Acessibilidade / Reportar erro

Lagoa da Conceição: meio ambiente e modos de vida em transformação

RESENHAS/BOOK REVIEWS

Ilse Scherer-Warren

Professora do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas e da Pós-Graduação em Sociologia Política, ambos da UFSC

Lagoa da Conceição – Meio ambiente e modos de vida em transformação.

Ariane Kuhnen.

Florianópolis: Cidade Futura, 2002.

Este livro de Ariane Kuhnen é o resultado de um trabalho de reflexão teórica, subsidiada por uma cuidadosa pesquisa empírica, sobre a LAGOA DA CONCEIÇÃO, situada no coração da Ilha de Santa Catarina, em Florianópolis, lugar emblemático para se investigar o Meio ambiente e modos de vida em transformação. A versão original foi submetida para a defesa de sua tese de doutoramento em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, evidenciando o enfrentamento corajoso e apaixonado da autora aos desafios dos estudos interdisciplinares. Graduada em Psicologia, com mestrado em Sociologia Política, nesta pesquisa se propos a mergulhar mais fundo na perspectiva teórico-metodológica interdisciplinar. Ariane amplia seu olhar investigativo inquietante, de forma a incorporar no seu quadro de análise contribuições das tradições teóricas da psicologia, da sociologia, da geografia, da história, da antropologia e de estudos já mais interdisciplinares sobre o meio ambiente. Vale-se também de sistema de expressão visual como auxílio para a apreensão das representações sociais dos sujeitos investigados. Para este fim, usa como recurso a lente fotográfica, o que lhe permitiu ilustrar visualmente seu trabalho, disponibilizando ao leitor o conjunto de fotos utilizadas.

Não fosse o olhar interdisciplinar, substanciado em múltiplos conhecimentos e perspectivas de leitura da realidade, não teria sido possível apreender as múltiplas facetas do fenômeno das representações sociais de meio ambiente na Lagoa da Conceição, especialmente porque se trata de um local de enorme crescimento populacional e transformações aceleradas. Foi justamente para compreender os conflitos inerentes a esta localidade em mudança, as apropriações do espaço e modos de vida de grupos diferenciados, nativos e ''outsiders'' (os denominados ''de fora'') e as respectivas formações identitárias, que a pesquisadora percorreu um extenso e intenso percurso intelectual, que incluem, dentre outros, o próprio Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC e o doutorado sanduíche em Psicologia Ambiental na França.

Mas Ariane também teve o privilégio de investigar e de se ocupar reflexivamente da paisagem e da simbologia de um dos belos lugares do mundo, a Lagoa da Conceição. Enquanto moradora teve também o privilégio de juntamente com seus informantes recuperar o sentimento e os simbolismos destas paisagens e, conforme suas palavras, ''acessar aos espaços não como realidade física mas como lugar'', no sentido atribuído pela ciência geográfica. Portanto, esta obra além de contribuir para o entendimento das inter-relações humano-ambientais, também permite ao leitor-cidadão participar de uma viagem através da história, dos mitos, da magia, dos valores e dos sentimentos de pertencimento que este ''lugar'', privilegiado pela natureza, tem provocado em moradores nativos e mais recentemente chegados.

Se a diversidade de habitantes na Lagoa não isenta o lugar de conflitos e de distintas representações de seu mundo, por outro lado, estes se encontram em um ponto de suas representações: a forma como hierarquizam a questão ambiental. Esta ocupa uma posição privilegiada no imaginário, nas preocupações, nas práticas dos movimentos associativistas, de ambos os grupos.

Em tempos de degradação da natureza, de desperdício de recursos naturais, da má destinação de resíduos, é salutar perceber e entender a dinâmica de comunidades locais não homogêneas culturalmente, mas que se destacam por sua preocupação ambiental em relação aos recursos naturais e a qualidade de vida. Através da análise dos encontros e desencontros, das diversidades e das semelhanças, dos conflitos e das coesões valorativas, Ariane foi enriquecendo nosso entendimento sobre o ''lugar'' Lagoa, enquanto espaço fruto de uma dialeticidade entre natureza, cultura e construção social da realidade.

Nesta construção destacou o papel das organizações comunitárias no enfrenta–mento dos problemas ambientais locais. As formas associativistas e as abordagens aos problemas ambientais expressam também a diversidade cultural dos grupos investigados. Entretanto, estes novamente se associam, sem marcas de suas divergências, num grande evento aglutinador, que já passa a fazer tradição em Florianópolis, o ''Abraço à Lagoa''.

O livro se estrutura em três capítulos principais de análise, conclusão e anexo metodológico, incluindo-se o painel fotográfico da pesquisa.

No primeiro capítulo, As construções simbólicas do espaço urbano, a autora apresenta a construção do quadro teórico, no sentido de criar um caminho interpretativo para o estudo das interações existentes entre o ser humano e o meio ambiente. Partiu do pressuposto que, de modo geral, ''as questões ambientais não interrogam unicamente a natureza que se pensa proteger, mas sim a constituição da sociedade''. Desta forma, elegeu teorias que incluem a natureza na análise da sociedade. Portanto, a vida coletiva, partilhada e estruturada como um todo, integrará elementos físicos, sociais e elementos subjetivos, emocionais e estéticos. Conclui, assim, que a base material, arquitetural, urbanística, natural e subjetiva orientará as práticas a partir das representações sociais presentes nos diferentes grupos sociais. Ou seja, ''a situação coletiva de pertencer a um determinado grupo se exprime e se estabelece nos diferentes modos de uso e apropriação da natureza e remete a uma idéia de identidade social''. Acrescenta ainda que o meio ambiente, como objeto de diversas apropriações, poderá ser um veículo de transformação da sociedade, por exemplo, através da adoção de comportamentos pró-ambientais, os quais poderão vir a redefinir todo um conjunto de atividades e de situações estabelecidas.

Nos Capítulos 2 e 3, Transformações, apropriações e modos de vida na Lagoa e O meio ambiente como construção social, a autora analisa os resultados de sua pesquisa empírica, realizada junto a moradores do local, ou seja de ''como se manifesta o viver e o que passa a significar esse viver para aqueles moradores''. Propõe-se a conhecer a lógica que engendra as manifestações sociais e o significado que carregam, afirmando que, como todo ser humano, esses moradores são produto e produtores de suas vidas, suas ações constituem-se num processo dialético, por isso a cultura e a história revelam-se importantes na dinâmica da ação e na elaboração de suas representações sociais. Justamente, elege as representações como campo de investigação, pois considera que através delas organizam-se os sentidos dados ao mundo. Enfim, conclui que os moradores da Lagoa da Conceição destacam-se pela preocupação ambiental em relação aos recursos naturais e a qualidade de vida.

Na análise das relações sociais, desenvolvida no segundo capítulo, apreende elementos significativos da formação das identidades contrastivas, entre os moradores nativos e os que para aí migraram. Ao nível da construção das identidades coletivas, a autora destaca a de ''manezinho'', para denominar os nativos, versus a dos ''de fora'', em referência ao morador novo ou ''estrangeiro''. Aponta como tem ocorrido, as vezes, uma visão estereotipada do fenômeno, com subsequentes conflitos e repercussões no plano da política; mas também destaca o fato de que vem ocorrendo a re-valorização e a re-afirmação identitária de ''manezinho'', a partir da divulgação internacional desta pela figura emblemá–tica do tenista Guga. A supervalorização desta identidade poderia ser uma forma reativa de proteção de seu ''lugar'', face a transformação excessivamente acelerada e, portanto, ameaçadora à qualidade de vida.

No terceiro capítulo, a análise da qualidade de vida é aprofundada através da introdução da categoria de ''satisfação residencial'', sempre à luz da abordagem relacional dos sujeitos sociais (diferenciados), entre si e com seu meio ambiente. Na busca desta relação, elucida as representações sociais e práticas cotidianas diferenciadas dos dois grupos da pesquisa quanto aos referenciais paisagísticos, arquitetônicos, a utilização dos recursos naturais e a destinação dos resíduos sólidos

Nas Conclusões, retoma as considerações sobre a relevância da trajetória interdisciplinar para a construção de conhecimento, em relação ao seu objeto de estudo, especialmente tendo em vista sua perspectiva analítica de que o conhecimento acerca das relações da sociedade com o meio ambiente nasce da importância e da necessidade de saber como o homem e o meio se influenciam mutuamente. Afirma que ''a esfera de valores atribuída ao modo de vida e ao meio ambiente em geral tem um papel modulador ao nível da avaliação ambiental feita pelo indivíduo, assim como o estudo de um ambiente cotidiano vivencial faz aparecer a avaliação de aspectos essenciais que descrevem e delimitam. Na avaliação do meio ambiente normas e valores sociais são atribuídos ao elemento avaliado.'' Através deste enfoque, buscou as repercussões que as representações sociais de meio ambiente têm na vida cotidiana e vice-versa, concluindo que as representações e ações da coletividade são um exemplo de apego ao ambiente em que vivem.

Enfim, o livro LAGOA DA CONCEIÇÃO - Meio ambiente e modos de vida em transformação é um exemplo bem sucedido de estudo interdisciplinar sobre uma problemática sócio-ambiental. De leitura praseirosa e instrutiva, a obra poderá despertar grande interesse a leitores diferenciados: de estudiosos e profissionais de questões sociais e ambientais aos cidadãos que se interessam pelas questões de qualidade de vida e gostariam de realizar uma viagem imaginária, usufruindo dos encantos da Lagoa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2003
  • Data do Fascículo
    2003
ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistaambienteesociedade@gmail.com