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Uma tentativa de caracterização da economia ecológica

Outlines for a definition of ecological economics

Resumos

Partindo do reconhecimento de que toda atividade humana incide no ecossistema quer pelo lado da extração de recursos, quer pelo do lançamento de dejetos sob a forma de matéria ou energia degradada, o processo econômico - que opera dentro de um subsistema aberto envolvido pelo ecossistema global - tem que respeitar limites. Daí, a noção de desenvolvimento sustentável. Na perspectiva da sustentabilidade, o tipo de processo econômico que importa é aquele que produz bens e serviços considerando simultaneamente todos os custos (ou males) que lhes são inevitavelmente associados. Esta é a tarefa para um modelo de desenvolvimento novo, e também para uma ciência da economia de fundamentos ecológicos. É aqui que se insere a economia ecológica, com a qual se introduz uma mudança fundamental na percepção dos problemas de alocação de recursos e de como eles devem ser tratados, do mesmo modo que uma revisão da dinâmica do crescimento econômico. Visa-se com o empreendimento obter a unificação sobre bases biofísicas dos sistemas ecológicos e econômicos como categorias interdependentes e coevolutivas. Não se trata de propor uma nova ciência, e sim uma empreitada (ou cometimento) entre cientistas naturais e sociais, junto com os atores envolvidos em ações concretas de promoção do desenvolvimento, para chegar-se a novo entendimento da realidade humana, tirando dele lições para fins de análise e política. Chega-se assim a uma verdadeira economia política da ecologia.

sustentabilidade; economia; economia ecológica


Considering that all human activity interacts with the environment either by extracting resources or by discarding trash under the form of degraded matter and energy, the economic process - which operates within an open subsystem contained by the global ecosystem - has to observe limits. Hence, the notion of sustainable development. In the perspective of sustainability, the kind of economic process which matters is that which produces goods and services taking into consideration simultaneously all costs (or ills) that are inevitably associated with it. This is the task for a new model of development, and also for a science of the economy with ecological foundations. It is here that ecological economics finds its place. A fundamental change which it brings about concerns the perception of problems of resource allocation as well as how resources are considered. Likewise a reappraisal of the dynamics of economic growth is introduced. The aim of this endeavour is to unify the ecological and economic systems on bio-physical bases as interdependent, coevolutionary categories. It is not a question of proposing a new science, but an initiative (or commitment) among natural and social scientists, together with actors involved in concrete action for promoting development, to arrive at a new understanding of human reality, drawing lessons for analysis and policy. This way one obtains a true political economy of ecology.

sustainability; economy; ecological economics


PONTO DE VISTA

Uma tentativa de caracterização da economia ecológica

Outlines for a definition of ecological economics

Clóvis Cavalcanti

Economista ecológico, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco. E-mail: <clovati@fundaj.gov.br>

RESUMO

Partindo do reconhecimento de que toda atividade humana incide no ecossistema quer pelo lado da extração de recursos, quer pelo do lançamento de dejetos sob a forma de matéria ou energia degradada, o processo econômico - que opera dentro de um subsistema aberto envolvido pelo ecossistema global - tem que respeitar limites. Daí, a noção de desenvolvimento sustentável. Na perspectiva da sustentabilidade, o tipo de processo econômico que importa é aquele que produz bens e serviços considerando simultaneamente todos os custos (ou males) que lhes são inevitavelmente associados. Esta é a tarefa para um modelo de desenvolvimento novo, e também para uma ciência da economia de fundamentos ecológicos. É aqui que se insere a economia ecológica, com a qual se introduz uma mudança fundamental na percepção dos problemas de alocação de recursos e de como eles devem ser tratados, do mesmo modo que uma revisão da dinâmica do crescimento econômico. Visa-se com o empreendimento obter a unificação sobre bases biofísicas dos sistemas ecológicos e econômicos como categorias interdependentes e coevolutivas. Não se trata de propor uma nova ciência, e sim uma empreitada (ou cometimento) entre cientistas naturais e sociais, junto com os atores envolvidos em ações concretas de promoção do desenvolvimento, para chegar-se a novo entendimento da realidade humana, tirando dele lições para fins de análise e política. Chega-se assim a uma verdadeira economia política da ecologia.

Palavras-chave: sustentabilidade, economia, economia ecológica.

ABSTRACT

Considering that all human activity interacts with the environment either by extracting resources or by discarding trash under the form of degraded matter and energy, the economic process — which operates within an open subsystem contained by the global ecosystem — has to observe limits. Hence, the notion of sustainable development. In the perspective of sustainability, the kind of economic process which matters is that which produces goods and services taking into consideration simultaneously all costs (or ills) that are inevitably associated with it. This is the task for a new model of development, and also for a science of the economy with ecological foundations. It is here that ecological economics finds its place. A fundamental change which it brings about concerns the perception of problems of resource allocation as well as how resources are considered. Likewise a reappraisal of the dynamics of economic growth is introduced. The aim of this endeavour is to unify the ecological and economic systems on bio-physical bases as interdependent, coevolutionary categories. It is not a question of proposing a new science, but an initiative (or commitment) among natural and social scientists, together with actors involved in concrete action for promoting development, to arrive at a new understanding of human reality, drawing lessons for analysis and policy. This way one obtains a true political economy of ecology.

Keywords: sustainability, economy, ecological economics.

Toda atividade humana, qualquer que seja ela, incide irrecorrivelmente no ecossistema, quer pelo lado da extração de recursos (caso em que a natureza funciona como fonte), quer pelo do lançamento de dejetos sob a forma de matéria ou energia degradada (caso em que atua como cesta de lixo). A respiração extrai oxigênio e devolve gás carbônico à ecosfera; a alimentação serve-se de solo, água, fotossíntese, etc. e converte-se em fezes e urina, além de energia térmica degradada; o automóvel, queimando combustível retirado de petróleo, produz um trabalho, polui e aquece o ar, virando sucata no final de sua vida útil. A natureza, enfim, é nossa fonte primordial e insubstituível de vida, atuando ao mesmo tempo como derradeiro escoadouro de sujeira.

Percebido desse ângulo, é evidente que o processo econômico — que opera dentro de um subsistema aberto envolvido pelo ecossistema global — tem que respeitar limites (quer os do fornecimento de recursos, quer os da absorção de dejetos, além dos da própria tecnologia). Daí, a noção de desenvolvimento sustentável: trata-se de promover a economia (e o bem-estar dos humanos) sem causar estresses que o sistema ecológico não possa absorver. No último século, o impacto ambiental da sociedade multiplicou-se extraordinariamente e de forma nunca dantes testemunhada. Basta ver que, nos cinqüenta anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, por exemplo, a população do Brasil mais do que triplicou, e o PIB do país aumentou mais de 12 vezes; no mundo, a população passou de 1,5 bilhão de pessoas em 1900 para 6,3 bilhões em 2003, e o PIB global, entre os mesmos marcos cronológicos, cresceu de 900 para 33 mil bilhões de dólares, a preços constantes (um aumento de quase 37 vezes). É evidente que isso tem um efeito, que é tanto maior quanto mais o tempo passa e não se faz nada para dar conta da crescente presença dos humanos e da economia na biosfera.

Na perspectiva da sustentabilidade ambiental, o tipo de processo econômico que importa é aquele que produz bens e serviços levando em conta simultaneamente todos os custos (ou males) que lhes são inevitavelmente associados. Todavia, na compreensão econômica usual (aquela que predomina na cabeça de quase todo mundo), tem-se em vista apenas a geração de benefícios pelas atividades produtivas. Os custos normalmente considerados são os internos a essas atividades, ou seja, os que dizem respeito à sua contabilidade interna (custos ditos privados) — outros custos, como os da destruição de uma paisagem bela ou da extinção de uma espécie, constituem externalidades que se excluem do cálculo econômico. Um olhar para as evidentes interconexões do sistema econômico com o ecológico, sem isolar um do outro, permite perceber de que modo é possível chegar-se a um mundo (sustentável) onde a vida não se veja ameaçada de extinção (nem considerada como uma externalidade). Esta é a tarefa para um modelo de desenvolvimento novo, muitas vezes considerado utópico, que estamos chamando — por cortesia dos ecólogos, de quem se tomou emprestada a noção — de sustentável. É a tarefa também para uma ciência da economia de fundamentos ecológicos.

O ponto que merece atenção aqui é que, hoje, percebe-se em muitos quadrantes da ação do homem que o mundo enfrenta uma encruzilhada crítica (e não se trata de crises financeiras ou de balanço de pagamentos, como as recentes). Modos de organização econômica predadores dos recursos finitos da biosfera revelam-se cada vez mais insustentáveis, uma vez que, no âmbito da realidade dos processos naturais, que oferece a moldura última que abriga a economia, só pode durar para sempre aquilo que se comporta de acordo com os princípios de funcionamento do sistema natural (dentre os quais desponta o da frugalidade) (BRANCO, 1999). Por perceber cada vez mais essa verdade indiscutível, diante especialmente da degradação ambiental que se vê em toda parte, o discurso social tende a aceitar a sugestão do desenvolvimento sustentável, fenômeno que muito se deve à preparação e realização da Rio-92. Dá-se ao tema da sustentabilidade, muitas vezes, porém, um significado que contradiz sua própria essência, transformando-o em autêntico oximoro (como, com mais razão, na infeliz expressão "crescimento sustentável"). É aqui que a ciência deve ser convocada para explicar o significado da idéia e indicar as sérias implicações que dela decorrem, a economia ecológica constituindo um esforço novo, justamente, de saber científico para a gestão da sustentabilidade.

A economia neoclássica, versão moderna e mais estreita da teoria clássica, acredita que o livre jogo das forças de mercado, em situação de livre competição (o que significa perfeita informação dos agentes econômicos), será capaz de promover a mais eficiente alocação de recursos, a mais elevada produção, a mais justa distribuição da renda, o mais rápido progresso tecnológico, a mais apropriada utilização da natureza. Ademais disso — é assim que pensa, por exemplo, a vetusta revista The Economist —, a economia de mercado (livre) ainda teria a virtude de eliminar os problemas sociais e contribuir para a vigência da democracia. Contrariamente, na opinião dos críticos da visão ortodoxa, a economia global, entregue a suas próprias forças, estaria levando a uso perdulário e esgotamento de recursos naturais, promovendo, na periferia do sistema, uma reprodução insustentável de padrões de consumo/desperdício dos países do centro (sem nenhum benefício efetivo quanto ao bem-estar humano das massas desfavorecidas, porquanto a pobreza absoluta não diminui, ao contrário, expande-se de maneira que assusta). Ou seja, passivo ambiental crescente e sempre mais infelicidade humana.

Esse quadro termina alimentando a preocupação quanto aos problemas ambientais globais, cuja manifestação, sem poupar ninguém, atinge de fato a todos, interferindo no bem-estar alcançado nas próprias sociedades prósperas. Quando a consciência dos problemas em tela começou a assumir maiores proporções, aí pela década de setenta, o panorama da realidade assumia traços muito perceptíveis a olho nu, traços esses que incluíam especialmente poluição das águas — havia um rio, o Cuyahoga, no estado de Ohio (EUA) que pegava fogo em 1970 devido aos resíduos de indústrias químicas nele lançados — e do ar. Em seguida a essa fase de óbvia degradação ecológica provocada pela vida moderna e pelo desenvolvimento, sucedeu-se uma preocupação com fenômenos ambientais transfronteiriços e menos visíveis, ou até invisíveis, como o buraco na camada de ozônio, a mudança climática provocada pela emissão de gases-estufa, a destruição da biodiversidade em recifes de coral, em florestas tropicais e outros ecossistemas, a poluição silenciosa dos lençóis freáticos, a escassez de água: fenômenos que não podiam ser de forma alguma enfrentados apenas nacionalmente.

É aqui que um esforço de entendimento da realidade toma corpo quanto aos perigos de danos irreversíveis ao meio ambiente, quanto ao inevitável esgotamento de recursos finitos, quanto à necessidade de enfrentamento da questão da tecnologia e do seu livre uso pelas empresas, quanto à avaliação dos padrões de consumo/desperdício insustentáveis apoiados no conceito da soberania do consumidor. Nesse esforço, parecia claro que a ciência econômica não estava capacitada, com seu otimismo alocativo de recursos, a levar a formas de desenvolvimento ambientalmente sãs, a começar do fato de que o crescimento da economia não é tratado como um processo sujeito a ótimos de escala do sistema econômico. Crescer, na perspectiva da macroeconomia, é sempre possível (além de desejável), embora a teoria microeconômica mostre que o ótimo da produção impõe limites ao crescimento de uma firma — fixando a escala que satisfaz às regras da maximização do lucro. Por que o mesmo não deveria valer para economias nacionais? Será que, do ponto de vista da economia nacional ou global, qualquer escala serve?

É certo que a política econômica, com as evidências oferecidas pelo ambientalismo acerca dos rumos insustentáveis da produção econômica, passou a ser tratada pelas elites dos países periféricos (pressionadas para que reconhecessem sua responsabilidade quanto aos danos ao meio ambiente) numa perspectiva retórica de cuidados ecológicos que se deveriam tomar. Ao mesmo tempo, as mesmas elites eram submetidas a pressões enormes para que adotassem políticas neoliberais. É aí que surge o discurso universal da defesa do ambiente, enquanto, simultaneamente, praticam-se políticas neoliberais de desregulamentação, de entrega do meio ambiente ao mercado, de uso insustentável da natureza. No Brasil, ao mesmo tempo que aparece grande preocupação com a Amazônia, cortam-se as verbas para a fiscalização ambiental e se permite total liberdade de ação de empresas madeireiras asiáticas. A tolerância é alta com relação a projetos de grande porte que causam enorme impacto ecológico, desfigurando a paisagem e deslocando populações locais. Não é de admirar, assim, a omissão das elites diante da poluição dos lençóis freáticos, diante do estímulo dado à monocultura exportadora (a soja à frente), diante do uso de pesticidas e agrotóxicos em geral, diante, por fim, da promoção quase malévola dos transgênicos.

Se o país, apesar de tudo, tivesse tido nas últimas décadas uma trajetória econômica de êxito admirável, tivesse de fato se desenvolvido, com redução da pobreza absoluta, criação de emprego, aumento do salário, promoção do bem-estar social e melhoria indiscutível da qualidade de vida, poder-se-ia tratar o custo ambiental do processo como um preço razoável a ser pago. Entretanto, existe considerável evidência de que os padrões de vida brasileiros pioraram de 1965 a 2003, pelo menos quanto aos membros mais pobres da sociedade (ver TORRAS, 2003). Pior, a renda nacional verde (aquela que considera os impactos ambientais) foi invariavelmente negativa para o quintil mais pobre — e, em determinados momentos, para o segundo e terceiro também — independentemente da taxa de desconto: o crescimento, em outras palavras, trouxe miséria ("immiserizing growth"). Isso significa que uma avaliação do desenvolvimento à luz de noções de sustentabilidade ambiental lança dúvidas sobre se o desempenho da economia brasileira pode ser rotulado de bem sucedido. Basta ver como, no caso nacional, os avanços da economia aconteceram com desmatamentos maciços - levando a perda significativa de biodiversidade -, com queimadas para a formação de pastagens, com grande volume de extração de recursos minerais (que jamais serão recuperados) e outras ações do gênero. Passivo ambiental gigantesco, pois, que se tem acumulado.

Os custos associados a esses processos destruidores não são normalmente estimados: eles não aparecem nas estimativas das contas nacionais, exceto como fatores positivos e até como nova adição aos valores do PIB quando se consideram as despesas para consertar erros ecológicos cometidos, a exemplo de uma vazão tóxica como a de Cataguases em março de 2003 (cloro e soda cáustica, de uma fábrica de papel, lançados no rio Pomba, afluente do Paraíba do Sul) . Estimar o valor monetário de recursos naturais esgotados como meio de aferir se o desenvolvimento tem sido sustentável representa uma iniciativa para, pelo menos, se ter uma idéia econômica das externalidades negativas geradas. Essa é a esfera de domínio da economia ambiental, com a qual se coloca o sistema ecológico na perspectiva da abordagem econômica. A valoração econômica ambiental interessa cada vez mais a gestores, estudantes, pesquisadores e profissionais. Trata-se de área de fronteira da ciência econômica, nem sempre aceita pacificamente, uma vez que se levanta contra ela a pertinente questão de comensurar o incomensurável.

A preocupação quanto aos problemas ambientais mundiais, na verdade, pede mais do que a economia do meio ambiente pode oferecer. Precisa-se, de fato, de indicadores econômicos — ou ecológico-econômicos — que incorporem estimativas de degradação ambiental (e também humana) e depleção de recursos: indicadores de desenvolvimento sustentável, cujas grandezas sejam obtidas por dedução do PIB do valor estimado dos recursos naturais esgotados e degradados (área florestal em diminuição, erosão do solo, mangues cortados para a criação de camarões, jazidas minerais que se esgotam, etc.). O sistema de contas nacionais contabiliza corretamente a depreciação do capital feito pelo homem (máquinas, fábricas) como um item do balanço negativo na determinação da renda nacional, mas deixa de considerar a depreciação ou depleção do capital natural (árvores, minerais, solo, água). O consumo de tais ativos é contado como renda, o que faz com que a verdadeira renda nacional seja assim sobrestimada. Dessa forma, o desempenho econômico de um país ou região, em determinado período, pode aparecer, por exemplo, com uma robustez medida pelos critérios econômicos usuais que é totalmente falsa.

A ocorrência de danos ambientais irreversíveis, como sucede com freqüência em todo o mundo (caso, por exemplo, da jazida de manganês do Amapá, que se exauriu entre 1955 e 1995), significa que se consegue crescimento econômico às expensas de benefícios potenciais para futuras gerações. Não há como justificar os ganhos do desmatamento da Amazônia ao longo dos últimos trinta anos - que, além de tudo, têm fluído primariamente para os ricos, enquanto os correspondentes custos sociais se distribuem amplamente - como um benefício inquestionável promovido pela economia. O mesmo se aplica ao caso dos manguezais, tão seriamente ameaçados atualmente, cuja perda significa a eliminação de importantes áreas de procriação de espécies marinhas (peixes, crustáceos), além de outros serviços ecossistêmicos. Distúrbios nos ecossistemas de manguezais podem efetivamente provocar mudanças intensas no ambiente, especialmente na sua zonação e diversidade. O Brasil, com sua multiplicidade de projetos de carcinocultura, turismo, resorts, loteamentos, expansão urbana, estradas costeiras e muitos outros, serve de triste ilustração de um desenvolvimento desordenado das zonas de praia que tem efeitos destrutivos sérios inteiramente ignorados — ao mesmo tempo que apenas as virtudes dos projetos são decantadas e louvadas de todas as maneiras, até mesmo em propaganda oficial.

O problema é que as prioridades econômicas atropelam invariavelmente considerações de ordem ecológica. Quando se atribuem preços aos recursos naturais — o que acontece com aqueles que têm mercado como o petróleo1 1 . Tal preço reflete apenas trabalho e capital usados na perfuração, bombeamento, refinação, etc. do petróleo. Ele não significa o valor do petróleo in situ, ou seja, o de sua formação e guarda por milhões de anos, valor esse que se toma como zero. Não é o óleo que a Petrobras extrai na Bacia de Campos, estado do Rio de Janeiro, que é remunerado, por exemplo. O pagamento que é feito a essa empresa corresponde ao custo de oportunidade do trabalho e capital por ela empregados na retirada do produto, cujo valor em si, in situ, na visão prevalecente, continua sendo zero. —, tais valores constituem invariavelmente uma subestimação. Na contabilidade econômica nacional tradicional, um valor zero é implicitamente conferido a todos os recursos da natureza, dando-lhes a condição de "bens livres". Mas que valores se poderiam usar nesses cálculos? É difícil dizer, especialmente quando há coisas, como a vida em geral ou como uma espécie biológica ameaçada de extinção, em particular, que, certamente, possuem valor infinito. No entanto, a realidade impõe que se busque alguma forma de valoração. Pois pior é ver que o valor da floresta amazônica, por exemplo, numa perspectiva como a de "investment-bias", se reduz quase a zero, embora a selva constitua, como se sabe, fonte insubstituível de um elenco de benefícios ecológicos que vão da regulação do clima e da água, do ciclo dos nutrientes, tratamento do lixo, recreação, produtos não-madeireiros da floresta, conservação da biodiversidade, etc., até os chamados benefícios de opção e existência (ver FEARNSIDE, 1997).

O perigo de atribuir-se valor monetário a bens e serviços ecológicos é tanto de levar, por um lado, a que se acredite que eles valem aquilo que os cálculos mostram, quanto de fazer, por outro, pensar que ativos naturais possam ser assim somados a ativos construídos pelos humanos (ambos referidos à mesma base em dinheiro), tornando-os substituíveis. Na essência do conceito, porém, a sustentabilidade ecológica deve ser vista como manutenção de estoques físicos de capital natural, não a de seus correspondentes valores monetários (DALY, 2002). É aqui que entra a necessidade de uma visão ecológica da economia, missão exatamente da economia ecológica, a qual não se confunde, pois, com a economia ambiental. A análise econômica com base em conhecimento ecológico adota a visão pré-analítica, no sentido schumpeteriano (DALY, 1997), que identifica o sistema econômico como subsistema aberto do ecossistema. Daí, tem como uma de suas missões promover a modelagem dos elos ecológicos que determinam as interfaces entre sistemas naturais e econômicos (ou "produtivos"). Os sistemas econômicos convencionais não são apresentados pela análise econômica ortodoxa dentro de um contexto biofísico do qual dependessem. São, por isso, sistemas isolados. Como parte do contexto biofísico, porém, os sistemas econômicos configuram-se, verdadeiramente, como sistemas abertos.

Pois a realidade da vida mostra que qualquer atividade humana se assenta em bases ecológicas, representadas por fluxos de energia e de materiais que alimentam todos os empreendimentos que se queiram efetuar. É nisso que consiste a compreensão biofísica ou termodinâmica do processo econômico. Compreensão termodinâmica, porque como qualquer atividade significa uma transformação de energia - é assim que os seres humanos sobrevivem, como se sabe da biologia (convertendo comida, ou seja, energia química, em movimento, isto é, energia mecânica) -, compete ao capítulo da física que estuda o campo das transformações energéticas explicar as regras sob as quais isso acontece. E tal capítulo é precisamente o da termodinâmica, com suas leis duras e implacáveis (GEORGESCU-ROEGEN, 1971), às quais a economia tem que se submeter, pois não há alternativa (BRANCO, 1999). Encarando o processo econômico com tal ótica, a economia ecológica implica uma mudança fundamental na percepção dos problemas de alocação de recursos e de como eles devem ser tratados, do mesmo modo que uma revisão da dinâmica do crescimento econômico. A ênfase no mercado como mecanismo de distribuição de recursos deve ser normalmente reservada apenas para os casos em que se busca uma alocação eficiente de recursos preexistentes (que é o que a estática microeconômica estuda). Quando se trata da situação em que novos recursos estão sendo mobilizados, tema que se localiza no âmbito da macrodinâmica econômica, o caminho abre-se para a unificação, sobre bases biofísicas. dos sistemas ecológicos e econômicos como formas interdependentes e coevolutivas. Essa é a principal tarefa e o desafio central da economia ecológica.

Para tentar enfrentá-lo, esse campo de trabalho não deve ser visto como uma nova ciência ou nova disciplina baseada em hipóteses e teorias compartilhadas por um conjunto amplo de profissionais, e sim como uma empreitada (ou cometimento) entre cientistas naturais e sociais, junto com os atores envolvidos em ações concretas de promoção do desenvolvimento, para chegar-se a novo entendimento da realidade humana, tirando dele lições para fins de análise e política. Novo entendimento esse que incorpora referências como a da moldura sistêmica (systems approach) ou teoria geral de sistemas; como a das matemáticas não-lineares; como a da termodinâmica de não-equilíbrio (non-equilibrium thermodynamics); como a da economia como uma ciência da vida. Requer-se, com efeito, uma compreensão profunda da forma como a atividade econômica depende de processos biogeofísicos, com os feedbacks que existem entre uma e outros (DE ROSNAY, 1975). Do mesmo modo, é preciso entender de que maneira funções e processos ecológicos não comercializados condicionam o funcionamento do processo de produção de bens e serviços economicamente valorados. Tudo isso vai conduzir à discussão do problema central tratado pela economia ecológica, qual seja, a sustentabilidade das interações entre sistemas econômicos (humanos) e ecológicos, o que impõe a necessidade de uma visão holística - uma visão que vá além das fronteiras territoriais normais das disciplinas acadêmicas. Pano de fundo dessa percepção é a consideração de que os princípios organizadores básicos da economia ecológica incluem a idéia de que os sistemas ecológicos e econômicos são sistemas vivos complexos e adaptativos, que necessitam ser estudados como sistemas integrados em coevolução para que possam ser adequadamente compreendidos, trabalhados e desenvolvidos. Evidentemente, a problemática econômico-ecológica deve se sujeitar aos limites da incerteza científica, orientando-se pelo princípio da precaução, tão caro àqueles que reconhecem as imperfeições das empreitadas humanas. Sobretudo ao se apreciar que a necessidade de informação sobre interações entre a economia e o ecossistema tem como finalidade derradeira a identificação de políticas capazes de mitigar os impactos destrutivos sobre o ambiente, de medidas para a realização do bem-estar social. Ou seja, em última análise, o sentido da economia ecológica é o de uma economia política da ecologia.

NOTA

  • BRANCO, S.M. Ecossistêmica: Uma Abordagem Integrada dos Problemas do Meio Ambiente. S.Paulo: Editora E. Blücher, 2a ed., 1999.
  • CAVALCANTI, C. (org.) Desenvolvimento e Natureza: Estudos para uma Sociedade Sustentável S. Paulo: Cortez, 1995.
  • _________ . Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e Políticas Públicas. S. Paulo: Cortez, 1997.
  • DALY, H. Políticas para o Desenvolvimento Sustentável. In: CAVALCANTI, C. (org.) Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e Políticas Públicas S. Paulo: Cortez, 1997, pp. 179-192.
  • _________ . Desenvolvimento Sustentável: Definições, Princípios, Políticas, Cadernos de Estudos Sociais, v. 18, n. 2, jul./dez., pp. 171-184, 2002.
  • FEARNSIDE, P. Serviços Ambientais como Estratégia para o Desenvolvimento Sustentável na Amazônia Rural. In: CAVALCANTI, C. (org.) Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e Políticas Públicas S. Paulo: Cortez, 1997, pp. 314-344.
  • GEORGESCU-ROEGEN, N. The Entropy Law and the Economic Process Cambridge (EUA): Harvard University Press, 1971.
  • HAUWERMEIREN, S. Manual de Economía Ecológica Quito: Ediciones Abya Yala, 1999..
  • MERICO, L.F. Introdução à Economia Ecológica Blumenau: Editora da FURB, 1996.
  • ROSNAY, J. Le Macroscope: Vers une Vision Globale. Paris: Éditions du Seuil, 1975.
  • TORRAS, M. Welfare, Inequality, and Resource Depletion: A Reassessment of Brazilian Economic Growth Aldershot (Inglaterra): Ashgate Publ. Ltd., 2003.
  • 1
    . Tal preço reflete apenas trabalho e capital usados na perfuração, bombeamento, refinação, etc. do petróleo. Ele não significa o valor do petróleo in situ, ou seja, o de sua formação e guarda por milhões de anos, valor esse que se toma como zero. Não é o óleo que a Petrobras extrai na Bacia de Campos, estado do Rio de Janeiro, que é remunerado, por exemplo. O pagamento que é feito a essa empresa corresponde ao custo de oportunidade do trabalho e capital por ela empregados na retirada do produto, cujo valor em si, in situ, na visão prevalecente, continua sendo zero.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Abr 2005
    • Data do Fascículo
      Jun 2004
    ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
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