Acessibilidade / Reportar erro

Monopólio, conflito e participação na gestão dos recursos hídricos

Monopoly, conflict and participation within water resources management

Resumos

O artigo procura apresentar o contexto sócio-histórico onde ocorre a emergência de interesses sociais e econômicos em conflitos que restringiram ou dilataram as opções de ação disponíveis para os agentes envolvidos na questão dos recursos hídricos na Região Metropolitana de São Paulo. São apontados alguns constrangimentos estruturais e conjunturais construídos em um processo social de longa duração, onde o setor elétrico privado (Light & Power) comandou os usos das águas metropolitanas e condicionou a atuação de outros setores e o surgimento de novos atores sociais. Apontamos a congruência entre a emergência da defesa ambiental e a mudança no padrão político institucional por meio de novos paradigmas de gestão, que envolvem a tendência ao desenvolvimento da democracia participativa - comitês de bacia hidrográfica.

gestão de recursos hídricos; conflitos; comitês de bacia hidrográfica


This paper seeks to explain the social and historical context in which conflicting interests regarding the question of water resources emerge in São Paulo's metropolitan area. These conflicts have restricted or increased the available options of action to those involved in the process. We have pointed out some structural elements as well as the conditions built in a long term social process when the energy sector (Light & Power Company) commanded the use of metropolitan waters. The company limited the action of other sectors and motivated the emergence of new social actors. We have also pointed out how the emergence of environmental defense has happened at the same time of a change in the political pattern. New management styles entailed a tendency to the development of participating democracy - the river basin committees.

water resources management; conflicts; river basin committees


ARTIGOS

Monopólio, conflito e participação na gestão dos recursos hídricos

Monopoly, conflict and participation within water resources management

Valério Igor P. Victorino

Professor do Programa de Mestrado em Gestão de Políticas Públicas da UNIVALI - SC. igorvic@usp.br

RESUMO

O artigo procura apresentar o contexto sócio-histórico onde ocorre a emergência de interesses sociais e econômicos em conflitos que restringiram ou dilataram as opções de ação disponíveis para os agentes envolvidos na questão dos recursos hídricos na Região Metropolitana de São Paulo. São apontados alguns constrangimentos estruturais e conjunturais construídos em um processo social de longa duração, onde o setor elétrico privado (Light & Power) comandou os usos das águas metropolitanas e condicionou a atuação de outros setores e o surgimento de novos atores sociais. Apontamos a congruência entre a emergência da defesa ambiental e a mudança no padrão político institucional por meio de novos paradigmas de gestão, que envolvem a tendência ao desenvolvimento da democracia participativa - comitês de bacia hidrográfica.

Palavras-chave: gestão de recursos hídricos; conflitos; comitês de bacia hidrográfica.

ABSTRACT

This paper seeks to explain the social and historical context in which conflicting interests regarding the question of water resources emerge in São Paulo's metropolitan area. These conflicts have restricted or increased the available options of action to those involved in the process. We have pointed out some structural elements as well as the conditions built in a long term social process when the energy sector (Light & Power Company) commanded the use of metropolitan waters. The company limited the action of other sectors and motivated the emergence of new social actors. We have also pointed out how the emergence of environmental defense has happened at the same time of a change in the political pattern. New management styles entailed a tendency to the development of participating democracy - the river basin committees.

Keywords: water resources management; conflicts; river basin committees.

"A propriedade da água é, precisamente, aquela em que se acentua

o caráter social pela interação entre os usos e os usuários"

Alfredo Valladão

"O modo como as decisões sobre o gerenciamento de água são feitas e os sistemas de água são controlados revela bastante sobre os estágios e a saúde da democracia."

Neil S. Grigg

INTRODUÇÃO

Durante quase um século, os sociólogos trabalharam majoritariamente pensando que os constrangimentos causados à natureza não seriam relevantes para a formação e o desenvolvimento das instituições sociais. Como ciência herdeira e criação do iluminismo, a Sociologia partia do pressuposto de que o desenvolvimento da ciência, da tecnologia e das comunicações permitiria à sociedade isentar-se da natureza, superando o determinismo geográfico e biológico (DUNLAP, 1997). Mesmo que seja possível achar alguns elementos de estudo das relações entre sociedade e natureza em Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber (BUTTEL, 2000), era como se a organização social pairasse acima do mundo natural, com uma dinâmica independente e explicável somente pela correlação entre as variáveis puramente sociais.

A sensibilização global para a questão ambiental nas últimas décadas do século XX - representada pela escassez e poluição crescentes, generalizadas e mais significativamente perigosas - leva inúmeros sociólogos a crerem em seu reflexo sobre a própria transformação das instituições sociais.

O desafio da teoria social contemporânea consiste em construir conceitos que possibilitem compreender o significado e as tendências mais perenes da transformação das práticas sociais induzidas pelas interferências sociais no meio natural e seus reflexos na configuração das instituições que regulam as próprias práticas sociais (GIDDENS, 1991; BECK, 1992). Acreditamos que o desenvolvimento da Sociologia Ambiental dependerá de uma ampliação de sua base empírica que garanta a condição necessária e suficiente para a elaboração dos fundamentos teóricos que serão capazes de responder às questões sobre a influência do meio natural artificializado nas instituições da sociedade.

Neste trabalho,1 1 . Agradeço aos membros do Grupo de Trabalho Teoria e Meio Ambiente do 1° encontro da ANPPAS de novembro de 2002. apresentamos um esboço histórico e sociológico das condições sociais da urbanização e transformação capitalista que permearam as relações entre sociedade e natureza. Pretendemos resumidamente2 2 . Vide VICTORINO, 2002. discutir as implicações sócio-ambientais da hegemonia do setor de energia, em sua configuração privada, sobre os recursos hídricos na Região Metropolitana de São Paulo. Recuperaremos a trajetória política e social deste processo desde a emergência da água enquanto tema da agenda pública até o momento em que se permitiu chegar à atual institucionalidade desenhada segundo novos paradigmas de gestão, principalmente pela democracia participativa, que busca equilibrar as relações de poder dentro de uma bacia hidrográfica.

Primeiramente, apontaremos as determinações do momento crucial no qual tomou-se a decisão pela construção do Projeto Serra (construção da represa Billings e da usina de Cubatão) e, principalmente, pela decisão de inverter o curso do rio Pinheiros objetivando as águas do rio Tietê. Faremos também um relato das estratégias de construção da hegemonia do capital sobre os recursos hídricos. A seguir, discorreremos sobre as implicações multisetoriais decorrentes do monopólio dos recursos hídricos e a emergência de novas necessidades sociais. Em terceiro lugar, discutiremos a transformação dos paradigmas de gestão dos recursos hídricos decorrentes do processo de retroalimentação entre a defesa ambiental e a democracia participativa.

A EMERGÊNCIA DA ÁGUA NA ESFERA PÚBLICA

A questão dos recursos hídricos entra na agenda político-administrativa do Governo paulista no final do século XIX, quando o adensamento urbano ocasiona os problemas das enchentes e, principalmente, a escassez de água para abastecimento. O Diário de São Paulo relatou a atmosfera em torno do problema durante a década de 1860:

Estamos sem água, a população sofre sede, e o que faz o governo?"/ "O que faz V. Excia. que deixa o povo morrendo de sede e não toma nenhuma providência? O povo esta comprando o barril de lama a 80 réis!"/ "V. Excia. tem o direito de mandar os paulistas morrerem no Paraguai a ferro e fogo, mas não pode matá-los de sede (apud FREITAS, 1930).

A solução se processou pela atração de capital privado para o empreendimento. Em 1875, foi formada a Companhia Cantareira de Águas e Esgotos, que construiu o primeiro sistema de abastecimento da cidade, aduzindo águas da Serra da Cantareira. O empreendimento privado entrou em estado de insolvência logo na década de 1890, sendo suas atividades absorvidas pelo Estado quando foi criada a Repartição de Serviços Técnicos de Águas e Esgotos. As fontes próximas de águas puras logo se tornaram insuficientes, e o problema do abastecimento entrou novamente em debate.

Visando a redução de custos, uma parcela do setor técnico e científico propôs a utilização das águas do rio Tietê, que já estavam bastante poluídas, a serem captadas no trecho urbano. Outra parcela propunha a busca de águas em "bacias vestidas por florestas", isto é, longe da contaminação urbana. Um dos aspectos mais interessantes do debate neste período refere-se à consideração de outros mecanismos, além da desapropriação, para evitar ou coibir o impacto antrópico sobre as fontes de recursos naturais, assinalando o início do conservacionismo por meio de sugestão de legislação de proteção aos recursos hídricos. Em 1905, Saturnino de Brito critica a condenação do Tietê e apresenta, sem sucesso, infelizmente, visão sistêmica e inovadora sobre o problema do abastecimento:

O fato de se ter atualmente condenado doutrinariamente as águas do Tietê, conduzirá ao abandono de suas margens e do seu curso, ao desenvolvimento de povoações para montante, e ao lançamento de impurezas que contaminarão o que com a 'lei de proteção' se pode desde já conservar e transmitir sem mácula ao porvir, de modo que as águas sejam cada vez mais potáveis em lugar de se tornarem cada vez mais poluídas. (...) O único meio de manter a integridade higiênica do rio é a lei de proteção e a prática do abastecimento: então velarão por ele os interessados pela pureza das suas águas, o povo e os governos quaisquer, hoje e para sempre (1943: 60-1).

Até a década de 1920, a questão pública dos recursos hídricos será exclusiva dos setores de saneamento e abastecimento, sempre pressionados pela opinião pública, devido à demanda urbana sempre crescente (VICTORINO, 2002).

O MOMENTO CRUCIAL DA HISTÓRIA

Em meados desta mesma década, o grande capital multinacional representado pela Light & Power entrará substantivamente na disputa pelas águas da cidade de São Paulo, quando surge o Projeto Serra - hoje conhecido pelo sistema Tietê-Pinheiros-Billings-Usina Henry Borden (Cubatão).

O Projeto Serra implicará em uma revolução na geografia do município de São Paulo. Seria originalmente (até 1927) um complexo conjunto de obras de engenharia hidráulica, composto por 14 reservatórios espalhados pela região próxima da Capital, em diferentes altitudes, conectados por 12 túneis e 2 canais, formando um sistema único que encaminharia as águas para o reservatório do rio Grande (atual Billings); em seguida, as águas seriam desviadas para o reservatório do rio das Pedras, desaguando em tubulações que alimentariam a usina de Cubatão (Henry Borden), situada no nível do mar. Assim, tornava-se possível o aproveitamento de considerável queda de mais de 700 metros, entre o alto da serra e o rio Cubatão na Baixada Santista.

A competição intercapitalista e a pressão crescente dos setores de abastecimento ocasionaram uma mudança nos planos da Light & Power no sentido de monopolizar e comprometer definitivamente todas as águas aproveitáveis do Alto Tietê com a geração de energia elétrica.

A ameaça de competição ficou evidenciada quando a empresa italiana Brasital, ligada ao poderoso grupo Pirelli, iniciou planos de construção de uma usina em Itu para fornecimento de energia para a Capital. A Light & Power tentou, sem sucesso, comprar a energia gerada e mesmo o projeto inteiro. Como a usina italiana dependeria das águas do rio Tietê, que passam por Itu, a estratégia da Light & Power foi reduzir estas ao limite mínimo, condicionando toda a operação da usina italiana a desígnios de montante.

Isto foi feito modificando o Projeto Serra radicalmente, logo em 1927. A aprovação da segunda concessão (Lei Estadual 2.249/1927) significou, na verdade, que o reservatório do rio Grande seria extraordinariamente ampliado (da capacidade de 330.000.000 m3 para 1,2 bilhões de m3) e o rio Pinheiros seria retificado e teria seu curso invertido. Esta concepção seria realizada gradativamente nas décadas de 1930 e 1940. Com o rio Pinheiros invertido,3 3 . A autorização para reversão foi concedida em 1927; a operação começou em 1942. o rio Tietê passaria à condição de afluente, no caso, de águas saturadas por esgotos, para serem armazenadas em grandes reservatórios (rio Grande, com 130 km2, e rio das Pedras, com 7,6 km2), para depois atravessarem as escarpas da Serra do Mar, em uma queda de 715 metros.

O direcionamento do máximo de águas do Alto Tietê para a represa Billings,tornaria inviável qualquer projeto de grande porte no Tietê abaixo de São Paulo, prejudicando assim os planos da Brasital, que será absorvida no ano seguinte pela Light & Power.

Esta estratégia também prejudicaria os setores de abastecimento e saneamento, que ficariam na dependência das decisões do setor elétrico privado. Se, no entanto, fossem mantidos os planos iniciais do Projeto Serra (de 14 reservatórios dispostos a montante da cidade), permaneceria a dependência, mas haveria congruência de interesses setoriais. Uma barragem a montante de São Paulo, no Alto Tietê, poderia controlar o fluxo de águas, evitando assim as históricas enchentes que perturbam a vida da cidade desde tempos imemoriais.4 4 . Durante muito tempo perdurou o debate sobre a quem cabia a responsabilidade da construção dos reservatórios do Alto Tietê para controlar as enchentes. A Light & Power havia obtido o direito de construí-los, mas não mais se interessava. A prefeitura necessitava, mas não se achava na obrigação, já que constava nos direitos da empresa. O setor de abastecimento seria beneficiado pela disposição de água cristalina já armazenada em reservatórios, uma vez que a propriedade privada da água só seria modificada com o Código de Águas de 1934.

A decisão da Light & Power teve grande impacto na sociedade. A Associação Comercial de São Paulo destacou preocupações com o futuro das águas em um manifesto de 22 de dezembro de 1925, enviado ao Senado Estadual. Intitulado "O represamento de águas na Serra do Mar e os grandes problemas de interesse público que dali derivam", o manifesto contém uma observação significativa:

Quando a Light & Power (...) tiver tomado posse como senhora absoluta da Serra do Mar, o seu domínio será absoluto também em outros campos e com conseqüências de grande vulto. Não há dúvida que a Light apresentou um projeto absolutamente sumário, o qual em sua quase totalidade corresponde a problemas que ela própria não examinou, nem sequer preliminarmente; quis apenas apoderar-se de todas as águas da Serra; assegurando-se hoje uma posição de dona absoluta de bens que rapidamente terão que se valorizar e excluir toda e qualquer outra iniciativa ou ingerência de terceiros, quer se trate de particulares, autoridades municipais, estaduais e federais. (...) Em outras palavras, ela não quer que se oponha limite algum à sua iniciativa.

No embate político e jurídico sobre o controle das águas, a empresa canadense subjugou os interesses italianos em conjunto com os interesses dos setores de abastecimento e saneamento. O reservatório Billings e seus 16 m3/s de vazão natural (maior do sistema Light & Power, com capacidade para 150 m3/s) transformou-se no destino final de todos os esgotos que corriam em direção aos rios Tietê e Pinheiros transformando esta bacia hidrográfica em uma zona praticamente inóspita, a não ser para as grandes levas de migrantes depauperados que acorreram para a metrópole paulista em busca de melhores oportunidades.

O DESENVOLVIMENTO DOS CONFLITOS

O exercício do monopólio do setor de energia privado sobre as águas metropolitanas de São Paulo impediu o planejamento e a utilização racional dos recursos hídricos para fins múltiplos e contribuiu para o comprometimento por maciça poluição originada do lançamento indiscriminado dos esgotos da região.

Este monopólio foi basicamente questionado apenas dentro do setor técnico do saneamento, mas sempre revelando a fragilidade frente aos poderosos interesses da produção de energia elétrica privada, não obstante serem as questões do saneamento e do abastecimento tão prementes quanto a da energia elétrica. A posição subalterna do setor de saneamento pode ser explicada pela maior capacidade e experiência do setor energético privado na articulação de interesses na esfera política, tanto no nível local, quanto nacional ou internacional.5 5 . No nível local, basta assinalar que o presidente do estado de São Paulo, durante o período inicial de construção da hegemonia, foi Carlos de Campos, acionista e ex-advogado da Light & Power. No nível nacional, a Light & Power tinha grandes ramificações no congresso nacional, a ponto de manipular a aprovação do Código de Águas. (LIMA,1989; SEABRA, 1987)

O setor de abastecimento, estruturalmente ligado à causa do meio ambiente, somente irá ganhar força no final da década de 1960, quando as questões da água transformam-se em questões do meio ambiente. Quando a degradação e a escassez (origem da transformação dos problemas de infraestrutura urbana em problemas ambientais) atingem seus limites socialmente visíveis - isto é, extrapolam a esfera de preocupação técnica - é que a correlação de forças entre os blocos de interesses que orbitam em torno dos recursos hídricos começará a apresentar tendências de modificação.

No final da década de 1960, já é possível perceber a mudança de valores no tratamento de questões de infraestrutura urbana em abastecimento e saneamento em suas implicações políticas, econômicas e ambientais. O relato sobre a necessidade de um plano diretor de recursos hídricos, transcrito abaixo, é emblemático a este respeito.

Essencial para a própria sobrevivência não só econômica, mas também política do país, um plano diretor só poderia ser ditado por um planejamento meticuloso, onde se levasse em conta a idéia básica de desenvolvimento global, de propósitos múltiplos, dos recursos hídricos, ou seja, estabelecer o equilíbrio entre as necessidades do homem e do ambiente que o rodeia.6 6 . Revista DAE, ano 28, n° especial, julho, 1968

A visão de conjunto dos recursos hídricos que se tinha em 1968 indicava que eram bastante escassos os recursos hídricos da região, abrangendo apenas o curso superior do rio Tietê e alguns afluentes de pequena expressão e, principalmente, que a poluição dos cursos d'água existentes e o desvio de cerca de 85% do deflúvio médio do rio Tietê para a produção de energia elétrica agravavam substancialmente o problema sanitário.7 7 . Revista DAE, idem.

À semelhança do debate sobre o abastecimento ocorrido na primeira década do século XX, existiam duas alternativas técnicas principais. A primeira seria a busca de águas limpas a uma distância de mais de 100 km, na bacia do rio Piracicaba, para o abastecimento da capital, através da construção do Sistema Cantareira. Também existia a proposição da despoluição das águas do reservatório Billings para o abastecimento, que implicaria na confrontação com os interesses do capital privado - Light & Power. A conclusão do diretor da Divisão de Planejamento do Departamento de Águas e Esgotos de São Paulo evidencia o caráter social e político da questão dos recursos hídricos pela conexão hidráulica entre usuários de uma bacia hidrográfica:

Não é possível solucionar o problema da adução de água para uma metrópole como a de São Paulo, sem ferir os interesses de alguém. Para qualquer lado que nos voltemos, sempre há algum ou alguns interessados que se julgam com seus direitos feridos (PAIVA CASTRO, 1965: 5).

A opção pela construção do Sistema Cantareira, contribuindo com 30 m3/s para o abastecimento de águas para a Metrópole, significou a capitulação definitiva do setor de saneamento para os interesses do setor elétrico: o abandono do reservatório Billings e de suas águas para o giro das turbinas da usina de Cubatão.

Contudo, a água disponível na bacia do Piracicaba já apresentava déficits em relação ao consumo em épocas de estiagem. Além disso, os rios da região já apresentavam quadros de escassez e de poluição decorrentes do processo de crescimento industrial e o adensamento populacional. Sendo assim, a decisão pelo Sistema Cantareira contribuiu de forma definitiva para complicar o quadro de disponibilidade hídrica da bacia, "ainda que diretores e técnicos do DAEE e da Sabesp tenham tentado, em inútil maratona, convencer as comunidades locais de que ele não traria malefícios" (GALLO, 1995: 76).

Em meados da década de 1980, o debate em função da degradação e da escassez dos recursos hídricos acirrou-se com a entrada na arena pública de entidades não ligadas aos setores técnicos e econômicos. Surgem, assim, propostas de atuação integrada entre entidades da sociedade civil organizada e do poder local para recuperar a Bacia do Rio Piracicaba. Segundo Sérgio Razera, em 1985, a Associação dos Engenheiros e Arquitetos e o Conselho Coordenador das Entidades Civis, ambos de Piracicaba, organizaram um movimento de reivindicação ambientalista: "Campanha Ano 2000 - Redenção Ecológica da Bacia do Rio Piracicaba."

O resultado imediato dessa mobilização foi o encaminhamento de 32 reivindicações dos usuários dessa bacia ao Governo Estadual - entre elas, a desativação gradativa do Sistema Cantareira e o pagamento de indenização pelos prejuízos causados com a reversão de águas para o abastecimento da capital (Gallo, 1995: 73).

Solucionar os déficits de abastecimento de água da Capital com a represa Billings implicava em duas alternativas: a) o fim do envio dos esgotos por meio da reversão do rio Pinheiros; b) o tratamento da imensa quantidade de esgotos da região (63 m3/s). A questão permaneceu na esfera das possibilidades do saneamento dentro de acordos que não impedissem a continuação do sistema Light & Power de reversão do rio Pinheiros.

Duas grandes propostas surgiram na década de 1970 para o tratamento de esgotos da capital. A primeira foi conhecida como Solução Integrada, que previa a construção de um longo túnel para levar os esgotos para a bacia do rio Juqueri, nas proximidades de São Paulo, para lá serem tratados. Os efluentes de tratamento seriam retornados para a represa Billings, pois estariam dentro do sistema de reversão do sistema Light & Power nos rios Tietê/Pinheiros. Essa proposta foi criticada por presumivelmente retirar o problema da bacia da represa Billings e colocá-lo na bacia do rio Juqueri, entre outros motivos técnicos (SABESP, 1979).

Em dezembro de 1975, foi contratado o projeto de Saneamento da Grande São Paulo - Sanegran. Tratava-se de um conjunto de obras em grande escala onde os esgotos seriam coletados e enviados para três grandes estações de tratamento: Suzano, Barueri (de maior dimensão) e ABC. O tratamento seria em nível secundário,8 8 . Remoção dos sólidos em suspensão, gases agressivos, óleos e gorduras sobrenadantes, dejetos e detritos flutuantes. sendo os efluentes lançados no rio Tietê, dentro do alcance do sistema Light & Power de reversão das águas para a represa Billings.

Junto à população moradora dos municípios que circundam a represa Billings - que sentiam os impactos crescentes da degradação ambiental pelo envio de esgotos para aquela bacia - o plano Sanegran foi entendido como uma condenação definitiva da represa à condição de parte integrante do sistema de tratamento de esgotos, contribuindo para agravar ainda mais a situação ambiental, mesmo que os esgotos fossem tratados previamente. Paradoxalmente, a Câmara Municipal de Diadema deliberou, em 1° de julho de 1977, "tomar posição intransigente junto às autoridades competentes, no sentido de ser adotada a Solução Integrada de forma definitiva" (apud SABESP, 1979:77). Em dezembro de 1977, foi impetrada Ação Popular para a "preservação do meio ambiente e da saúde pública" na tentativa de cancelar o projeto Sanegran, cujas obras eternizariam o sistema de reversão das águas do rio Tietê para a Billings.9 9 . Ficou comprovada, pelas especificações técnicas da estação de tratamento de Barueri, a existência de vinculação entre as obras do Sanegran, a manutenção da reversão do rio Pinheiros e a conseqüente perpetuação do sistema Light & Power.

O Movimento de Defesa da Billings construiu sua argumentação contra o Sanegran com base na provável perpetuação da reversão do curso do Pinheiros e, com base nessa afirmação, caracterizou o projeto como "lesivo ao patrimônio público". Os advogados do plano Sanegran tocaram o ponto mais frágil da argumentação do Movimento ao perguntar: "se a reversão existe há cerca de 30 anos, por que agora a sua perpetuação seria entendida como um ato lesivo ao patrimônio público? Se a perpetuação pode, a juízo dos autores, ser considerada ato lesivo, porque a reversão existente não o é? Se a reversão é lesiva, por que, então, não investem contra ela, mas contra um plano para o qual a referida a reversão é indiferente?" (SABESP, 1979: 41).

Não cabe aqui julgar os méritos ou deméritos dos planos para os esgotos ou dos planos para o abastecimento (não obstante todos demonstrem a capitulação frente aos interesses do capital), mas qualificar o momento de surgimento de outras vozes, de outros interesses e de outros valores no processo social. Estas novas pressões tornam-se mais relevantes na medida em que ocorrem dentro de um regime político marcado pelo autoritarismo, iniciando a construção de tendências de fissuras na hegemonia do bloco burocrático-empresarial ligado aos usos dos recursos hídricos.

Outros sinais revelam estas tendências. No plano jurídico, o problema da degradação das águas da represa Billings pelos esgotos do Tietê faz emergir o conflito sobre os usos múltiplos e a necessidade de revisão do antigo Código de Águas de 1934. A despeito de suas grandes qualidades, enquanto instrumento abrangente e avançado na racionalização das relações entre a sociedade e as águas em todas as suas dimensões, o Código de Águas foi regulamentado exclusivamente nos capítulos referentes ao aproveitamento hidrelétrico, sem que se regulamentasse, por exemplo, os usos múltiplos e a conservação da qualidade das águas (BARTH, 1999: 566). Neste sentido, em 1968, foi criada uma comissão Especial de Alto Nível, com a atribuição de rever e atualizar o Código de Águas nos seus aspectos jurídicos e técnicos, e, particularmente, o aproveitamento múltiplo de bacias hidrográficas (POMPEU, 1999: 611). As tentativas de atualização do Código de Águas, segundo este novo paradigma, perduraram até o início da década de 1980, mas não se efetivaram, presumivelmente pela pressão do setor energético, que comandou o processo e que, como vimos, não tinha interesse na mudança de status.

A tentativa de revisão do Código de Águas fazia parte de um processo maior de transformações na sociedade brasileira. Nos estados, inúmeras leis e normas já haviam sido aprovadas no sentido da proteção da qualidade das águas.

A aprovação da legislação de proteção de mananciais metropolitanos de 1975 (especificamente Billings e Guarapiranga) é outro sintoma desse início de mudança de paradigmas na sociedade. Não obstante, ela também revela outro embate com o setor energético. A legislação enfocou a preservação da capacidade de suporte da bacia por meio de restrição e regulação das formas de uso e ocupação do solo. O setor de energia alegou inconstitucionalidade da legislação sob o argumento de que os artigos 8° e 9° determinavam que os recursos hídricos deveriam ser destinados prioritariamente para o abastecimento público, somente sendo admitidos usos que fossem compatíveis com a garantia da qualidade das águas (SÃO PAULO, EMPLASA, 1984: 74). A priorização das águas da represa Billings para o abastecimento em um texto legislativo abriria um flanco para todos os movimentos contrários à reversão do rio Pinheiros e, por conseguinte, a todo o sistema Light & Power.

A única maneira de solucionar o gravíssimo problema da poluição na represa Billings e no rio Pinheiros consistia em restringir a operação do sistema Billings - Cubatão, isto é, limitar a produção da Light & Power. As pressões sociais convergiram para a celebração de acordos com a Light & Power. Assim, nos anos de 1975 e 1976 foram celebrados acordos entre o Governo do Estado, o Ministério de Minas e Energia e a Light & Power, que visavam melhorar as condições sanitárias dos rios Tietê e Cubatão, do canal do rio Pinheiros e dos reservatórios de Pirapora, Edgard de Souza, Guarapiranga e Billings (SABESP, 1979: 100). No entanto, os efeitos práticos destes acordos foram efêmeros.

Contudo, existiam condições objetivas para rever totalmente o "pacto" que priorizava a energia elétrica. Era possível compensar a redução de energia gerada em Cubatão (850 MW) com os excedentes das hidrelétricas da Cesp e de Furnas (NUCCI et al, 1976:18). Também era possível contar com a energia disponibilizada com a conclusão das usinas de Marimbondo (1440 MW, que iniciou parcialmente suas atividades em outubro de 1975) e Ilha Solteira (3444 MW, inaugurada em 1978). Era previsível, portanto, que, durante alguns anos, houvesse certa ociosidade nos sistemas hidrelétricos disponíveis, incluindo o sistema Light & Power. Mais um argumento favorável à paralisação do bombeamento de esgotos estaria na chamada Lei de Itaipu (1973), que dispõe sobre a aquisição de energia da usina de Itaipu.

Observa-se que existia uma convergência de fatores e pressões suficientes para a requalificação ambiental da represa Billings: fontes alternativas de energia, necessidade crescente de água para abastecimento, projetos de saneamento, acordos institucionais e legislação de proteção ambiental. Contudo, os interesses de manutenção do sistema hidrelétrico Light & Power prevaleceram até a Constituição Estadual de 1989.10 10 . Quando a Disposição Transitória n° 46 da Constituição Estadual determinou o fim do Bombeamento.

INSTITUCIONALIDADE E POLITIZAÇÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS

Em termos de legislação, Eduardo Lanna avalia que a experiência do país em matéria de gerenciamento de recursos hídricos produziu "uma legislação difusa, confusa, muitas vezes conflitante e quase sempre de difícil interpretação, com o conseqüente agravamento dos problemas de administração pública que, de um quadro de atuação ineficiente, passa para outro de total inoperância" (LANNA, 1997: 26). A principal falha desse modelo burocrático de gerenciamento, segundo Lanna, foi a adoção de uma concepção relativamente abstrata para servir de suporte à solução de problemas contingentes, baseada no desenvolvimento de setores selecionados pelos programas governamentais. Isso causou um desbalanceamento entre os diversos usos dos recursos hídricos, sendo menosprezados os objetivos da qualidade.

Quanto aos mecanismos para a resolução da contradição ambiental, registram-se os comitês de gestão, que foram criados na década de 1970 e 1980 e cuja experiência prática "limitou-se à conciliação de interesses entre os órgãos e as empresas federais com eventual participação de órgãos estaduais. A falta de poder de decisão e de respaldo político, a exclusão das prefeituras e das entidades civis e o caráter figurativo de suas reuniões foram determinantes para o pouco sucesso da iniciativa" (SÃO PAULO, SMA, 1997: 18).

Outro aspecto deste antigo modelo de gestão refere-se à restrição do assunto à esfera técnica, sendo que raramente a complexidade, abrangência e a importância do fator água eram consideradas em sua interligação com estruturas e processos sociais, econômicos e políticos. Carlos Estevam Martins diagnosticou que a despolitização contribuiria para beneficiar "determinados grupos econômicos e burocráticos, cujos interesses são dessa maneira protegidos e promovidos" (MARTINS, 1986: 399).

A complexidade técnica era instrumentalizada para legitimar a ausência do debate público e simultaneamente manter fechados os nichos de poder decisório técnico e burocrático. Para estes setores, a questão girava em torno de projetos e não dos recursos naturais em si, o que favorecia os setores econômicos hegemônicos. A auto-legitimação da racionalidade científica e tecnológica contribuiu para excluir a participação das instâncias representativas da sociedade e impedi-las de ter acesso à informação, acentuando o desequilíbrio de poder social.

A gestão dos recursos hídricos no país realizou-se como "manobra de bastidores", onde os protagonistas representavam os interesses econômicos e políticos mais poderosos e bem organizados. O setor energético conseguiu comandar de modo soberano as grandes decisões sobre o aproveitamento dos recursos hídricos no Brasil devido principalmente ao fato de ter consolidado o que João Luis B. Araújo (1988: 48) chamou de "bloco empresarial-político do setor energético", que tem sua origem na história do grupo Light & Power (VICTORINO, 2002). A construção desta hegemonia relaciona-se com a história da transformação da água em mercadoria valiosa, quando o setor elétrico desenvolve complexa contabilidade e consegue ser mais objetivo e influente nas decisões estatais na organização dos programas de aproveitamento das águas - com detalhamento preciso de prazos, recursos necessários e metas a serem atingidas (BARTH et al, 1987: 16).

Com o recrudescimento da poluição e o evidente desequilíbrio de poder entre os interesses em conflito, tornou-se explícita a defasagem entre a natureza dos problemas e os instrumentos institucionais. A estrutura política demandava reformas urgentes, capazes de incorporar as demandas sociais pela qualidade ambiental.

Segundo Flávio Terra Barth, somente em 1987, no 7° Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos e Hidrologia, os técnicos da área de recursos hídricos começaram a discutir os aspectos políticos dessa área. A Carta de Salvador ressaltou a importância da participação da sociedade e preconizou a descentralização do processo decisório para se contemplar adequadamente as diversidades e peculiaridades tanto regionais quanto estaduais e municipais. "Defendia-se a participação das comunidades envolvidas de forma a viabilizar as ações pertinentes e assegurar sua agilidade e continuidade" (BARTH, 1999: 567). No entanto, em texto deste mesmo ano, ilustres técnicos da ABRH afirmaram que a "participação do público em geral na gestão dos recursos hídricos deve ser uma das formas de viabilização política na gestão destes recursos. Entretanto, essa participação deverá ser, preferencialmente, sob modo de informação e consulta, sem que a Administração Pública decline do seu dever de decidir entre alternativas" (BARTH et al, 1987: 69) (ênfase nossa).

Observamos que para os técnicos da área, neste período, a participação da sociedade era apenas uma forma acessória do processo condição para viabilizar o uso múltiplo integrado dos recursos hídricos e não uma forma de representar concretamente outros interesses sociais, buscando equilibrar os poderes. Contudo, verificamos que é neste momento que se começou a desenhar o enredo para a reorganização das estruturas estatais que resultou na constituição dos comitês de bacias hidrográficas.

Em 1989, foi promulgada a Constituição do Estado de São Paulo que deu grande ênfase aos recursos hídricos, afirmando, em seu artigo 205, a participação da sociedade civil no Sistema Integrado de Gerenciamento de Recursos Hídricos em conjunto com órgãos estaduais e municipais. Em 1991, foram criados oficialmente os comitês da bacia do Piracicaba e do Alto Tietê. Também a nova Lei de Águas de 1997 foi guiada pelos princípios ambientalistas e democráticos, representando um avanço histórico na gestão dos recursos naturais. Destacamos: "a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do poder público, dos usuários e das comunidades". Esta experiência de democracia participativa que está em processo derivou da escassez, da degradação e das dificuldades do arranjo de interesses múltiplos nas bacias hidrográficas de São Paulo.

Nos seminários da ABRH ocorridos nas últimas duas décadas, na Conferência de Dublin de 1991 e na Conferência Rio-92, estavam entre as principais discussões a organização e o controle dos sistemas hídricos de forma a equilibrar e integrar racionalmente todas as visões e objetivos relevantes dos usuários. Um grande paradigma emergente foi o estímulo à participação pública de todos os usuários e interessados - governamentais e não governamentais - por meio de mecanismos democráticos de construção de decisão e de processos de coordenação e resolução de conflitos.

A implementação deste novo paradigma requer "mais responsabilidade e controle local, mais conhecimento, mais participação, maior capacidade por parte dos usuários, mais uso da tecnologia da informação e dos instrumentos financeiros e mais reforço na educação e fornecimento de valores corretos para o gerenciamento das águas" (GRIGG, 1998: 6-7). Portanto, os grandes desafios dos recursos hídricos são de caráter institucional e não apenas tecnológico, isto é, passam pelo desenvolvimento e a aplicação de medidas não-estruturais: a constituição de estrutura para o planejamento, o estabelecimento "de instituições políticas viáveis, de arranjos financeiros eficazes, de sistemas locais de auto-governo e de auto-suporte, entre outros" (GRIGG, 1998: 1).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise do processo desde os seus primórdios, tanto em relação às determinações do capital quanto às determinações do Estado, permite-nos asseverar que o caráter competitivo do liberalismo e a função do Estado capitalista de garantir a acumulação privada combinaram-se durante décadas para gerar práticas e políticas públicas e privadas que conduziram ao crescimento econômico exponencial, capital-intensivo e degradador do meio ambiente.

Também podemos compreender que o processo capitalista de apropriação de recursos para a produção de energia elétrica por meio da competição econômica transformou a interação metabólica tradicional entre homem e natureza. O modo como os agentes disputaram e utilizaram os recursos naturais para produzir a energia de que necessitavam os alienou não somente com relação a si próprios, mas também com relação à natureza. Um fato menos reconhecido do processo de alienação do homem é a sua relação com a natureza, com seu 'corpo inorgânico', de que fala o jovem Marx, que também é negado pelo capitalismo. A natureza entra no processo frio de racionalização onde suas características estéticas e espirituais, que permitem a contemplação, a introspecção e a integração harmoniosa pelo trabalho, cedem lugar às funções de suprimento de matérias primas e depósito de resíduos. A natureza não é mais avaliada em si mesma, mas transforma-se em um meio para um fim. "O estranhamento dos seres humanos com relação à natureza, a seu 'corpo inorgânico', significa que eles tornaram-se insensíveis à natureza como um sistema ecológico e a suas relações a tal sistema" (DICKENS, 1997: 184). A opção pelas prioridades do capital do setor de energia definitivamente apartou os habitantes da cidade de São Paulo da rica convivência com seus rios e lagos. De fatores de interação social e cultural, através da pesca, dos esportes e do lazer, passaram à condição de fatores de afastamento e desintegração de atividades tradicionais (VICTORINO, 2002).

Entre meados das décadas de 1960 e 1970, portanto paralelamente à eclosão mundial da preocupação pela qualidade ambiental, a escassez e a poluição das águas metropolitanas tornaram públicas a opção do Estado pelo capital, criando condições para a eclosão de manifestações sociais na cidade de São Paulo e na região do rio Piracicaba. A emergência destas mobilizações traria potencialmente implicações para a rentabilidade do capital - quando se chega a ventilar até a possibilidade de desapropriação do sistema Light & Power - e obrigaria a uma redefinição do papel do Estado no processo de acumulação do setor. Habilmente, a holding canadense vendeu, em 1979, seus ativos no setor de energia para o Estado brasileiro, antes, portanto, do prazo final de suas concessões - quando passariam gratuitamente para as mãos do governo.

Não obstante o fim da ditadura militar e da retirada estratégica do interesse do setor privado de energia nas águas de São Paulo, o setor estatal ligado à energia manteve os mesmos pressupostos de valorização e degradação das águas até a década de 1990. As demandas do sistema social, isto é as demandas do ambientalismo, foram respondidas pelo conjunto das instituições políticas na forma da remoção da origem do problema (fim da reversão de esgotos para a represa Billings) e da criação dos comitês de bacias hidrográficas.

Com relação aos custos coletivos da degradação dos recursos hídricos, podemos inferir, de certo modo, que a pressão crescentemente pervasiva dos valores do ambientalismo - seja por via dos próprios setores estatais ligados ao saneamento ou dos movimentos sociais - possibilitou não somente o início da erosão da hegemonia do setor energético privado, como fez emergir a necessidade de novos mecanismos institucionais de gestão ambiental, onde a variável qualidade ambiental ganha status equivalente à variável econômica, quantitativa.

Contudo, a conversão das demandas ambientalistas em práticas e políticas públicas implica em um dilema nuclear do Estado, pois este deve, ao mesmo tempo, estimular a competição capitalista para assegurar o crescimento econômico e implementar reformas institucionais, normativas e legais para assegurar o desenvolvimento sustentável.

Este desafio da gestão estatal será filtrado pelos comitês de bacia, permitindo a legitimação das instituições políticas na medida em que funcionem de modo democrático. Ocorre que em tempos de crise ambiental e energética, como os vividos no Brasil do início do século XXI, a legitimidade dos mecanismos pode ficar comprometida por imperativos de ordem econômica - vide a recente polêmica em torno do sistema de flotação para a reativação do sistema Light & Power para o suprimento de energia nestes tempos de crise, quando o comitê de bacia do Alto Tietê não foi consultado (VICTORINO, 2002). Neste sentido, concordamos com Peter Dickens (1997: 191) quando afirma que é muito difícil "visualizar um tipo efetivo de governança que é provável emergir no contexto da degradação ambiental e das demandas do mercado".

De fato, existe o consenso de que as instituições político-administrativas tradicionais não foram capazes de superar os impasses (degradação ambiental e hegemonia setorial) colocados pelo momento histórico. O agravamento das questões da degradação e escassez de recursos naturais aumentou a complexidade da vida social, tornando obsoletos os mecanismos administrativos e as instituições de governabilidade. Neste contexto, a questão ambiental irá assumir um papel específico, tornando-se um fator determinante na reconfiguração das estruturas estatais. Podemos, assim, colocar a questão ambiental no centro da atenção sociológica e corroborar a hipótese de que esta questão pode ser reconhecida como "fator maior no desencadeamento de transformações institucionais" (MOL apud DUNLAP, 1997: 33).

Considerando as teses atualmente predominantes na gestão de recursos hídricos, verificamos o balizamento dos sistemas de decisão pelo interesse ambiental (os usos múltiplos e competitivos das águas devem ser integrados e equilibrados através de alocação eficiente que expresse valores sociais, efetividade de custos e equilíbrio entre custos e benefícios ambientais). Verificamos também a convergência de novos padrões de regulamentação da política ambiental para a busca de maior participação pública. A constituição de comitês com atribuições de gerenciamento das águas de uma bacia é uma forma de fazer com que "cada participante controle sua atuação, impeça atuação ilegal de outros e reforce a atuação das entidades com atribuições de controle, visando o bem comum dos interessados na bacia hidrográfica" (LANNA, 1997: 31). O fenômeno em questão pode ser observado do ponto de vista das inter-relações entre o desenvolvimento hidráulico e a formação da cidadania no quadro da mudança social. Desta forma, democratização e defesa ambiental parecem convergir e se auto-alimentar dentro de novos paradigmas e desafios. Podemos compreender os estudos do meio ambiente, mais especificamente das águas, como ferramenta analítica da sociedade:

como as decisões sobre o gerenciamento de água são feitas e os sistemas de água controlados, revela bastante sobre os estágios e a saúde da democracia (GRIGG, 1998).

A tese de Grigg se explica pela propriedade da água que, segundo Valladão "é, precisamente, aquela em que se acentua o caráter social pela interação entre os usos e os usuários"11 11 . ALFREDO VALLADÃO ( apud SADALLA DOMINGOS, 1984:04). ou pela existência de uma "conexão hidráulica" entre os usuários que dividem os recursos dentro de uma mesma bacia, onde a ação de um usuário pode afetar a iniciativa de outros12 12 . O slogan da campanha do Dia Mundial da Água, em 1999, foi "Estamos todos a jusante". (KELMAN, 2000: 21), onde as relações de poder podem se explicitar de modo imediatamente perceptível. Considerando as várias dimensões essenciais da água (biológica, cultural e econômica), esta torna-se eixo vital das relações sociais dentro de uma bacia hidrográfica quando ocorre a poluição e a escassez, potencializando conflitos sociais que de outro modo já são inerentes à sociedade de classes.

Os novos paradigmas de democratização da gestão dos recursos hídricos ainda estão em seu estágio preliminar de implantação, mas surgem como promessa de modernização e racionalização não somente das relações entre sociedade e natureza, mas da sociedade consigo própria. Com certeza o desenvolvimento do modelo de gestão e dos princípios democráticos carecerão de mais experiências e estudos, principalmente comparativos. Não obstante, "parece inevitável que, se a sociedade está habilitada a resolver seus problemas de desenvolvimento sustentável, este paradigma oferece uma ferramenta que ajuda a melhorar o gerenciamento da água em meio a complexidades e conflitos do mundo de hoje" (GRIGG, 1998: 12).

BIBLIOGRAFIA

Recebido em 7/02/2003 - Aceito em 15/08/2003

NOTAS

  • BARTH, F. T. Modelos para gerenciamento de recursos hídricos Săo Paulo, Nobel/ABRH, 1987.
  • ___________ . "Aspectos institucionais do gerenciamento dos recursos hídricos." In: REBOUÇAS, A.C.; BRAGA, B.; TUNDISI, J.G. (orgs). Águas doces no Brasil - capital ecológico uso e conservaçăo. Săo Paulo, Escrituras Editora, 1999.
  • BECK, U. Risk society: toward a new modernity London, Sage Publications, 1992.
  • BRITO, F. S. Obras Completas (volumes III e XVII). Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1943/44.
  • BUTTEL, F. H. "Social institutions and environmental change." In: REDCLIFT, M. & WOODGATE, G. (edits). The International Handbook of Environmental Sociology Cheltenham (RU) Edward Elgar Publishing Ltd, 1997.
  • BUTTEL, F. H. "Classical Theory and Contemporary Environmental Sociology: some reflections on the antecedents and prospects for reflexive modernization theories in the study of environment and society." In: SPAARGAREN, G.; MOL, A. P. J.; BUTTEL, F. H. (edits) Environment and global modernity London, Sage Publications, 2000.
  • DICKENS, P. "Beyond sociology: Marxism and the environment." In: REDCLIFT, M. & WOODGATE, G. (edits). The International Handbook of Environmental Sociology. Cheltenham (RU), Edward Elgar Publishing Ltd., 1997.
  • DUNLAP, R.E. "The evolution of environmental sociology: a brief history and assessment of American experience." In: REDCLIFT, M. & WOODGATE, G. (edits). The International Handbook of Environmental Sociology. Cheltenham (RU), Edward Elgar Publishing Ltd, 1997.
  • FREITAS, A. Diccionario Historico, Topographico, Ethnographico Illustrado do Municipio de Săo Paulo. Săo Paulo, Graphica Paulista, 1930.
  • GALLO, Z. A proteçăo das águas, um compromisso do presente com o futuro: o caso da bacia do rio Piracicaba. Dissertaçăo de mestrado. Instituto de Geocięncias. Universidade Estadual de Campinas, 1995.
  • GIDDENS, A. As conseqüęncias da modernidade Săo Paulo, Editora Unesp, 1991.
  • GRIGG, N. S. "A new paradigm for water management." Paper apresentado no Simpósio Internacional sobre Gestăo de Recursos Hídricos, Gramado, 5-8 de outubro de 1998.
  • KELMAN, J. "Evolution of Brazil's water resources management system." In: CANALI, G.V.; CORREIA, F. N.; LOBATO, F.; MACHADO, E. S. (edits). International Week for Studies on Water Resources Management - water resources management Brazilian and European trends and approaches. Porto Alegre, ABRH, 2000.
  • LANNA, A. E. "Modelo de gerenciamento de águas." Água em revista - Revista Técnica e Informativa da CPRM. Ano V n° 8: 24-33, março, 1997
  • LIMA, J. L. Estado e setor elétrico no Brasil: do Código de Águas ŕ crise dos anos 80 (1934-1984). Tese de doutorado, Faculdade de Economia e Administraçăo, Universidade de Săo Paulo, 1989.
  • MARTINS, C. E. "Aspectos políticos da questăo dos recursos hídricos." Seminário: Perpectivas dos recursos hídricos no estado de Săo Paulo. Săo Paulo, Fundap/DAEE/FCTH, 1986.
  • NUCCI, N. et al. "Resultados recentes do desenvolvimento da Soluçăo Integrada de Esgotos da Grande Săo Paulo." Paper apresentado no XV Congresso Interamericano de Engenharia Sanitária. Buenos Aires, 20-25 de junho de 1976.
  • PAIVA CASTRO, P. "O problema do abastecimento de água para a área metropolitana de Săo Paulo." Revista DAE, ano 26, n° 58, setembro, 1965.
  • POMPEU, C. T. "Águas doces no direito brasileiro." In: REBOUÇAS, A.C.; BRAGA, B.; TUNDISI, J. G. (orgs) Águas doces no Brasil - capital ecológico uso e conservaçăo. Săo Paulo, Escrituras Editora, 1999.
  • RAZERA, S. A luta pela agência na bacia do rio Piracicaba http://www.riob.org/relob/relob_bpiracicaba.htm
  • SABESP Sanegran - a justa solução sanitária para a Grande São Paulo São Paulo, 1979.
  • SADALLA, D. "Água na regiăo da Grande Săo Paulo: histórico e perspectivas." Revista do SPAM - Sistema de Planejamento Metropolitano. Săo Paulo. n° 12, novembro, 1984.
  • SECRETARIA DO MEIO AMBIENTE Gestão das águas: 6 anos de percurso. São Paulo, Secretaria do Meio Ambiente, 1997.
  • SECRETARIA DOS NEGÓCIOS METROPOLITANOS Proteção dos mananciais: legislação e roteiro para implantação de projetos São Paulo, 1984
  • SEABRA, O. C. L. Os meandros dos rios nos meandros do poder: Tietę e Pinheiros - valorizaçăo dos rios e das várzeas na cidade de Săo Paulo Tese de doutorado, Departamento de Geografia, Universidade de Săo Paulo, 1987.
  • VICTORINO, V. I. P. Luz e poder na dramática conquista do meio natural: a privatizaçăo dos rios paulistanos e a reflexividade sócio-ambiental. Tese de doutorado, Departamento de Sociologia, Universidade de Săo Paulo, 2002.
  • 1
    . Agradeço aos membros do Grupo de Trabalho Teoria e Meio Ambiente do 1° encontro da ANPPAS de novembro de 2002.
  • 2
    . Vide VICTORINO, 2002.
  • 3
    . A autorização para reversão foi concedida em 1927; a operação começou em 1942.
  • 4
    . Durante muito tempo perdurou o debate sobre a quem cabia a responsabilidade da construção dos reservatórios do Alto Tietê para controlar as enchentes. A Light & Power havia obtido o direito de construí-los, mas não mais se interessava. A prefeitura necessitava, mas não se achava na obrigação, já que constava nos direitos da empresa.
  • 5
    . No nível local, basta assinalar que o presidente do estado de São Paulo, durante o período inicial de construção da hegemonia, foi Carlos de Campos, acionista e ex-advogado da Light & Power. No nível nacional, a Light & Power tinha grandes ramificações no congresso nacional, a ponto de manipular a aprovação do Código de Águas. (LIMA,1989; SEABRA, 1987)
  • 6
    . Revista DAE, ano 28, n° especial, julho, 1968
  • 7
    . Revista DAE, idem.
  • 8
    . Remoção dos sólidos em suspensão, gases agressivos, óleos e gorduras sobrenadantes, dejetos e detritos flutuantes.
  • 9
    . Ficou comprovada, pelas especificações técnicas da estação de tratamento de Barueri, a existência de vinculação entre as obras do Sanegran, a manutenção da reversão do rio Pinheiros e a conseqüente perpetuação do sistema Light & Power.
  • 10
    . Quando a Disposição Transitória n° 46 da Constituição Estadual determinou o fim do Bombeamento.
  • 11
    . ALFREDO VALLADÃO (
    apud SADALLA DOMINGOS, 1984:04).
  • 12
    . O slogan da campanha do Dia Mundial da Água, em 1999, foi "Estamos todos a jusante".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jul 2004
    • Data do Fascículo
      Dez 2003

    Histórico

    • Aceito
      15 Ago 2003
    • Recebido
      07 Fev 2003
    ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revistaambienteesociedade@gmail.com