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Produtores rurais e indústria madeireira no Rio de Janeiro do final do século XVIII: evidências empíricas para a região do Vale do Macacu

Farmers and timber industry in Rio de Janeiro during the late 18th century: empirical evidences regarding Macacu Valley

Resumos

A história sócio-florestal do Brasil Colônia traduz-se como o desenvolvimento articulado de uma grande diversidade de formas de apropriação ambiental. Até agora, contudo, esta história tem sido contada quase exclusivamente do ponto de vista da agricultura e seus atores hegemônicos, os grandes latifundiários de exportação. O objetivo deste artigo é colaborar para a ampliação de nosso leque analítico, investigando outra forma de apropriação - a indústria da madeira - bem como seus agentes sociais específicos. São analisados, como estudo de caso, dados empíricos do ano de 1797 referentes à fabricação comercial de madeira de construção pelos habitantes de Santo Antônio de Sá, tradicional distrito madeireiro do Rio de Janeiro setecentista. Indicadores quantitativos (participação das classes agrárias no número de madeireiros, tanto total como interno à classe, e as produções médias), corroborados por indícios textuais - como o da troca de madeira por mantimentos nas tavernas - revelam que os atores responsáveis por esta produção eram os pequenos produtores de subsistência. Este resultado, argumenta-se, pode ser explicado pela grande dificuldade enfrentada por estes rurícolas na obtenção de dinheiro e/ou excedentes de significativo valor de troca. Apesar das limitações inerentes ao pequeno "tamanho" do caso analisado, o estudo, ao expandir nossa concepção sobre o papel ambiental do pequeno produtor - não somente como agricultor, mas também como madeireiro - abre um novo caminho analítico para o estudo de nossa história florestal colonial.

Indústria madeireira; produtores rurais; Vale do Macacu; Rio de Janeiro setecentista; história ambiental


The colonial Brazil's forest history can be thought as an interdependent development of many kinds of environmental appropriation. Until now, however, this history has been written from the almost-exclusively point of view of agriculture and its hegemonic actors, the large farmers. The aim of this article is to expand our analytical framework by investigating another form of appropriation - timber industry - as well as its social agents. We analyze 1797 year empirical data referred to lumber production in Santo Antônio de Sá, traditional lumberjack region of eighteenth century Rio de Janeiro plain. Quantitative indicators (agrarian classes participation on the number of lumbermen, both total and internal to class, and the average productions), corroborated by textual descriptions - such as the exchange of timber for food in taverns - reveal that the responsible actors for this production were the small subsistence farmers. This result can be explained by the colonial small farmer's difficulty to obtain money and/or surplus with significant exchange value. Despite the limitations of a spatially and temporally small case-study, the research, by expanding our conception of the small farmer's environmental role - not only as a agriculturist but as well as a lumberman - opens a new analytical perspective on the study of the colonial forest history.

Timber industry; farmers; Vale do Macacu; eighteenth century Rio de Janeiro; environmental history


ARTIGOS

Produtores rurais e indústria madeireira no Rio de Janeiro do final do século XVIII – evidências empíricas para a região do Vale do Macacu* * Agradeço a Maurício Abreu, José Augusto Pádua, Judith Fiszon e ao revisor anônimo de Ambiente & Sociedade, pelas oportunas sugestões.

Farmers and timber industry in Rio de Janeiro during the late 18th century – empirical evidences regarding Macacu Valley

Diogo de Carvalho Cabral

Geógrafo, membro do Grupo de Geografia Histórica do Rio de Janeiro, Departamento de Geografia/UFRJ

RESUMO

A história sócio-florestal do Brasil Colônia traduz-se como o desenvolvimento articulado de uma grande diversidade de formas de apropriação ambiental. Até agora, contudo, esta história tem sido contada quase exclusivamente do ponto de vista da agricultura e seus atores hegemônicos, os grandes latifundiários de exportação. O objetivo deste artigo é colaborar para a ampliação de nosso leque analítico, investigando outra forma de apropriação – a indústria da madeira – bem como seus agentes sociais específicos. São analisados, como estudo de caso, dados empíricos do ano de 1797 referentes à fabricação comercial de madeira de construção pelos habitantes de Santo Antônio de Sá, tradicional distrito madeireiro do Rio de Janeiro setecentista. Indicadores quantitativos (participação das classes agrárias no número de madeireiros, tanto total como interno à classe, e as produções médias), corroborados por indícios textuais – como o da troca de madeira por mantimentos nas tavernas – revelam que os atores responsáveis por esta produção eram os pequenos produtores de subsistência. Este resultado, argumenta-se, pode ser explicado pela grande dificuldade enfrentada por estes rurícolas na obtenção de dinheiro e/ou excedentes de significativo valor de troca. Apesar das limitações inerentes ao pequeno "tamanho" do caso analisado, o estudo, ao expandir nossa concepção sobre o papel ambiental do pequeno produtor – não somente como agricultor, mas também como madeireiro – abre um novo caminho analítico para o estudo de nossa história florestal colonial.

Palavras-chave: Indústria madeireira; produtores rurais; Vale do Macacu; Rio de Janeiro setecentista; história ambiental.

ABSTRACT

The colonial Brazil's forest history can be thought as an interdependent development of many kinds of environmental appropriation. Until now, however, this history has been written from the almost-exclusively point of view of agriculture and its hegemonic actors, the large farmers. The aim of this article is to expand our analytical framework by investigating another form of appropriation – timber industry – as well as its social agents. We analyze 1797 year empirical data referred to lumber production in Santo Antônio de Sá, traditional lumberjack region of eighteenth century Rio de Janeiro plain. Quantitative indicators (agrarian classes participation on the number of lumbermen, both total and internal to class, and the average productions), corroborated by textual descriptions – such as the exchange of timber for food in taverns – reveal that the responsible actors for this production were the small subsistence farmers. This result can be explained by the colonial small farmer's difficulty to obtain money and/or surplus with significant exchange value. Despite the limitations of a spatially and temporally small case-study, the research, by expanding our conception of the small farmer's environmental role – not only as a agriculturist but as well as a lumberman – opens a new analytical perspective on the study of the colonial forest history.

Keywords: Timber industry; farmers; Vale do Macacu; eighteenth century Rio de Janeiro; environmental history.

INTRODUÇÃO

O conhecimento sobre o processo histórico de interação entre os seres humanos e a floresta, no Brasil, vem sendo significativamente encorpado, nos últimos anos, graças a contribuições de peso como as de Dean (1996), Drummond (1997), Miller (2000), Pádua (2002) e Castro (2002). Esta jovem historiografia ambiental vem, por vezes, contestar nas suas raízes abordagens consagradas na literatura nacional, como acontece, por exemplo, quando rejeita-se a tese da "imprevidência" e da "irresponsabilidade" generalizadas das concepções e práticas florestais dos gestores estatais e privados, tanto na época colonial como pós-colonial;1 1 . Para posicionamentos contrários, ver PÁDUA (2002) – para as concepções – e CASTRO (2002) – para as práticas. outras vezes, porém, mantêm-se os pressupostos clássicos, cujo maior exemplo talvez seja a persistência no uso de categorias homogeneizadoras como "Mata Atlântica" ou "Floresta Atlântica" para representar o arcabouço biofísico originário.2 2 . Para uma crítica contundente, ver BRANNSTROM (2002).

Outro exemplo deste conservadorismo reside na manutenção de um enfoque predominantemente agroecológico,3 3 . Para uma excelente explanação sobre esta abordagem, ver WORSTER (2003). como exemplificam os trabalhos de Dean e de Drummond. Ao contrário do que se pode vir a pensar, a manipulação do comportamento biológico das plantas para fins de alimentação perfaz tão-somente uma dentre as muitas motivações econômicas potencialmente fundadoras da prática do des-florestamento.4 4 . No caso agrícola, o desflorestamento representa a "remoção da cobertura florestal de modo que a terra possa ser usada para outros fins" (SAF apud ZIPPERER, 1993:177). A relação de troca biofísica entre os sistemas produtivos rurais e os ecossistemas florestais é, na verdade, a síntese dos diversos tipos de apropriação – no sentido marxiano de "retirar [...] ou determinar algum tipo de uso para alguma parte da natureza" (HOBSBAWN, 1991:16) – a que a floresta é submetida, já que esta fornece, além de seu substrato (o solo), inúmeros outros recursos para a sustentação dos grupos humanos, tais como madeira, frutos, medicamentos, água, alimentos de origem animal e energia.

Ao considerarmos outras apropriações que não a agrícola, ampliamos, então, o leque analítico com o qual interpretamos a história de nossas florestas costeiras. Abre-se espaço para novas e ricas narrativas, complementares àquelas tradicionalmente encontradas nas ciências sociais brasileiras (FREYRE, 1985; BUARQUE DE HOLANDA, 1986, 1990; PRADO Jr., 1969, 1976 são os maiores exemplos), cujo enredo fundamental gira em torno dos atores e atividades hegemônicas – tanto no sentido econômico quanto geográfico, isto é, como dominância na paisagem –, a saber, os grandes fazendeiros e suas monoculturas de exportação (cana-de-açúcar, tabaco, fumo, algodão).

Elegemos aqui a indústria madeireira como forma de apropriação florestal orientadora de nossa investigação. Referimo-nos, genericamente, ao conjunto dos processos produtivos que, valendo-se de um conjunto historicamente determinado de técnicas e tecnologias e de uma certa organização social do trabalho, opera transformando a fitomassa lenhosa em objetos úteis à vida humana, seja ela a do próprio produtor e/ou dos indivíduos de sua comunidade – como simples valor de uso –, seja a de terceiros – como mercadoria, isto é, como valor de uso e também de troca. No âmbito do presente estudo, esta indústria será enfocada sob a dimensão específica da fabricação, com fins comerciais, de peças de madeira para a construção civil e naval (tábuas, vigas, caibros etc.).

O objetivo deste artigo é identificar os atores agrários responsáveis por este tipo de produção em Santo Antônio de Sá, tradicional distrito madeireiro fluminense localizado sobre a bacia do rio Macacu, no final do século XVIII. Nossa análise é viabilizada pela utilização de uma raríssima base documental: um verdadeiro "recenseamento" do referido distrito, referente ao ano de 1797. Este relatório quali-quantitativo oficial – elaborado a pedido do Vice-Rei – informa-nos a quantidade de peças de madeira fabricada por cada produtor rural, além das suas atividades agrícolas de base, utilizadas aqui como indicadores gerais de seu caráter sócio-econômico.

PRODUTORES RURAIS E INDÚSTRIA MADEIREIRA NO BRASIL COLONIAL

Embora tenha sua existência geralmente reconhecida, o setor madeireiro da economia colonial tem sido largamente negligenciado pelos historiadores como objeto específico de estudo (MILLER, 2000:4). Diferentemente de outros atores sócio-ambientais desse período (como o senhor de engenho, o escravo, o bandeirante, o tropeiro etc.), o madeireiro permanece pobremente descrito pela literatura historiográfica. Os dois únicos estudos existentes – Miller (2000) e Castro (2002) – dirigem sua atenção quase exclusivamente para a atividade madeireira diretamente vinculada ao Estado português, a qual era realizada tanto pelos próprios agentes da burocracia lusitana como por empreiteiros particulares licenciados pela Coroa, sempre com o objetivo de abastecer os estaleiros Reais.

Este enfoque – que, na verdade, é menos escolha metodológica do que real limitação das fontes – acaba por reduzir a complexidade do fenômeno, ao negar a possibilidade de engajamento dos produtores agrícolas nesta indústria, coisa que Miller nos diz com todas as letras:

Diante da Mata Atlântica, o rurícola colonial tinha três opções econômicas: derrubá-la e queimá-la para o aproveitamento agrícola de seu solo, explorar a sua madeira ou deixá-la em pousio na expectativa de algum panorama futuro. No Brasil Colônia, as duas primeiras opções foram efetivadas até os limites estabelecidos pelo crescimento populacional, pela ambição e pela demanda por produtos florestais e agrícolas. Mas [...] eles raramente foram realizados em conjunto. (MILLER, 2000:43) [grifo nosso]

Para o referido autor, a legislação conservacionista portuguesa – que procurou reservar à Coroa, num primeiro momento (a partir de meados do século XVII), o monopólio sobre as árvores especialmente importantes para a indústria naval (as "madeiras de lei") e, posteriormente (após 1797), toda a floresta à borda da costa marítima ou dos rios navegáveis que desembocassem no mar – acabou por atuar no sentido contrário, isto é, incentivou os desmatamentos não-produtivos, na medida em que dificultou o aproveitamento comercial das madeiras pelos próprios proprietários – ou simplesmente posseiros –, estimulando com isso a queima pura e simples das matas.

Contudo, a atuação do mecanismo desenhado por Miller implicaria, necessariamente, a existência de uma efetiva e severa fiscalização estatal sobre as práticas florestais privadas ao longo de um imenso território, o que nos parece pouco factível no contexto de uma sociedade de movimentos "curtos" e "lentos" (precária mobilidade espacial dos indivíduos) – fator que se potencializava especialmente nas áreas interioranas – e de uma burocracia (oficiais da administração portuguesa) quantitativamente insuficiente e qualitativamente despreparada. Neste sentido, parece-nos bem mais razoável a hipótese defendida por Dean:

[...] o corte de madeira tornou-se uma indústria privada fortemente organizada. Ainda que formalmente supervisionada por 'guardas-mores' e administradores, estes eram sistematicamente subordinados e ludibriados por um pequeno número de madeireiros, serradores e tropeiros que efetivamente decidiam quando e onde a madeira seria cortada. (DEAN, 1996:151)

Além disso, devemos ter em mente que nem todas as madeiras de construção encontradas e exploradas na floresta tropical costeira eram empregáveis na indústria naval, já que havia uma série de pré-requisitos físicos e biológicos que condicionava a aplicabilidade do lenho, os quais variavam de acordo com a parte da embarcação a ser fabricada. O próprio fato de que não havia, ao que parece, um inventário oficial das espécies às quais aplicava-se o monopólio,5 5 . "Documentos ocasionalmente identificam certas madeiras como madeiras de lei pelo nome [...]. ainda assim, surpreendentemente, não é possível encontrar um inventário oficial amplo" (MILLER, 2000:48) [grifo no original] deixa claro a imprecisão e a falta de sistematicidade com a qual enquadrava-se a lei, deixando margem para especularmos sobre a existência de uma significativa economia florestal à parte do planejamento português. Bastante indicativo quanto a isto é o registro de que as 860 dúzias de tabuados produzidos pelo distrito de Campos, em 1778 – a segunda maior produção da capitania –, não incluíam as madeiras navais, que eram apenas duas (tapinhoã e peroba) (LAVRADIO, 1946:333). No final das contas, a tese de Miller – ressalta Pádua (2002:101) – "apenas indica que a madeira das florestas brasileiras poderia ter sido mais e melhor aproveitada no mercado, não demonstrando que esse aproveitamento teria impedido a destruição florestal, no contexto de uma fronteira aberta".

Diferentemente de Miller, acreditamos que este último elemento analítico – a fronteira aberta – seja de fundamental importância para a análise do papel dos pequenos produtores de subsistência na formação da indústria madeireira colonial. A exploração florestal seletiva, no Brasil, caracteriza-se historicamente por seu aspecto migratório e temporário. Geralmente acompanha a expansão da fronteira agrícola, extraindo madeiras de alto valor comercial e utilizando parte da madeira resultante da "limpeza" do terreno. Na época colonial, como sugere Velho (1979:116), a existência de terras ainda não-apropriadas de fato (ou seja, pela agricultura de exportação), associada a um crescente contingente de homens livres e pobres no campo, criava condições propícias para a emergência de sistemas extrativistas de "boca de sertão". Analisando o papel das atividades e agentes na expansão da fronteira econômica, este autor distingue três grandes zonas no espaço colonial: uma (a) região de plantation da costa, uma (b) extensa região intermediária pecuarista – que podia incluir áreas mineradoras ou de plantation decadente – com uma ocupação rarefeita e uma (c) região de floresta tropical politicamente garantida mas de fato não ocupada. Neste último caso,

continuou a existir em muitas áreas uma precária extração mineral ou vegetal, especialmente junto às margens dos rios, que deu origem ou permitiu a sobrevivência de alguns povoados e cidades que serviam como o centro inicial de comercialização dos produtos extraídos. [grifo nosso]

Neste quadro analítico, em que os atores centrais formam o que o mesmo autor chamou de "campesinato marginal", a indústria madeireira assume a posição de uma atividade ou trabalho acessório,6 6 . Conceito originário da teoria marxista clássica do desenvolvimento agrário (KAUTSKY, 1980). isto é, o de um artesanato realizado para complementar a renda advinda da agricultura, insuficiente no provimento de toda a gama de necessidades materiais da unidade familiar. Infelizmente, esta indústria rural do Brasil Colônia foi, até agora, parcamente estudada pela historiografia agrária e econômica. Prado Jr., um dos poucos a se aventurar nessa temática, assim conceituou as artes rurais:

Fora das grandes aglomerações [...], as artes mecânicas e industriais constituem um simples acessório dos estabelecimentos agrícolas ou de mineração. Para o manejo destes, ou para atender às necessidades de seus numerosos moradores – o proprietário e sua família, escravaria e agregados – torna-se necessário por motivo das distâncias que os separam dos centros populosos, mercê da extensão dos domínios, ou por outras considerações de ordem prática e econômica, a presença de toda uma pequena indústria de carpinteiros, ferreiros e outros [...] (PRADO JR, 1969:220)

Resta saber quais seriam estas "outras considerações de ordem prática e econômica", já que as condições de reprodução variavam enormemente de acordo com o tipo de unidade produtiva. Enquanto atividade destinada à manutenção mais elementar do produtor e sua comunidade – através da fabricação de mourões de cerca, caixotes, cabos de enxada e machado, gamelas, cangas, mobília e muitos outros utensílios necessários à vida no campo – podemos supor que a indústria da madeira estivesse presente, em maior ou menor nível de sofisticação, em todos os tipos de unidades agrícolas, desde o mais moderno dos engenhos até a mais rudimentar e precária "posse" cabocla. No primeiro caso, seria mais uma manifestação da auto-suficiência das grandes propriedades açucareiras, verdadeiros "mundos em miniatura" no dizer de Prado Jr. (1976:38); no segundo, "outro ramo de atividade econômica da grande população de subsistência", cuja necessidade de realização vinculava-se à "insuficiente quantidade de moeda e excedentes para a aquisição de bens produzidos por terceiros" (MILLER, 2000:128).

Ora, este último argumento pode ser chamado a defender a proposição inversa, isto é, a de que as precárias condições de subsistência do pequeno produtor rural impeliam-no a uma indústria madeireira comercial – e não mais de subsistência –, na medida em que a madeira, uma vez valorizada, possibilitaria trocas vantajosas num sistema econômico pouquíssimo monetarizado7 7 . Sobre o caráter não-monetário das trocas econômicas no período colonial, ver o ensaio de CALDEIRA (1999), especialmente o capítulo 5. – proposição esta que constitui a nossa hipótese geral. Em tempos de crescimento urbano acelerado – como ocorreu, por exemplo, na segunda metade do século XVIII – a escassez de madeira de construção nos mercados das maiores vilas e cidades parece ter elevado o preço desta mercadoria,8 8 . O preço da madeira paraense, por exemplo, variava, no ano de 1783, de 1.700 a 1.800 réis a unidade das tábuas e pranchas, sendo as ripas cotadas a 1.500 réis a dúzia (CRUZ, 1957:38). Isto representava, por exemplo, três vezes o preço do alqueire de farinha de mandioca. uma realidade econômica que, segundo Dean (1997:181), "era previsível e talvez pudesse ter sugerido uma oportunidade de lucro para lavradores mais prudentes e frugais".

O CASO DO RIO DE JANEIRO

Conforme aponta Miller (2000:72-3), a Capitania do Rio de Janeiro foi, ao longo do período 1796-1819, a maior exportadora de madeira da colônia, contribuindo com um valor quase duas vezes maior que o relativo à Bahia. Esta predominância, argumenta o referido autor, pode ser explicada pela menor regulação metropolitana neste território – já que a administração lusitana acreditava que as mais ricas fontes de madeira eram as matas da Bahia, de Alagoas, de Pernambuco e da Paraíba – o que teria dado maior liberdade aos madeireiros fluminenses. Contudo, estes madeireiros seriam, para Miller, somente os empreiteiros licenciados pela Coroa, fornecendo peças para os estaleiros Reais ou envio para Portugal. Apesar de reconhecer, páginas adiante, que a maior parte da madeira que circulava internamente era consumida pelo setor privado (construção naval, edificação rural e urbana, moendas e fornalhas de engenhos, etc.) e que "em algumas regiões a madeira era a principal fonte de renda dos habitantes" (MILLER, 2000:103), Miller se nega a especular sobre o engajamento dos produtores agrícolas na atividade madeireira.

Relatos de viagens, descrições de época – como as de Aires de Casal (1943), Saint-Hilaire (1975) e Burmeister (1980) – e trabalhos acadêmicos – como os de Maia Forte (1937), Mendes (1950), Castro (1987) e Drummond (1997) – dizem-nos que a produção comercial de madeira de construção era uma atividade econômica muito difundida no passado, principalmente ao longo dos vales dos grandes rios da Baixada Fluminense, como o Macacu, o São João, o Macaé e o Muriaé. Além disso – e o que realmente importa –, ela tende, em linhas gerais, a reforçar nossa hipótese de que os produtores agrícolas, mais particularmente os pequenos, engajavam-se na economia madeireira mercantil.

Passando em revista às freguesias do distrito de Cabo Frio, Aires de Casal (1943:32) relata que os habitantes de Macaé "recolhem milho, arroz, feijão, farinha, algum açúcar; tiram madeira, sua principal riqueza". Na freguesia de São João, o panorama era o mesmo: "Afora a madeira, por hora a riqueza principal de seus habitadores, exporta-se variedade de comestíveis" (op. cit.).

Preocupada em descrever, a título de introdução, o processo de ocupação de sua área de estudo – a freguesia Capivary, distrito de Cabo Frio – no período imediatamente anterior ao que era o seu objeto de análise (primeira metade do séc. XIX), H. Castro foi levada a observar que a "mata tropical começava a ser ameaçada e a instalação das novas fazendas se combinava com o comércio de madeira-de-lei como atividade dos novos cafeicultores" (Castro, 1987:8). A historiadora ratifica esta associação mais adiante, quando, no âmbito de sua análise dos dados contidos no Almanak Laemmert, conclui:

O recrudescimento da exploração da madeira-de-lei acompanhava em grande parte o caminho da ocupação agrícola comercial para o alto curso do Rio São João. Todos os negociantes de madeira listados no Laemmert o foram também como lavradores ou fazendeiros. (CASTRO, 1987:73) [grifo nosso]

Em passagem dedicada ao processo de abertura de fazendas, Drummond acaba por fazer uma referência bastante explícita à exploração madeireira: ela estava associada, pelo menos em alguns casos, a uma prática comum no período colonial, qual seja, a utilização, por parte dos grandes fazendeiros, de trabalhadores livres para a "limpeza" da mata, etapa imprescindível ao ulterior aproveitamento agrícola do solo. Como ressalta o referido autor, esta era

uma tarefa pesada e perigosa na qual raramente se empregavam os caros escravos negros. Eles podiam ser feridos ou mortos por picadas de insetos ou cobras, galhos ou árvores que tombavam, fogos descontrolados ou outros tipos de acidentes. O desmatamento era quase sempre confiado a trabalhadores livres de alguma forma ligados à família patriarcal extensa do fazendeiro. Freqüentemente, a tarefa se fazia como uma empreitada, em troca do direito de usar temporariamente as áreas desmatadas para agricultura ou pecuária de subsistência e/ou direito de vender carvão vegetal ou madeiras-de-lei. (DRUMMOND, 1997:103-4)

Neste contexto, o objetivo de nosso trabalho é testar, no estudo circunstanciado de uma das "bacias madeireiras" da hinterlândia fluminense – o vale do rio Macacu –, não apenas uma, mas duas hipóteses, uma sendo desdobramento da outra: a primeira se refere ao engajamento dos produtores agrícolas em geral na fabricação de madeiras de construção (vigas, tábuas, caibros etc.); a segunda diz respeito à diferenciação sócio-econômica destes produtores, sendo nossa expectativa a de que os produtores de subsistência tivessem uma participação predominante na atividade madeireira, em conformidade com as premissas já expostas.

O VALE DO MACACU

O distrito de Santo Antônio de Sá, localizado no vale do rio Macacu, era o maior produtor de tábuas da capitania fluminense, no último quartel dos setecentos – atrás dele figuravam Campos, Angra dos Reis e Cabo Frio –, segundo revelam os dados do relatório do Marquês de Lavradio (1946), referentes ao ano de 1778. O corte das madeiras era uma das atividades mais importantes para a economia agrária do distrito, igualando-se mesmo à agricultura, representada pelas tradicionais lavouras de cana-de-açúcar e mandioca, principalmente. Como ressalta Maia Forte (1937:53-4), "o comércio de madeiras representava uma apreciável riqueza, pela excelência das espécies existentes nas matas do município, aplicadas em variadas obras civis e hidráulicas".

O ambiente

O território distrital englobava, no final do século XVIII, as freguesias de Guapymirim, Santo Antônio de Sá, Santíssima Trindade e Itambi – cobrindo o que são, atualmente, os municípios de Guapimirim, Cachoeiras de Macacu e parte dos de Itaboraí e Rio Bonito. Em termos naturais, essa área, de aproximadamente 1.700 km², abarca toda a porção nordeste da grande região hidrográfica que drena para a baía de Guanabara, constituída pelas bacias do Guapi, do Guaraí, do Guapi-Açú, do Macacu e do Guaxindiba.

A topografia tende a se diferenciar segundo quatro "compartimentos": as escarpas pouco dissecadas do complexo montanhoso da Serra do Mar, posicionadas paralelamente ao litoral e funcionando como divisores de água ao norte; os esporões rebaixados (também chamados contrafortes) deste conjunto, que se prolongam da serra perpendicularmente, em direção ao oceano; as colinas isoladas ou agrupadas em pequenos aglomerados (mar-de-morros); e os fundos planos ou quase planos das depressões entre essas colinas, áreas que se alagavam quando da chegada das fortes chuvas que caíam sobre a Serra do Mar, de outubro a março, formando um extenso e marcante ambiente de várzea (AMADOR, 1997:32-3; MENDES, 1950:26).

As colinas que emergiam dessa planície periodicamente inundada devem ter funcionado como suportes de "ilhas" de floresta de terras baixas (mata alagadiça), por vezes pouco diferenciadas do "mar" brejoso que as circundava. Essa floresta abrangia os ambientes situados entre 5 e 50 metros acima do nível do mar, estando assentadas sobre rochas do embasamento cristalino, rochas alcalinas e sedimentos do Grupo Barreiras. Nos morros mais elevados e nos contrafortes já podíamos observar uma floresta submontana, prolongamento da densa floresta ombrófila existente na Serra do Mar, assentada sobre rochas do embasamento cristalino e rochas alcalinas.

O povoamento

O início da apropriação e do povoamento desta área remonta a meados do século XVI, logo após a vitória dos portugueses sobre os franceses e os seus aliados tamoios na batalha pela baía de Guanabara. Iniciada a concessão das terras do recôncavo, é doada a Miguel de Moura sesmaria de 9.000 braças9 9 . Uma braça eqüivale a 2,2 metros. de testada (largura), em meio ao rio Macacu, e 12.000 braças para o sertão (comprimento). A segunda sesmaria, de 6.000 braças de largura e 9.000 de comprimento para o sertão do mesmo rio – onde acabavam as de Moura – foi doada a Cristóvão de Barros, capitão-mor da frota vinda de Portugal para socorro do Rio de Janeiro na referida batalha.

Mais tarde, Moura fez doação de sua sesmaria aos jesuítas, que venderam parte dela a Manoel Fernandes Ozouro, fundador de uma capela entre os rios Cacerebú e Guapi-açú, sob a invocação de Santo Antônio, em 1612. Para o patrimônio da capela, Ozouro e sua mulher, Isabel Martins, doaram 350 braças de terras. Criado o curato, com sede na capela, os fundadores aumentaram a dádiva, doando à Igreja, além das terras do adro e da capela – que estavam dentro das 350 braças – mais 100 braças em quadro por trás do pequeno templo, e as alfaias deste (MAIA FORTE, 1937:35-7).

O procedimento acima descrito constituía uma forma de apropriação territorial muito comum no Brasil Colônia, conforme nos informa Abreu (1997:232); trata-se dos patrimônios religiosos, isto é, glebas cedidas por um ou vários proprietários fundiários para que os trabalhadores sem terra pudessem ali fixar residência. A cessão, entretanto, não se fazia diretamente a eles. O beneficiário era sempre o orago de uma capela já existente ou que se queria erigir no local, cabendo à Igreja, em nome do padroeiro, administrar esse patrimônio. Para isto, era comum a instituição de uma irmandade, que aforava então aos colonos as terras recebidas (ABREU, 1997:233).

Como ainda observa este autor, da repartição desses patrimônios surgiram pequenos arraiais, alguns dos quais prosperaram e tornaram-se freguesias; muitos foram, mais tarde, elevados à categoria de vilas. Foi exatamente essa a trajetória de Santo Antônio de Sá: em 1644, o curato foi elevado à categoria de paróquia, estendendo-se à então freguesia de Santo Antônio de "Caserabú" dez léguas para o norte. Finalmente, em 1697, quando então governava a Capitania do Rio de Janeiro Artur de Sá e Menezes, fundou-se a vila no lugar da igreja matriz da referida freguesia, dando-lhe o nome de "Santo Antônio", por ser este o orago, e "Sá", em homenagem ao representante de Sua Majestade (MAIA FORTE, 1937:41).

FONTE E METODOLOGIA

Preocupado em mapear rapidamente as alternativas econômicas da colônia pós-mineração, uma das primeiras medidas de Rodrigo de Souza Coutinho, ao assumir o Ministério da Marinha e Domínios Ultramarinos, em 1796, foi requisitar um levantamento geral da situação das capitanias. Em ofício datado de 14 de setembro do mesmo ano, Souza Coutinho ordena ao Conde de Rezende (o então Vice-Rei) que proceda o levantamento de dados relativos a vários aspectos do território e da população sob seu governo (características ambientais, demografia, atividades econômicas etc.). Em resposta a este requerimento, o Vice-Rei remete à corte, em 3 de dezembro de 1797, os relatórios elaborados pelos oficiais por ele incumbidos do levantamento primário nos diversos distritos da capitania.

A fonte utilizada para o estudo foi, exatamente, um destes relatórios. O documento, intitulado Discripção do que contém o Discrito da Villa de Santo Antonio de Sá de Macacú, a qual foi mandada tirar pelo Ilmo e Exmo Sor Conde Vice Rey, em 7 de Abril de 1797, foi "descoberto" no acervo do Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa (Avulsos, caixa 165, no. 62), pelo Prof. Dr. Maurício Abreu, coordenador do Grupo de Geografia Histórica do Rio de Janeiro, Departamento de Geografia/UFRJ.

O relatório se encontra dividido em duas grandes partes, contando ainda com um "anexo": a primeira é uma descrição qualitativa (textual) do distrito, abordando diversos temas inerentes ao sítio e à vida social e econômica; a segunda é composta pelas relações quantitativas; o anexo – intitulado Relação das madeiras que abundam os vastíssimos sertões do Distrito da Vila de Santo Antônio de Sá de Macacu, e dos seus nomes, quantidades e préstimos, a exceção daquelas que somente servem para lenha – traz um longo inventário das espécies florestais para as quais conhecia-se algum uso. Esta parte do documento, apesar de riquíssima, não será explorada neste trabalho, tanto em razão do seu escopo quanto do espaço aqui disponível.

A descrição textual, não paginada, se distribui por 19 capítulos, sendo que se encontram completamente ausentes da nossa cópia os de número 2 e 4, enquanto que os de número 1, 3 e 5 estão incompletos. Já a relação quantitativa é apresentada na forma de uma tabela contínua, com a primeira coluna contendo os nomes dos chefes de família e as demais contendo as diversas variáveis sócio-econômicas descritoras destas unidades produtivas, a saber: (1) classe a que pertencem (classe produtiva), (2) estado civil, (3) terras que possuem, (4) filhos menores (por sexo), (5) filhos de mais de 15 anos, (6) filhas de mais de 12 anos, (7) escravos (grandes e pequenos), (8) escravas (grandes e pequenas), (9) agregados, (10) gado vacum (bois, vacas e novilhos), (11) ovelhas, (12) cavalos (cavalos, bestas e poldros) e (13) rendimento anual (arrobas de açúcar, pipas de aguardente, alqueires de farinha, alqueires de goma, alqueires de feijão, alqueires de arroz, alqueires de milho, telhas, tijolos e madeira fabricada em dúzias).10 10 . Não há registro da extração de madeira para a geração de energia (lenha e carvão). Não obstante, sabemos que, em algum momento, esta atividade existiu: o mestre de campo do distrito registra, para o ano de 1778, uma produção de 30 barcos de carvão e 100 barcos de lenha (LAVRADIO, 1779:291). Se esta produção, daí até 1797, realmente se extinguiu, não temos condições de verificar. Ainda assim, é deveras interessante notar que o inventário florestal que se encontra no final do documento utilizado neste trabalho só relacionasse aquelas espécies que serviam para outros préstimos que não o de lenha, indicando que o uso para fins energéticos era reservado apenas àquelas árvores que não serviam para mais nada (CASTRO, 2002:95). Isto reforça a idéia, já colocada por Dean (1996:210), de que os pequenos produtores não cortavam árvores "vivas" para queimar, até porque a madeira teria de ser estocada para secar – demandando conhecimentos, habilidades e instalações que estes indivíduos não deviam dispor – dando-se preferência aos arbustos e galhos mortos do chão das capoeiras. Dois fatores nos parecem plausíveis para explicar a ausência de uma extração comercial de lenha: primeiro, o fato de que eram as madeiras dos manguezais – e não das florestas –, por queimarem mais lentamente e não deixarem sedimentos de resina, as melhores para alimentar as caldeiras dos engenhos (os principais compradores de lenha) e, segundo, porque a lenha, depois de alguns anos, ia se tornando cada vez mais escasso nas terras dos pequenos produtores, limitando progressivamente a possibilidade de extraí-la comercialmente.

O tratamento primário do material empírico consistiu no destacamento dos produtores de madeira da relação quantitativa e construção de uma tabela à parte, contendo apenas duas variáveis:

  • Classe produtiva – variável qualitativa nominal que podia assumir as seguintes categorias: engenho de açúcar, fábricas de farinha, lavrador, fábrica de arroz, olaria, taverna, oficial mecânico ou serrador;

  • Produção total de peças de madeira (em dúzias) – variável quantitativa discreta construída através da soma das quantidades relativas aos 8 tipos de peças (tábuas, cossoeiras, vigas, frechais, paus-de-prumo, pernadas, caibros e curvas).

Para a análise destes dados, foi montada a distribuição de freqüências para a variável "classe produtiva", enquanto que, para a variável "produção total de peças de madeira", foram calculadas as médias aritméticas referentes à cada classe produtiva. Buscando corroboração dos resultados encontrados, foram interpretadas as descrições textuais encontradas na primeira parte do manuscrito.

RESULTADOS

Produção madeireira vs. classes produtivas

A tabela de freqüências relativa à variável "classe produtiva" revelou uma grande associação entre a indústria madeireira e os produtores agrícolas vinculados ao setor agrícola de subsistência. Apesar de constar no documento uma classe profissional denominada "serradores" (que contabilizava 55 indivíduos), nenhum deles apresentava uma única peça produzida. Do total de 100 unidades produtivas que fabricavam madeira, 55 pertenciam à classe lavrador, 43 à classe fábrica de farinha e 2 à classe engenho de açúcar, com as demais classes não apresentando nenhuma ocorrência (Tabela 1 e Gráfico 1 – Anexo 1 Anexo 1 ).

Ponderando os números acima pelas quantidades totais de ocorrência de cada classe produtiva no distrito como um todo, obtemos o seguinte panorama: 7,4% dos engenhos de açúcar, 8,5% dos lavradores e 18,1% das fábricas de farinha produziam madeira (Tabela 2 e Gráfico 2 – Anexo 1 Anexo 1 ).

Contudo, a interferência direta do tamanho das propriedades fundiárias nestes valores os torna pouco confiáveis para o exame de nossa questão. Com efeito, 7,4% dos engenhos poderiam corresponder – e é bem provável que de fato correspondessem –, em termos de área, a não muito menos do que os 100% dos lavradores; neste sentido, seria preciso uma ponderação espacial, cálculo que não tivemos condição de realizar.11 11 . Isto ocorreu por causa do baixo grau de confiabilidade dos dados contidos na variável "terras que possuem": a forma de representação adotada na tabela – na qual o valor "zero" (ausência do atributo) é representado pelo não preenchimento da célula – deixa margem para questionarmos se indivíduos que, a priori, deveriam ter terras, de fato não as possuíam ou se, simplesmente, não havia informações.

O que podem nos dizer, então, as produções médias de cada classe? Cada engenho de açúcar engajado na atividade produzia, em média, 4,0 dúzias de peças de madeira; cada lavrador, por sua vez, 12,8 dúzias; e cada fábrica de farinha, 17,9 dúzias (Tabela 3 e Gráfico 3 – Anexo 1 Anexo 1 ). Se os primeiros resultados apresentados deixam margem para dúvidas, estes, por sua vez, não: as médias das classes "lavrador" e "fábrica de farinha" são, respectivamente, 3,2 e 4,5 vezes maiores do que a da classe "engenho de açúcar".

Indícios textuais

Como mencionado na seção referente à metodologia, buscamos, posteriormente, corroboração dos resultados encontrados nas descrições textuais do manuscrito. Como mostraremos a seguir, foram encontrados fortes indícios qualitativos que ratificam a associação entre a indústria madeireira comercial e os produtores de subsistência. Para esta demonstração, selecionamos e reproduzimos aqui quatro trechos do manuscrito. O primeiro deles, a título introdutório de verificação de pressupostos assumidos anteriormente, define claramente a valorização da mercadoria madeira no mercado colonial:

Além dos estabelecimentos [...] que os lavradores têm formado para a sua conveniência, que vêm a ser o açúcar, a farinha, o milho, o feijão e o arroz, sendo estes gêneros os principais para o seu comércio, é o da feitura das madeiras um dos negócios em que muitos se empregam, com o qual se faz mais vantajosa a sua negociação, pela utilidade que recebem da extração delas, que é grande e geral, não só as fazendo conduzir para a cidade [do Rio de Janeiro], como vendendo nos seus portos aos negociantes, ou atravessadores [...]

A informação de que os produtores não somente "conduziam as madeiras para a cidade [do Rio de Janeiro]", mas também "as vendiam, nos seus portos, aos negociantes", é por nós interpretada como uma evidência de que as peças podiam ter dois destinos: os estaleiros reais e/ou exportação para a metrópole ou o sistema de comércio local, no qual eram trocadas por outras mercadorias.

O segundo trecho que selecionamos versa exatamente sobre essa utilização da madeira como moeda de troca:

Outro ramo mais há de comércio em todo este território, que é o estabelecimento das tavernas, nas quais mais ou menos ao sustimento para a sustentação deste povo ordinário, como fica dito, e a esta negociação acresce também aos vendeiros a utilidade que tiram em venderem o mantimento a troca de madeiras, farinha, milho, feijão e arroz, no que aumentam o seu negócio, recebendo muitas vezes por preço moderado mais do ordinário, a que se vêem obrigados seus donos os que são pobres, para remediarem a sua necessidade. [grifo nosso]

A referência ao vendeiro, que trocava madeira (entre outros itens) por mantimentos, é mais uma evidência da participação preponderante dos produtores de subsistência na indústria madeireira comercial. Como ressalta Castro (1987:79-80), a presença do vendeiro revela um padrão de consumo e articulação econômica integrado exatamente àquele mundo dos "homens livres pobres", ou seja, dos indivíduos que viviam à margem das grandes unidades agrícolas de exportação.

O terceiro trecho selecionado descreve as formas de trabalho:

Ela [a madeira] é de tal interesse, que sendo laboriosa e pesada a sua feitura, e condução para os portos de embarque, nem por isso deixam de continuar com as fabricar, não só com seus escravos, como com homens jornaleiros a quem pagam, vencendo a dificuldade da navegação, naqueles lugares aonde não chegam as embarcações de maior porte, pela falta de águas, em as conduzir em canoas e em balsas, que são bem semelhantes às jangadas, e tão seguras que sustentam homens, que as conduzem com varas até os lugares em que se acham as embarcações para as receber, o que lhes é mais suave e menos penoso nas ocasiões de abundância de águas.

Como se vê, os madeireiros macacuenses utilizavam, além do trabalho livre ("homens jornaleiros"), o braço escravo, tipo de mão-de-obra bastante associado ao setor madeireiro privado, conforme ressalta Miller (2000:120). Talvez estes trabalhadores jornaleiros fossem os tais 55 indivíduos relacionados sob a denominação de "serradores" aos quais nos referimos anteriormente: a maioria nada plantava, com exceção de poucos que conseguiam tirar da terra alguns alqueires de mandioca, arroz e/ou feijão. Faziam, decerto, parte do que Miller (2000:107) definiu como a "grande população mista de subsistência" (large mixed subsistence population): índios, negros libertos, mulatos, pardos e brancos pobres que habitavam as franjas florestais e que "estavam disponíveis para empregar sua habilidade de corte num mercado de trabalho livre". Na visão de quem elaborou o relatório, eram indivíduos pobres que não tinham escravos, dificultando-se-lhes a prática agrícola, mesmo em escala de subsistência – interpretação compartilhada pelo Príncipe de WIED-NEUWIED (apud MILLER, 2000:107) – donde vinha a necessidade de vender seu trabalho para terceiros: "Muitos [habitantes] [...] não se empregam na [agri]cultura, e vivem inclinados ao ofício de mateiros, e é regra quase geral em todos os que não têm escravos; porque se lhe faz difícil a lavoura, por não poder uma só pessoa colher e desmanchar [...] [grifo nosso].

A julgar pelo sentido contemporâneo do termo, os mateiros seriam os indivíduos que fazem a prospecção da mata, observando o tamanho e a espécie das árvores que a compõem, à procura das essências valiosas (SOUZA, 1947:16). Não temos, entretanto, meios para determinar o significado exato da palavra; é possível que ela se referisse a uma outra função ou, ainda, a todo o conjunto de ofícios associados à atividade madeireira, indistintamente. Contudo, o importante aqui é observar que a indústria florestal privada constituía um importante mercado de trabalho para a camada mais baixa da pobreza rural.

DISCUSSÃO

Mostramos, na seção anterior, várias evidências empíricas – quantitativas qualitativas – de que (1) os produtores agrícolas se engajavam na produção de madeiras de construção e que (2) esta era uma atividade muito mais ligada aos pequenos produtores de subsistência (lavradores e fabricantes de farinha) do que aos engenhos açucareiros. Cabe-nos, agora, indagar que fatores seriam capazes de explicar este resultado.

Do ponto de vista teórico adotado neste trabalho, a explicação reside em dois grandes fatores, ou melhor, duas grandes características inerentes ao setor agrícola de subsistência – decorrentes, naturalmente, do relacionamento estrutural entre aquele e o setor de exportação: (i) a maior dependência econômica dos produtores de subsistência em relação ao mercado interno e (ii) a instabilidade sócio-territorial destes produtores. Estas duas características estavam, obviamente, estreitamente inter-relacionadas, o que justifica que nossa argumentação transite livremente entre uma e outra, sem avisos prévios.

O caráter relativamente auto-suficiente do sistema de exportação já foi ressaltado anteriormente. No espaço da grande propriedade, dispunham-se de áreas onde se criava o gado para a alimentação e para a tração; áreas com lavouras de gêneros alimentícios; das matas tropicais extraía-se madeira para combustível e construções; das grandes planícies retiravam-se as argilas para o fabrico de telhas e tijolos (GEIGER & SANTOS, 1955:132).

Esta relativa auto-suficiência estava assentada na utilização da mão-de-obra escrava, tanto no seu aspecto qualitativo, quanto no seu aspecto quantitativo. Qualitativamente, o investimento consistia na compra do escravo e a manutenção representava custos fixos, quais sejam, os gastos com a alimentação mínima necessária à sobrevivência daqueles trabalhadores. Estes gastos, contudo, dependiam, preponderantemente, da própria utilização desta força de trabalho, já que os negros, além de trabalharem nos canaviais, também cultivavam roças de subsistência. Obviamente, também grande parte dos gastos de consumo dos proprietários estava assegurada pela utilização dessa mesma força de trabalho (FURTADO, 1976:51-2).

Evidentemente que só um grande contingente de escravos possibilitaria o estabelecimento de uma organização sócio-econômica como essa. Mesmo que o proprietário tivesse o capital inicial necessário para a importação dos equipamentos fundamentais (principalmente a moenda), se ele não tivesse um número mínimo de escravos, não haveria possibilidade de funcionamento de uma grande unidade produtiva, como requeriam as condições ambientais da colônia. Os proprietários possuidores de muitos escravos levavam, assim, grande vantagem sobre os pequenos proprietários (GEIGER & SANTOS, 1955:132).

Estes pequenos produtores – incluindo aí os plantadores de cana que não tinham a aparelhagem necessária em suas terras para a moagem, tendo que fazê-la nos engenhos de outrem – não eram "pequenos" somente no contingente de escravos, mas também nas terras que tinham, tanto em termos quantitativos quanto qualitativos. As terras ocupadas pela agricultura de subsistência eram, efetivamente, as sobras deixadas pela apropriação territorial oficial (viabilizada pelo sistema sesmarial), destinada a prover das melhores terras a agricultura comercial de exportação. Disto decorre "o caráter precário e transitório do uso e da posse da terra por pequenos proprietários e lavradores sitiantes, como se fossem ocupantes ocasionais de glebas provisórias" (LINHARES & SILVA, 1981:119). A fixação dos pequenos produtores era, pois, condicionada pela dinâmica da lavoura de exportação.

Donos de poucos ou de nenhum escravo e fazendo uso de técnicas as mais primitivas possíveis, os produtores de subsistência eram impelidos a uma agricultura preponderantemente mercantil, de modo que pudessem obter, via troca, produtos essenciais à sua sobrevivência, principalmente gêneros alimentícios que não tinham condições de plantar em suas terras. Isto significava que, quanto maior o valor de troca de seus produtos, mais numerosos seriam os itens que poderiam adquirir nas negociações com os comerciantes.

A exploração da madeira aparecia, então, em tempos de alta valorização desta mercadoria, como uma atividade acessória conveniente para aqueles lavradores que estivessem assentados em localização privilegiada em relação aos remanescentes de mata virgem e às vias de transporte (principalmente fluviais), requisitos sem os quais inviabilizava-se o desenvolvimento da atividade, tendo em vista os custos elevados do processo produtivo. A derrubada das árvores era realizada nos vales dos rios abaixo das corredeiras, área esta muito limitada, devido à barreira da escarpa costeira. Além disso, grande parte das madeiras de lei era mais pesada que a água e tinha que ser transportada em balsas feitas de madeiras mais leves (descê-las por cascatas ou corredeiras era inviável). Havia também sérias limitações fitogeográficas. Como bem lembrou Vianna (1964:231), "a utilização de uma espécie [vegetal] depende não só do valor do seu produto, mas também, da freqüência e densidade de ocorrência"; diferentemente das formações temperadas, a Mata Atlântica tem uma enorme diversidade biológica, implicando uma baixa freqüência de ocorrência para as espécies mais valiosas. O corte seletivo exigido pela extração comercial provocava um rápido desaparecimento destas árvores, solapando, no curto prazo, o estoque de matéria-prima. Uma vez alterado o regime natural de sucessão ecológica, a mata em regeneração não conteria as mesmas espécies maduras durante um século ou mais (DEAN, 1997:180).

Além disso, há que se considerar o peso dos dificultadores ambientais associados ao assentamento humano na várzea – como devemos esperar que fosse o caso de muitos dos produtores rurais aqui estudados. Lima e Alencar (2000:133) chamam a atenção para o fato de que a adaptação dos grupos humanos a este tipo de ambiente é, em grande parte, modelada pela variação sazonal do nível da água, implicando um calendário específico de atividades econômicas: o plantio deve ser realizado na vazante e a colheita na enchente, havendo sempre um interregno forçado (a cheia), no qual são realizadas outras atividades, dentre elas, a extração de madeira.

Sobre estes argumentos, erigimos a hipótese de que a indústria madeireira comercial era, em parte, uma estratégia sócio-econômica dos produtores agrícolas de subsistência em face dos constrangimentos impostos pela estrutura sócio-espacial à sua sobrevivência e reprodução. De fato, as condições impostas pela ordem colonial impediram a germinação daquele tipo social que se convencionou chamar "camponês", isto é, aquele trabalhador que não apenas "se envolve mais diretamente com os segredos da natureza" (MOURA, 1986:3) mas, também, compromete-se com eles e, sobretudo, identifica-se como parte integrante deles. Como sintetizou magistralmente Drummond:

O latifúndio restringiu (e em algumas regiões praticamente eliminou) a pequena e média propriedades e, consequentemente, a formação de uma classe de pequenos e médios proprietários estáveis que talvez usasse a terra de forma mais prudente ou menos predatória. A monocultura latifundiária de exportação [...] impediu a emergência de grupos sociais propriamente camponeses incumbidos de manter ou recuperar a fertilidade da terra trabalhando em escala menor ou de subsistência. (DRUMMOND, 1997:61-2)

No Brasil colonial, salvo raras exceções, o pequeno produtor rural não pôde estabelecer um vínculo de cooperação com o ambiente. Não havia tempo para isso, ele não podia perder sequer uma única oportunidade de extrair da natureza qualquer mercadoria que lhe proporcionasse bons rendimentos no momento da troca; afinal de contas, nunca se sabia quando o senhor de engenho ao lado iria expulsá-lo de suas terras e deixá-lo à deriva pelo sertão. Em outras palavras, a extrema instabilidade e precariedade de seu relacionamento com a terra parece ter produzido um vínculo de saque entre o pequeno produtor de subsistência e o ambiente, o fenômeno da indústria madeireira comercial representando apenas um caso particular desta relação geral.

Contudo, mesmo que se assuma que os argumentos apresentados expliquem, de fato, o porquê dos pequenos agricultores produzirem madeira de construção, isto não evita uma outra pergunta, que é o porquê dos engenhos não a produzirem – ou a produzirem pouco. Em se considerando o cenário aqui desenhado para os pequenos produtores de subsistência, uma explicação óbvia e já insinuada anteriormente seria a de que os senhores de engenho, ao contrário daqueles, não precisavam dessa fonte de renda, já que a utilização de uma mão-de-obra compulsória lhes garantia uma certa autonomia econômica frente ao mercado interno colonial. Além disso – e, talvez, mais importante do que isto –, lembremos que os engenhos eram gigantescas unidades que necessitavam de enormes quantidades de madeiras para a construção e o reparo do maquinário utilizado no processo produtivo: o madeiramento das casas-grandes, das casas de fornalhas, de caldeiras e a de purgar, a fabricação dos eixos da moenda, do rodete e da volandeira, as rodas d'água, entre outros fins. Em outras palavras, a grande demanda interna talvez não permitisse que os engenhos produzissem madeiras para fora, sob pena de esgotamento destes escassos recursos:

[...] enorme variedade de madeiras era extraída das matas pela força dos escravos, às vezes contando com uma junta de bois, sob a orientação dos carpinteiros, que também zelavam para que se observassem as conjunções da Lua para se cortar os paus no mato. [...] o valor dado a estas madeiras, de importância fundamental para o bom funcionamento dos engenhos, explica que houvesse preocupação com a manutenção de seu estoque nas matas. [...]. Práticas predatórias que tornassem esses indivíduos ainda mais afastados e escassos eram combatidas pelos proprietários dos engenhos e rejeitadas pelos carpinteiros encarregados de produzir os equipamentos para a unidade produtora. (CASTRO, 2002:101)

CONCLUSÕES

No estudo do caso do vale do Macacu do final dos setecentos, constatamos que os produtores agrícolas se engajavam na fabricação comercial de madeiras de construção, sobretudo os pequenos agricultores de subsistência. Todavia, este resultado é muito restrito quanto ao seu alcance espacial e temporal, mesmo no âmbito limitado da Capitania do Rio de Janeiro, havendo a necessidade de outros testes correlatos. Além do mais, é preciso considerar a hipótese da excepcionalidade do caso fluminense, defendida por Miller. É preciso, então, verificar a existência dessa relação entre pequenos produtores rurais e indústria florestal em regiões madeireiras de outras capitanias como, por exemplo, Porto Seguro, Belmonte, Una, Olivença, Ilhéus e Cairú, na Bahia; em Alagoas, a Baía de Jaraguá; em Pernambuco, Recife; na Paraíba, a Baía da Traição.

Ironicamente, a própria raridade de fontes do tipo que foi usada neste trabalho – a qual permite que distingamos intervenções ambientais causadas por pequenos produtores, de um lado, e grandes fazendeiros, de outro – pode se tornar um sério obstáculo para uma maior exploração dessa hipótese. De qualquer forma, sabendo-se que o requerimento metropolitano que deu origem ao nosso documento-fonte se dirigiu, a princípio, a todas as capitanias da colônia, é provável que haja outros relatórios, no mesmo formato, para outras áreas; talvez eles estejam depositados, inclusive, no mesmo acervo onde este que ora apresentamos foi encontrado, ou seja, no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. Uma estratégia alternativa, bem mais trabalhosa e talvez menos acurada, seria a análise de inventários post-mortem de produtores rurais de áreas de reconhecida produção madeireira.

Outro ponto importante a ressaltar é que, mesmo que as escalas do estudo permitissem a extrapolação de seu resultado para outros lugares e períodos, isto não indicaria, em hipótese alguma, a inversão da relação de poder destrutivo usualmente admitida entre os dois sistemas agrários coloniais (exportação e subsistência). A seletividade inerente à extração das árvores na indústria madeireira faz dela uma atividade de impacto ambiental extremamente reduzido – ainda mais quando realizada numa pequena intensidade e num contexto de baixíssimo nível tecnológico (CASTRO, 2002:159) – quando comparada à agricultura. E, com efeito, quando consideramos a devastação advinda da "abertura de fazendas" (apropriação agrícola), não são necessárias grandes verificações empíricas para reconhecermos o menor poder destrutivo das lavouras de subsistência em relação às de exportação, dada a grande desigualdade de abrangência espacial existente entre as duas ao longo de toda a época colonial.

Na verdade – e este é o ponto crucial –, uma discussão exclusivamente baseada na questão de "qual sistema devastou mais?" nos parece absolutamente estéril, na medida em que os dois setores nada mais eram do que a expressão cabal das contradições inerentes à formação agrária colonial – e, portanto, estreitamente interdependentes – modelada na tensão entre um sistema de repressão da força de trabalho, que tendia a reproduzir a economia agro-exportadora através da rígida estratificação senhor-escravo, e uma demanda por alimentos e outros insumos criada por essa própria economia, aliada à existência de terras livres. No movimento concreto da sociedade colonial, esta interdependência podia ser observada no processo de alargamento da fronteira econômica: era comum suceder à fase de sertão de floresta tropical – na qual supomos ter tido lugar os sistemas que misturavam agricultura de subsistência e corte seletivo de madeira empreendidos pelos pequenos produtores livres – a apropriação da terra pelos grandes fazendeiros vinculados à economia de exportação, aproveitando-se da "domesticação" do ambiente (a "limpeza" parcial da mata, a construção de vias de acesso) já executada pelos ocupantes precedentes, dinâmica, aliás, não muito diferente daquela protagonizada pelas "frentes pioneiras" e "frentes de expansão" no Brasil contemporâneo.

Uma vez que se consiga demonstrar que a contribuição relativa dos produtores rurais para a alteração florestal realmente variava conforme as formas de apropriação, tornar-se-á muito mais pertinente a questão de como cada setor agrário contribuiu para essa transformação biofísica, ou seja, quais foram as implicações ecológicas de cada sistema produtivo, em decorrência de seu posicionamento no contexto da sociedade colonial. Neste sentido, ao expandirmos nossa concepção acerca do papel ambiental do pequeno produtor – não somente como agricultor, mas também como potencial madeireiro –, abrimos uma nova perspectiva analítica para o estudo de nossa história florestal colonial.

BIBLIOGRAFIA

Recebido em 27/06/2004 – Aceito em 11/10/2004.

NOTAS



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Anexo 1 

  • 1
    . Para posicionamentos contrários, ver PÁDUA (2002) – para as concepções – e CASTRO (2002) – para as práticas.
  • 2
    . Para uma crítica contundente, ver BRANNSTROM (2002).
  • 3
    . Para uma excelente explanação sobre esta abordagem, ver WORSTER (2003).
  • 4
    . No caso agrícola, o desflorestamento representa a "remoção da cobertura florestal de modo que a terra possa ser usada para outros fins" (SAF apud ZIPPERER, 1993:177).
  • 5
    . "Documentos ocasionalmente identificam certas madeiras como
    madeiras de lei pelo nome [...]. ainda assim, surpreendentemente, não é possível encontrar um inventário oficial amplo" (MILLER, 2000:48) [grifo no original]
  • 6
    . Conceito originário da teoria marxista clássica do desenvolvimento agrário (KAUTSKY, 1980).
  • 7
    . Sobre o caráter não-monetário das trocas econômicas no período colonial, ver o ensaio de CALDEIRA (1999), especialmente o capítulo 5.
  • 8
    . O preço da madeira paraense, por exemplo, variava, no ano de 1783, de 1.700 a 1.800 réis a unidade das tábuas e pranchas, sendo as ripas cotadas a 1.500 réis a dúzia (CRUZ, 1957:38). Isto representava, por exemplo, três vezes o preço do alqueire de farinha de mandioca.
  • 9
    . Uma braça eqüivale a 2,2 metros.
  • 10
    . Não há registro da extração de madeira para a geração de energia (lenha e carvão). Não obstante, sabemos que, em algum momento, esta atividade existiu: o mestre de campo do distrito registra, para o ano de 1778, uma produção de 30 barcos de carvão e 100 barcos de lenha (LAVRADIO, 1779:291). Se esta produção, daí até 1797, realmente se extinguiu, não temos condições de verificar. Ainda assim, é deveras interessante notar que o inventário florestal que se encontra no final do documento utilizado neste trabalho só relacionasse aquelas espécies que serviam para
    outros préstimos que não o de lenha, indicando que o uso para fins energéticos era reservado apenas àquelas árvores que não serviam para mais nada (CASTRO, 2002:95). Isto reforça a idéia, já colocada por Dean (1996:210), de que os pequenos produtores não cortavam árvores "vivas" para queimar, até porque a madeira teria de ser estocada para secar – demandando conhecimentos, habilidades e instalações que estes indivíduos não deviam dispor – dando-se preferência aos arbustos e galhos mortos do chão das capoeiras. Dois fatores nos parecem plausíveis para explicar a ausência de uma extração comercial de lenha: primeiro, o fato de que eram as madeiras dos manguezais – e não das florestas –, por queimarem mais lentamente e não deixarem sedimentos de resina, as melhores para alimentar as caldeiras dos engenhos (os principais compradores de lenha) e, segundo, porque a lenha, depois de alguns anos, ia se tornando cada vez mais escasso nas terras dos pequenos produtores, limitando progressivamente a possibilidade de extraí-la comercialmente.
  • 11
    . Isto ocorreu por causa do baixo grau de confiabilidade dos dados contidos na variável "terras que possuem": a forma de representação adotada na tabela – na qual o valor "zero" (ausência do atributo) é representado pelo não preenchimento da célula – deixa margem para questionarmos se indivíduos que,
    a priori, deveriam ter terras, de fato não as possuíam ou se, simplesmente, não havia informações.
  • *
    Agradeço a Maurício Abreu, José Augusto Pádua, Judith Fiszon e ao revisor anônimo de
    Ambiente & Sociedade, pelas oportunas sugestões.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Set 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 2004

    Histórico

    • Aceito
      11 Out 2004
    • Recebido
      27 Jun 2004
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