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Desengenharia. O passivo ambiental na desativação de empreendimentos industriais

RESENHAS / BOOK REVIEWS

Guillermo Foladori

Professor Visitante da Universidade Federal do Paraná. Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento

Desengenharia. O passivo ambiental na desativação de empreendimentos industriais.

Luis Enrique Sánchez.

Edusp/Fapesp, São Paulo, 256 p., 2001.

Em momentos em que o mundo se debate entre guerras, greves, fome, golpes de estado e desemprego, falar de avanços civilizatórios parecesse um absurdo. Porém, a realidade caminha assim, dialeticamente. No que diz respeito ao meio ambiente externo ao ser humano, ou seja deixando a um lado todos essas manifestações horrorosamente humanas antes sinaladas, a preocupação pelo meio ambiente por parte do capital, seja através das empresas ou de seus representantes nos governos e nas políticas públicas e legislação, mostra um avanço indiscutível. Não vamos aqui a questionar se esse avanço é um resultado dos próprios interesses do capital hegemônico que, através de regulamentações ambientais mais exigentes, consegue lucros econômicos maiores (políticas win-win; ganha o meio ambiente, ganha o capital); ou se é um resultado das lutas sociais que obrigam o capital a civilizá-se. Ou, ainda, se é um resultado de um maior grau de consciência da população em geral que, deixando de lado os interesses imediatos também está preocupada pela qualidade de vida. É possível que todos esses elementos tenham parte de responsabilidade. Agora, se isolamos a relação da sociedade com o meio ambiente externo, tudo indica que o processo civilizatório avança. Tampouco deve se pensar que avança em forma unidirecional. As pressões do presidente Bush, a princípios de 2002, por modificar o Clean Water Act, para legalizar o vazamento dos resíduos das atividades da mineração nos cursos d'água, é um indicativo contra-civilizatório.

O livro de Sánchez merece um destaque especial, tanto por sua atualidade, quanto pela seriedade analítica, excelente redação e apoio de recursos fotográficos e de material documental anexo. O autor é professor da Escola Politécnica da USP, e o livro publicado em fina qualidade pela editora dessa universidade.

O tema que trata é o dos passivos ambientais na desativação de empreendimentos industrias. Durante dois séculos de industrialização, empresários investiram seu capital em determinadas atividades, para as quais eram construídos prédios ou infraestrutura de diverso tipo. Depois de amortizado o investimento, esta infraestrutura era abandonada e o solo e meio ambiente muitas vezes ficava degradado e contaminado, criando problemas para os futuros investidores ou moradores dessa área. No final do século XX o conceito de ciclo de vida dos produtos começa a ser incorporado nas legislações ambientais e nas práticas de determinadas indústrias. Isso significa que ao se desenhar um produto, ou planejar um empreendimento, deve-se considerar não somente sua vida útil, mas também o que se fazer com o "cadáver" e a infraestrutura e o entorno que permitiram sua produção. A possibilidade de reciclar a maior parte dos materiais que compõem um determinado produto é um exemplo de um design for the environment, que contempla esse ciclo de vida desde o "berço ao túmulo".

Uma parte desse "ciclo de vida" já há tempo que vem sendo considerado nas políticas ambientais. Nos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) no Brasil, por exemplo, isso está contemplado quando a Resolução do CONAMA (1986) distingue as fases de "planejamento", de "implantação", e de "operação" do empreendimento. Porém, o tema do autor do livro vai além essas fases, se preocupando pelo que seria a fase da "desativação". O ciclo de vida não culmina com a operação ou funcionamento do empreendimento, deve também considerar o que fazer com as instalações uma vez que o empreendimento já não esteja em atividade, assim como a degradação do meio ambiente durante a vida ativa, como a contaminação dos solos, a degradação dos ecossistemas, as mudanças na topografia do local, etc. Esta preocupação pelo ciclo vital completo, incluindo o cadáver e seus efeitos no entorno, está em consonância com o princípio mais geral do "desenvolvimento sustentável". Efetivamente, se algo há em comum nas diferentes interpretações sobre o desenvolvimento sustentável é o fato do desenvolvimento econômico ter que considerar não somente a equidade intra-geração, mas também a inter-geração, o qual significa não deixar que as futuras gerações tenham que pagar os custos do enterro da presente.

Em alguns casos, de estabelecimento de moradias em prédios contaminados, uma política de desativação de empreendimentos beneficia diretamente à população, pelo menos aquela que iria morar lá. Não obstante, a política de desativação de empreendimentos é sempre em primeira instância um acordo de cavaleiros entre o próprio capital. São as empresas de recente instalação no local que não devem pagar a descontaminação necessária por investimentos de antigos empreendimentos. Como o que ocorreu num dos primeiros casos públicos no Brasil, na

"Baixada Santista nos anos de 1980, quando veio a público a existência de diversos depósitos de resíduos organoclorados nos municípios de Cubatão e São Vicente. Esses resíduos são provenientes da fabricação de agrotóxicos pela empresa Clorogil, que em 1976 foi comprada pela Rhodia S.A. Ao adquirir a empresa, o comprador herdou seu passivo ambiental, já tendo gasto várias dezenas de milhões de dólares para tentar liquidá-lo. O caso foi objeto de uma das primeiras ações civis públicas ambientais, já em 1986. A Rhodia procedeu à remoção da maior parte dos resíduos e do solo dos locais contaminados, ã sua estocagem temporária, numa célula de resíduos chamada "estação de espera", e instalou um incinerador em sua unidade industrial para queimar os resíduos. Até 1994 a empresa teria gasto cerca de US$ 60 milhões nessas atividades". (Sánchez, 2001:89-90).

A tabela a seguir, elaborada por Sánchez, da uma idéia de conjunto dos diversos tipos de empreendimento, e as causas e passivos ambientais que podem gerar.

ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DA DESATIVAÇÃO DE EMPREENDIMENTOS

Empreendimento

Vida útil

Principais razões para fechamento

Principais passivos ambientais

Indústrias

indeterminada

• obsolescência

• mercado

• impactos ambientais

• solos contaminados

• aqüíferos poluídos

• resíduos tóxicos

Minas

determinada mas variável

• exaustão

• obsolescência

• mercado

• impactos ambientais

• escavações

• áreas de subsidência

• áreas alagadas

• pilhas de estéreis

• barragens de rejeitos

Depósitos de resíduos

determinada mas variável

• exaustão

• mercado

• impactos ambientais

• riscos de migração de poluentes e de explosões de gás

• solos contaminados

Infra-estrutura de Transportes indeterminada

• obsolescência

• incompatibilidade com o tecido urbano

• solos contaminados

• aqüíferos poluídos

• resíduos tóxicos

Usinas Termelétricas

indeterminada

• obsolescência

• mercado

• impactos ambientais

• solos contaminados

• aqüíferos poluídos

• resíduos tóxicos

Instalações Nucleares

determinada

• obsolescência

• materiais radiativos

Barragens

indeterminada

• obsolescência

• riscos de rupturas

• estrutura obsoleta

• sedimentos acumulados

• grande superfície degradada

Fonte: Sánchez, 2001:78

Como pode verse no quadro acima, em termos gerais, a contaminação dos solos e das águas subterrâneas é dos mais graves passivos ambientais. Os solos contaminados, observa Sánchez, podem apresentar risco à saúde pública de várias formas: por contacto direto com a pele, por ingestão ou inaladas ao se fixar a substancias sólidas, ou por causa de emissões de gases tóxicos; também podem ser transferidas para as águas subterrâneas, contaminando redes de água potável, ou contaminando cursos de água superficiais, pero também podem ser tóxicos para outros seres vivos do ecossistema. O problema é grave por demais. Segundo o autor, não existe no Brasil inventário de áreas contaminadas ou potencialmente contaminadas. Para a região metropolitana de São Paulo, se estima que existam cerca de 43 mil áreas potencialmente contaminadas, o qual não significa que todas elas estejam efetivamente contaminadas nem que devam ser forçosamente descontaminadas.

Já em nível urbano o problema dos passivos ambientais não se restringe a locais isolados. Abrangem inclusive bairros de cidades e cidades inteiras. O seguinte exemplo mostra a magnitude do problema num país de industrialização precoce.

O Departamento de Meio Ambiente do governo britânico, por sua vez, define esse tipo de área (derelict land) como 'terreno degradado pelo desenvolvimento industrial, ou por outra causa, a ponto de não poder ser utilizado sem tratamento'...Um levantamento oficial do final dessa década [1980] cadastrou 45 683 hectares de terrenos abandonados, ao lado de outros 37 150 hectares de terrenos desocupados. Aproximadamente um terço da superfície total de terrenos abandonados se refere a áreas industriais ou assemelhadas, tais como zonas portuárias. Por outro lado, cerca de metade da superfície total corresponde a áreas afetadas pela mineração, como pilhas de estéril e rejeitos, escavações e áreas de subsidência, ou seja, áreas sob as quais ocorreu o desmoronamento de escavações subterrâneas, dando origem a uma depressão em superfície (Sánchez, 2001:29-30).

Este fenômeno da poluição dos solos é um elemento a mais em favor do "urban sprawl" ou expansão urbana. Para as construtoras resulta em menores custos investir em terrenos limpos, embora mais distantes, que despoluir os brownfields de antiga ocupação industrial.

Aí onde o problema começou a ser atacado há algumas décadas, existem muitos exemplos de reparação e reciclagem para novos usos de antigos solos e prédios. São exemplos, a transformação de antigos edifícios industriais em centros culturais ou de lazer, museus, etc. No caso de complexos mineiros, as dificuldades são ainda maiores. Em alguns casos pelo fato das minas serem passíveis de eventual reabertura, uma vez que o preço do mineral permita a exploração de filões menos rentáveis, assim mesmo podem passar décadas desativadas. Alguns espaços têm sido reaproveitados para disposição de resíduos industriais e radioativos, armazenagem de documentos, escritórios, garagens, câmaras frigoríficas, etc.

Outro problema muito importante é quem paga pela remediação ou descontaminação. Em princípio, a legislação tende à política do poluidor-pagador. Mas isso nem sempre é fácil de aplicar. Há casos onde as empresas fazem investimentos com créditos bancários, deixando em troca seus títulos de propriedade do solo. Porém, uma vez abandonado o local, resulta que os custos de remediação da contaminação são maiores que o preço do terreno. Assim, se o banco executa judicialmente aos proprietários, e fica com os terrenos, deverá pagar pela descontaminação um preço que ultrapassa o que recuperará com a venda dos mesmos posteriormente.

A literatura econômica sobre preços do solo sempre combinou as características naturais com os resultados do uso humano. Assim, por exemplo, um terreno melhor localizado, ou com uma topografia mais adequada para os fins do investimento, tem um preço maior que outro distante dos mercados ou com uma geomorfologia que requer de maiores investimentos de capital para obter igual resultado. Porém, o elemento chave do preço do solo em uma cidade sempre foi a localização —quando características topográficas não complicavam severamente o empreendimento—. No caso dos terrenos rurais a fertilidade natural se combinava com a localização como elemento chave. Como, no sistema capitalista existe, ou pode existir, uma distância jurídica entre o proprietário do terreno e o investidor que aluga, resulta que o investidor pretende obter os maiores lucros dentro do prazo de duração do contrato de aluguel. O resultado é sempre uma sobre-exploração das riquezas naturais. No âmbito rural, isso se manifesta num uso super intensivo do solo com resultados na degradação deles depois de finalizado o termo do contrato. Quem paga as conseqüências é o proprietário, que posteriormente vai ter que diminuir o preço do aluguel. No caso dos solos urbanos a modalidade é diferente, já que a construtora investe "verticalmente" no espaço, contribuindo à degradação geral da cidade. Agora surge um novo elemento que vai passar a formar parte do preço da terra, significativo no caso de investimentos industriais: a contaminação do solo. Porém, a diferença da localização, topografia e fertilidade natural, que eram maiormente visíveis, o fácil de perceber por parte do novo comprador ou arrendador, esta questão da contaminação é oculta, muitas vezes incerta, e em grande medida requer de um estudo técnico custoso para determinar se efetivamente existe, e suas possíveis conseqüências para a saúde humana e do entorno ecossistêmico em geral.

A disquisição do parágrafo anterior, não incluída na análise do Sánchez, mostra a riqueza do livro, que permite pensar mais além do que ali está escrito, indicando caminhos para futuras pesquisas. Mostra, também, claramente, o avanço civilizatório que significa a incorporação dos passivos ambientais na legislação. Vale a pena, como uma última reflexão, estender o argumento para os "passivos sociais". Assim como começam a ser punidos os investidores que lucram explorando a natureza mais além seus limites de reciclagem natural, também começam a ser punidos os lucros derivados de relações sociais de produção "imorais". Em maio de 2001 foi conhecida a notícia de que mais de um milhão de pessoas, sobreviventes de trabalhos forçados ou de experimentos médicos durante a Alemanha Nazi, será indenizada pela indústria e o governo alemão. Em março de 2002 se anunciou que três grandes corporações norte-americanas acusadas de se beneficiar da escravidão, antes dela ser abolida a meados do século XIX, serão levadas aos tribunais por descendentes dos escravos que buscam compensação econômica. Chegara a hora em que os lucros capitalistas derivados do trabalho assalariado também sejam considerados imorais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2003
  • Data do Fascículo
    Jun 2002
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