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Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista (1786-1888)

RESENHAS/BOOK REVIEWS

Allan Monteiro

Mestre em Antropologia Social e pesquisador associado do Nepam-Unicamp

Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista (1786-1888).

José Augusto Pádua.

Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2002.

O primeiro contato com esse livro de José Augusto Pádua suscita uma reação que é mista de surpresa e curiosidade. Logo na capa, o subtítulo que associa ''crítica ambiental'' com certo período do passado brasileiro parece contrariar a idéia que considera as preocupações com o ambiente enquanto fenômeno de histórico recente e característico do mundo contemporâneo. Fruto de uma pesquisa iniciada a mais de duas décadas, o livro apresenta como proposta lançar um outro olhar para este território pouco conhecido do pensamento social brasileiro, mostrando o quanto discussões desse tipo estiveram presentes nesse período da história nacional.

A pesquisa que fornece suporte às discussões contidas no livro surgiu aos poucos e praticamente ao acaso, quando o autor, analisando o pensamento político brasileiro, passou a esbarrar com elementos de ''crítica ambiental'' em discursos políticos do período escravocrata. O aprofundamento da investigação foi revelando uma quantidade razoavelmente expressiva de pensadores luso-brasileiros que Pádua classifica como ''críticos ambientais'', configurando uma rede de discursos, idéias e análises referentes à destruição dos recursos naturais. Nesse aspecto, esse descobrimento – esse passado posto em evidencia – constitui sem dúvida alguma o principal ponto positivo do livro, que pela originalidade temática já pode ser considerado como marco de referência desse campo de investigação historiográfica que se apresenta em perspectiva.

Em primeiro lugar é preciso fornecer uma medida exata da intensidade desse debate, uma vez que não se tratava de uma questão amplamente difundida a todos os domínios da sociedade colonial brasileira, mas se restringia a uma pequena porção da elite ilustrada da época: uma ''elite da elite'', muitas vezes compartilhando influências intelectuais comuns e caracterizada em alguns momentos por laços diretos de relacionamento. Da mesma maneira, e conforme os argumentos apresentados pelo autor, o conjunto de discursos produzidos por esses ''críticos ambientais'' não pode ser entendido enquanto uma convergência de ocorrências isoladas, mas constitui uma tradição de pensamento na medida em que essas idéias e discursos comumente se referem uns aos outros, além de estarem fundamentados numa chave explicativa que é recorrente. O denominador comum a toda essa tradição crítica, como Pádua mostra muito bem, está no caráter essencialmente político, cientificista, antropocêntrico e economicamente progressista que perpassa a imensa maioria desses discursos.

O alvo principal dessa tradição crítica é o modelo produtivo estabelecido pelo modelo colonial de exploração calcado, segundo as palavras de Sérgio Buarque de Holanda, na lógica da terra farta, técnicas rudimentares, braço escravo e na mentalidade de que a terra era para gastar e não para proteger ciosamente (p.73). É principalmente contra o imediatismo, a inconseqüência, a ignorância, o desperdício, a irracionalidade e o nomadismo da lavoura itinerante - que respondia a interesses exclusivamente particulares - que essa crítica vai se constituindo, por sua vez referenciada na defesa dos interesses públicos (muitas vezes associados a interesses do Estado/Coroa), pregando a necessidade de reformulação do sistema agrícola a partir de uma lógica da estabilidade a longo prazo e da racionalidade da exploração, de modo a aprimorar a eficácia produtiva e reduzir o impacto da lavoura sobre os domínios florestais.

Entretanto, essa defesa da floresta não está pautada em seu valor intrínseco, mas na sua finalidade exclusivamente econômica. De maneira bem sintética, o que a grande maioria dos discursos transcritos no livro deixa transparecer é uma tentativa de conciliar duas atividades econômicas que seriam complementares, a lavoura e a extração madeireira, não fosse o caráter destrutivo que a primeira gerava sobre a segunda. Nesse sentido, a floresta foi encarada pela sua utilidade, tanto no que possuía de reconhecidamente necessário (madeira para construção, lenha, frutos, bálsamos e resinas), quanto pela sua potencialidade em fornecer outros tipos de riqueza. No intuito de ampliar a eficácia das técnicas produtivas essa crítica intimamente vinculada à lógica da utilidade se apoiou na visão do progresso econômico como instrumento civilizatório, explicitando uma clara preocupação com os destinos da Colônia/Nação. O autor sintetiza muito bem esse último ponto ao sugerir que a lógica da exploração não poderia valer para uma nação autônoma (....) o modelo colonial foi condenado (por esses pensadores) tanto pelo que promoveu – uma economia destrutiva e improdutiva – quanto pelo que deixou de promover – um pais estável e verdadeiramente civilizado (p.81).

Segundo Pádua, na medida em que essa tradição crítica foi se tornando mais sofisticada, uma relação direta com a crítica ao sistema escravista se estabeleceu, ambas fazendo parte de um mesmo pacote de propostas corretivas dos empecilhos e obstáculos que separavam o país do ideário de uma sociedade construída nos moldes ''civilizados''. É essa associação que explica o recorte temporal escolhido pelo autor – no caso, compreendido entre 1786 e 1888 – e que vai da publicação da primeira obra de ''crítica ambiental'' produzida na Colônia, até o momento em que a escravidão é abolida. A partir daí, fecha-se esse ciclo teórico de crítica que passa a se basear em novos modelos explicativos, pois, embora o sistema escravista tenha chegado ao fim, o mesmo não pode ser dito em relação à destruição dos recursos naturais.

Nesse aspecto, a associação que o autor estabelece entre esses diversos discursos acerca da destruição inconseqüente das florestas e o que ele chama de ''critica ambiental'' soa, para mim, um tanto anacrônica. Afinal, por que chamar de ''crítica ambiental'' a algo que só pode ser classificado dessa maneira a partir do olhar atual? Se essa associação é válida no que se refere aos meios – a crítica a destruição dos recursos naturais – ela perde sentido em relação aos fins, uma vez que essa crítica encontra significados bastante distintos para cada época. Praticamente todas as fontes utilizadas permitem entrever discursos que não foram produzidos com uma intenção explícita de ''crítica ambiental''1 1 Como o próprio autor reconhece na página 283. ,, mas destinados a discutir a questão da devastação dos recursos a partir de uma chave prioritariamente política e econômica embora comportando elementos atraentes ao olhar do debate ambiental contemporâneo. Nesses termos, a comparação entre esse debate ambiental contemporâneo e essa tradição intelectual analisada no livro acaba reduzida a uma coincidência que é, na maioria das vezes, apenas terminológica, já que os sentidos referentes a cada contexto são profundamente distintos. Nesse ponto o livro não me convence de que a simples evidência dessa temática comum - que se manifesta principalmente na esfera terminológica - justifique a incorporação dessa tradição crítica do passado brasileiro a um campo que, pelo seu processo histórico de constituição e suas características intrínssecas, é próprio do mundo contemporâneo.

Assim, o livro passa a impressão de que essa ''crítica ambiental'' só existe como resultado do recorte e tratamento analítico do objeto, na medida em que o autor procurou encontrar e localizar no passado os signos comuns ao debate no presente para, a partir daí, redimensionar os sentidos a eles agregados. Devido ao seu interesse principal pelas críticas à devastação ambiental, percebe-se uma recorrente valorização excessiva desse aspecto, conferindo um certo caráter de autonomia a essa ''crítica ambiental'', quando, da forma como vejo, é ''ela'' que é parte constitutiva de um discurso mais amplo, não podendo ser tratada como entidade autônoma. Por conta dessa condição, o autor - tão preocupado ao longo do livro em evitar os anacronismos - parece deixar de lado o que possivelmente constitui o principal anacronismo de toda a obra, visto que se trata do conceito utilizado como espinha dorsal de todo o seu argumento. Paralelamente, isso nos permite questionar o quanto do olhar do cientista político e do historiador está impregnado pelo olhar do ambientalista, deslocando o problema para a questão metodológica do distanciamento do observador em relação ao objeto de sua pesquisa. De fato, não é difícil perceber o fantasma desse debate ambiental contemporâneo rondando por cada página, estabelecendo uma comparação implícita que apenas eventualmente se mostra e que não chega a ser de todo resolvida.

NOTA

  • 1
    Como o próprio autor reconhece na página 283.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Dez 2003
    • Data do Fascículo
      2003
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