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O conceito de bacia de drenagem internacional no contexto do tratado de cooperação amazônica e a questão hídrica na região

The concept fo international drainagem basin in the context of amazon cooperation treaty and the water question on that region

Resumos

O trabalho visa analisar a tutela dos recursos hídricos amazônicos à luz do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA). Há que se fazer uma releitura dos artigos IV e V do TCA, tendo-se em vista a teoria da bacia de drenagem internacional, estabelecida pela International Law Association, em 1966, mas somente incorporada ao Direito Internacional, de maneira ampla, através da Convenção sobre a Utilização dos Rios Internacionais para Fins Distintos da Navegação (ONU, 1997).

Tratado de Cooperação Amazônica; recursos hídricos; direito internacional


The purpose of this paper is to analyze the guardianship of the Amazonian water resources in the Amazon Cooperation Treaty. Its important to review the Treaty's 4th and 5th articles , considering the international drainage basin theory, created by the International Law Association, in 1966, widely adopted by international law with the Convention on the Law of the Non-navigational Uses of International Watercourses (UN, 1997).

Amazon Cooperation Treaty; water resources; international law


ARTIGOS

O conceito de bacia de drenagem internacional no contexto do tratado de cooperação amazônica e a questão hídrica na região* * Trabalho apresentado em painel no II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ambiente e Sociedade (ANPPAS), realizado entre 26 e 29 de maio de 2004, na cidade de Indaiatuba, SP.

The concept fo international drainagem basin in the context of amazon cooperation treaty and the water question on that region

Armando Gallo Yahn Filho

Advogado. Mestrando em Relações Internacionais pelo Programa "San Tiago Dantas" (UNESP-UNICAMP-PUC/SP). e-mail: agyf@directnet.com.br

RESUMO

O trabalho visa analisar a tutela dos recursos hídricos amazônicos à luz do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA). Há que se fazer uma releitura dos artigos IV e V do TCA, tendo-se em vista a teoria da bacia de drenagem internacional, estabelecida pela International Law Association, em 1966, mas somente incorporada ao Direito Internacional, de maneira ampla, através da Convenção sobre a Utilização dos Rios Internacionais para Fins Distintos da Navegação (ONU, 1997).

Palavras-chave: Tratado de Cooperação Amazônica, recursos hídricos, direito internacional.

ABSTRACT

The purpose of this paper is to analyze the guardianship of the Amazonian water resources in the Amazon Cooperation Treaty. Its important to review the Treaty's 4th and 5th articles , considering the international drainage basin theory, created by the International Law Association, in 1966, widely adopted by international law with the Convention on the Law of the Non-navigational Uses of International Watercourses (UN, 1997).

Key words: Amazon Cooperation Treaty, water resources, international law.

INTRODUÇÃO

A Bacia Amazônica é o maior sistema fluvial do mundo, com 6.400.000 km2 de extensão, compartilhado entre nove países.

Sua riqueza em biodiversidade, seu potencial energético (petróleo e hidreletricidade) e a sua localização geográfica (região equatorial, estendendo-se dos Andes ao Oceano Atlântico) sempre despertaram os interesses de cientistas, empresários e governantes de todo o mundo.

O medo da internacionalização e o interesse dos países amazônicos em desenvolver economicamente suas respectivas porções da bacia resultaram na assinatura do Tratado de Cooperação Amazônica, em 3 de julho de 1978, por apenas oito dos nove países da região: Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela. Tendo como principal objetivo afastar a ameaça da internacionalização, reafirmando as soberanias nacionais dos países sul-americanos sobre a região, o Tratado excluiu a Guiana Francesa, que, geograficamente, está em território amazônico.

Este aspecto político do tratado pode ser compreendido tendo-se em vista o fato de ser um regime internacional. Contudo, uma análise jurídica mostra-o ambíguo e em discordância com o Direito Internacional, de modo que a cooperação acaba sendo preterida em favor dos interesses individuais de cada nação.

Neste trabalho, procuramos fazer uma análise jurídica do Tratado de Cooperação Amazônica, no que tange à utilização dos recursos hídricos transfronteiriços, levando-se em conta o conceito de bacia de drenagem internacional.

Nosso objetivo é demonstrar que o Pacto Amazônico não implicou numa verdadeira cooperação, como entendida pelo Direito Internacional, e chamar a atenção para os problemas decorrentes da incompatibilidade entre a análise do Tratado como um regime internacional e sua análise jurídica.

1. BACIA DE DRENAGEM INTERNACIONAL: HISTÓRICO E CONCEITO

Em 1815, no Congresso de Viena, definiram-se as primeiras regras sobre a utilização dos rios internacionais. Naquela ocasião, ficou estabelecido que os rios poderiam ser contíguos, quando servem de fronteira entre dois ou mais Estados, sucessivos, quando atravessam a fronteira entre dois Estados ou, ainda, contíguos e sucessivos ao mesmo tempo (SILVA, 1995: 510).

Esta teoria clássica deve ser entendida no contexto histórico de afirmação dos Estados nacionais, que se constituíam sob a égide do princípio da soberania territorial. Assim sendo, enquanto um curso d 'água estivesse em território nacional, ainda que posteriormente passasse a correr em outro Estado, o governo nacional teria total soberania sobre ele, cabendo-lhe utilizá-lo da forma que achasse mais conveniente.

Os Tratados de Versalhes, em 1919, que regulamentaram a navegação dos rios Reno e Danúbio, tornando-os "completamente internacionalizados", marcam uma nova fase do Direito Fluvial Internacional, mas com direitos restritos à navegação (SOARES, 2001: 107-108).

No séc. XX, um maior desenvolvimento do Direito Internacional, aliado a uma preocupação ambiental, traz à tona uma discussão a respeito dos recursos naturais compartilhados. No que tange à água, um marco nesse debate foi a 52ª Conferência da International Law Association, em 1966, realizada na cidade de Helsinque, Finlândia. Nela, foram discutidas e aprovadas as chamadas Regras de Helsinque, que estabeleceram o conceito de bacia de drenagem internacional.

Segundo aquele documento, "uma bacia de drenagem internacional é uma área geográfica que cobre dois ou mais Estados, determinada pelos limites fixados pelos divisores de água, inclusive as águas de superfície e as subterrâneas, que desembocam num ponto final comum". Por este conceito, não apenas o rio é internacional, mas sim, toda a bacia da qual ele faz parte. Destarte, um curso d 'água que esteja completamente em território nacional, mas pertença a uma bacia internacional, também será considerado como tal. Este conceito leva em conta, também, todo o ciclo d 'água.

Em 1997, após anos de estudos da Comissão de Direito Internacional da ONU, foi aprovada, em Assembléia Geral, a Convenção Internacional sobre a Utilização de Rios Internacionais para Fins Diferentes da Navegação (ONU, 1997), que adota o conceito de bacia de drenagem internacional.

2. O TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA COMO REGIME INTERNACIONAL

Vista como região de fundamental importância econômica, geopolítica e estratégica, a Amazônia foi motivo de atenção dos militares brasileiros após o golpe de 1964.

A doutrina das fronteiras vivas e o receio da internacionalização da Amazônia correspondem, assim, no plano estratégico, à descoberta de importantes províncias minerais - no rio Trombetas e em Carajás, por exemplo - e às expectativas do potencial hidrelétrico da região, no plano econômico. (MONTENEGRO, 2000: 358)

Somando-se a necessidade de desenvolver a região à ameaça da internacionalização, o governo brasileiro deu início à sua ocupação, no final da década de 1960 e começo da década de 1970. Para tanto, foram criados o Programa de Integração Nacional (PIN) e a POLOAMAZÔNIA. Estas iniciativas foram vistas com preocupação pelos nossos vizinhos. (MONTENEGRO, 2000: 359)

A conclusão do TCA se explica pela vontade comum dos oito Estados interessados em reafirmar sua soberania contra as cobiças exteriores. Mas, é também o resultado de uma tomada de posse efetiva que se cristaliza, cada vez mais rápido, após várias décadas, o que lhes permitiram chegar rapidamente à assinatura do tratado. (CAUBET, 1984: 804).

O Brasil sempre foi visto como um país que queria realizar seu "sonho de expansão" sub-imperialista na América do Sul e, aos olhos dos países andinos, o Pacto Amazônico parecia uma estratégia brasileira de oposição ao Grupo Andino. (CARRASCO, 1979: 82). Além disso, para os estrategistas peruanos, havia uma preocupação quanto aos reais interesses do Brasil, especialmente no que diz respeito aos recursos encontrados em território peruano, como petróleo.

Outrossim, há que se levar em conta que, a despeito da assinatura do Tratado da Bacia do Prata (1969), o Brasil passou a década de 1970 divergindo com a Argentina quanto à construção de Itaipu, sendo natural que os demais países amazônicos tivessem receio do grau de comprometimento do Brasil com o TCA.

O extrato abaixo ilustra a desconfiança dos países sul-americanos com relação ao Brasil:

A missão do Ministério das Relações Exteriores brasileiro torna-se muito mais difícil, à medida que subsistem ainda no continente os velhos temores de nossos vizinhos com relação às eventuais ambições imperialistas do Brasil, fantasma sempre presente às mesas de negociações, e que por tantas vezes dificultou entendimentos importantes para a cooperação e o desenvolvimento do continente. ("Pacto Amazônico...", 1978: 27)

O contexto da década de 1970 - Guerra do Vietnã, Crise do Petróleo, recessão econômica global - obriga os países a se diversificarem, e começa a haver uma maior percepção da necessidade de uma base cooperativa entre as nações. Nas relações internacionais, surge a teoria da interdependência, baseada na compreensão de que os países se relacionam de formas diversas, a fim de conseguir seus objetivos, e que o poder militar, por si só, não é suficiente para solucionar todos os problemas domésticos. Para os teóricos da interdependência, a cooperação seria a melhor forma das nações alcançarem seus interesses, estabelecendo "novas estruturas de relações (os regimes internacionais), onde a ação dos Estados ficaria reduzida e onde, numa visão grociana ou kantiana, a capacidade de se promoverem situações de vantagens multilaterais, eclipsando as concepções de jogos de soma zero, acabaria prevalecendo de forma definitiva"(VIGEVANI, 1994: 15).

É neste contexto que o Brasil se volta para os países do terceiro mundo, procurando estabelecer relações cooperativas com seus vizinhos sul-americanos. Isto implica numa diminuição da desconfiança que havia quanto às intenções expansionistas brasileiras.

Em 3 de julho de 1978, o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) foi assinado por Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela. No Brasil, ele foi promulgado pelo Decreto n º 85.050, de 18/08/1990.

Concebido como um regime internacional, por tratar-se de "um conjunto de princípios, normas, regras de procedimentos de tomadas de decisão, explícitos ou implícitos, em relação aos quais convergem as expectativas dos atores" (KRASNER, 1983: 2), destinava-se a:

a) reforçar a autonomia de cada uma das partes signatárias em relação ao desenvolvimento de seus respectivos territórios amazônicos;

b) promover a utilização racional dos recursos naturais desses territórios, de modo a preservar o equilíbrio entre as necessidades do desenvolvimento e a conservação do meio ambiente;

c) favorecer a troca de informações entre as partes signatárias no que tange às iniciativas nacionais de desenvolvimento dos referidos territórios. (MONTENEGRO, 2000: 356).

Esta análise do Tratado de Cooperação Amazônica como um regime internacional "se vincula à interpretação da política externa do Brasil por meio dos aspectos fundamentais do regime, que não se expressam por meio da sistematização de artigos, mas da interpretação do alcance e da hierarquia dos objetivos do mesmo em função das prioridades dos atores, expressas no processo de negociação" (MONTENEGRO, 2000: 368).

Como conseqüência disso, uma interpretação jurídica do TCA mostra uma ambigüidade nos seus artigos, fruto da necessidade de atender às expectativas de todos os atores, sem deixar de levar em consideração seus interesses individuais, bem como de abrir o leque para futuras definições sobre os meios de cooperação. Nas palavras de SILVEIRA (1978: 27-28), Ministro das Relações Exteriores à época da assinatura do TCA:

Nesse sentido, a primeira meta do Tratado é criar um mecanismo que sistematize e regule o que já existe de fato em matéria de cooperação regional na Amazônia e estimule a abertura de novas avenidas para a ação conjunta. (...) Não existem praticamente limitações a essa colaboração e qualquer inventário que se realize das oportunidades ou projetos possíveis terá caráter exemplificativo. Estruturado em torno do maior eixo fluvial do mundo, o sistema terá seu conteúdo definido pelos problemas comuns (...).

Pretendemos ressaltar as ambigüidades existentes no texto do Tratado e apontar para a necessidade de se interpretar o TCA em conformidade com o Direito Internacional, especificamente no que tange aos recursos hídricos transfronteiriços.

3. TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA, DIREITO INTERNACIONAL E RECURSOS HÍDRICOS

A Bacia Amazônica constitui o maior sistema hidrográfico do mundo, com aproximadamente 6.400.000 km2 (valor mais aceito) e é a maior reserva de água doce do planeta. Considerando-se as partes declaradas por cada país da bacia como sendo sua porção amazônica, a área total ultrapassa os 7.000.000 Km2. O principal sistema do Rio Amazonas, o eixo Amazonas-Solimões-Ucayali chega a 6.762 km de comprimento. Ademais, são mais de 1.000 afluentes principais que drenam a bacia desde os Andes, a Guiana e o planalto brasileiro, formando duas direções principais de escoamento: Norte-Sul / Sul-Norte e Oeste-Leste. (TCA, 1992: 26)

Para CALASANS (1996: 342), "contrariamente ao Tratado do Prata de 1969, a abordagem que foi feita da bacia amazônica não foi uma abordagem unitária do conjunto da bacia, mas sim, fragmentada", [sendo] "questão de integração do território amazônico no interior do território de cada Parte Contratante e não da integração da bacia como tal".

Para o autor supra citado, há uma contradição entre os artigos II1 e XXVII,2 na medida em que o primeiro abre o tratado para a adesão de Estados que não fazem parte da bacia, mas cujo território esteja ligado a ela - geográfica, ecológica ou economicamente - e o segundo fecha a possibilidade de adesão a terceiros. Assim, conclui ele que havia um nítido interesse de excluir a França, o que caracteriza uma preocupação política e estratégica acima da preocupação de tratar a bacia como uma unidade geográfica, reflexo da própria visão individualista dos países-membros. (CALASANS, 1996: 343)

Importante salientar que CALASANS vale-se do conceito de bacia de drenagem internacional, cuja definição abarca todo o ciclo d 'água, estendendo sua definição para todo o território que, de alguma forma, esteja vinculado à rede hidrográfica internacional. Assim sendo, ainda que a Guiana Francesa e o Suriname não estejam, a princípio, na Bacia Amazônica, o fato de serem países do domínio amazônico - fazendo parte de um mesmo ecossistema - vincula-os à bacia de drenagem internacional amazônica, do que se pode extrair que a exclusão da Guiana Francesa do TCA representa um retrocesso, afastando-se da moderna doutrina jurídica sobre rios internacionais.

O princípio fundamental do regime de cooperação amazônica, para o qual convergem as expectativas dos países signatários, é o da soberania nacional, com vistas a enfrentar a ameaça da internacionalização da Amazônia, assegurando seu desenvolvimento e sua ocupação, que deveriam ser realizados por meio da cooperação.

No entendimento de AMAYO ZEVALLOS (1993: 129), "a importância do TCA reside no reconhecimento da soberania de cada um dos países signatários sobre a parte que lhe corresponde da Amazônia - a isto se chama regionalização, como conceito oposto à internacionalização - permitindo também discussão e tomada de posição sobre a problemática do conjunto".

Este entendimento está explícito no art IV do TCA:

Artigo IV - As Partes Contratantes proclamam que o uso e aproveitamento exclusivo dos recursos naturais em seus respectivos territórios são direitos inerentes à soberania do Estado e seu exercício não terá outras restrições senão aquelas que resultem do Direito Internacional.

Em que pese a correta interpretação de AMAYO no que se refere ao reconhecimento da soberania dos países-membros, discordo de sua visão otimista quanto aos reais interesses de regionalização. Não obstante os processos de regionalização se darem com respeito à soberania dos Estados, julgo ser o texto do Tratado Amazônico sutil na defesa de interesses particulares de cada Parte, resultado do trabalho da diplomacia brasileira, a fim de garantir a aceitação do texto final por parte dos demais países.

Um cuidado muito especial tem sido tomado, visando uma definição precisa das questões relativas à soberania de cada uma das nações envolvidas sobre seu próprio território. Isso é compreensível, tendo-se em vista algumas teses que, de tempos em tempos, circulam na Europa e nos Estados Unidos, no sentido de uma internacionalização da Amazônia. ("Pacto Amazônico...", 1978: 29)

Ou seja, mais interessava afastar a ameaça da internacionalização do que firmar as bases de uma verdadeira cooperação regional, naquele momento. Provavelmente, se não houvesse tal ameaça, a proposta brasileira do tratado dificilmente seria aceita.

O Pacto Amazônico foi assinado essencialmente por razões políticas; não são o espírito de colaboração nem a cooperação que motivam os países da região, (...) mas, acima de tudo, a intenção de reafirmar a soberania de cada um sobre seu território amazônico, impedindo, assim, qualquer tentativa de internacionalização. (MEDINA, 1983 apud CAUBET, 1984: 812)

Vejamos alguns motivos que reforçam a veracidade desta hipótese.

Em 1978, quando da assinatura do TCA, ainda não vigia a Convenção sobre Utilização dos Rios Internacionais para Fins Distintos da Navegação (ONU, 1997) e o Brasil se opunha ao texto em elaboração na Comissão de Direito Internacional, que adotava o conceito de bacia de drenagem internacional e a soberania múltipla sobre os cursos d 'água transfronteiriços.

A oposição brasileira se fundamentava no fato de que a Carta Magna de 1967 estabelecia em seu art. 4º, § 2 º que o patrimônio da União "compreende as vias de água que servem de fronteira com outros países ou que se estendem para território estrangeiro" (CALASANS, 1996, 148), ao que corresponde uma soberania plena sobre seus recursos hídricos.

A Constituição de 1988, em seu art. 20, III,3 manteve o mesmo texto, acrescentando como bens da União as águas que provenham de outros territórios.

Com esse argumento, o Brasil alimentava sua divergência com a Argentina em relação a Itaipu. Este fato, por si só, já demonstra uma não disposição brasileira em cooperar.

A mesma compreensão da importância estratégica dos seus rios foi um fator de peso para que o Peru aceitasse a proposta do TCA. Afinal, os militares peruanos sabiam do poder de barganha que tinham, pelo fato de controlarem as cabeceiras dos principais rios formadores do Amazonas. (MONTENEGRO, 2000, 371).

O projeto do TCA reproduzia, na íntegra, as normas de direito fluvial que vigem na Bacia do Prata, denominadas Declaração de Assunção (1971), segundo as quais:

1) Nos cursos d 'água internacionais contíguos, sujeitos à soberania simultânea de dois Estados, um acordo bilateral prévio deve ser concluído entre os Estados ribeirinhos antes que qualquer utilização das águas seja feita.

2) Nos cursos d 'água internacionais sucessivos, que não estão sujeitos à soberania simultânea de dois Estados, cada Estado pode utilizar as águas conforme suas necessidades, sob condição de não causar prejuízos consideráveis a qualquer outro Estado da bacia. (apud CAUBET, 1984: 815)

Essas normas foram suprimidas do texto final, representando um revés para o Brasil e uma vontade de não transpor as controvérsias da Bacia do Prata para a Amazônica.

Se ao Brasil é vantajosa a situação na Bacia do Prata, onde os principais rios nascem em território brasileiro, já na Bacia Amazônica, dá-se o inverso. Isso obrigou o país a aceitar uma maior participação do governo peruano na elaboração do TCA.

Conforme nos ensina LE PRESTRE (2000: 443):

Num contexto de partilha dos recursos de água doce, os Estados à montante possuem uma vantagem certa sobre os Estados à jusante. Seu interesse em cooperar é, por conseguinte, limitado, exceto quando um dos seguintes fatores está presente: (i) o Estado à jusante possui uma potência militar muito maior, como no caso do Egito diante do Sudão e da Etiópia ou do Iraque - antes da Guerra do Golfo - diante da Síria; (ii) o Estado à montante depende do Estado à jusante em matéria de transporte fluvial; (iii) os benefícios adicionais da cooperação são claros - jogo é de soma positiva; (iv) a cooperação se inscreve num conjunto de relações múltiplas e integradas, como no caso dos cursos de água da União Européia.

Ao Peru interessava o acesso à Amazônia ocidental, bem como afastar a ameaça da internacionalização. Além disso, "o baixo grau de comprometimento do TCA, bem como a regra da unanimidade nele contida, contribuíram também para convencer os formuladores de política peruanos de que o custo de ficar de fora do acordo poderia superar o de fazer parte dele" (MONTENEGRO, 2000: 371).

Prova deste baixo grau de comprometimento é o artigo V do TCA, que apesar de em seu texto fazer referência a conceitos de gestão de recursos hídricos, como o uso múltiplo da água e seu uso racional, nada mais era do que uma norma programática, submetida ao princípio da soberania absoluta dos Estados-membros, haja vista o disposto no artigo IV (supra) do Tratado.

Artigo V - Tendo presentes a importância e a multiplicidade de funções que os rios amazônicos desempenham no processo de desenvolvimento econômico e social da região, as Partes Contratantes procurarão empenhar esforços com vistas à utilização racional dos recursos hídricos. (grifo nosso)

Ainda que o TCA evoque o Direito Internacional como restrição ao exercício pleno da soberania, no que tange aos recursos hídricos, a inexistência da Convenção sobre a Utilização dos Cursos d 'Água para fins Distintos da Navegação, o nosso texto constitucional e a supressão das normas de direito fluvial supra citadas (Declaração de Assunção) não impunham ao Brasil, nem aos outros países, qualquer restrição.

A ausência da noção de bacia de drenagem internacional, privilegiando-se o aspecto político, no que tange à adesão ao tratado, bem como a falta de uma definição de ações concretas para sua consecução, faz do TCA um instrumento pouco eficiente para a cooperação, no que concerne aos recursos hídricos.

Isso pode trazer problemas para o Brasil, que, como já vimos, está em uma situação desprivilegiada por não ter o controle das cabeceiras dos principais formadores do Amazonas.

Como se sabe, as hidrelétricas são as fontes de energia mais comuns na América do Sul. A situação é preocupante, pois são "979 barragens de médio e grande porte", [do que] "resulta lógico concluir que, nestes países, em muitas de suas principais bacias fluviais, o rio mestre e afluentes importantes foram barrados, e que alguns trechos de rios quase inteiros foram praticamente monopolizados para a produção de eletricidade""(SEVÁ F º, 2002: 4).

Se considerarmos o total de hidrelétricas cadastradas pelo WCD 2000 como grandes barragens, na Bolívia (06 usinas), no Peru (43 usinas), Equador (11 usinas), e Colômbia (94 usinas), é provável que, conforme o país, uma boa parte, metade, ou quase todas estas barragens estejam localizadas nas vertentes orientais dos Andes onde se formam muitos rios amazônicos. (SEVÁ F º, 2002: 4)

Esta situação pode ainda não ser comprometedora, mas serve de alerta para uma possível diminuição da vazão dos rios amazônicos, que chegam em território brasileiro após terem percorrido o melhor trecho para o aproveitamento hidrelétrico.

Para evitarmos incidentes diplomáticos entre os países do Tratado de Cooperação Amazônica e para que haja um jogo de soma positiva entre eles, é preciso que se compreenda a bacia como uma unidade geográfica, de abrangência internacional, a fim de que se possa estabelecer políticas coordenadas de gestão e atribuir responsabilidade jurídica aos Estados ribeirinhos pelos danos causados aos demais países da bacia.

Portanto, passados vinte e cinco anos da assinatura do Tratado de Cooperação Amazônica, e considerando os avanços no Direito Internacional e nas relações entre os Estados amazônicos, há que se entender o artigo IV do TCA de uma nova maneira, tornando o artigo V uma norma de eficácia plena. Para isso, seria preciso fazer uma leitura conjunta do TCA com a Convenção sobre a Utilização dos Rios Internacionais para Fins Distintos da Navegação (ONU, 1997), que adota o conceito de bacia de drenagem internacional e elenca os direitos e deveres dos Estados que compartilham de uma mesma bacia. No entanto, até agora, entre os países do TCA, somente a Venezuela aderiu à Convenção da ONU, o que lhe confere legitimidade para, talvez, iniciar este processo de reavaliação do Pacto Amazônico.

O conceito de soberania clássico não serve mais a um mundo cada vez mais interdependente. E, no que tange aos problemas ambientais, a soberania compartilhada é a forma mais adequada de se promover a cooperação entre os Estados na solução de problemas. Conforme nos ensina LE PRESTRE (2000: 127), "no referente aos problemas ambientais, que contêm efeitos transfronteiriços, os Estados não podem explorar os recursos naturais sem ter em conta seus vizinhos".

A utilização racional dos recursos hídricos não pode ser entendida como uma questão de conveniência para cada um dos países que compartilham dos cursos d 'água de uma bacia. Implica, sim, no uso dos recursos hídricos, atendendo às suas múltiplas funções, e com respeito ao direito de uso daqueles que estão à jusante do curso d 'água.

O projeto de Integração da Infraestrutura Regional da América do Sul (IIRSA), que prevê a integração física dos doze países do continente, através de eixos intermodais, visando o desenvolvimento econômico da região e tornando-a mais competitiva, pode ser a chance de consolidar o TCA, resgatando as propostas que ficaram apenas nos discursos oficiais do final da década de 1970 e transformando-o numa organização internacional, com normas de direito comunitário.

Um dos eixos intermodais é justamente o do Amazonas, que pretende integrar os países da região no sentido Leste-Oeste. Neste eixo, concentram-se os países em cujos territórios estão as nascentes do Rio Amazonas e dos seus principais tributários.

Trata-se de um dos pilares que unem a Comunidade Andina ao MERCOSUL, e o organismo oficial peruano de promoção do investimento já iniciou seus trabalhos para a concessão do ramal norte do Eixo Intermodal do Amazonas. (BELAUNDE, 2003: 94)

4. CONCLUSÃO

Não restam dúvidas de que a porção amazônica de cada país signatário do TCA representa uma riqueza nacional muito grande. Também, não se pode deixar de considerar que o desenvolvimento de alguns deles passa, necessariamente, por uma exploração dos seus recursos naturais, incluso os recursos hídricos.

Contudo, por se tratar de uma bacia de drenagem internacional, o melhor aproveitamento das potencialidades da região só será possível com a cooperação.

O Tratado de Cooperação Amazônica, concebido como um regime internacional, apontou apenas diretrizes gerais, sem especificar os deveres de cada Estado signatário e as ações concretas para atingir sua finalidade.

Compreendê-lo de maneira sistêmica, em consonância com o Direito Internacional, é fundamental para que se estabeleçam relações de cooperação, especialmente no que tange às questões ambientais de caráter transfronteiriço.

A água é um recurso natural compartilhado e, por isso, sua gestão, no plano internacional, deve ser submetida a um regime de soberania múltipla, adotando-se o conceito de bacia de drenagem internacional como princípio básico de planejamento.

Afastada a ameaça da internacionalização, urge que os países amazônicos estabeleçam planos de ações coordenadas, com vistas ao desenvolvimento econômico e social da região, dando eficácia plena ao Tratado de Cooperação Amazônica.

Recebido em 10/2004 - Aceito em 02/2005

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  • *
    Trabalho apresentado em painel no II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ambiente e Sociedade (ANPPAS), realizado entre 26 e 29 de maio de 2004, na cidade de Indaiatuba, SP.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Nov 2005
    • Data do Fascículo
      Jan 2005

    Histórico

    • Recebido
      Out 2004
    • Aceito
      Fev 2005
    ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
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