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Sobre a natureza e o lugar do ideal na economia: a contraposição de György Lukács a variações do objetivismo e do subjetivismo

On the nature and place of the ideal in economics: György Lukács' opposition to variations of objectivism and subjectivism

Resumos

Resumo

O artigo identifica, expõe e discute algumas das teses fortes de György Lukács em sua Ontologia, quando o autor critica o que ele denomina como “certo dualismo metodológico”, em variantes teóricas objetivistas e subjetivistas, influentes no século XX e repercussivas na contemporaneidade, de todo modo, deformadoras do estatuto e das categorias sociais, em formulações incapazes de apreender a natureza, o lugar e o papel do “ideal na economia”. A economia não pode ser tomada como uma espécie de “segunda natureza”, posto que está influenciada, sempre, de alguma forma, de ponta a ponta, das suas expressões tópicas às profundas, por pores e processos teleológicos de diversos tipos. Por outro lado, não passam de “ilusionismo ontológico” as concepções que destituem o caráter material das categorias objetivas, dos nexos e das legalidades tendenciais da economia, em elaborações e variações que hipertrofiam as formas da subjetividade. Sugere-se que as vias originais da abordagem filosófica desses problemas, do seu equacionamento e esboço de respostas, nos termos da Ontologia, interessam a quem se preocupa, nos dias de hoje, em pensar e discutir as vicissitudes e os desafios dos processos de emancipação humana, bem como de encaminhar lutas concretas, consentâneas, nessa direção.

Palavras-chave:
Economia; Filosofia; Ontologia do Ser Social; Ideologia; Emancipação humana


Abstract

The article identifies, exposes and discusses some of the strong theses of György Lukács in his Ontology, when the author criticizes what he calls “a certain methodological dualism”, in objectivist and subjectivist theoretical variants, influential in the 20th century and repercussions in contemporary times, in any case, deforming the status and social categories, in formulations incapable of apprehending the nature, place and role of the “ideal in the economy”. The economy cannot be taken as a kind of “second nature”, since it is always influenced, in some way, from end to end, from its topical to profound expressions, by pores and teleological processes of various types. On the other hand, the conceptions that deprive the material character of the objective categories, of the nexuses and of the tendential legalities of the economy, in elaborations and variations that hypertrophy the forms of subjectivity, are nothing more than “ontological illusionism”. It is suggested that the original ways of philosophical approach to these problems, their equating and outline of answers, in terms of Ontology, are of interest to those who are concerned, nowadays, with thinking and discussing the vicissitudes and challenges of the emancipation processes human society, as well as directing concrete, consistent struggles in that direction.

Keywords:
Economy; Philosophy; Ontology of the Social Being; Ideology; Human emancipation.:


Introdução

Nas teses e argumentos que desenvolve na segunda parte da obra Para uma Ontologia do Ser Social, dedicada àqueles que são considerados, em termos gerais, nessas reflexões, como “os complexos de problemas mais importantes” do ser social1, Lukács pauta e discute uma vasta gama de questões que atravessam a tradição filosófica ocidental, incluída aí a tradição marxista, bem como debates e polêmicas candentes do século XX em torno desses problemas2.

O presente artigo se concentra na seção que abre o terceiro capítulo desta segunda parte da obra, quando o autor adentra o intrincado complexo de problemas em torno do “ideal e a ideologia”, iniciando suas elaborações a respeito com uma provocativa análise do “ideal na economia”.

Nesse percurso, o autor estabelece um diálogo crítico com o que ele denomina como “certo dualismo metodológico” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 356), no âmbito do qual se encontram, por um lado, posições teóricas tidas, por assim dizer, como objetivistas, nas considerações sobre a economia como uma espécie de “segunda natureza” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 383), regida por causalidades e legalidades mecânicas, deturpando ou destituindo, assim, o lugar e o papel do “ideal” e da subjetividade “na economia”, e no âmbito do qual se encontram também, em outro extremo, posições teóricas tidas como subjetivistas, em variantes como aquelas que dão as costas à realidade sociomaterial econômica ou que hipertrofiam o papel do ideal nesse campo.

Rearticulando e desenvolvendo pontos fundamentais firmados nos capítulos anteriores da obra, o autor busca estabelecer um tertium datur, um caminho distinto e alternativo a essas vias que conduzem a falsos extremos. A propósito, um argumento de base e princípio remete ao caráter do metabolismo homem-natureza, intermediado pelas capacidades, processos e pores teleológicos, o que abre para a compreensão da gênese, do despontar e do alcance das formas específicas da subjetividade humana, e esclarece também a gênese e a peculiaridade dos nexos e movimentos causais e das legalidades próprias do mundo social, incluídas aí aquelas que são próprias do complexo econômico.

Uma tese cara ao autor é aquela que sustenta que a forma específica da atividade humana, orientada pelo princípio teleológico, não somente funda a forma de ser, mas constitui também o “modelo” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 44) mais geral de toda atividade e de toda práxis humana, social, o que se verifica, portanto, também, quando se considera e analisa o complexo da economia.

Nesse sentido, a economia não pode ser considerada como uma espécie de “segunda natureza”, uma vez que o caráter e a dinâmica objetiva de suas categorias, de suas leis etc. são humanamente postos e são sempre, em algum grau, em alguma medida, influenciados por categorias intencionadas.

Essa questão do grau e da medida em que as categorias e as legalidades econômicas podem ser movimentadas e influenciadas por pores teleológicos possibilita uma aproximação a preocupações e teses centrais apresentadas pelo autor nesse passo das suas análises sobre o ser social. Nesse âmbito, é interessante anotar e ressaltar a importância da consideração da natureza “das forças a serem postas em movimento” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 358) pelos pores teleológicos na economia, sendo elas tanto as forças de caráter natural, quanto as forças propriamente sociais.

Interessa aqui anotar que num dos veios argumentativos o autor retoma categorias da filosofia clássica, bem como sua recuperação e tratamento crítico a partir do pensamento de K. Marx, como ocorre no caso da recorrência ao par categorial “aparência e essência”.

As discussões das teses lukacsianas que seguem no primeiro tópico do artigo, apresentando elementos que refutam as elaborações de alguma forma inscritas no âmbito do “dualismo metodológico”, se encaminham para uma abordagem mais detida, no segundo tópico, sobre a unidade da diversidade de fenômeno essência, tomadas ontologicamente, em sentido histórico-materialista e dialético, como categorias da realidade, quer dizer, antes de reflexivas, efetivas.

A concentração das reflexões sobre essa matéria, sem perder de vista suas imbricações com todo um complexo de categorias e nexos categoriais que não podem ser tratados nos limites do presente artigo, tem implicações e consequências bastante importantes sobre o debate da natureza, do lugar e do papel do “ideal na economia”.

Interessa neste ponto destacar o fato ontológico básico de acordo com o qual os seres humanos estão obrigados em suas atividades e seu comportamento perante o mundo externo natural e social a lidar primariamente com uma multiversidade de fenômenos que se manifestam na superfície da realidade econômica. Na medida em que esses fenômenos expressam determinações mais fundas e mais mediadas da realidade, ou seja, na medida em que esses fenômenos estão imbricados ou guardam relações inextrincáveis com processos mais essenciais da realidade, todas as formas subjetivas de interação com os mesmos impactam, de alguma forma e em alguma medida, também os movimentos e legalidades mais persistentes, mais duradouros, mais essenciais, da realidade econômica.

Essas elaborações serão retomadas nos movimentos de arremate do artigo, e serão consideradas em relação às tendências de conformação do ideal na economia, tanto àquelas correspondentes a formas de estranhamento, quanto àquelas tangentes às possibilidades de movimentos subjetivos críticos dos limites das expressões mais perfunctórias e fetichizadas do real.

Tem-se em vista que essas modalidades subjetivas e suas variações se conformam também como forças materiais interativas e incidentes sobre os movimentos mais essenciais da reprodução social, atuando, em algum grau e alguma medida, no sentido de conservar ou combater e transformar um determinado estado de coisas e situações sociomateriais historicamente postos.

Crítica ontológica ao economicismo e ao subjetivismo

Pode-se considerar, em termos iniciais, em grandes traços, que a dialética do trabalho e da reprodução social, a produção do novo e a reprodução de circunstâncias socialmente constituídas explicam o surgimento de categorias, complexos e legalidades sociais que vão se articulando e adensando na totalidade do ser social. É no bojo desses processos, nos movimentos contraditórios da autoconstrução do mundo humano, que surge a certa altura a capacidade de uma produção material que avança para além das necessidades de subsistência, capacidade que se articula, em certas circunstâncias, à produção de valores para a troca e ao intercâmbio, como se verifica nas situações sociais em que são trocadas e circulam mercadorias, na vigência da divisão social do trabalho e das relações da propriedade privada.

Trata-se, no caso, de um mundo de objetos, processos e relações disparados, no limite, por pores teleológicos, portanto, por atos humanos individuais e singulares, que desencadeiam e movimentam nexos e séries causais objetivas que se articulam e vão muito além dos fins primariamente ideados e realizados. Assim, por exemplo, a produção de excedente, bem como um conjunto amplo de processos e relações sociais que ela implica e engendra, são resultados espontâneos da referida dialética do trabalho e da reprodução social, cujos nexos e legalidades convergem para a constituição do chamado complexo da economia. Nas palavras de Lukács, “o fato básico mais material, mais fundamental, da economia, o trabalho, possui o caráter de um pôr teleológico” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 355). Contudo, a economia se constitui como um “complexo social de legalidade objetiva, em que cada um dos ‘elementos’ — por sua essência ontológica, igualmente complexos — determina a dinâmica do respectivo pôr teleológico, cuja totalidade gera a reprodução do ser social” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 360-361).

Reconhecendo que o complexo da economia se constitui e se caracteriza como um “complexo social de legalidade objetiva” , Lukács se volta, por um lado, contra as teses economicistas que subestimam ou desconsideram o papel dos sujeitos e do momento ideal, subjetivo, que perpassa a esfera da produção e reprodução material da vida, em outros termos, concepções que ignoram os diversos pores teleológicos que atravessam e interagem com o complexo da economia. Tanto em suas vertentes e variações marxistas, quanto nas correntes da ideologia burguesa, o que se tem são elaborações teóricas que sucumbem à fetichização da economia. Na medida em que o complexo da economia se consolida como um sistema próprio de conexões e legalidades objetivas, o pensamento, do cotidiano à teoria, pode tomá-lo, por sua aparência, como um sistema dotado de vida e movimentos próprios, como um “sistema fechado em si mesmo, cuja ratio é sustentada por essas legalidades interconectadas” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 274). Demarcando, em termos iniciais, a contraposição de Lukács a tais concepções, convém citar que para o autor as “rigorosas legalidades” tendenciais do complexo da economia, “que de fato existem” e se impõem ferreamente, muitas vezes

[...] fazem esquecer por força dessa objetivação que o econômico não é uma realidade puramente objetiva, indiferente à nossa existência, como a natureza inorgânica, que ele é, muito antes, a síntese no plano das leis daqueles atos teleológicos que cada um de nós efetua ininterruptamente e — sob pena da ruína física — tem de efetuar ininterruptamente durante toda a sua vida. Não se trata aqui, portanto, da contraposição de um mundo objetivo puro (no plano das leis) e do mundo da “pura” subjetividade, das resoluções e dos atos puramente individuais; trata-se, antes, de complexos dinâmicos do ser social, cujo fundamento fático é constituído — dentro e fora da vida econômica — por pores teleológicos singulares, sendo que nunca será demais repetir que a prioridade ontológica de determinada espécie em relação a outra nada tem a ver com problemas de valor (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 269-270, grifo nosso).

Num outro extremo ao objetivismo que toma as necessidades e legalidades efetivamente férreas da economia como movimentos puramente automáticos, cegos e absolutos, destituindo os sujeitos dessas relações, se constituem as tendências subjetivistas que em suas variações e matizes pseudocríticas ou abertamente conservadoras secundarizam ou elidem a objetividade dos nexos causais e das legalidades da realidade econômica, reduzindo, no limite, a realidade material ao “mundo da ‘pura’ subjetividade” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 269). Nesse sentido, o autor pensa que “é preciso romper com a representação igualmente reificada, nascida da oposição abstrata à reificação capitalista”, que se expressa em concepções e saídas voluntaristas, “como se um crescente isolamento intelectual do indivíduo em relação ao seu entorno social, sua independência (imaginária) em relação a ele, pudessem promover ou mesmo produzir a riqueza e o fortalecimento da individualidade” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 270).

A economia, sendo um complexo sociomaterial de categorias e legalidades objetivas, não exclui, pois, os pores teleológicos, as interações subjetivas dos homens com a realidade, antes os implica, em diferentes níveis de elaboração e de efetivação. O argumento forte de Lukács tem em vista, ao fundo, a estrutura ontológica geral do trabalho. Nos termos do autor, “o trabalho não é só o fundamento, o fenômeno fundante de toda práxis econômica, mas igualmente, o que também já sabemos, o modelo mais geral de sua estrutura e dinâmica” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 355). De modo que a articulação entre o ideal e o real, presente nos atos do trabalho, também se faz presente nas diversas instâncias e práxis do complexo da economia, assim como nos demais complexos materiais e ideais do ser social.

Pode-se afirmar que tanto “no trabalho” como nas práxis econômicas em geral “o pôr teleológico conscientemente produzido (que é, portanto, um momento ideal) deve preceder ontologicamente à realização material”, o que se dá “no quadro de uma complexidade inseparável” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 356). Na realidade, teleologia e causalidade não podem, em qualquer situação e, portanto, também no âmbito da economia, ser considerados “dois atos autônomos, um ideal e um material”, antes, “a possibilidade do ser de cada ato, que só pode ser isolado no pensamento, está ligada por necessidade ontológica ao ser do outro” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 356). Ou seja, “o contraste gnosiológico entre teleologia e causalidade como dois momentos, elementos etc. do ser é ontologicamente sem sentido” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 356).

A fim de “demonstrar o caráter teleológico comum a todos os atos e complexos econômicos” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 356), Lukács expõe, num dos veios da sua argumentação, a conexão entre o ideal e o real na economia considerando o processo de troca. Contra as fetichizações prático-econômicas e ideais que não ultrapassam a aparência reificada do “automovimento das coisas”, o que ocorre especialmente em formações socioeconômicas mais complexas, como no caso do capitalismo e do seu evolver, o autor destaca que Marx, ao decifrar as determinações mais gerais da produção e da troca mercantil, nos passos iniciais das análises desenvolvidas em O Capital, explicita o fato elementar de que as mercadorias não podem por si, por vontade e movimento próprios, se dirigir para a troca. Antes, são os seus detentores, os seus proprietários que, depositando nas mercadorias os seus interesses vitais privados e personificando as relações econômicas, conduzem, confrontam e realizam as mercadorias na troca, como coisas sociais dotadas de valor. Também aqui, convém registrar as próprias palavras do autor.

Nas economias desenvolvidas, poderia surgir a aparência — tanto mais quanto mais expressamente a economia tiver como fundamento uma totalidade socializada dos atos práticos — de que se está falando de um automovimento das coisas e não de atos da práxis humana. Assim, fala-se de modo geral de um movimento das mercadorias no processo de troca, como se não fosse muito fácil ver que por si mesmas as mercadorias não podem fazer um movimento sequer, que seu movimento sempre pressupõe atos econômicos dos compradores ou então dos vendedores. Embora nesse caso se trate de uma aparência que pode se desvendar brincando, Marx não deixa passar a oportunidade para, também nesse caso, dissolver a aparência reificadora em atos teleológicos prático-humanos. [...] A troca de mercadorias corresponde, portanto, em todo o seu decurso dinâmico, ao do trabalho, na medida em que, também nele, algo ideal é transformado em algo real por meio de atos teleológico-práticos. (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 358-359).

Assim, o circuito M-D-M, por exemplo, como “síntese objetivo dinâmica”, histórico-social, de atos e relações dos homens, esse circuito, em seus movimentos próprios, objetivos, não exclui o elemento subjetivo que se expressa, por exemplo, nas decisões que, no limite, todo ato de compra e de venda implica. Uma análise mais detida revela que a aparência — e as representações correspondentes — de que “toda compra é uma venda e vice-versa” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 363) elide a contradição “que surge no real intercâmbio de mercadorias”, exposta por Marx nos seguintes termos, citados por Lukács: “‘ninguém pode vender sem que outro compre. Mas ninguém precisa comprar apenas pelo fato de ele mesmo ter vendido’” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 363). A fim de demarcar com mais precisão e acentuar a posição do autor, vale citar que

todo ato econômico tem por base uma decisão alternativa. Se alguém tiver vendido a sua mercadoria e, desse modo, estiver de posse de dinheiro, tem de decidir se compra ou não compra outra mercadoria com esse dinheiro. Quanto mais desenvolvida a economia, quanto mais socialmente determinada a sociedade, tanto mais complexa se torna essa alternativa, tanto mais irrevogável se torna a casualidade, a relação heterogênea entre compra e venda. Porque, em decorrência da divisão social do trabalho, ela é um organismo natural-espontâneo da produção, cujos fios foram e continuam a ser tecidos pelas costas dos produtores de mercadorias. (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 363-364).

O processo de troca pressupõe a produção mercantil, cuja base irrevogável é a transformação humana, consciente, da natureza, na produção de valores de uso, que portam o conteúdo material da riqueza social. O caráter e a dinâmica das relações de troca remetem, pois, ao caráter e à dinâmica mais fundamental e preponderante das relações de produção, onde estão presentes, necessariamente, pores teleológicos dos homens.

Por outro lado — e aqui a argumentação avança contra o subjetivismo —, o processo de troca implica simultaneamente um emaranhado de nexos causais e de nexos casuais que ultrapassam os sujeitos ponentes, quer dizer, implica a socialidade que equaliza e equipara objetivamente na troca os diferentes valores de uso, produtos dos diferentes trabalhos concretos, particulares, instaurando a realidade social do trabalho abstrato e a realidade do valor como quantum de trabalho homogêneo, indiferenciado, quantum cuja magnitude é determinada pelo dispêndio de energias e forças humanas corporais, gerais, no tempo, em circunstâncias sociais determinadas.

Assim, quer se considere o momento da produção em sentido estrito, quer se considere o momento e o processo econômico da troca, o que se tem é uma dialética objetiva, aberta, em que os atos humanos individuais remetem para além de si, se entroncando na sociabilidade e constituindo novos nexos, movimentos, relações, estruturas e formas sociais objetivas e subjetivas. De modo que “as consequências causais dos atos teleológicos”, sejam primários, sejam secundários, no âmbito da economia, “dissociam-se das intenções de quem os põe, rumando muitas vezes até na direção diametralmente oposta” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 368).

Na medida em que “cada pôr teleológico visa colocar em movimento cadeias causais reais, a legalidade se desdobra como sua síntese objetivo-dinâmica” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 364). Nesse sentido, o processo de circulação M-D-M, para prosseguir com a mesma referência ilustrativa, constitui e articula uma série de categorias e legalidades sociais objetivas, materiais e ideais, como valor, dinheiro, preço etc., numa processualidade e numa trama de relações humanas, sociais, “cujos fios foram e continuam a ser tecidos” e a se impor “pelas costas dos produtores de mercadorias” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 363-364).

É assim que a categoria econômica do valor, por exemplo, um produto dos próprios homens, se constitui e se impõe como uma objetividade social, supraindividual, nascida das relações entre proprietários privados de produtos do trabalho tornados mercadorias. O valor como categoria econômica se constitui e se movimenta “pelas costas dos produtores de mercadorias” como uma objetividade espectral que reflete e transmuta em si, sob a forma de quantum e magnitude de riqueza material abstrata, as propriedades concretas dos diferentes trabalhos particulares e dos seus produtos. Como tal, o valor se afirma e se impõe como uma mediação principal que condensa e relaciona os interesses materiais dos proprietários privados, assim como instaura a indiferença generalizada em relação às necessidades humanas concretas, materiais e subjetivas, e à sua realização.

Nesse sentido, é somente em relação ao conjunto das forças produtivas sociais constituídas em determinadas circunstâncias, mais precisamente, é apenas como manifestação espontaneamente sumarizada e constitutiva de forças produtivas sociais médias que o trabalho determina o valor da mercadoria. Sob esse prisma, considerando o problema principal ora tratado, o problema da relação entre o ideal e o real na economia, é a realidade econômica que nega inapelavelmente qualquer arbitrariedade ou anacronismo ideal e, antes de tudo, prático-material, do produtor particular em relação à produção social, em relação às forças produtivas sociais médias, constituídas em determinadas circunstâncias.

Socialidade crescente e intensificação do papel do ideal

A processualidade que compreende a divisão social do trabalho e a troca implica, pois, a interatividade dos homens na história e, nesse sentido, no âmbito da socialidade, das forças e legalidades objetivas sociais, implica também uma dinâmica cada vez mais extensiva e intensiva de pores teleológicos de tipo secundário, quer dizer, de pores teleológicos voltados às relações dos homens entre si, numa dinâmica onde “o ideal está contido como motivo e objeto tanto no pôr quanto no objeto por ele intencionado”, e na qual, portanto, “o papel do ideal se intensifica” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 360). Nas palavras de Lukács,

[...] a possibilidade de realização da troca de mercadorias é um processo que se efetua diretamente no terreno do ser social, sendo que o fundamento irrevogável naturalmente é constituído — não importando o quanto seja mediado — pelo impacto teleológico sobre a causalidade natural; isso, porém, de modo algum suprime o caráter essencialmente social do intercâmbio de mercadorias, a índole social de suas categorias. Inclusive fica evidente que aqui, no âmbito da pura economia, mesmo que isso não se aplique necessariamente para o âmbito do metabolismo com a natureza, são postos em movimento aqueles pores teleológicos que têm por finalidade causar impactos sobre outros homens. Por trás da fórmula M-D-M há sempre como realidade uma profusão de tais pores teleológicos bem-sucedidos ou malsucedidos. (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 367).

O reconhecimento da “realidade” de uma “profusão” de pores teleológicos secundários no processo socioeconômico da troca de mercadorias, de acordo com a argumentação em curso, não deforma em sentido idealista a conexão ontológica entre o ideal e o real. Ocorre que todos os pores secundários e, portanto, também aqueles que se dão no âmbito da economia, implicam “no conhecimento de um segmento da realidade com o propósito de modificá-la (conservar é um simples momento da categoria do modificar)”, bem como no “efeito causal continuado que se tornou independente do sujeito pelo ser que foi posto em movimento pelo pôr realizado” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 287).

“O segmento da realidade” a ser conhecido e transformado no caso dos pores teleológicos secundários, ou seja, o objeto e a matéria desses pores, conforme demarcado acima, são os próprios homens, mais precisamente, a consciência dos homens, sobre a qual as práxis secundárias incidem, com vistas a influenciar e desencadear decisões e comportamentos em determinadas direções. Nas palavras de Lukács, “os fins que os provocam e que por eles são realizados [...] visam influenciar outras pessoas no sentido de que elas, por sua vez, efetuem os atos de trabalho desejados por quem os põem” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 358).

Sobre a peculiaridade desses pores secundários, considera-se que “por mais diferentes que possam ser, nesse caso, os fins e os meios (do uso direto da violência na escravidão e servidão até as atuais manipulações), o seu ‘material’ nem de longe é tão inequívoco quanto no trabalho propriamente dito”, ou seja, posto que “o ‘material’ do pôr do fim é o homem, do qual se pretende que ele tome uma decisão alternativa” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 358), o grau de precisão e certeza dos nexos causais desencadeados é, evidentemente, muito menor e mais “oscilante” do que no caso dos pores teleológicos primários.

Os pores teleológicos secundários, com o avanço das forças produtivas e da socialidade dos homens, ganham campo nas diversas instâncias constitutivas do complexo da economia, que é, como visto, um “complexo social de legalidade objetiva” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 360). Tais pores constituem, em determinadas circunstâncias, meios decisivos pelos quais os homens buscam incidir, influenciar e controlar as forças socialmente disparadas e movimentadas.

As peculiaridades dos pores secundários não suprimem, pois, sua relação de identidade com a estrutura ontológica geral, comum a todos os pores teleológicos, atividades e práxis humanas. Nesta perspectiva, contra qualquer viés idealista, Lukács afirma que

nem mesmo o maior dos antagonismos é capaz de anular o elemento em comum que no final se torna decisivo, a saber, que, nos dois casos, trata-se de pores teleológicos, cujo êxito ou fracasso depende da medida em que aquele que os põe conhece a constituição das forças a serem postas em movimento, em que medida ele, de modo correspondente, é capaz de proceder corretamente no sentido de que elas atualizem do modo desejado as cadeias causais que lhes são imanentes. (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 358).

Torna-se importante, neste ponto da argumentação, uma consideração mais detida sobre a materialidade e a “constituição das forças a serem postas em movimento” pelos pores teleológicos dos homens no âmbito da economia, das relações de produção e reprodução da vida, o que torna possível avançar também para determinações mais precisas sobre a diversidade e a especificidade dos pores teleológicos e de suas interações com tal materialidade, com tais forças.

Essa materialidade corresponde tanto ao metabolismo homem-natureza quanto às relações dos homens entre si, sobre os quais incidem os pores teleológicos primários e os pores teleológicos secundários. Importa agora ressaltar que, em todo caso, os seres humanos, nos seus processos de autoconstrução, de produção e reprodução social, sempre se defrontam e lidam com a realidade primariamente sob a forma de uma vasta gama de fenômenos naturais e sociais objetivos, fenômenos que compõem e expressam na superfície do real “um quadro de colorido inesgotável” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 388), e que correspondem, por outro lado, a um conjunto de processos e mediações reais ocultos na imediatidade, os quais também precisam ser decifrados e cada vez mais dominados ideal e praticamente pelos homens nos seus processos autoconstitutivos.

Dialética de fenômeno e essência

Num nível mais abstrato de consideração, pode-se afirmar que a materialidade, as forças e os movimentos objetivos do real aparecem ou se manifestam, no plano imediato, sob a forma de fenômenos. Em sentido ontológico, os fenômenos conformam a síntese de processos e mediações mais essenciais da realidade da natureza e da sociedade. A unidade ontológica de fenômeno e essência compreende o fato de que ambas as categorias expressam em suas articulações dimensões objetivas e diversas da mesma realidade. Na construção da sua existência os seres humanos lidam, portanto, com categorias objetivas de uma realidade unitária que se constitui e expressa, no entanto, por modos e formas diversos. Essas considerações são importantes, entre outras razões, para indicação da complexidade e da heterogeneidade “das forças” objetivas e da materialidade — naturais e sociais — da realidade “a serem postas em movimento” pelos pores teleológicos humanos.

Os seres humanos acessam a realidade e constroem a sua existência a partir das relações mais imediatas que estabelecem com o mundo exterior, que se impõe primariamente sob a forma dos fenômenos materiais-sensíveis naturais e sociais. As formas fenomênicas de manifestação da realidade material, objetiva, sensível, não mostram na imediatidade os processos de entificação do ser, as múltiplas determinações, relações e mediações que formam e constituem os entes. Nesse sentido, a dimensão fenomênica da realidade material-sensível, sua estrutura objetiva, favorece a formação dos fenômenos sociais do fetichismo e da reificação, no interior dos processos contraditórios de produção e reprodução da vida humana.

Tratando desta questão, Lukács retoma um importante e conhecido enunciado de Marx, onde este autor afirma, tendo em vista especialmente o complexo material da economia e suas representações ideais, que “toda ciência seria supérflua se a forma fenomênica e a essência das coisas coincidissem imediatamente” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 376). Não coincidem, como é possível constatar quando se considera, por exemplo, o fenômeno da mercadoria, e suas determinações.

Não se pode, à primeira vista, na superfície da realidade, decifrar o fenômeno da mercadoria, um fenômeno repleto “de sutilezas metafísicas e melindres teológicos” (MARX, 2013, pMARX, K. O Capital: crítica da economia política: Livro I: O processo e produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.. 121). É também pela citação de uma passagem célebre da análise do fetichismo da mercadoria feita em O Capital que Lukács avança em suas considerações sobre o problema:

O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores. (MARX apudLUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 377).

A forma-mercadoria consolida na superfície da realidade a inversão pela qual as mercadorias, produtos dos diferentes trabalhos concretos e das relações mediadas que os homens estabelecem entre si, aparecem como coisas sociais dotadas de vida e relações próprias, coisas sociais cujas propriedades e movimentos enfeitiçam e controlam os homens, produtos fantásticos que dominam os produtores.

Essa inversão, que consagra na imediatidade relações sociais entre coisas e relações materiais entre homens, ao ocultar e dissimular as determinações essenciais da realidade, da sociabilidade, não elide tais determinações, tampouco as contradiz. Antes, as expressa de modo peculiar, sedimentadas na forma da aparência. Ou seja, a inversão que aparece na forma fenomênica do fetiche da mercadoria se enraíza nas determinações e processos sociais realmente invertidos, que estão na base do fenômeno. Vale citar aqui as seguintes palavras de Marx, a respeito dessa inversão:

[...] os trabalhos privados só atuam efetivamente como elos do trabalho social total por meio das relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por meio destes, também entre os produtores. A estes últimos, as relações sociais entre seus trabalhos privados aparecem como aquilo que elas são, isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, mas como relações reificadas entre pessoas e relações sociais entre coisas. (MARX, 2013, pMARX, K. O Capital: crítica da economia política: Livro I: O processo e produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.. 123).

O “caráter misterioso da forma mercadoria” encontra uma de suas expressões mais desenvolvidas na forma dinheiro, “uma forma em que toda mediação foi anulada” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 378). Também aqui o fenômeno não mostra, à primeira vista, os segredos da sua constituição, do seu poder material. Assim como também não o mostra no caso do capital.

Interessa anotar, neste ponto, avançando para os movimentos de arremate do presente artigo, que “a constituição assim dada desse mundo fenomênico”, produzido pela dialética própria da essência, “é o fundamento imediatamente real de todos aqueles pores, nos quais a reprodução real de todo o sistema econômico é capaz de se conservar e de continuar crescendo” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 380), com todas as suas contradições tópicas e profundas.

Vale dizer, “a constituição assim dada desse mundo fenomênico” é a base sobre a qual se erigem e com a qual interagem formas de consciência reificadas e movente-movidas nos limites do fetiche e da manipulação subjetiva e prático-econômica do ser social, tendo em vista, no caso, mais diretamente, os marcos do capitalismo.

Por outro lado, se Marx tiver razão, a ciência, entre outras formas intencionadas de lidar com as categorias sociais, não só pode como de fato tem se afirmado historicamente como práxis humana interessada que se peculiariza precisamente por possibilitar, por seus meios e seus fins específicos, no âmbito dos pores teleológicos secundários, a ultrapassagem da forma de manifestação fenomênica das coisas, em movimentos de apreensão das determinações mais profundas e múltiplas dos fenômenos e processos da realidade, ou seja, em movimentos, tendencialmente, de desfetichização, condição de possibilidade de incidência intencionada nas expressões mais tópicas e repercussivas sobre as mediações mais profundas e essenciais da realidade econômica, social.

O que abre para a consideração das diversas frentes ou trincheiras nas quais o ser social, nas sociedades contraditórias, de classe, às voltas com as disputas e relações antagônicas e conflitivas em torno da produção e da apropriação do excedente econômico produzido pelas forças sociais, do trabalho, se tornam conscientes desses antagonismos, conflitos e contradições, e organizam e encaminham suas respostas subjetivas e práticas com vistas a “dirimi-los”. O que abre, em outras palavras, para o “problema da ideologia”, que será tratado pelo autor em análises sucessivas e mais concretas dos problemas aqui despontados3.

Considerações finais

Por diversas vezes, ao longo da Ontologia, Lukács faz referência a certas tendências gerais que persistem e se afirmam nos processos de humanização, quer dizer, que persistem nas mudanças e nas diferentes formas e formações sociais, entre elas, destacadamente, a tendência à “diminuição do tempo de trabalho necessário à reprodução da vida” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 493), o recuo das barreiras naturais que se expressa ao mesmo tempo como avanço de capacidades e categoriais sociais, bem como a tendência a uma interconexão cada vez mais intensiva, de comunidades humanas inicialmente dispersas e isoladas, em processos de constituição de uma generidade em si que avançam para a constituição e consolidação de uma generidade humana para si, num sem-número de formas contraditórias.

Essas tendências e regularidades correspondem a movimentos mais duradouros que, enquanto tais, expressam legalidades sociais que não podem ser tipificadas como uma espécie de segunda natureza.

Reiterando princípios e ideias principais ora expostos, é a forma da atividade, teleologicamente orientada, é a astúcia do trabalho, é a tendência a uma “dialética de constante aperfeiçoamento do trabalho” e de práxis sociais que explicam, no limite e na raiz, a existência de tais legalidades do ser social.

Caminhando para o desfecho das presentes reflexões, vale referir como Lukács, em argumentos e exercícios de concreção das suas análises, situa e pensa, no capitalismo, as formas contraditórias pelas quais essas tendências e leis mais gerais e essenciais do ser social se movem, se manifestam, se realizam.

O autor tem em vista, no caso, como o incremento das forças produtivas, nas relações fetichizadas do capital, da propriedade privada dos meios de produção, constitui uma forma histórica específica, e nesse sentido, fenomênica, dessas tendências legais mais essenciais, aludidas, do ser social.

Lukács situa, por exemplo, uma regularidade específica da economia capitalista, a lei tendencial da queda da taxa de lucro, como forma de manifestação fenomênica da tendência mais duradoura, persistente, ancorada, por assim dizer, nos fundamentos ontológicos mais gerais do ser social, da “diminuição da parcela do tempo de trabalho necessário à reprodução do trabalhador no interior do trabalho total” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 390), quer dizer, da referida “diminuição do tempo de trabalho necessário à reprodução da vida” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 493).

Nas relações da propriedade privada dos meios de produção, da expropriação de trabalho excedente e de reprodução ampliada do capital, o incremento intencionado de forças produtivas potencializa o contrário do pretendido pelos pores teleológicos conduzidos pelos agentes econômicos. Dito em termos bem sumários, trata-se aqui do raciocínio científico que desvenda que os atos intencionados de um empreendedor capitalista no microcosmo do sistema do capital, na medida em que se generaliza, produz o contrário daquilo que foi previamente ideado: desencadeia nexos causais que tensionam a determinação do valor para baixo, resultando, com os movimentos de generalização dos incrementos técnicos e da concorrência, na tendência à queda da taxa de lucro.

Trata-se de uma ilustração que considera e traz à tona formas interativas subjetivas e intencionadas, classistas, constituídas e movente-movidas no âmbito da materialidade e do espectro do fetiche.

Os argumentos aqui esboçados permitem visualizar, por outro lado, as possibilidades e a necessidade histórica da constituição e do encaminhamento subjetivo e prático de formas ideias e ideológicas desfetichizadoras, de caráter emancipatório, reversivas dos estranhamentos humanos. Tendo em vista que “a essência produz, em suas interações com o mundo fenomênico, os espaços de ação ‘livres’ que surgem neste, e sua liberdade só pode ser aquela que é possível dentro das legalidades do campo de ação” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 396).

As necessidades do desenvolvimento econômico, das suas categorias e nexos categoriais, das suas legalidades tendenciais, estabelece o campo de possibilidades da interação intencionada com essa realidade. Nesse sentido, “o fator subjetivo na história é, em última análise, mas só em última análise, produto do desenvolvimento econômico, pelo fato de as alternativas com que ele é confrontado serem produzidas por esse mesmo processo”. Contudo, o fator subjetivo “atua, num sentido essencial, de modo relativamente livre dele, porque o seu sim ou o seu não estão vinculados com ele só em termos de possibilidades” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 531). Em suma,

o desenvolvimento da essência determina, portanto, os traços fundamentais, ontologicamente decisivos, da história da humanidade. Porém, ela só obtém a sua forma ontologicamente concreta em decorrência de tais modificações do mundo fenomênico (tanto da economia como da superestrutura); mas estas só podem concretizar-se como consequências dos pores teleológicos humanos, entre os quais também a ideologia ganha expressão enquanto meio de enfrentar e resolver os respectivos problemas e conflitos. (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 495).

Agradecimentos

Aos participantes da edição 2022 do “Curso de Extensão Ontologia e Estética, Arte e Sociedade - O Ideal e a Ideologia” (PROEX/UFOP).

  • Notas

    1 Obra publicada postumamente, estruturada em duas partes, cada uma delas com quatro capítulos: Parte I, “A situação atual dos problemas”: “I. Neopositivismo e existencialismo”, “II. O avanço de Nicolai Hartmann rumo a uma ontologia autêntica”, “III. A falsa e a autêntica ontologia de Hegel”, “IV. Os princípios ontológicos fundamentais de Marx”. Parte II, “Os complexos de problemas mais importantes”: “I. O trabalho”, “II. A reprodução”, “III. O ideal e a ideologia”, “IV. Os estranhamentos”. A obra foi publicada no Brasil pela Boitempo, a primeira parte em 2012, e a segunda parte em 2013.
    2 Ver, a respeito, Tertulian, 2007; Vaisman, 2011; Fortes, 2011; Thompson, 2011.
    3 Ver, a respeito, Vaisman, 2010.
  • Agência financiadora Não se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação Não se aplica.
    Consentimento para publicação Consinto a publicação.

Referências

  • FORTES, R. V. As novas vias da ontologia em György Lukács: as bases ontológicas do conhecimento. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Minas Gerais, 2011. Disponível em: http://hdl.handle.net/1843/47220
    » http://hdl.handle.net/1843/47220
  • LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social I. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2012.
  • LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.
  • MARX, K. O Capital: crítica da economia política: Livro I: O processo e produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
  • TERTULIAN, Nicolas. O pensamento do último Lukács. In: INFRANCA, Antonino; VEDDA, Miguel (Comp.). György Lukács: ética, estética e ontologia. Buenos Aires: Colihue, 2007.
  • THOMPSON, Michael et al. Georg Lukács reconsidered: critical essays in politics, philosophy and aesthetics. New York, 2011.
  • VAISMAN, E. A ideologia e sua determinação ontológica. Verinotio: Revista on-line de educação e ciências humanas. Belo Horizonte, v. 6, n. 12, p. 40-64, out. 2010.
  • ______. VAISMAN, Ester. György Lukács e il recupero del fondamento ontologico del marxismo. Quaderni Materilisti, n. 9, ano 10, Milano, p. 77-85, 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    07 Fev 2023
  • Revisado
    04 Set 2023
  • Aceito
    29 Maio 2023
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