Partido Comunista Italiano (PCd’I) e que expõe a tese conhecida como social-fascismo, que compreende o fascismo como fruto do recrudescimento temporário da democracia liberal burguesa (RIDDELL, 2012RIDDELL, J. Proceedings of the Fourth Congress of the Communist International, 1922. Chicago: Haymarket Books, 2012.). Para o social-fascismo, não é necessária uma proposta de enfrentamento ao fascismo em específico, conduzindo à conclusão de que o fascismo se trata de fenômeno passageiro e pontual extremamente violento, que, portanto, demanda que o movimento comunista aguarde seu declínio para voltar à cena política, evitando fustigar as milícias fascistas (RIDDELL, 2012, pRIDDELL, J. Proceedings of the Fourth Congress of the Communist International, 1922. Chicago: Haymarket Books, 2012.. 419).

Nos encontros prévios para o V Congresso, Clara Zetkin, representante do Partido Comunista Alemão (KPD) na III reunião do Pleno Ampliado do Comitê Executivo da Internacional Comunista, apresenta um informe em que expõe a compreensão do fascismo em termos muito semelhantes aos de Gramsci e Mariátegui. Para a revolucionária alemã, o fascismo expressa a decadência da economia capitalista que desperta e arrasta massas sociais que perderam segurança e garantia de sua existência (ZETKIN, 2019, p. 37-38).

Com milhares de sujeitos procurando novas possibilidades de sobrevivência, o fascismo, segundo Zetkin, possui uma ampla base social que é inflada por funcionários públicos, oficiais e militares de baixa patente e um amplo contingente de desempregados. Essa massa, desesperada em contexto de crise econômica, somente se junta às trincheiras fascistas quando o movimento revolucionário hesita diante da crise e se perde em acordos reformistas, ao invés de tornar o movimento uma ofensiva revolucionária. Assim, ficam desiludidos proletários e pequenos-burgueses em proletarização que viam nos ideais do socialismo uma solução diante de crise e, com isso, aderem ao radicalismo demagógico do fascismo quando observam não somente a constante piora de sua condição de vida, mas a passividade de diversos quadros de trabalhadores (ZETKIN, 2019, p. 38-39).

A burguesia é ciente de que diante de uma crise é necessário intensificar a exploração sobre o proletariado e vê nos aliados fascistas a ferramenta de que não dispõe naturalmente para impor esse destino aos trabalhadores. Assim, a burguesia financia as milícias fascistas que se voltam contra o movimento dos trabalhadores, bodes expiatórios do hipócrita “projeto revolucionário” fascista e seus meios de terror para frear os “inimigos da nação”: os socialistas. Em seguida, o informe de Zetkin prossegue apresentando a análise do fascismo na Itália e Alemanha, demonstrando o caráter demagógico de seu programa e seu tendencial ocaso no aparato do Estado de que são incapazes de alterar e questiona a tese do social-fascismo (TABLER; RIDDELL, 2019M. TABLER; J. RIDDELL. Introdução. In: ZETHKIN, C. Como nasce e morre o fascismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2019.).

Assim como Gramsci, Zetkin opõe-se em seu país à socialdemocracia e seus acordos com governos moderados, mas como fez o revolucionário sardo, compreende que as hordas fascistas são distintas tanto da socialdemocracia, quanto também são uma ameaça diferente dos embates entre comunistas e socialdemocracia em seus respectivos países. No entanto, assim na Itália como na Alemanha, a disputa entre comunistas e socialdemocratas é levada erroneamente à pauta prioritária do movimento revolucionário, nublando a análise concreta do avanço nazifascista. Esta situação é agravada com a morte de Lênin no ano do V Congresso em que Zetkin se preparava a debater o fascismo a partir da análise de seu contexto econômico e base social que releva o tema em torno dos próprios rumos da Internacional Comunista.

Com a radical mudança de rumos na União Soviética (URRS), com Joseph Stálin à frente e sua tese do “socialismo em um só país”, a socialdemocracia é alçada ao posto de grande inimiga da revolução, fundamentando expulsões, prisões e execuções de dissidentes e opositores mesmo no seio do Partido Comunista da URRS (PCUS). No V Congresso, nem Zetkin, nem Gramsci apresentam suas propostas de radicalização, com o encontro sendo hegemonizado pelos debates do fracasso da Revolução Alemã e pela sucessão de Lenin, com Joseph Stálin à frente da URRS e Mikhail Bukharin da Internacional Comunista.

Em 1925, com o crescimento do fascismo na Alemanha após o fracasso de sua revolução, a Internacional não realiza seu congresso. Se até 1923 os encontros são anuais, a partir de 1924, ano da morte de Lênin, os congressos passam a ser esporádicos. Desse modo, o VI Congresso somente se realiza em 1928, com Gramsci já prisioneiro de Mussolini, e ratifica a estratégia já utilizada pelo KPD de não aderir a uma frente única antifascista, adiando a ação revolucionária ao momento de definhamento do movimento fascista.

O social-fascismo, entretanto, já enfrentava forte resistência no período, tanto na Alemanha, quanto na URRS. Na Alemanha, a influência de Zetkin fomenta em Otto Bauer e Thalheimere a difusão da compreensão da luta ofensiva socialista como alternativa, enquanto na URRS Evguiéni Pachukanis (2020)PACHUKANIS, E. B. Fascismo. São Paulo: Boitempo, 2020., no final de 1926, publicava seu primeiro texto sobre o fascismo, reconhecendo a grande participação de camadas pequeno-burguesas no movimento fascista, mas não a considerando como base do movimento que se apoiaria em um irracionalismo e chauvinismo de diversas vertentes e que expressaria a desilusão democrático-parlamentar da sociedade capitalista em sua fase imperialista, governada para o grande capital monopolista e financeiro (PACHUKANIS, 2020, pPACHUKANIS, E. B. Fascismo. São Paulo: Boitempo, 2020.. 25-55). No ano seguinte Pachukanis é mais enfático e se aproxima ao apresentado por Zetkin três anos antes, e, em 1927, afirma que o fascismo busca conduzir a política do grande capital se apoiando na organização de massas, na qual estão representados predominantemente pequeno-burgueses, mas também proletários. (PACHUKANIS, 2020, pPACHUKANIS, E. B. Fascismo. São Paulo: Boitempo, 2020.. 60-61).

Nos anos seguintes, o revolucionário se aproxima ainda mais do antifascismo revolucionário, contudo, tem seu estudo interrompido por um processo de perseguição iniciado a partir de 1935 e que o leva à prisão no ano seguinte e execução em 1937. Diante disso, a posição antifascista de cunho revolucionário perde sua conexão na URSS e as críticas ao social-fascismo recaem em um novo caminho, iniciado no VII e último Congresso Mundial da Internacional Comunista, realizado em 1935 após os primeiros processos a Pachukanis e com Adolf Hitler como chanceler da Alemanha há dois anos e meio — demonstrando o fracasso da estratégia social-fascista. Na ocasião, Bukharin já não mais preside a Internacional há um ano, estando à frente agora o comunista búlgaro Georgi Dimitrov, duro opositor não somente à fracassada estratégia social-fascista, mas, sobretudo um crítico veemente da compreensão que vincula o fascismo a uma base social pequeno-burguesa, como defendido 12 anos antes por Zetkin, e com considerável crescimento nos partidos comunistas da Alemanha e relativa inserção na União Soviética. Nesse congresso, Dimitrov (1935)DIMITROV, G. A luta pela unidade da classe operaria contra o fascismo. In: CONGRESSO MUNDIAL DA INTERNACIONAL COMUNISTA, 7., 2 ago. 1935. Editora História, Aldeia Global, (Informe). Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/dimitrov/1935/fascismo/index.htm. Acesso em: 2 nov. 2020.
https://www.marxists.org/portugues/dimit...
apresenta uma terceira e nova compreensão sobre o fascismo: a de que se trata de um fenômeno próprio do capital financeiro e dos círculos mais reacionários da burguesa que desenvolve uma demagogia anticapitalista diante da perda de credibilidade dos tradicionais partidos burgueses. Em um cenário de crise econômica e agravamento da miséria, uma massa pode aderir a este projeto hipocritamente anticapitalista comandado pelo capital financeiro e contra si mesma.

Sob essa compreensão é formulada a estratégia das Frentes Populares, que busca agrupar a classe trabalhadora aos grupos menos reacionários, imperialistas e chauvinistas da própria burguesia. A urgência das Frentes Populares supraclassistas aponta ao outro extremo da estratégia do social-fascismo e ainda que combata o fascismo, igualmente adia a luta revolucionária para depois da derrota fascista, agora a ser efetivada por uma aliança dos sujeitos mais progressistas da sociedade em geral. Essa estratégia logo se torna hegemônica, e como sabemos, não freia o crescimento do fascismo nem na Alemanha, nem no restante da Europa, com consequências gravíssimas na Ásia, como a invasão à Manchúria.

A crítica de Trotsky e a retomada do antifascismo revolucionário

No princípio da década de 1930, Alemanha, Itália e Japão vivenciam a consolidação do fascismo, vivenciando processos genocidas, somente combatidos quando ameaçou os países do capitalismo central, pois enquanto a Etiópia fora conquistada pela Itália (1936) e a Manchúria e a China foram invadidas pelo Japão (1931 e 1936), o mundo capitalista permaneceu em silêncio. A omissão liberal e socialdemocrata, todavia, não silenciou as análises de diversos críticos que se debruçaram sobre estes eventos. Tanto os teóricos da Escola de Frankfurt quanto os marxistas se envolveram no desvelamento do fenômeno, com produções de fôlego. Trotsky ingressa nesse debate retomando os elementos elencados por Zethin e continuados por Talhemeire e outros integrantes do KPD e sintetiza esta análise com a inserção da base econômica que sustenta o fascismo. Sua tarefa é intensificada dramaticamente pelo fracasso das Frentes Populares e a nomeação de Hitler a chanceler da Alemanha (1933).

Já naquele momento, o revolucionário soviético avança nas compreensões de Gramsci e Mariátegui — que não foram conhecidas nem pelo KPD, nem por Trotsky — e insere em sua análise a base material que fundamenta a ação contrarrevolucionária do fascismo oriunda de sua base social pequeno-burguesa e que apenas pode ocorrer em um período de aguda crise que fundamente uma situação revolucionária ao proletariado (TROTSKY, 2018TROTSKY, L. Como esmagar o fascismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2018.).

Trotsky afirma que para abalar a resistência da classe trabalhadora em um período de aguda crise é necessário um movimento de massas, para vencer os trabalhadores pela violência nas ruas. Isso de fato ocorreu no desenrolar da crise de 1929 na Itália, Alemanha e Japão, com profundas marcas em Portugal a partir de 1933 e na Espanha após sua Guerra Civil (1936-1939). E esse movimento de massas apenas pode ocorrer quando a pequena-burguesia, esta classe entre o proletariado e os capitalistas, consegue conduzir um movimento de massas contra sua própria proletarização, mas em nome de todas as frações de classes atingidas pela crise em curso, angariando apoio decisivo no lumpemproletariado, campesinato, pequenos proprietários, funcionários do Estado etc.

Trotsky (2018)TROTSKY, L. Como esmagar o fascismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2018. assinala que, antes de chegar ao Estado, o fascismo tem como propósito aniquilar os avanços da classe trabalhadora, dentre os quais os elementos da democracia socialista presentes na democracia parlamentar burguesa, como os sindicatos, partidos políticos, movimentos etc. Desse modo, o socialista soviético alerta que o fascismo é um movimento de classe que atende às necessidades do grande capital monopolista, mas que, por ser o capital monopolista constituído de poucos sujeitos, encontra na pequena-burguesia em vias de proletarização diante de uma crise econômica sua base de massas necessárias a aniquilar o movimento revolucionário da classe trabalhadora.

O momento em que sua base social (a pequena-burguesia) está disposta ao grande capital é fundamental, pois em períodos de crise do capital o proletariado tem a oportunidade revolucionária, ao que também pode convocar a pequena-burguesia (TROTSKY, 2019TROTSKY, L. A luta contra o fascismo: revolução e contrarrevolução. São Paulo: Sundermann, 2019.). Diante do potencial avanço revolucionário dos trabalhadores, o capital pode ter de renunciar a sua democracia liberal, politicamente apoiada na socialdemocracia e sua base proletária (TROTSKY, 2019, pTROTSKY, L. A luta contra o fascismo: revolução e contrarrevolução. São Paulo: Sundermann, 2019.. 207). Com isso, o capital monopolista rompe com seu consenso e cooptação construído a partir da convocação da socialdemocracia para a acomodação da classe trabalhadora e, diante da piora das condições de vida da classe trabalhadora e ante a possibilidade concreta desta classe abandonar os sirênicos cânticos da socialdemocracia, ao capital monopolista não restam muitas opções a não ser financiar o fascismo, conduzido ideologicamente pela pequena-burguesia e com adesão de outras classes e frações de classe (TROTSKY, 2019, pTROTSKY, L. A luta contra o fascismo: revolução e contrarrevolução. São Paulo: Sundermann, 2019.. 207). E é somente aqui que ingressa o capital financeiro, ou melhor, sua junção com o grande capital industrial para a conformação do capital monopolista.

Dessa forma, em momentos de crise, abrem-se condições para ação revolucionária do proletariado, como desde 1848 Marx e Engels (2017)MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 2017. assinalaram e reiteraram (2011, 2012). Frente à insatisfação generalizada, ao capital, em sua fase monopolista, a socialdemocracia perde suas condições de cooptação da classe trabalhadora, crescendo o movimento da pequena-burguesia reacionária e antirrevolucionária. Entre financiar uma ou outra base de apoio, o capital monopolista pode aderir ao fascismo desde que este se apresente como o mais forte aliado contrarrevolucionário (TROTSKY, 2019, pTROTSKY, L. A luta contra o fascismo: revolução e contrarrevolução. São Paulo: Sundermann, 2019.. 208).

O apoio do capital monopolista ao fascismo é somente a última opção do capital monopolista, alerta Trotsky (2019, pTROTSKY, L. A luta contra o fascismo: revolução e contrarrevolução. São Paulo: Sundermann, 2019.. 365), pois este teme o fascismo tendo de apoiá-lo quando a socialdemocracia já não pode mais conter os avanços autônomos da classe trabalhadora, como pode ocorrer quando diante de uma crise o operariado caminha à revolução como resolução da condição de crescente penúria das classes trabalhadoras e camponesas, além das camadas médias, como a própria pequena-burguesia. Ao contrário da estratégia das Frentes Populares, o revolucionário soviético destaca aqui o papel do capital monopolista de financiador, não criador, de um movimento de massas de base pequeno-burguesa, apoiado por diversas frações de classes, como o lumpemproletariado.

Como Gramsci, Mariátegui e Zetkin, Trotsky aponta à perda do horizonte revolucionário radical a desmoralização do movimento revolucionário, que perde apoio não somente da pequena-burguesia, mas das demais classes e frações de classe potencialmente revolucionárias, como o lumpemproletariado e grandes parcelas do próprio proletariado. Com projeto mais ousado, o fascismo pode se apresentar como a proposta anticapitalista mais radical de resolução da crise, ainda que este projeto seja meramente demagógico.

Assim, as hordas fascistas podem ser compostas por diversas frações de classes, sobretudo aquelas que mais sofrem com o agravamento da miséria e da proletarização, mas seu movimento é conduzido pela pequena-burguesia, apoiada em um ousado e hipócrita projeto anticapitalista de cunho nacionalista e repleto de supostos inimigos internos, sendo o principal deles o socialismo/comunismo. Este movimento não é, entretanto, autônomo, crescendo somente quando financiado pelo capital monopolista, que nele investe quando a socialdemocracia já não possui mais respaldo material para prosperar, diante de uma grave crise econômica que expurga sua capacidade de cooptação do proletariado, do campesinato e das camadas médias.

Assim, o capital monopolista faz com que a pequena-burguesia comande a contrarrevolução e mesmo que não consiga a controlar em suas tentativas de chegar ao Estado; assim que esta o alcança, o capital monopolista faz com a pequena-burguesia o que já fizera com o proletariado na socialdemocracia: a desarma e mantém o controle do Estado capitalista.

O fascismo, desse modo, somente ascende ao Estado quando a revolução proletária já foi debelada. Uma vez no Estado, o cinismo pequeno-burguês se explicita e os projetos e propostas anticapitalistas e antissistema são abandonados por um Estado que atua em benefício do capital monopolista em detrimento da própria pequena-burguesia, decaindo, então, a um Estado Forte, ditatorial em benefício do capital monopolista. (MANDEL, 1974).

A análise de Trotsky elaborada na década de 1930, especialmente em seu exílio na Turquia (1933-1936), não pôde observar todo o movimento fascista em seu crescimento, apogeu e declínio, mas sintetiza a mais radical compreensão antifascista revolucionária sobre o tema. Trotsky então realiza o papel de elencar as categorias de análise deste fenômeno a partir do método marxiano, analisando a produção e reprodução de capital e a luta de classes engendrada na sociabilidade capitalista, fundamentando não somente a análise deste fenômeno, como também realizando uma substancial crítica às estratégias delineadas na Internacional Comunista e derrotadas na Itália (social-fascismo) e na Alemanha (Frentes Populares).

O desenvolvimento do método: Mandel e os governos autoritários de 1960 e 1970

A riqueza da síntese trotskista se confirma com nitidez nos governos da Península Ibérica entre meados da década de 1930 e primeira metade da década de 1970. Em Portugal, sob o governo de Salazar (1933-1974) e na Espanha sob Franco (1936-1975), a acuidade desta tradição que culmina em Trotsky se mostra com precisão. Diante da Guerra e de avanços de movimentos revolucionários naquelas nações, os fascistas derrotam violentamente nas ruas a classe trabalhadora, mas, uma vez no Estado, atuam não somente em prol do capital monopolista como se caracterizam pelo mais completo Estado Forte capitalista até meados dos anos 1970. E é antes do fim da ditadura na Espanha que o fascismo volta ao debate mundial.

A despeito das análises que viam nessas ditaduras o retorno do fascismo, Mandel (1976, pMANDEL, E. Sobre o fascismo. Lisboa, Edições Antídoto, 1976.. 36) é enfático: “a tarefa principal hoje em dia não é a luta contra o neofascismo impotente, mas, sim, contra a ameaça real de um ‘Estado forte’, que é importante evitar a confusão nas ideias”. Mandel compreende que naquele momento a incapacidade do capital, em se reproduzir em suas bases diante de uma debilitante crise de superacumulação, demanda grande necessidade de centralização do poder do Estado no capitalismo. O custo dessa centralização pode, todavia, ser demasiado elevado ao capitalismo, dada a resistência da classe trabalhadora, o que tende a limitar o espaço de tempo das formas autoritárias capitalistas.

O acerto de Mandel (1976, pMANDEL, E. Sobre o fascismo. Lisboa, Edições Antídoto, 1976.. 39), todavia, não possuía validade ad infinitum ao que o economista alerta: “enquanto existir o capitalismo de monopólio, o mesmo perigo, talvez sob uma forma ainda mais terrível e com uma barbárie ainda mais inumana, pode ressurgir”. Para defender sua conclusão, Mandel realiza um indispensável movimento de síntese da produção teórica marxista sobre o fascismo. Sem propor-se a atualizar as categorias da teorização marxista sobre o tema, Mandel resgata a concepção trotskysta e analisa seu tempo à luz dos elementos sintetizados pelo revolucionário soviético, com destaque ao ensaio “Sobre o fascismo” (MANDEL, 1976MANDEL, E. Sobre o fascismo. Lisboa, Edições Antídoto, 1976.).

No texto, o economista responde à crescente análise do fascismo desenvolvida pelo pensamento liberal e socialdemocrata na busca por compreender as ditaduras militares que se espraiavam por todos os continentes. Naquele período, não era raro chamar toda ditadura de fascismo. À época, o texto de Mandel reverberou menos do que era necessário. A história, entretanto, ainda que tenha obscurecido a síntese mandeliana deu-lhe razão, e não podemos chamar as ditaduras mundiais dos anos 1960 e 1970 de fascistas, ainda que cruéis, desumanas e antirrevolucionárias. Isso porque todos esses Estados, como destaca Mandel, se caracterizam enquanto Estados Fortes dada sua composição de classe e a organização da própria luta de classes em cada nação, carecendo das características próprias da ditadura fascista, a dizer: o contexto de crise capitalista; a ação de massas dirigida pela pequena-burguesia contra o proletariado e suas conquistas na democracia burguesa; o confronto violento que somente alça o movimento fascista ao Estado quando o proletariado já foi derrotado nas ruas, com eliminação dos elementos da democracia socialista presentes na democracia burguesa, como partidos e sindicatos antes da tomada do Estado pelo fascismo, que não o toma de assalto, mas sucessivamente em uma luta de milícias, até chegar ao Estado sem enfrentar resistência.

Uma vez no Estado, o fascismo deixa de ser dirigido pela pequena-burguesia e volta às mãos do capital monopolista, enquanto se definha em um Estado Forte sem resistência da classe trabalhadora, previamente silenciada e carente de seus instrumentos de luta. A esses elementos precede uma situação revolucionária que o proletariado não soube realizar, perdendo sua direção no movimento de massas ao aparente radicalismo “anticapitalista” da pequena-burguesia. E são esses os elementos que constituem a conquista mais radical do marxismo sobre o tema, na única estratégia não posta à prova pelo movimento revolucionário, diferente das duas fracassadas estratégias do social-fascismo e das Frentes Populares.

Considerações finais

Historicamente, a tradição marxista se dividiu no combate teórico e político ao fascismo. Parte dessa tradição analisou o fenômeno a partir da luta de classes, compreendendo o contexto de crise econômica e política do capital em suas dificuldades inerentes ao seu contraditório movimento de autorreprodução ampliada, que fundamentam uma ação revolucionária do proletariado em meio às lutas de classes, enquanto outras correntes partiram de análise conjunturais, deslocando-se do centro econômico e da base de classes que constitui o método.

Se desde a aurora do fascismo o antifascismo revolucionário concebeu o fenômeno como a resposta do capital monopolista que convoca a pequena-burguesia e seduz parte do proletariado ante a piora das condições de vida e frente ao vacilo revolucionário do proletariado, já na década seguinte, marxistas soviéticos conceberam o fascismo enquanto (a) um movimento autoritário do próprio do capitalismo e, posteriormente, como (b) uma ação do capital financeiro em tempos de crise e direcionada contra todas as demais frações de classes.

Como consequência, essas compreensões conduziram a táticas pautadas em (a) o proletariado não se envolver na luta antifascista, e em (b) unir-se a todas as demais classes e frações de classe sem pôr como ordem do dia uma ofensiva socialista. Ambas as táticas realizaram o que alertaram os antifascistas revolucionários: o vacilo proletário diante de uma crise e potencial situação revolucionária. Com isso, uma fração de classe - que radicalizou as ações de combate à crise cresceu e se tornou um amplo movimento de massas - inicia sua ação terrorista aniquilando a própria classe trabalhadora apequenada diante de uma situação desta magnitude.

A ação que tem à frente a pequena-burguesia, a despeito de se dirigir como promete (a dizer “contra o sistema”), assume as tarefas que a democracia burguesa em crise não pode fazer ante uma ascensão do movimento operário, ou seja, atacar direitos, conquistas e instrumentos de luta da classe trabalhadora com a finalidade de ajustar a base de exploração em tempos de crise de valorização do valor. Em discurso contra a ordem vigente, o fascismo ganha apoio das massas empobrecidas que já não mais veem no movimento operário força suficiente para a resolução de seus males, enquanto na prática o fascismo atua contra a revolução em gérmen.

Se o esmagamento do proletariado se concretiza, o movimento fascista tende a alcançar o Estado de onde opera dentro dos ditames do capital monopolista em crise. A resolução da crise, mediante o avanço sobre a classe trabalhadora, é igualmente prejudicial à pequena-burguesia e seus apoiadores — à exceção do capital monopolista —, e conduz o Estado fascista ao definhamento restaurador em um Estado Forte.

Vemos nesse processo muitas semelhanças aos movimentos recentes na Ucrânia, Itália, Hungria, Brasil, Índia e Estados Unidos, por exemplo. Não é acaso — nem tampouco fruto das redes sociais, nova geração, surgimento da pós-política, da desdemocratização ou do sadopopulismo — que todos esses movimentos se desenvolvem a partir de 2008, ano da maior crise capitalista desde 1973. Tanto há cerca de um século quanto hoje, o crescimento dos movimentos fascistas e neofascistas tem sua origem em um mesmo contexto: uma crise detonada pela incapacidade do capital de encontrar formas de reprodução ao excesso de valor acumulado pelo capital financeiro. Vivemos em um período sem precedentes na história humana, o que tem criado dificuldades imensas ao movimento de valorização do valor (DANTAS, 2009DANTAS, A. A grande crise do capital. Cadernos de Ética e Filosofia política, v. 1, n. 14, 2009, p. 47-72. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/cefp/article/view/82984. Acesso em: 22 jun. 2020.
http://www.revistas.usp.br/cefp/article/...
; CHESNAIS, 2008): há hoje tanto capital acumulado na esfera financeira que as fontes capitalistas que recebem investimento não conseguem reproduzir este valor nas taxas de valorização anteriores. Com isso, são desencadeados movimentos econômicos e políticos.

Economicamente, a superacumulação de capital é tanta que já não existem mais condições objetivas concretas de valorização ampliada da mais-valia acumulada (CHESNAIS, idem), em uma característica crise de superacumulação de capital, implicando na necessidade recorrente de crises, como já demonstrara Marx (2008)MARX, K. O capital: o processo global de produção capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, livro III, v. 4, 2008. ainda no século XIX. Politicamente, esta crise demanda do Estado capitalista a reorganização das bases para exploração da força de trabalho, colocando em xeque as conquistas democráticas, sociais e trabalhistas reconhecidas pelo Estado capitalista, como sindicatos, partidos políticos, liberdade de organização e pensamento etc. Sem possibilidades de manter o movimento de valorização do valor diante da queda da taxa de lucros, o capitalismo se arrasta em crises cíclicas, que desde o princípio da década de 1970 tem cada vez menores períodos de crescimento (MANDEL, 1985MANDEL, E. O capitalismo tardio. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985.).

A partir da crise de 2007, o capital passa a avançar sobre fundos de pensão, aposentadorias e outros direitos da classe trabalhadora, ao mesmo tempo em que os endividamentos públicos, o autoemprego e o trabalho remunerado por hora passam a ser a alternativa ao drástico crescimento do desemprego no mundo. Após a crise de 2008 se espraiar, ocorrem as primeiras manifestações sociais contra o avanço autoritário do Estado burguês em direção à readequação das taxas de lucro e exploração, sob o comando cada vez mais tirano do capital financeiro, pouco a pouco contaminadas pelos anseios da pequena-burguesia.

À primavera árabe (2010-2012), foram seguidos os atentados neonazistas na Noruega (2011), a guerra civil ucraniana (2014) e as eleições de Donald Trump nos Estados Unidos (2016), Jair Bolsonaro no Brasil (2018) e Narendra Modi na Índia (2019). Entre esses grandes eventos em pontos centrais de disputa da geopolítica, o Brasil conheceu seu movimento capitaneado pelos ideais pequeno-burgueses: as Jornadas de Junho de 2013, inicialmente um movimento sem a direção pequeno-burguesa, mas posteriormente hegemonizado por seus ideais. Às jornadas de Junho de 2013, seguem-se o vacilante movimento contra a Copa de 2014, os movimentos de 2015 (já majoritariamente reacionários), e o golpe de Estado de 2016, promovido pelo capital financeiro e proprietários fundiários, e seguido pela eleição presidencial de Jair Bolsonaro (2018) e sua base de apoio pequeno-burguesa em aliança com o lumpemproletariado, parte da aristocracia proletária, dos proprietários fundiários e do capital financeiro.

Dispensa dizer que todas essas manifestações atendem a necessidade capitalista de reorganização do Estado em tempos de crise e que carregam em si a inevitável exclusão do pequeno capital, que luta por sua sobrevivência. Com potencial de mobilização das massas e de organização de todas as demais classes excluídas do poder estatal em reorganização, o pequeno capital se apresenta, assim, como anticapitalista em sua aparência, até ser absorvido pelo poder Estatal e ou abandonar as demais classes à sua própria sorte, ou constituir um Estado fascista.

Nesse cenário, observa-se um embate entre socialdemocracia e fascismo; a primeira se apoiando na democracia parlamentar burguesa e o segundo combatendo-a. Em comum, ambas buscam garantir condições de produção e realização da mais-valia produzida pela classe trabalhadora. Em momentos de prosperidade, o fascismo se recolhe em guetos, mas, diante de mais um estágio de agoniante crise, espraia-se em locais específicos da geopolítica global. Com as democracias capitalistas ameaçadas, a socialdemocracia luta para hegemonizar a luta antifascista, sem colocar na ordem do dia a revolução proletária, que já não pode prosperar sem aderir à defesa da democracia. Cabe, todavia, compreender quais os limites e desafios não somente diante do avanço do fascismo e do neofascismo ontem e hoje, mas da necessidade de realização do maior temor de fascistas e socialdemocratas: a revolução proletária.

Mais de cinquenta anos após esta última grande polêmica marxista quanto ao fascismo, nos deparamos com a volta à tona deste movimento não somente em discursos e símbolos, mas em ações que aproximam o fascismo de Estados nacionais. Faz-se relevante observar, portanto, para além das retóricas, pois pelo seu discurso o fascismo é até mesmo anticapitalista.

Assim, se a retórica de diversos chefes de Estado se aproxima assustadoramente da ideologia e fraseologia fascista, é indispensável considerar sua base de apoio, sua ação paramilitar, o momento de crise e, em especial, seu processo de ascensão realizado após debelar os instrumentos de luta e resistência da classe trabalhadora. Por este último elemento, percebe-se que, por exemplo, a ditadura civil-militar brasileira de 1964 a 1985 não era fascista, posto o Estado ser tomado de golpe com posterior fechamento de partidos, sindicatos e exílio e assassinato de opositores. Este elemento é comum a todo Estado Forte capitalista, mas não é característico ao fascismo que esmaga a classe trabalhadora antes de chegar ao governo e esvanecer paulatinamente em um Estado Forte. O mesmo se observa em Estados como a Hungria e os Estados Unidos, por exemplo. Para além da retórica e do autoritarismo, há movimentos de resistência e instrumentos de organização, tanto que o governo Trump foi derrotado em eleições presidenciais, algo que não aconteceria em um governo fascista.

Em vista disso, o processo de ascensão fascista marca que as opções revolucionárias não se esgotaram, posto a classe trabalhadora ainda conservar seus instrumentos de luta, ainda que sob ataque, não derrotados totalmente. A crise perdura e deve se agudizar nos dias que seguem. Se olharmos para a realidade concreta com os meios científicos que o marxismo nos fornece, não nos compete mais reformar o irreformável, mas fundar o novo. Enquanto o fascismo não houver derrotado todas as opções revolucionárias, sua presença como ameaça é indício de que está em disputa a opção mais radical de resolução da crise. As opções de abster-se da luta antifascista ou de os trabalhadores se unirem às demais classes, renunciando à direção e ação radical revolucionária, já falharam e indicam confirmar o que a tradição marxista iniciada em Gramsci, Mariátegui e Clara Zetkin, aproximada por Pachukanis e sintetizada por Trotsky afirma: o fascismo apenas se torna um movimento de massas quando o movimento revolucionário deixa de ser uma alternativa radical às classes trabalhadoras e à pequena-burguesia. Não se trata ainda, portanto, de uma luta entre fascismo e democracia, mas entre fascismo ou democracia socialista.

Agradecimentos

Aos participantes dos cursos do projeto de extensão Estudos Marxistas, da UFSC, que proporcionaram e instigaram parte da reflexão aqui exibida.

  • Agência financiadoraNão se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participaçãoNão se aplica.
    Consentimento para publicaçãoTodos os autores consentem com a publicação.

Referências

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  • ZETHKIN, C. Como nasce e morre o fascismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2022
  • Aceito
    07 Out 2022
  • Revisado
    05 Dez 2022
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