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A sociedade autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição

JAPPE, A.. A Sociedade Autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. São Paulo: Elefante, 2021. 326

Anselm Jappe, autor da obra A sociedade autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição (2021) recentemente publicada no Brasil pela Editora Elefante, nasceu na Alemanha em 1962, é professor na Academia de Belas Artes de Sassari na Itália e um dos principais nomes da teoria crítica do valor (Wertkritik) numa intersecção entre os grupos Krisis e Exit!. Nesta obra, Jappe (2021)JAPPE, A. A Sociedade Autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. São Paulo: Editora Elefante, 2021. 336 p. dá continuidade ao desenvolvimento de sua filiação teórica que parte da concepção marxiana de radicalidade, mais propriamente, que também não se deixa limitar pela tradição epistêmica dos múltiplos marxismos vinculados, por exemplo, à questão da luta de classes. Na esteira de um considerável conjunto de autores com maior ou menor vínculo teórico à Wertkritik, o autor mobiliza um amplo aparato conceitual ainda restrito no Brasil que se volta aos ideais que constituem historicamente a forma-sujeito moderna.

Já no prólogo de sua obra, Anselm Jappe (2021)JAPPE, A. A Sociedade Autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. São Paulo: Editora Elefante, 2021. 336 p. nos apresenta a imagem de Erisícton, mito grego que ilustra no tempo presente o fenômeno histórico das sociedades contemporâneas. Erisícton era o rei da Tessália que, desejando madeiras para a construção do assoalho de seu palácio, desprezou as ninfas e dríades da floresta, bem como a própria Deméter, deusa da colheita, e cortou uma árvore sagrada para estas criaturas e para o povo que ele havia recentemente expulso de tal território. Ao vê-lo derrubar tal árvore, Deméter anunciou à Erisícton sua punição: uma fome insaciável que, mesmo após o consumo de todos os suprimentos de seu reino, fez com que o rei da Tessália permanecesse faminto, restando a este o seu próprio autoconsumo, ou seja, a sua autodestruição. Do rei da Tessália ao amoque contemporâneo, a obra de Anselm Jappe atualiza a crítica à sociedade capitalista e aos seus produtos socio-históricos a partir de um campo teórico ainda em desenvolvimento. O autor apresenta uma análise teórica da sociedade contemporânea marcada pela condição autofágica do capitalismo, ou seja, da fome abstrata e quantitativa imanente à valorização do valor na sociedade capitalista. Ao elaborar tal tese, Jappe propõe, portanto, articular criticamente elementos da filosofia e da psicanálise sem reduzir a sua análise a qualquer um destes. A partir dessas articulações o autor expõe o caráter essencialmente moderno (e autofágico) de um conjunto de categorias como “valor”, “trabalho”, “fetichismo da mercadoria” e “dinheiro”, elementos estes fundamentais ao projeto civilizatório do valor expresso nos termos do capitalismo.

Dando continuidade aos argumentos anteriormente estruturados em seu livro As aventuras da mercadoria (2006), Anselm Jappe agora propõe através de uma crítica categórica à modernidade e à respectiva forma-sujeito que dela emerge, uma análise que não se deixa subsumir às determinações imanentes do próprio objeto criticado, mas que a compreende a partir do paradigma fetichista que a constitui. Trata-se, portanto, de uma crítica radical que não necessariamente busca conciliações entre as dimensões da vida cotidiana postas à crítica e a perspectiva teórica mobilizada pelo autor, mas que identifica que as expressões sociais, culturais e políticas da modernidade “nada têm de natural e que é possível viver sem elas” (JAPPE, 2021, pJAPPE, A. A Sociedade Autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. São Paulo: Editora Elefante, 2021. 336 p.. 313). Jappe, desse modo, aprofunda a tese da Dominação sem sujeito de Robert Kurz, membro já falecido da teoria crítica do valor (Wertkritik) vinculado à Exit!, ao identificar no processo de desenvolvimento histórico do pensamento filosófico moderno alguns dos pressupostos teóricos que idealizaram a forma do ser social, sobretudo como uma abstração que exerce uma pressão normativa diante das mais diversas instituições sociais.

Como derivado do projeto civilizatório do Esclarecimento, a forma-sujeito moderna adentra, no início do século XX, o “paradigma-fetichista”, segundo o autor. Daí emerge uma das teses centrais do livro que consiste em afirmar que tal paradigma expressa a condição do fetichismo do valor e da mercadoria como uma espécie de elemento de revestimento subjetivo dos sujeitos. Jappe (2021)JAPPE, A. A Sociedade Autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. São Paulo: Editora Elefante, 2021. 336 p. o compreende como um “espírito desencarnado” que nada mais é do que o valor capitalista se objetivando no mundo a partir, sobretudo, da dominação social de modo consciente e inconsciente. A crítica à sociedade autofágica é, portanto, a crítica à sociedade determinada em todos os seus âmbitos pelas imposições do projeto civilizatório do Esclarecimento e, consequentemente, da valorização do valor que acaba por expressar, sob inúmeras formas (psíquicas, culturais, econômicas, políticas, educacionais etc.), a crise estrutural do capitalismo num processo de “mutação antropológica” (JAPPE, 2021JAPPE, A. A Sociedade Autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. São Paulo: Editora Elefante, 2021. 336 p.).

Tal mutação corresponde às determinações normativas do próprio colapso gradativo do capital, tendo em vista o modo de constituição dos sujeitos sociais e, nestes termos, a crítica de Anselm Jappe à forma-sujeito vigente não pretende de maneira alguma recuperar uma forma-sujeito do passado como se essa representasse, em si, alguma alternativa à crise do capital, mas com sua crítica o autor d’A sociedade autofágica pretende justamente desvelar algumas de suas características históricas. Ao revisitar a filosofia moderna através de pensadores como Descartes, Kant e Sade até Schopenhauer e Stirner, Jappe nos fornece as pistas para o desenvolvimento histórico do sujeito — paralelo ao desenvolvimento do trabalho abstrato e do Estado moderno — e suas características. Dentre tais características, destaca-se como uma das mais fundamentais o narcisismo coexistente à presente forma do fetichismo da mercadoria. Nesse sentido, para elucidar o conceito de narcisismo, o autor recorre à variados estudos em Psicanálise (de Sigmund Freud à Christopher Lasch), detalhando alguns aspectos da personalidade narcísica tais como o desejo (impotente) pela onipotência; a recusa do mundo externo como algo independente dos desejos narcísicos; a incapacidade de estabelecer relações genuínas com as pessoas e com os objetos; a violência exercida sobre si mesmo que decorre de um processo de aclimatação do sujeito às determinações do valor etc.

Jappe (2021)JAPPE, A. A Sociedade Autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. São Paulo: Editora Elefante, 2021. 336 p. apresenta essa violência como parte da interiorização dos “constrangimentos sociais” do capitalismo e da capacidade de “se submeter às exigências da produção e de silenciar qualquer possível oposição a elas” (JAPPE, 2021, pJAPPE, A. A Sociedade Autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. São Paulo: Editora Elefante, 2021. 336 p.. 61). Tendo a posse de sua força de trabalho como um dos requisitos para ascender ao estatuto de sujeito, o autor retoma um dos elementos da tese da “dissociação-valor” de Roswitha Scholz, posteriormente aderida por Robert Kurz, de que o sujeito moderno é constituído, sobretudo, pelo arquétipo metafísico da figura do homem branco ocidental, delegando às mulheres e às populações não brancas o estatuto de coisas submetidas ao ideal socialmente valorado de sujeito.

No entanto, Jappe (2021)JAPPE, A. A Sociedade Autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. São Paulo: Editora Elefante, 2021. 336 p. também demonstra como as mudanças sociais alteram a abrangência do estatuto de sujeito, como o direito ao voto e a entrada das mulheres no mercado de trabalho, mas sem alterar a divisão entre sujeitos e não sujeitos e a violência que daí decorre, uma vez que o não sujeito é a encarnação de tudo aquilo que o indivíduo teve de negar para se tornar um sujeito. Como o autor explica:

Tudo o que a racionalidade triunfante teve de expulsar do sujeito, ‘separar’ dele mesmo, como as próprias pulsões ‘irracionais’, tornou-se ameaçador, informe, obscuro, e teve de ser atribuído a um ‘outro’ para poder ser dominado. [...]. O que foi apartado do sujeito moderno para tornar possível sua constituição é, designadamente, tudo aquilo que não pode assumir a forma de um ‘trabalho’ e, por consequência, a forma de um ‘valor’, ou seja, que não pode se tornar dinheiro enquanto representação do valor. (JAPPE, 2021, pJAPPE, A. A Sociedade Autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. São Paulo: Editora Elefante, 2021. 336 p.. 63).

O sujeito moderno é caracterizado, portanto, por uma cisão que submete e desqualifica tudo que não pode ser exprimido no dinheiro, e disso resulta a repulsa ao “outro” — ou aquilo que o representa — e que foi violentamente expurgado de si. Para Jappe (2021)JAPPE, A. A Sociedade Autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. São Paulo: Editora Elefante, 2021. 336 p., essa repulsa pode ser expressa no desejo de aniquilação do outro e que pode acabar se voltando contra o próprio sujeito, algo que o autor vincula ao conceito freudiano de pulsão de morte, caracterizado pelo “desejo de acabar com o mundo [...] e de acabar com o próprio sujeito, que sofre com o vazio interior e com a incapacidade de desenvolver uma relação real com o mundo”. (JAPPE, 2021, pJAPPE, A. A Sociedade Autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. São Paulo: Editora Elefante, 2021. 336 p.. 70).

A pulsão de morte se revela como resultado da crise da forma-sujeito e da forma-valor em curso hoje, o que leva o filósofo alemão a analisar a violência contra si e contra o mundo (o outro) através do amoque contemporâneo, expresso nos schoolshootings e nos atos de violência em outros locais públicos. Jappe (2021)JAPPE, A. A Sociedade Autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. São Paulo: Editora Elefante, 2021. 336 p. faz uso da descrição de diversos casos de violência (assassinatos em massa que majoritariamente culminam em suicídio) que ficaram mundialmente conhecidos, como o massacre de Columbine em 1999, o massacre de Charleston ou o ataque ao Charlie Hebdo, ambos em 2015. O argumento do autor é o de que o local escolhido para a realização do amoque é, na maioria dos casos, um local onde o sujeito presenciou uma “sequência de humilhações insuportáveis”, que produziram um “enorme ressentimento, a sensação de ter sido alvo de uma injustiça e de não ter tido o que merecia” (JAPPE, 2021, pJAPPE, A. A Sociedade Autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. São Paulo: Editora Elefante, 2021. 336 p.. 248).

A partir da análise da forma-sujeito através da crítica do valor, Jappe chega à conclusão de que o amoque contemporâneo se expressa por um “ódio sem objeto” e por um mecanismo de substituição que faz com que o sujeito, frustrado e ressentido por não ter os seus desejos atendidos como outrora lhe foi permitido acreditar, ao não conseguir atribuir a culpa de seu fracasso a um objeto específico, acaba substituindo esse objeto por outro, e “descarrega sobre o objeto de substituição a raiva que não pode exercer sobre aquele que é o verdadeiro objeto de sua raiva” (JAPPE, 2021, pJAPPE, A. A Sociedade Autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. São Paulo: Editora Elefante, 2021. 336 p.. 271). No entanto, também aponta para o duplo caráter do ato violento, uma vez que o desejo de aniquilar o mundo acaba por tornar difusa a separação que anteriormente existia entre o “eu” e o “outro”, fazendo com que a destruição coincida com autodestruição. O sujeito é o seu próprio senhor, é o único responsável por interiorizar os “constrangimentos sociais” do capitalismo e expurgar de si tudo o que se constituir em impedimento para a sua performance enquanto portador do estatuto de sujeito. Incentivado por um discurso de poder irrestrito e de inexistência de limites, o indivíduo se vê preso na concorrência exacerbada pelo capitalismo que só pode resultar na autofagia do sujeito moderno:

A disposição para destruir o outro na concorrência acaba num ódio generalizado ao mundo inteiro; mundo que essa concorrência reduziu a nada, incluindo o próprio sujeito. Este pensa estar seguindo os seus ‘interesses’, mas, na verdade, sem o saber claramente, detesta-se tanto quanto detesta os outros sujeitos. (JAPPE, 2021, pJAPPE, A. A Sociedade Autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. São Paulo: Editora Elefante, 2021. 336 p.. 286).

Desse modo, os fundamentos da teoria crítica do valor fazem o livro de Jappe andar na contramão da maioria dos autores contemporâneos que se voltam ao estudo do sujeito, visto que o autor não lamenta a perda ou o afastamento contemporâneo em relação aos ideais modernos da forma-sujeito. A obra A sociedade autofágica não pretende colocar-se no âmbito das disputas políticas pelas estruturas modernas presentes na experiência cotidiana, mas revelar as condições de uma potência negativa que se encontra contida no interior destas estruturas.

A obra de Jappe configura, portanto, um dispositivo teórico decisivo para a compreensão da condição contemporânea do capitalismo que devora a si mesmo tal como o mito grego de Erisícton, como também indica que o mito do progresso manifesto no pensamento da esquerda e da direita institucionalizada, não passa de mais uma forma de agrilhoamento da própria imaginação política e, portanto, das condições necessárias a um gradativo processo de saída do capitalismo.

Agradecimentos

Não se aplica

  • RESENHA: A Sociedade Autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição
    JAPPE, A. A Sociedade Autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. São Paulo: Elefante, 2021. 326 p.
    REVIEW: The Autophagic Society: capitalism, excess and self-destruction
    JAPPE, A. A Sociedade Autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. São Paulo: Elefante, 2021. 326 p.
  • Agência financiadora Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (FAPESC) Edital 015/2021 - Projeto ACF2021171000001 Edital de Chamada Pública Nº 48/2021
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação Não se aplica
    Consentimento para publicação Não se aplica

Referências

  • JAPPE, A. A Sociedade Autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. São Paulo: Editora Elefante, 2021. 336 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Jul 2022
  • Aceito
    28 Mar 2023
  • Revisado
    15 Maio 2023
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