Acessibilidade / Reportar erro

Fundamentos do estranhamento religioso na ontologia de György Lukács

Fundamentals of religious estrangement in György Lukács' ontology

Resumos

Resumo

O presente artigo tem como intuito discutir os aspectos gerais do pensamento de György Lukács acerca do estranhamento religioso a partir da obra Para uma Ontologia do Ser Social. Nessa direção, parte-se dos elementos centrais acerca do fenômeno do estranhamento para, então, compreender a gênese histórica da religião à luz da abordagem lukacsiana. Na esteira do pensamento marxiano, a religião comparece, na obra investigada, como uma forma específica de estranhamento e, ao mesmo tempo, ideologia que expressa, no cotidiano do ser singular, o processo histórico de cisão indivíduo-gênero humano consolidado, sobremaneira, pelo descompasso entre o desenvolvimento das forças produtivas e o da personalidade humana. Assim, não se trata de uma crítica religiosa no sentido teológico, mas de compreender a gênese e a função social da religião, recolocando em outros patamares a questão do “de onde” e “para onde” do humano, com vistas à superação prática do estranhamento.

Palavras-chave:
Estranhamento; Religião; Ontologia; Vida cotidiana


Abstract

This article aims to discuss the general aspects of György Lukács's thinking about religious estrangement from the work For an Ontology of Social Being. In this direction, it starts with the central elements about the phenomenon of estrangement to, then, understand the historical genesis of religion in the light of the Lukacsian approach. In the wake of Marxian thought, religion appears, in the investigated work, as a specific form of estrangement and, at the same time, an ideology that expresses, in the daily life of the singular being, the historical process of individual-human gender split consolidated, above all, by the mismatch between the development of the productive forces and that of the human personality. Thus, it is not a question of a religious critique in the theological sense, but of understanding the genesis and social function of religion, replacing the question of the “from where” and “to where” of the human at other levels, with a view to the practical overcoming of the estrangement.

Keywords:
Estrangement; Religion; Ontology; Everyday life


Introdução

O presente artigo busca discorrer acerca das elaborações de György Lukács relacionadas à temática da religião, especialmente, a partir de sua obra tardia Para uma ontologia do ser social. O tema em questão ganha destaque no momento em que o autor trata do fenômeno do estranhamento que, sob variadas formas, se faz presente no desenvolvimento da humanidade.

No pensamento lukacsiano, a religião comparece como uma forma peculiar de estranhamento que coincide com seu caráter ideológico ao se firmar historicamente como um importante regulador da vida social em diferentes esferas e modelos societários. Para tanto, o autor investiga as bases materiais que sustentam a mistificação das relações sociais desde as manifestações mais primitivas até suas formas mais complexas erigidas sob o desenvolvimento das sociedades de classes, atentando-se para a dimensão cotidiana de reprodução da vida social.

Embora a questão da religião tenha sido tratada com especial cuidado pelo filósofo em meio a sua investigação ontológica, carecemos, ainda, de estudos contemporâneos preocupados em explorar seus aportes teóricos acerca desse complexo fenômeno que se mostra cada vez mais atual e decisivo frente aos conflitos sociais emergentes. O resgate de sua obra, portanto, torna-se indispensável para o fazer científico-filosófico acerca do fenômeno religioso, tomando como base, ainda, sua crítica madura às debilidades da gnosiologia tradicionalmente adotada pela ciência moderna, sob influência do neopositivismo, na tentativa de manipulação mecânica dos fatos sociais (CARLI, 2015CARLI, R. Gyögy Lukács e a crítica à necessidade social da religião. Crítica Marxista, Campinas, n. 41, p. 89-103, 2015.). Nesse sentido, pautando-se na apreensão do real em sua totalidade histórica e contraditória e com o objetivo de introduzir aspectos gerais da análise contida na Ontologia de Lukács à luz do fenômeno do estranhamento, faremos uma breve retomada das elaborações do autor acerca do estranhamento para, assim, adentrar especificamente na expressão religiosa que suscita nosso estudo.

O estranhamento enquanto fenômeno histórico-social

Importa ressaltar, de antemão, que o fenômeno do estranhamento, embora não seja um complexo constitutivo do ser social, só pôde ser explicitado a partir do longo excurso feito por Lukács que, antes de dedicar o último capítulo de sua obra ao fenômeno em questão, trata dos “complexos de problemas mais importantes” (título da segunda parte da Ontologia), a saber: o complexo do trabalho, da reprodução, além da gênese do momento ideal. Somado a isso, encontra-se ao longo de toda sua obra a acareação crítica com determinadas concepções advindas do idealismo (subjetivo e objetivo), com o economicismo e com o materialismo mecanicista que, ainda que de modos distintos, são responsáveis por fragmentar a realidade social, tratando, em última instância, como polos antagônicos os momentos ideais/subjetivos e materiais/objetivos que, no plano ontológico, se autodeterminam.

No que se refere à análise do estranhamento, o autor critica os reducionismos que ora absolutizam o fenômeno, atribuindo-lhe uma condição humana universal, conforme propõe a filosofia idealista alemã, ou que ora negligenciam ao assumi-lo como uma mera reflexão mecânica frente à esfera produtiva, tal como vulgarizado no interior de correntes do marxismo influenciadas, sobremaneira, pela vulgata stalinista. Em torno do último ponto, cabe destacar a atribuição arbitrária sob a própria obra de Marx, colocando a temática em questão e o desenvolvimento das individualidades como problemas únicos de juventude do pensador alemão, com cariz abstrato ou antropológico, que tão logo cederia lugar ao corpus científico e às preocupações econômicas. Lukács (2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 578), por sua vez, enfatiza:

Visando evitar isso, deve ser dito logo de início que examinaremos o estranhamento como um fenômeno exclusivamente histórico-social, que emerge em certos picos do desenvolvimento em curso, assumindo a partir daí formas historicamente sempre diferentes, cada vez mais marcantes. A sua constituição, portanto, não tem nada a ver com uma condition humaine universal, possuindo menos ainda qualquer universalidade cósmica.

Na sequência dessa passagem, Lukács retoma os embates travados desde Marx em sua crítica geral à filosofia hegeliana e neohegeliana acerca da gênese social do ser, a qual não aprofundaremos aqui. Ainda que o autor da Ontologia apresente especificidades em relação à obra de Marx — como, a título de exemplo, a distinção realizada entre as categorias estranhamento e alienação1 —, podemos considerar que ele nos fornece uma proposta autêntica de investigação dos fenômenos e conflitos postos socialmente. Essa, talvez, constitua a primordialidade de Lukács: o resgate de uma ontologia contida já nas obras originárias de Marx — estas últimas alvos de inúmeras deturpações ao longo dos últimos dois séculos2 —, a fim de contribuir na tarefa de escrita d’O capital de nossos dias, conforme as próprias palavras do autor durante a redação de sua obra mais tardia.

O retorno à obra marxiana, segundo sua própria letra, permite resgatar o cerne de seu verdadeiro caráter ontológico, este, de certo, um ponto de inflexão diante de toda trajetória filosófica e da economia clássica precedente. No entanto, não desconsiderando a atualidade marcante da obra marxiana, ao contrário, reafirmando-a, o autor húngaro visa apontar a preocupação de Marx com o problema do ser e do destino do homem. Recolocando, então, o problema, parte-se da investigação dos nexos do próprio real, neste caso, da legalidade da ordem societária do capital, acrescida de seus desdobramentos contemporâneos, os quais não puderam ser postos em exame pelo autor alemão.

Nessa esteira, conforme já mencionado, o fenômeno do estranhamento é investigado à luz do complexo de pores teleológicos que conformam o ser social desde seu intercâmbio orgânico com a natureza até às formas crescentes de socialização. Lukács avança na compreensão dos processos que conferem à humanidade suas capacidades próprias de responder, de forma ativa e consciente (portanto, não mecanicamente), ao mundo objetivo, recuperando, assim, elementos históricos do desenvolvimento do ser que possibilitaram o que ele denomina de afastamento das barreiras naturais, perpassando os estágios inferiores até os mais avançados do ser social.

O trabalho, então, surge como complexo fundante do ser social, na medida em que expressa o momento originário da transição do que o autor distingue entre ser meramente natural (os animais), regido através de uma causalidade espontânea, e ser social, com todo o desenvolvimento efetivado pelo avanço da capacidade de domínio e transformação da natureza. O que está em evidência é a perspectiva de totalidade que constitui a realidade, na qual o ser se objetiva na e pela natureza de forma integrada e dinâmica, inicialmente sob a mediação do complexo do trabalho, porém, que cada vez mais inclui a conformação de outros complexos no interior do grau crescente de desenvolvimento do ser social. Desse modo, o ser social é um complexo de complexos, sendo o complexo laborativo aquele que contém in nuce todas as determinações mais gerais que constituem a essência desta nova e peculiar forma de ser autofundado e autocriado, as quais serão desdobradas em formas ulteriores e mais desenvolvidas da práxis social (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 82).

A recuperação da análise lukacsiana acerca do trabalho é decisiva, adverte-se, não por qualquer tentativa de atribuição, nesse caso, estranha à fundamentação do autor, de uma centralidade do complexo laborativo, como se a tudo ele pudesse explicar, mas por, no trabalho, localizar-se os elementos basilares da autoconstrução humana. Ele é, portanto, o modelo, “a forma fundamental e, por isso, mais simples e clara daqueles complexos cujo enlace dinâmico forma a peculiaridade da práxis social”, estando em relação de identidade de identidade e não identidade com as formas mais complexas de desenvolvimento do ser (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 93). Através do trabalho, o homem modifica a natureza e também a si próprio, se faz homem ao se separar do ser estritamente natural, ao se destacar da mera naturalidade. Trata-se do “homem que com suas ações e nas suas ações encarna e faz realidade o gênero humano” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 114).

No entanto, é importante ressaltar que a forma como a ontologia lukacsiana coloca em exame, nesse primeiro momento, o trabalho em um alto grau de abstração, sem elementos de sua face negativa, como atividade não só efetivadora, mas também desefetivadora do agente produtor, do humano. Isso não ocorre por negligência do autor, mas em conformidade com o próprio modo de exposição marxiano, onde parte-se de um alto nível de abstração e decomposição, para posterior recomposição do trabalho tal como se apresenta no âmbito da sociabilidade do capital. Nesse interregno, o contínuo e não linear desenvolvimento do ser social se complexifica e, tal como se autoconstrói, o homem também pode desfazer a si mesmo.

Após toda uma fundamentação e compreensão acerca do homem e de sua posição dentro da totalidade do complexo social do ser, Lukács, visando não cair em deformações ideais, chega à contemporaneidade para elaborar um diagnóstico atual. Dentro dessa contínua complexidade característica do desenvolvimento do ser social, situa a análise do estranhamento como um conflito que emerge do movimento contraditório de objetivação da vida humana, não como fenômeno inerente ao ser, mas como produto socialmente posto. O autor qualifica, assim, o estranhamento como uma forma de objetivação específica e situada dentro do processo de desenvolvimento desigual dos pores teleológicos que constituem o ser em sua integralidade socio-histórica. O caráter particular de produção do estranhamento é sintetizado por Lukács da seguinte forma:

O próprio fenômeno, claramente delineado por Marx nos enunciados citados por nós, pode ser assim formulado: o desenvolvimento das forças produtivas é necessariamente ao mesmo tempo o desenvolvimento das capacidades humanas. Contudo — e nesse ponto o problema do estranhamento vem concretamente à luz do dia —, o desenvolvimento das capacidades humanas não acarreta necessariamente um desenvolvimento da personalidade humana. Pelo contrário: justamente por meio do incremento das capacidades singulares ele pode deformar, rebaixar etc. a personalidade humana (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 581).

Não cabe, aqui, resgatar todo o pensamento do autor acerca da origem histórica do estranhamento. Nos interessa, em particular, compreendê-lo enquanto um fenômeno que tem sua origem na divisão social do trabalho e que se insere numa cadeia complexa de relações postas em condições históricas marcadas, em última instância, pelo descompasso entre o desenvolvimento das capacidades postas pelo gênero humano e sua repercussão positiva no plano da individualidade, como bem nos orienta Vaisman (2016)VAISMAN, E. Curso Livre Lukács: Aula 10: O estranhamento religioso na ontologia lukacsiana. São Paulo: TV Boitempo, 2016, 2h33min. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QEEmxHPzpBQ. Acesso em: 08 ago. 2022.
https://www.youtube.com/watch?v=QEEmxHPz...
.

Se faz importante, ainda, ao menos mencionar que o filósofo discorre acerca da fundamentação histórico-social do estranhamento elucidando o desenvolvimento da personalidade humana nos distintos modelos de sociedade existentes na história, desde a Antiguidade pautada no funcionamento da pólis, em que sujeito público e privado coincidem, até o nascimento da sociabilidade burguesa que possibilitou o avanço da individualidade, ainda que de forma profundamente contraditória e, portanto, fetichizada. O estranhamento é assimilado como um fenômeno heterogêneo que integra as sociedades de forma não linear, podendo ser tanto eliminado em uma determinada forma, quanto modificado e/ou preservado em outra, dinâmica que expressa sua força decisiva (em maior ou menor grau, a depender das condições concretas) frente aos conflitos sociais do gênero, o que não pode ser desprezado diante dos dilemas colocados em meio à tarefa revolucionária da emancipação humana. Esta que, recuperando Marx através de Lukács (2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 747), requer a superação das formas políticas, econômicas e ideológicas de “fixação manipulada do homem à sua particularidade” imediata e privada - portanto, estranhada -, em busca da autêntica individualidade do homem singular, mediante a ampliação e apropriação efetiva das capacidades do gênero humano.

O estranhamento religioso: da gênese histórico-social à vida cotidiana

A análise da religião contida na obra de Lukács, como sabido, encontra sua fundamentação nos escritos marxianos, ainda que este não tenha sido um tema tratado com centralidade por Marx, emergindo de forma dispersa em meio a sua crítica geral à realidade social a partir da qual se produzem as relações estranhadas, em especial, na sociabilidade do capital (CHAGAS, 2017CHAGAS, E. F. A crítica da religião como crítica da realidade social no pensamento de Karl Marx. Trans/Form/Ação, Marília, v. 40, n. 4, p. 133-154, out./dez. 2017.). Buscando ampliar essa acepção, o próprio Marx nos Manuscritos de Kreuznach (conhecidos pelo título de Crítica da filosofia do direito de Hegel - introdução), cuja redação ocorreu em 1843, marcando os primeiros momentos da originalidade do pensamento marxiano e de ruptura com Hegel e a filosofia idealista em geral, dirá: “na Alemanha, a crítica da religião está, no essencial, parte terminada; e a crítica da religião é o pressuposto de toda a crítica” (MARX, 2010, pMARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Tradução de Rubens Enderle, Leonardo de Deus. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2010.. 145, grifo do autor). Ou seja, ele não estava ocupado em realizar uma crítica à religião no sentido teológico, pois ele já a considerava praticamente encerrada, sobretudo com as elaborações de Ludwig Feuerbach.

Marx, ao principiar a formulação do seu próprio pensamento, não tem diante de si apenas as proposituras hegelianas, mas a negação destas por Feuerbach, em sua vigorosa impulsão a uma dimensão ontológica qualitativamente nova. Nesse sentido, o pensamento de Feuerbach não pôde ser ignorado por Marx, tendo contribuído decisivamente em sua acareação com as proposituras hegelianas e com a abstratividade própria aos volteios da razão autossustentada. As proposituras feuerbachianas são audíveis em Marx, mas sempre dentro de uma reintegração à tessitura própria das linhas da arquitetônica marxiana. Assim se apresenta a recuperação dos avanços postos pelo autor de A essência do cristianismo, o pensador alemão “reconhece o seu valor, entretanto, ele evidencia os limites dessa crítica e aponta o mundo profano como o lugar de origem e superação das contradições humanas” (ALCKMIN, 2003, pALCKMIN, R. M. Marx e Feuerbach: da sensibilidade à atividade sensível. 2003. 143f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2003.. 115).

Marx visa pôr em exame não apenas a religião, mas a necessidade social da religião. Trata-se de uma crítica não da religião, mas da vida, do homem profano, e não do homem celestial. Segundo Lukács, Marx amplia a questão “para o ser e devir social-material dos homens”, onde “a constatação de Feuerbach de que não é a religião que faz o homem, mas o homem que faz a religião” é acrescida “[d]o estranhamento religioso e seu desmascaramento teórico para um complexo sociopolítico geral de problemas da história da humanidade” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 642). Localizamos essas proposituras, a exemplo, em:

[...] o homem faz a religião, a religião não faz o homem. E a religião é de fato a autoconsciência e o autossentimento do homem, que ou ainda não conquistou a si mesmo ou já se perdeu novamente. Mas o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Esse Estado e essa sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido [...]. Ela é a realização fantástica da essência humana, porque a essência humana não possui uma realidade verdadeira. Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, contra aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião.

A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração, assim como o espírito de estados de coisas embrutecidos. Ela é o ópio do povo (MARX, 2010, pMARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Tradução de Rubens Enderle, Leonardo de Deus. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2010.. 145, grifos do autor).

Essa famosa passagem de Marx, também resgatada por Lukács, é comumente referenciada a fim de ilustrar a visão do autor acerca do complexo da religião, em especial, a alusão feita quanto a sua função entorpecedora da realidade. No entanto, a afirmativa em evidência, inserida no conjunto de sua evolução teórica, já indica a complexidade ontológica constitutiva do fenômeno do estranhamento religioso, ainda que tenha ganhado relevo (re)interpretações simplistas e reducionistas que, por vezes, ignoram o caráter essencialmente histórico-dialético do problema. Lukács, como vimos, ao partir de Marx, dá uma especial atenção ao desenvolvimento da individualidade — conformada na dinâmica relação de autoconstrução subjetiva/objetiva do ser social — frente às questões provocadas no seio do que denominou de ontologia da vida cotidiana.

Assim como a estrutura e o desenvolvimento econômicos da sociedade fornece a base objetiva dos fenômenos, assim a ontologia da vida cotidiana fornece aquele médium versátil da imediatidade, que no caso da maioria dos homens é a forma que os coloca concretamente em comunicação com as tendências espirituais do seu tempo [...]. Por isso, jamais poderemos negligenciar esse campo de mediação (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 637-638).

Sua preocupação é a de resgatar elementos centrais da formação da personalidade humana que perderam espaço na tradição marxista diante de leituras economicistas e revisionistas, e que também estreitaram a crítica do estranhamento religioso ao assumi-la como uma crítica meramente teórica da teologia. Negligenciou-se o que Lukács denominou como ontologia da vida cotidiana, isto é, “a relação social real da religião com o homem da sociedade atual, o seu fundamento ontológico, a sua relação com os complexos concretos do ser social e com os seus reflexos ideológicos” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 649).

Para tanto, o autor se ocupa da dimensão singular do ser ao analisar o fenômeno do estranhamento por compreender que ele se manifesta de forma privilegiada diante das questões pessoais postas pelas circunstâncias mais imediatas da vida, sem desconsiderar sua conexão frente aos conflitos gerais da humanidade enfrentados a partir de determinadas tendências e épocas históricas. É nessa direção que a religião emerge em sua obra como uma forma peculiar de estranhamento que possui uma essência ideológica ao representar uma força social que, atrelada a outras esferas espirituais e morais da sociedade (como a política e o direito), tem significado o modo como os indivíduos agem e se conscientizam no mundo. A esse propósito, na interpretação lukácsiana acerca da obra de Marx, a ideologia representa um instrumento cuja finalidade está na resolubilidade dos conflitos travados na práxis humana em meio ao desenvolvimento contraditório dos complexos sociais. Deste modo, ainda que os fenômenos da ideologia e do estranhamento possuam cada qual suas especificidades, não sendo, precisa e consequentemente, equivalentes, o primeiro exerce um impreterível papel de mediação para a manutenção do segundo, numa interação dialética frente às determinações econômicas.

Ao examinar o surgimento do complexo religioso, cujo caráter estranhado e ideológico coincide em particular, Lukács regressa às sociedades primitivas destacando a forma de consciência mágica característica do escasso desenvolvimento das forças produtivas que determinava a mistificação da ação humana diante dos objetos provenientes da natureza. Nessa esteira, o marxista húngaro expõe o processo de apreensão do real na práxis cotidiana do ser social por meio da analogia, considerada “a primeira categoria da ordenação das ideias e do domínio sobre a realidade objetiva [...] o jeito natural e inerradicável de reagir a novos fenômenos e ordená-los no sistema daqueles já conhecidos” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 659), de modo a explicitar como o desenvolvimento do trabalho humano possibilitou, num movimento demasiado contraditório, o avanço das formas mais primitivas de inferência transcendentais da experiência humana — caracterizada pela relação sujeito-objeto “em-si”/coisificada — em direção à formação mais complexas da objetivação “para-si”/dialética do ser social.

Isso significa, conforme já salientado, que o processo evolutivo da humanidade e das forças produtivas possibilitou o ser social avançar do simples modo de reação imediata perante a natureza no sentido da apropriação consciente da realidade em seu entorno. De maneira intensamente conflituosa, visto a heterogenia dos fatores determinantes da objetivação, o indivíduo passa a se reconhecer no mundo face ao que Lukács nomeia de tendência antropomorfizante que encontra, no complexo do trabalho, o principal modelo de conceituação analógica dos processos naturais até então desconhecidos. As primeiras manifestações da religiosidade, permeadas por traços da magia primitiva, surgem justamente no momento histórico em que o gênero conquista, gradativa e relativamente, a capacidade de autoconhecimento e domínio do mundo objetivo.

Nesse sentido, o pensamento lukácsiano acerca do processo de transição histórica da magia para a religião3 já se faz presente em A peculiaridade do estético (1966), em que o autor parte das condições objetivas que marcaram a passagem do modelo primitivo para as sociedades de classe a fim de explicitar o momento em que a religião emerge como resposta ao desenvolvimento das relações cindidas entre ser individual e genérico, contradição que, como vimos, engendra o modo estranhado com que o sujeito singular se concretiza em sua atividade cotidiana, atribuindo a uma força alheia (Deus ou demais entidades) virtudes que são próprias do gênero humano. Na obra em questão, Lukács não se propõe a fazer uma filosofia ou crítica da religião, mas se ocupa em explicitar, em última instância, a relação desta última com a vida cotidiana:

A religião constitui, pois, um elemento da vida cotidiana do homem, com uma grande variabilidade histórico-social que vai desde o domínio de todos ou da maioria dos conhecimentos pela fé teologicamente dogmatizada até a sua retirada a uma pura interioridade vazia (LUKÁCS, 1966, pLUKÁCS, G. Estética I: La peculiaridad de lo estético. Tradução de Manuel Sacristán. México: Ediciones Grijalbo, 1966.. 130, tradução nossa).

Em sua Ontologia, o filósofo húngaro aprofunda na compreensão desse processo contraditório que, permeado por um conjunto de fatores (auto)determinantes, marca a evolução do ser social ao descrever como, sob determinadas condições materiais, os ganhos universais obtidos por meio do trabalho tornaram-se reificados em seu sentido estranhado através da cristalização/coisificação dos necessários automatismos espontâneos (chamados de reificações inocentes) que integram as reações e operações do indivíduo em sua prática cotidiana e social.

Com efeito, quanto mais a vida cotidiana dos homens produzir modos e situações de vida coisificados - por enquanto ainda no sentido até aqui indicado -, tanto mais facilmente o homem da vida cotidiana se adaptará espiritualmente a elas enquanto “fatos da natureza” sem oferecer-lhes resistência espiritual-moral [...] (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 664-665).

O complexo — portanto, não absoluto e bastante dinâmico — processo de habituação mecânica frente à realidade cotidiana, em que o sujeito não se enxerga como parte dialeticamente constitutiva da vida objetiva, tendo em vista a reificação propriamente dita das relações sociais, configura, para o autor, “as marcas essenciais do estranhamento religioso” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 666). Nessa direção, a conexão dialética entre a imediatidade própria da práxis cotidiana, as bases econômicas e a dimensão ideológica do real sustentam a capilaridade da religião nas relações e circunstâncias concretas a partir das quais os indivíduos se reproduzem socialmente, “da linguagem aos motivos das ações”, gerando “todo dia e toda hora reificações em massa” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 683-685). Isso porque, desde as elaborações de Marx, o caráter reificador da religião, que se materializa no cotidiano de cada ser singular sob formas específicas e variadas, se (re)produz no complexo social que estrutura a sociabilidade de classes em seus diferentes estágios (CHAGAS, 2017CHAGAS, E. F. A crítica da religião como crítica da realidade social no pensamento de Karl Marx. Trans/Form/Ação, Marília, v. 40, n. 4, p. 133-154, out./dez. 2017.).

Buscando ilustrar historicamente esse momento dinâmico, Lukács resgata os escritos de Marx acerca da reificação em sua forma-mercadoria, o que nos auxilia sobremaneira no entendimento do modo como determinadas formas de produção espiritual-moral “efetivam-se”, numa simultaneidade dialética com o modo de produção econômico, ao penetrar no terreno da vida cotidiana, dando sentido prático à vivência imediata do ser singular. Ao mesmo tempo, sua obra alimenta os pressupostos marxistas acerca das bases ontológicas que, em circunstâncias históricas variadas, sustentam o surgimento e manutenção da religião em seu papel (ideológico) de regulador social, onde o autor percorre desde o surgimento do cristianismo na época decadente da Antiguidade até as transformações no campo religioso imersas no contexto de desenvolvimento do capitalismo (a Reforma Protestante é um clássico exemplo de estudo).

A vida social real das religiões consiste, portanto, nessa sua universalidade, que está direcionada para dominar a totalidade da vida de cada homem singular da população total, de alto a baixo, das questões mais elevadas relativas à visão de mundo até as mais singelas relações cotidianas. E essa universalidade se exprime em um sistema — potencialmente — universal de enunciados sobre a realidade (incluindo a transcendência, é claro) e passa a fornecer, desse modo, as coordenadas coerentes que dela resultam para toda a práxis de cada homem singular, inclusive os pensamentos e sentimentos que a determinam e acompanham (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 695).

Na esteira de Marx, o autor expõe como a universalidade da religião se justifica frente a função de dar sentido a uma vida sem sentido, de preencher o vazio estabelecido diante de um indivíduo que se encontra desprovido do gênero humano no estranhamento das relações sociais, desde as — e especialmente nas — situações mais imediatas e corriqueiras da vida cotidiana, reificando, portanto, “o seu comportamento para com a realidade, para com a natureza e (de modo crescente) para com a sociedade, acabando por estranhar a sua própria atividade por intermédio dessas reificações” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 734). Em última instância, como vimos, a necessidade social da religião atravessa a constituição histórica do caráter particular-privado do ser cindido na e pela sociedade estranhada, o que, alicerçado nas condições materiais degradantes de existência, emana conflitos subjetivos reproduzidos na vivência imediata do ser social, tendo em vista o movimento de autorrealização imanente do gênero humano.

A salvação da alma com o objetivo geral e único precisa omitir justamente essas mediações concretas da generidade e fazer uma ligação direta e, por isso, irrevogavelmente contraditória entre a consumação da vida individual e uma redenção — transcendente — do gênero humano em geral. [...] A essência do homem se torna transcendente para ele próprio, ou seja, uma proclamação oriunda do além da vida humana (social); pois ele procura justamente no além a realização plena, a elevação acima da sua própria particularidade, que o seu próprio ser social, em consequência da reificação, não tem como lhe mostrar nem mesmo como possibilidade (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 678).

Conceber o campo religioso enquanto um regulador social, um elo que conecta a práxis cotidiana aos interesses mais gerais da sociedade, significa apreender o fenômeno como expressão do ser em sua integralidade ontológica, desde a produção de emoções (como a angústia, o medo, a esperança, a felicidade etc.) e sentidos pessoais na vivência de cada ser singular, até as formações ideológicas, morais e universais (como a economia, o Estado e a igreja), cuja persistência histórica atravessa a cristalização de ritos, dogmas, valores e normas guiados pela falsa perspectiva de libertação humana supraterrena. Em meio ao seu caráter mistificador, o sentido estranhado (e ideológico) da religião, bem como sua repercussão na vida cotidiana do ser social só podem ser explicados face à busca por resolução dos problemas concretamente enfrentados na realidade mundana. Como afirma Lukács (2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 694): “ninguém desejaria pôr em movimento poderes transcendentes (isto é, não acreditaria na sua existência) se não esperasse receber delas uma ajuda para as suas finalidades terrenas e materiais”.

Aqui sinalizamos novamente o caráter histórico-dialético do fenômeno religioso que se fundamenta nos conflitos sociais, estes últimos notadamente permeados por interesses de classe, fazendo da religião, concomitantemente, expressão e protesto diante das condições materiais de vida. Tal conexão explicita, em certa medida, porque as transformações no campo religioso ao longo do desenvolvimento social, sua força crucial e mesmo seu recrudescimento, estão presentes ainda diante de um avanço sem precedentes da ciência moderna. Para Lukács, confiar que o processo civilizatório que “produz ininterruptamente novos conhecimentos sobre a natureza e a sociedade” seja suficiente para opor “armas espirituais contra os estranhamentos em geral, inclusive contra os religiosos” é recair “nas ilusões do Iluminismo” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 664).

Pensemos na sociabilidade do capital, cujo largo desenvolvimento não apenas manteve consigo formas estranhadas, como delas depende, uma vez que as contradições motoras dela própria tem como componentes indispensáveis os estranhamentos. Sobre isso, o autor húngaro fala do incremento e da universalização crescente das formas reificadas, que se convertem em estranhamentos e autoestranhamentos. Essa ampliação das reificações auxilia a entender a capacidade das igrejas, por exemplo, de se adaptarem “mediante manipulação política, ao novo estado da cotidianidade humana” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 747), não obstante tensões e rupturas internas, uma vez que a radicalidade com a qual os processos se reificam também se reverte no campo religioso, ora assumindo e reafirmando diferentes modos de reificação, ora se voltando contra eles. Nesse terreno, embora não nos seja possível, no momento, dedicar à questão dada sua complexidade, o filósofo sinaliza para o desenvolvimento dinâmico das religiões e o papel das seitas, que, caracterizadas por sua doutrina sectária, compõem o surgimento das religiões até o momento de sua institucionalização. Do mesmo modo, no entanto, como as seitas se fundamentam na mistificação do real, podem se colocar como instrumento subversivo frente à ordem social, conferindo o caráter nada estático e homogêneo dos processos de reificação (cf. LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 696-697).

Ainda em torno desse incremento das reificações e de sua reversão no âmbito geral da religião, Lukács trata sobre como a organização da vida com o pôr da transcendência possui como resultado ideológico a facilidade com a qual “as pessoas se deixam tomar pelo estranhamento [...] sem oferecer tanta resistência, muitas vezes até com entusiasmo” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 681). As reificações enquanto componentes ideológicos exercem uma função social e uma influência tão consolidada que agem, distintamente de outras ideologias, sobre as pessoas como modos de ser, passando “a influir sobre os homens da vida cotidiana como uma realidade e até como a realidade” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 682, grifo do autor). Essa função se aplica na regulação da vida e da convivência cotidiana, conciliando os interesses singulares de cada indivíduo com os interesses gerais e dirimindo conflitos, sendo, portanto, a mais antiga forma regulatória. Sua regulação se aplica à totalidade da vida de cada homem singular, das questões mais gerais até às mais práticas e próximas do cotidiano, determinando condutas, pensamentos e sentimentos.

Destarte, a regulação social não é sinônimo de violência, ainda que dela possa se valer, mas diz de uma coesão dos indivíduos, por isso, não são meras ideias ou uma força a operar unicamente nas consciências. A religião com sua peculiaridade de ser simultaneamente estranhamento e ideologia, o que não se aplica a todas as formas de estranhamento, atua como uma potência, uma força frente aos indivíduos, faz com que eles internalizem normas sociais, mas só o faz porque opera no próprio mundo, na própria materialidade. Ela é sim a consciência invertida do mundo, mas apenas porque o próprio mundo está invertido. A necessidade religiosa existe materialmente, se coloca na vida dos homens, o que complementa os argumentos em torno de sua persistência. Deste modo, sua base material faz com que ela perdure, contanto que a primeira permaneça inalterada.

É importante compreender o estranhamento religioso, inserido no âmbito do contexto global de todos os estranhamentos, como um fenômeno real, que se expressa na materialidade e não apenas acima da cabeça dos homens. O estranhamento alude — e aqui a redundância do autor não se faz de modo casual —, ao “estranhamento real como processo real no ser social real do homem” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 579). Tal análise coaduna com lineamentos do autor traçados, inclusive, acerca das instituições, neste caso, igreja e Estado, momento no qual salienta que, a igreja, “complexo social paralelo ao Estado”, tem como objetivo “fixar os posicionamentos — inevitáveis na prática — sobre essas questões, de estabilizá-los e torná-los funcionais por meio de generalizações ideais (ou seja, de dogmas, de sua interpretação e fundamentação teológicas etc.” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 706), sempre em conformidade com determinações que se apresentam na própria vida cotidiana e em sua tentativa de controlá-la, não o contrário. Em relação ao Estado, apreende-se, do mesmo modo, que a proposta de Estado laico, por exemplo, é insuficiente para dar a questão religiosa por resolvida, ela perdurará enquanto ainda for demandada pela própria cotidianidade.

Nesse sentido, à superação do estranhamento, incluindo sua forma religiosa, não cabem resoluções simplistas, meramente abstratas e tampouco essencialmente teóricas. O autor da Ontologia é enfático ao colocar que “a solução real para o estranhamento religioso, assim como para todas as formas da vida humana secular, só poderá ser trazida pela revolução social que subverte fática e radicalmente os fundamentos reais da vida social dos homens” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 644). Assim, reiteramos alguns outros direcionamentos que permanecem imprescindíveis:

[...] que para o marxismo não é admissível nem alimentar a ilusão de que grandes esclarecimentos científicos, grandes discussões teóricas possam realmente superar essa forma de estranhamento, isto é, superá-la na vida, nem alimentar a ilusão de que as mudanças sociais da consciência religiosa eliminem automaticamente o seu caráter estranhado. [...] Somente as aspirações orientadas para o futuro, isto é, em última análise, para o socialismo, possuem a capacidade de combater com verdadeira eficácia a reificação e o estranhamento (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 745).

Tratar do problema do estranhamento como passível de resolução remete necessariamente ao reconhecimento da autoconstrução humana, da capacidade do homem de se autoconstruir, seja se fazendo ou se desfazendo nessa sociabilidade, ainda que esta última forma perniciosa remeta também à uma outra forma de efetivação do ser. O autor húngaro assevera que “a própria práxis do homem é reificada por ele mesmo” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 670) e, do mesmo modo, é ele que estranha a si próprio, portanto, ao homem estão igualmente colocadas as possibilidades para que se faça de uma maneira distinta, mais plena, com o abandono de uma condição que necessite de ilusões. No que concerne ao estranhamento religioso, como colocado por Marx (2010, pMARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Tradução de Rubens Enderle, Leonardo de Deus. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2010.. 146), se “a religião é apenas o sol ilusório que gira em volta do homem enquanto ele não gira em torno de si mesmo”, que o homem possa, enfim, girar em torno de seu verdadeiro sol, ele próprio, aquele que deve sua existência e seu destino a si, inclusive no momento em que se perde e estranha a si mesmo.

Considerações finais

O filósofo húngaro emprega de forma rigorosa o escrutínio do estranhamento religioso por meio de um retorno desde a obra marxiana, uma vez apreendido por ele de forma pioneira o caráter fundamentalmente ontológico de seu pensamento, e busca, com efeito, extrair e desdobrar as consequências dos lineamentos do pensador alemão para os dias atuais. Nesse itinerário, apresenta a religião como uma das formas de estranhamento possíveis que, como nos demais casos, diz respeito à própria formação das personalidades humanas, ao modo como os indivíduos pensam, sentem, agem e organizam sua vida.

Se inicialmente a religião pôde ocupar um papel de autoelucidação, vide toda exposição de Lukács, por exemplo, acerca da transição da magia para a religião, uma vez que não estavam colocadas as condições que permitiam ao homem primitivo, dominado por forças naturais, reconhecer a si mesmo como um ser que se autoproduz, hoje ela ocupa um lugar distinto. Simultaneamente, é uma forma de estranhamento, porque o homem não se percebe como produtor do gênero, não consegue perceber a dimensão de sua própria autoentificação, fazendo, consequentemente, com que as coisas do mundo apareçam como potências alheias; assim como também é uma forma de ideologia, pois se volta como uma força social, como uma resposta prática para questões da vida cotidiana.

Contudo, não se trata de combater a religião pura e simplesmente, mas de atuar frente ao próprio mundo e às condições materiais que a tornam ainda necessária. A religião possui como importante diretriz a colocação da questão da generidade para-si, de pensar a destinação do próprio homem com vistas a uma vida mais autêntica, mesmo que o faça pela via do estranhamento, já que somente vê essa possibilidade através do misticismo e, ideologicamente, com a mediação transcendental como reguladora da vida dos indivíduos. Cabe, então, concebendo que o problema não remete à religião em si, recolocar a questão do ser e do destino do homem, da busca dos indivíduos pelo “verdadeiro reino da liberdade”, o que não se trata da transformação espontânea da consciência religiosa, e, sim, da superação dialética dos conflitos sociais que integram os estranhamentos. Ou seja, trata-se de sublevar radicalmente, em meio à práxis social, as condições objetivas que impõem grilhões a corpos e almas e que limitam, ao mistificá-la, a potência histórica do gênero humano.

Agradecimentos

À Ronaldo Vielmi Fortes pelas generosas contribuições.

  • Notas

    1 Nos escritos de Lukács (2013)LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013., conforme orientado pela editora da obra aqui referenciada, o estranhamento (Entfremdung) possui um sentido distinto da categoria de alienação (Entäusserung); não são sinônimos, e tampouco se igualam à forma como Marx concebeu estas categorias. Parte do filósofo húngaro essa diferenciação, para o qual a alienação comparece como um processo constitutivo da objetivação dialética do ser social, não repercutindo necessariamente no estranhamento enquanto perda do potencial humano, com um sinal negativo. Nas palavras do filósofo, “a identificação das duas, tão difundida na filosofia moderna, provém de Hegel” (LUKÁCS, 2013, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.. 418), ainda que com embaraços provenientes da limitação idealista hegeliana, o que, conforme sustenta Lukács, foi superado pelo próprio Marx. Não nos importa, aqui, dar seguimento a essa controvérsia presente entre os intérpretes da tradição marxiana. Coerentes com a obra referenciada, utilizamos o termo estranhamento neste artigo.
    2 Sobre a evolução da crítica lukacsiana à vulgarização do pensamento marxista, subscrevemos Netto (2018, pNETTO, J. P. Apresentação. In: LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social I. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer e Nélio Schneider. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 9-21.. 13): “Ora, para Lukács, um dos fundamentos da paralisia teórica do marxismo residia justamente na liquidação da inspiração ontológica de Marx - não por acaso, em algum lugar ele observou que muito do pensamento staliniano e stalinista expressava uma invasão neopositivista na tradição marxista.”
    3 Recuperando o antropólogo escocês James Frazer, Lukács elucida o processo de transição da magia para a religião, a saber: “com o aumento do conhecimento, ‘o homem compreende mais claramente a infinitude da natureza e sua própria pequenez e impotência ante ela’. Ao mesmo tempo aumenta sua fé no poder das forças que, segundo suas ideias, dominam a natureza e que, como vimos, vão assumindo uma forma cada vez mais antropomórfica, personificada. Com isso, ‘abandona a esperança de poder dirigir o curso da natureza com suas próprias forças, ou seja, com a ajuda da magia, e se dirige cada vez mais abertamente aos deuses, aos únicos dominadores daquelas forças sobrenaturais que ele acreditou compartilhar com eles em outro tempo. Por isso, à medida que avança o conhecimento, a oração e o sacrifício vão conquistando o lugar decisivo no rito religioso, e a magia, que a princípio figurou com os mesmos direitos, passa progressivamente a um segundo plano e acaba afundando e se tornando uma técnica obscura.’ Frazer destaca aqui acertadamente a contraposição entre a magia e a religião” (LUKÁCS, 1966, pLUKÁCS, G. Estética I: La peculiaridad de lo estético. Tradução de Manuel Sacristán. México: Ediciones Grijalbo, 1966.. 117, tradução nossa).
  • Agência financiadora Não se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação Não se aplica.
    Consentimento para publicação As autoras dão consentimento para a publicação.

Referências

  • ALCKMIN, R. M. Marx e Feuerbach: da sensibilidade à atividade sensível. 2003. 143f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2003.
  • CARLI, R. Gyögy Lukács e a crítica à necessidade social da religião. Crítica Marxista, Campinas, n. 41, p. 89-103, 2015.
  • CHAGAS, E. F. A crítica da religião como crítica da realidade social no pensamento de Karl Marx. Trans/Form/Ação, Marília, v. 40, n. 4, p. 133-154, out./dez. 2017.
  • LUKÁCS, G. Estética I: La peculiaridad de lo estético. Tradução de Manuel Sacristán. México: Ediciones Grijalbo, 1966.
  • LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.
  • MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Tradução de Rubens Enderle, Leonardo de Deus. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2010.
  • NETTO, J. P. Apresentação. In: LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social I. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer e Nélio Schneider. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 9-21.
  • VAISMAN, E. Curso Livre Lukács: Aula 10: O estranhamento religioso na ontologia lukacsiana. São Paulo: TV Boitempo, 2016, 2h33min. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QEEmxHPzpBQ Acesso em: 08 ago. 2022.
    » https://www.youtube.com/watch?v=QEEmxHPzpBQ

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    27 Fev 2023
  • Aceito
    29 Maio 2023
  • Revisado
    04 Jul 2023
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Curso de Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina Universidade Federal de Santa Catarina , Centro Socioeconômico , Curso de Graduação em Serviço Social , Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Campus Universitário Reitor João David Ferreira Lima, 88040-900 - Florianópolis - Santa Catarina - Brasil, Tel. +55 48 3721 6524 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: revistakatalysis@gmail.com