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Dilemas da civilização tecnológica

RESENHA BOOK REVIEW

Pedro Peixoto Ferreira

Doutorando em Ciências Sociais (IFCH/UNICAMP), Integrante do grupo de pesquisa CteMe e Bolsista da FAPESP

Dilemas da Civilização Tecnológica

Hermínio Martins & José Luis Garcia (Coords.).

Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2003, 378p.

A coletânea de artigos Dilemas da Civilização Tecnológica, publicada em 2003 pela Imprensa de Ciências Sociais do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e coordenada por Hermínio Martins e José Luís Garcia (com a colaboração de Helena Mateus Jerónimo), é a versão final em forma escrita do colóquio Ciência, Natureza e Tecnoética, realizado em setembro de 2001 no Centro Cultural de Cascais (Portugal). O livro é uma seleção de 14 trabalhos apresentados naquele colóquio, divididos em quatro grandes "dilemas": (1) Dilemas Teóricos, com textos de Hermínio Martins, Langdon Winner, José Luís Garcia e José López Cerezo; (2) Dilemas da Condição Humana, com textos de Laymert Garcia dos Santos, Manuel Silvério Marques e José Esteban Castro; (3) Dilemas Éticos, com textos de Maria Manuel Araújo Jorge, Helena Mateus Jerônimo e Rafael Marques; e (4) Dilemas do Ciberespaço e da Globalização, com textos de Filipa Subtil, Chris Horrocks, José Afonso Furtado e Viriato Soromenho-Marques.

O livro é um sopro de ar fresco nas discussões cada vez mais elaboradas e urgentes de certos ramos das Ciências Humanas e Sociais contemporâneas preocupados com as transformações e rupturas provocadas pela complexa e problemática sinergia entre a lógica do capitalismo global e o progresso tecnocientífico exponencial. A presença de autores sediados em países como Inglaterra, Espanha, Estados Unidos, Brasil e em diferentes instituições de Portugal garante ao livro um amplo alcance temático, além de possibilitar a contraposição de saberes e instâncias de produção de conhecimento normalmente separados por fronteiras culturais, políticas, econômicas e... tecnológicas.

Estudos teóricos são o forte deste livro, e os campos da ética e da teoria política são, sem dúvida, os mais privilegiados. Alguns exemplos disso são a necessidade de se questionar a "autonomia" tacitamente aceita da tecnologia (Langdon Winner), de se transformar a "sociedade de conhecimento" em uma "sociedade de sabedoria" (José L. Cerezo), de se desenvolver uma "teoria ética da reciprocidade" como contraponto à "racionalidade moral" e à "utopia" do "equilíbrio" e da "perfeição" (Rafael Marques) e de se "retomar o fio perdido da Revolução federal ocorrida [...] no final do século XVIII" (p.369) como condição de possibilidade da cidadania no mundo contemporâneo (Viriato Soromenho-Marques).

O livro traz também dois estudos bibliográficos – um sobre os conceitos da literatura médica antiga e suas múltiplas implicações (Manuel S. Marques) e outro sobre as relações entre Ciência e Religião na revista jesuíta Brotéria (Helena M. Jerónimo) – e duas revisitações críticas de autores da passagem do século XIX para o XX – Georg Simmel e Harold Innis (José L. Garcia e Filipa Subtil, respectivamente) revelando o pioneirismo destes autores na reflexão sobre temas contemporâneos, como tecnologia e globalização, e a influência pouco reconhecida que exerceram em pensadores como Max Weber (no caso de Simmel) e Marshall McLuhan (no caso de Innis) –, além de temas mais específicos, como os aspectos epistemológicos das relações de aproximação e distanciamento entre Ciência e Religião (Maria M.A. Jorge; que é, curiosamente, um dos "objetos" de estudo do texto que se sucede ao seu, de Helena M. Jerónimo) e uma crítica bem fundamentada a um certo "neomcluhanismo" que adotaria anacronicamente e de maneira superficial o autor canadense como "guru", "profeta" ou "messias" da cibercultura (Chris Horrocks).

A orientação majoritariamente teórica dos textos só é alterada nos textos de José E. Castro, que traz exemplos contemporâneos (principalmente o México) em sua reflexão sobre a gestão tecnocientífica dos recursos hídricos na sociedade capitalista contemporânea, e José A. Furtado, que desvenda as controvérsias técnicas, políticas, econômicas e estéticas envolvidas no processo de edição digital de obras literárias.

Numa coletânea temática como esta, a bibliografia dos textos é já, em si, uma fonte rica de informação, pois evidencia, para além das referências idiossincráticas de cada autor, certas macrotendências teóricas e referências gerais. Vale apontar, por exemplo, a presença de diversas referências a sites da Internet (endereços "http://...") em 4 dos 14 textos, o que demonstra a aparentemente inevitável transformação, se não de fato pelo menos de direito, do texto em hipertexto. Por outro lado, nota-se a presença significativa de referências a Lewis Mumford, Carl Mitcham e Ulrich Beck, e mais ainda a Jacques Ellul, Hanna Arendt e Manuel Castells, o que de alguma forma sugere a relevância que estes autores (alguns já bastante datados, outros não) estão tendo para as reflexões atuais sobre a "civilização tecnológica". Outro fato relevante trazido à luz pelas bibliografias é a referência, em mais de um texto, a três autores presentes no próprio livro (Langdon Winner, José L. Garcia e Hermínio Martins), revelando assim ressonâncias multidimensionais entre os trabalhos ali contidos.

No entanto, de todas estas referências e ressonâncias, é sem dúvida o trabalho de Hermínio Martins o mais citado do livro: seu nome aparece, na maior parte das vezes com mais de uma entrada, na bibliografia de 6 textos da coletânea. Mais do que consolidar Martins como uma das principais referências no pensamento social português contemporâneo voltado às questões relacionadas à tecnociência, a sua forte presença em diferentes textos da coletânea confirma aquilo que uma primeira leitura deste volume já indica: quando se trata de pensar sobre as implicações socio-antropológicas da tecnologia, há visivelmente um descompasso qualitativo1 1 . Que no caso de Martins é também quantitativo, visto que numa coletânea onde os textos têm, em média 22 páginas cada, o dele tem 58. entre textos como os de Martins e o do sociólogo brasileiro Laymert Garcia dos Santos (os únicos ainda não citados aqui) e todos os outros. Mas em que consiste este descompasso?

A opção pelo "dilema" como princípio norteador desta coletânea, se por um lado é reveladora dos "sentidos plurais relativos aos avanços científico-tecnológicos em curso" e da "renovação da preocupação antropológica pelo lugar do homem no mundo" (como dizem os coordenadores na Introdução do livro; p.14), por outro revela também certos limites da própria teoria social contemporânea. A idéia de "dilema", de uma opção difícil e quiçá impossível, poderia ser interpretada como uma variação do conceito batesoniano de double-bind: a necessidade de assimilar duas informações contraditórias, capaz de provocar, em um extremo, uma cisão da psique (como no caso da esquizofrenia clínica), e no outro extremo, um salto para um novo nível de existência, mais amplo, capaz de transformar a contradição em nova informação. Não se trata de dialética pois não há síntese, mas sim resolução contingente e metaestável.

Assim como o double-bind pode ser uma experiência dilacerante no nível da tensão gerada pelas informações discordantes mas também uma experiência libertadora no nível da resolução gerada pela nova informação, os "dilemas da civilização tecnológica" poderiam muito bem ser "resolvidos" através de uma atenção aguda à nova informação que se produz, para usar ainda os termos batesonianos, à "diferença que faz uma diferença". Confundir esta resolução com "otimismo tecnológico", no entanto, seria perder justamente a principal diferença entre os textos de Martins e Garcia dos Santos e os outros. E qual é esta diferença?

Poderíamos dizer, afinal, que esta diferença é o fato de que apenas estes dois autores abordaram a questão premente do "pós-humano". Não se trata de preciosismo conceitual, tampouco de moda acadêmica, mas sim de atenção aguda ao experimentum humanum em curso (para usar o jargão mobilizado por Martins). Evidentemente, os dois autores abordam a questão de maneira bastante diversa, tanto no recorte teórico e na linguagem quanto na atitude geral perante o tema (Martins parece manter um distanciamento teórico muito maior do que Garcia dos Santos). Mas além das evidentes diferenças entre os textos, salientam-se algumas linhas gerais em comum em suas argumentações. Tanto Martins, com um impressionante estudo histórico, conceitual e bibliográfico sobre as idéias e experiências de "aceleração" e "progresso" a partir das teorias demográficas do final do século XVIII, quanto Garcia dos Santos, com uma aguçada análise de alguns textos recentes capazes de esclarecer as diferentes etapas do "desaparecimento do humano", encerram seus textos no limiar do pós-humano, daquilo que chamam, usando uma palavra "nativa" dos próprios agentes deste processo, de "singularidade".

O que se percebe nitidamente ao final da leitura deste livro é que existem duas linhas de investigação muito distintas no estudo de nossa "civilização tecnológica": uma voltada para o ser (como pode o "ser humano" lidar com os "dilemas" contemporâneos) e outra para o devir (como é que estes dilemas estão efetivamente produzindo um pós-humano). A escolha de cada uma delas dependerá das questões que se deseja colocar à nossa "civilização tecnológica". E como nota Garcia dos Santos nas primeiras frases de seu texto (p.149): "O referencial de boa parte daqueles que esperam da bioética uma resposta às 'questões alarmantes' trazidas pelo progresso da ciência e da tecnologia contemporâneas é o do humanismo moderno. Seria o caso, contudo, de indagar se o avanço da tecnociência já não tornou obsoletos os critérios que balizavam a concepção moderna do homem."

  • 1
    . Que no caso de Martins é também quantitativo, visto que numa coletânea onde os textos têm, em média 22 páginas cada, o dele tem 58.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Set 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 2004
    ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
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