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Ciências em trânsito, objetos complexos: práticas e discursos socioambientais

Moving sciences, complex objects: socio-environmental practices and discourses

Resumos

O artigo aborda a discussão sobre epistemologia ambiental e teoria social, considerando o conflito entre os modelos tradicionais de ciência e os atuais, em transição. O conflito da modernidade tecno-científica se expressa também pela imposição de padrões hegemônicos na produção de conhecimento e pelos estilos de vida decorrentes desses padrões. O principal desafio para viabilizar um novo diálogo de saberes é inserir esse debate no interior de um pensamento complexo em construção, que exige novos olhares e práticas epistemológicas, filosóficas e políticas.

epistemologia ambiental e teoria social; ciências em trânsito; objetos complexos


This paper focuses on the contemporary debate between epistemological conditions of knowledge and social and cultural understanding of these conditions, considering the mutual influences given by the historical context in which both occur. First of all, the traditional view of science is supported by the disciplinary system that reinforces the fragmented conception about social and natural things or ideas; on the other hand, we observe a strong opposition against that former standpoint from supporters of a new philosophical, political and epistemological vision about social and environmental issues, attached to a thought of complexity.

environmental epistemology and social theory; moving sciences; complex objects


ARTIGOS

Ciências em trânsito, objetos complexos: práticas e discursos socioambientais

Moving sciences, complex objects: socio-environmental practices and discourses

Dimas Floriani* * Pesquisador (CNPq) atuando no Programa de Doutorado Interdisciplinar em Meio Ambiente e Desenvolvimento e no curso de Ciências Sociais da UFPR. Publicou mais recentemente dois livros: ' Educação Ambiental: Epistemologia e Metodologias' (em co-autoria), Editora Vicentina, Curitiba, 2003 e ' Conhecimento, Meio Ambiente e Globalização', Editora Juruá, Curitiba, 2004.

Dr. em Sociologia. Professor Titular do Depto. de Ciências Sociais da UFPR. E-mail: floriani@ufpr.br

RESUMO

O artigo aborda a discussão sobre epistemologia ambiental e teoria social, considerando o conflito entre os modelos tradicionais de ciência e os atuais, em transição. O conflito da modernidade tecno-científica se expressa também pela imposição de padrões hegemônicos na produção de conhecimento e pelos estilos de vida decorrentes desses padrões. O principal desafio para viabilizar um novo diálogo de saberes é inserir esse debate no interior de um pensamento complexo em construção, que exige novos olhares e práticas epistemológicas, filosóficas e políticas.

Palavras-chave: epistemologia ambiental e teoria social; ciências em trânsito; objetos complexos

ABSTRACT

This paper focuses on the contemporary debate between epistemological conditions of knowledge and social and cultural understanding of these conditions, considering the mutual influences given by the historical context in which both occur. First of all, the traditional view of science is supported by the disciplinary system that reinforces the fragmented conception about social and natural things or ideas; on the other hand, we observe a strong opposition against that former standpoint from supporters of a new philosophical, political and epistemological vision about social and environmental issues, attached to a thought of complexity.

Keywords: environmental epistemology and social theory; moving sciences; complex objects.

"...não devemos perder de vista que a

doutrina filosófica que afirma a ciência

como essencialmente inacabada é de

inspiração moderna"

(Gaston Bachelard).

APRESENTAÇÃO

O ponto de partida deste texto é a problematização weberiana (Max Weber, sociólogo alemão, 1864-1920) sobre a lógica das ciências bem como do sistema de crenças que se interpõe entre o cientista (leia-se comunidade científica ou epistêmica) e suas práticas institucionais e sociais.

O mote weberiano é apenas para sinalizar que estamos diante de um processo que é diferente hoje de cem anos atrás, mas não ao ponto de tratar-se de um mundo absolutamente novo. Poderíamos dizer que os problemas são mais graves e quase definitivos em diversas esferas da natureza (tipos graves de contaminação do meio ambiente, esgotamento dos recursos hídricos, mudanças climáticas drásticas, intoxicações por contaminações alimentares... ) e da sociedade (violência e precarização das condições de sobrevivência e convivência humanas, superpopulação urbana, migrações forçadas, fome e epidemias...).

Outro ponto de nossa abordagem refere-se às condições estruturais da relação conhecimento-sociedade, das quais emerge a ciência, ou a tecnociência, como expressão exacerbada de controle, intervenção e produção de materialidades. Mas tudo isso em um contexto de obstáculos, disputas simbólicas de sentidos e de interesses, e também de virtualidades "redentoras".

Menção especial será feita sobre os 'hegemonismos' (pensamento único, controle, poder, e estilos de vida dominantes) e suas distorções ou patologias sociais. Os hegemonismos estão no olho do furacão da modernidade. Estes são a antítese da complexidade dos fenômenos sócio-naturais, do controle e apropriação dos mesmos, antepondo-se aos desafios intelectuais, políticos e culturais dos pensamentos alternativos. Os movimentos anti-hegemônicos podem tanto produzir pressões políticas favoráveis ou desfavoráveis, em prol ou contra os centralismos (dos estados, dos mercados, dos sistemas políticos, dos exércitos, das tecnologias, dos sistemas de pensamento, da moda, do consumo...); produzem igualmente zonas de liberação de significados (nas ideologias, na arte, nas teorias, nos estilos de vida...).

Uma auto-reflexão sobre o sistema de crenças nos coloca diante do que Joan Robinson (1973: 7) expressa na introdução de uma de suas obras: "por que acreditamos no que acreditamos"? Se esta pergunta é válida para os juízos de valor, é válida também para a noção de 'verdade' implícita nos mecanismos intelectuais e instrumentais do métier científico.

Na primeira parte, ainda, serão apresentadas algumas premissas sobre o que se pode entender por ciência hoje, através do depoimento de diversos pensadores contemporâneos. Na segunda parte, serão observadas diferentes formas de diálogos possíveis entre as ciências da vida, da natureza e da sociedade, na construção do conhecimento, a partir de objetos complexos, tais como os que emergem da relação sociedade-natureza.

REFLEXOS DESDE UM PONTO DE PARTIDA CLÁSSICO SOBRE O FAZER E O PENSAR A 'CIÊNCIA'

Trataremos de nos localizarmos neste debate, partindo do reconhecimento do nosso próprio espaço de atuação, espaço este que é dinâmico porque se remete a trajetórias de formação, práticas institucionais, escolhas intelectuais e obstáculos epistemológicos.

Porém, esse reconhecimento supõe também desconhecimentos, além de riscos imanentes dos sistemas de valores que orientam aquelas escolhas. Como reconhecemos nossa filiação cognitiva pertencendo ao campo das ciências sociais, mais especificamente ao da sociologia, e nesta, a diversos sub-campos conexos (sociologia do conhecimento, do desenvolvimento e ambiental, entre outros), não poderíamos deixar de remeter-nos inicialmente a algumas questões cruciais, pois delas emergem as condições de produção e de acesso ao conhecimento, na confluência do crescente desenvolvimento científico-tecnológico das sociedades modernas.

Há pouco mais de cem anos (1904), Max Weber, em seu clássico texto sobre a "Objetividade" do conhecimento na Ciência Social e na Ciência Política (WEBER, 1992), incrementava o debate presente no seu tempo e cujo eco nos alcança ainda hoje, através do túnel da ciência e da técnica:

1. "O domínio do trabalho científico não tem por base as conexões "objetivas"entre "as coisas", mas as conexões conceituais entre os problemas. Só quando se estuda um novo problema com o auxílio de um método novo e se descobrem verdades que abrem novas e importantes perspectivas é que nasce uma nova "ciência"( WEBER, 1992: 121).

2. "Sem dúvida é verdade que exatamente aqueles elementos mais íntimos da "personalidade" ou seja, os últimos e supremos juízos de valor, que determinam a nossa ação e conferem sentido e significado à nossa vida, são percebidos por nós como sendo objetivamente válidos" (WEBER, 1992: 111).

Finalmente, Weber assevera:

3. "...em que momento cessa a fala do pesquisador e começa a fala do homem que está sujeito a intenções e vontades, em que momento os argumentos se dirigem ao intelecto e em qual se dirigem ao sentimento..."(WEBER, 1992: 115).

Cem anos se passaram desde então. Tudo isso que foi dito tem sido objeto de controvérsias e muitas vezes tem produzido mais calor do que luz. Embora neokantiano, ou por isso mesmo, Weber indicava as dicotomias presentes no modelo filosófico e científico de então: entre razão e emoção, indivíduo e sociedade, objetivo e subjetivo, ciência e valores, técnica e cultura, sociedade e natureza, dentre as inúmeras disjunções clássicas de então e de agora.

A alusão ao texto centenário de Weber nos remete, por analogia associativa, ao filme de Carlos Saura, Mamá hace cien años. Neste filme, é retratada uma matriarca de cem anos, simbolizando uma Espanha conservadora e autoritária, um legado do franquismo, que resistia em morrer. A exemplo do que ocorre no filme, onde novos agentes não conseguiam se liberar das amarras da tradição franquista, a obra de Weber pode também nos sugerir uma visão da modernidade científica, emergente no século XX, carregada de pessimismo e de cuja racionalidade temos dificuldade de nos libertar.

Dividido entre uma racionalidade fria, da técnica, da ciência e da política desencantadas, e os valores que sustentam as diversas escolhas políticas e filosóficas das sociedades modernas, a objetividade instrumental, sozinha, é incapaz – destituída de valores, ou melhor, iludida pela neutralidade como um não valor – de produzir resultados que se justifiquem apenas pela eficácia dos meios para alcançar os fins (eficiência sistêmica). Mesmo que esse imperativo seja um atributo da modernidade, esta deverá conviver com diversos deuses e demônios, pois nada está dado de antemão, e os valores existem para serem disputados pelas diversas esferas da vida social, incluindo-se aí os vários sentidos atribuídos à idéia de 'natureza'.

O tempo histórico e cultural, no qual se inserem os humanos, produz um certo efeito de superioridade em relação ao passado e, com base nos valores do presente, são reavaliadas as condições do futuro. A intensidade dessa reavaliação depende em grande medida do sistema de conhecimento, dos valores e do potencial tecnológico de transformações das condições de existência material das sociedades, nas quais se incluem natureza, ciência, técnica, poder, arte, religião e demais manifestações culturais. Além disso, conta também o sistema de interações entre as condições de produção material e as condições subjetivas ou humanas de valorar e de dispor das coisas no mundo, isto é, as expectativas de vida e os conflitos gerados por essas mesmas condições e expectativas. Segundo Prigogine (2000: 5), "as decisões humanas dependem das lembranças do passado e das expectativas para o futuro".

PREMISSAS PARA UMA CIÊNCIA HOJE

No interior das modernas atividades institucionalizadas, o conhecimento científico traduz, para a sociedade de mercado, a junção entre ciência e técnica. Esta vinculação aprofundou-se com o modelo de capitalismo neoliberal que veio a dominar nas três últimas décadas. (DE SOUSA SANTOS, 2004: 48). Mas, concomitantemente à junção funcional da ciência com a técnica, persiste a disjunção entre os múltiplos conhecimentos disciplinares, que são representados cada vez mais através de requerimentos especializados, dispostos em sistemas de conhecimento institucionalizados, independentemente dos fins a que se prestam.

Porém, o conhecimento científico, além de se inscrever na lógica da produção material das sociedades, expressa um campo de conflitos simbólicos, refletindo-se em diversas dimensões sociais: econômicas (inovações tecnológicas, impactos sobre o mercado, o trabalho humano e a educação), políticas (disputas de hegemonia sobre patentes, poder das nações e corporações transnacionais), filosóficas (debates acirrados sobre concepções teórico-metodológicas, natureza e finalidade das ciências), institucionais (disputas sobre centros de poder e de prestígio nacional e internacional, hierarquização entre sistemas legitimadores de publicações, ranking dos melhores e dos piores centros, etc.); culturais (maneiras de apropriação e de representação da natureza e transformação da matéria – simbolização que devolve aos seres humanos crenças novas e/ou rejeições sobre suas cosmovisões) (FLORIANI, 2000: 24).

O conhecimento científico, pelo menos aquele associado com as tecnologias da sociedade de mercado, seria hoje a infratextura das infraestruturas (MORIN, 1984). O que seria um dos seus componentes, passa a ser confundido com o próprio sistema produtivo do capitalismo informacional. O sistema como um todo é subvertido por um de seus elementos, interdependente desse novo paradigma tecnológico, sendo que: a) a informação é sua matéria prima; b) as tecnologias agem sobre a informação e esta não é apenas matéria prima daquela, conforme o paradigma industrial anterior; c) os processos individuais e coletivos são moldados por essa tecnologia (penetrabilidade dos efeitos das novas tecnologias); d) a lógica de redes estabelece modelos de comunicação que se adaptam rapidamente à complexidade da informação; e) flexibilidade e reconfiguração diante das constantes mutações tecnológicas (CASTELLS, 1999, v.1: 78).

Estamos possivelmente não só diante de um novo padrão emergente de sociedade, mas diante de um sistema hegemônico de seu funcionamento. Mas o hegemonismo não aparece apenas unilateralmente (do dominante para o dominado), o que significaria, do ponto de vista de sua compreensão, um exercício de simplificação intelectual dos processos de interação entre os fenômenos sociais e naturais. Isso não impede, no entanto, de representá-lo de maneira simplificada, recurso sempre disponível para a produção dos mecanismos ideológicos (cognitivos e valorativos que predispõem, de uma maneira ou de outra, a escolher e a agir) de legitimação do poder econômico, político e de sobreposição de alguns estilos de vida sobre outros.

A título anedótico, gostaria de apresentar um exemplo que serve para refletir sobre essa questão do hegemonismo, cujo sentido provém em grande medida da ciência política. Indagado por uma jornalista, em um programa de televisão, se o brasileiro fala mal, um estudioso de lingüística responde que não, que falar bem ou falar mal, depende do ângulo de quem julga, de seus critérios culturais e até científicos, e que esse negócio de impor um padrão único de língua é um mito ligado a uma concepção colonialista de um pretenso falar e saber culto.

Moral da estória nº 1: há uma tentativa de hegemonizar uma concepção de falar bem sobre o falar mal. Pode-se aferir a objetividade desse hegemonismo desde alguns meios de comunicação, práticas pedagógicas, colunas de jornais do tipo "última flor do Lácio inculta e bela, etc.".

Moral da estória nº 2: Mesmo que nos colocássemos de acordo sobre o que é falar bem, as pessoas continuariam falando do seu jeito e isso não impediria que elas continuassem comunicando-se; pelo menos o padrão evidente da realidade comunicativa do Brasil é esse.

Moral da estória nº 3: A analogia desse exemplo com outros padrões de hegemonismo. É verossímil falar em tendências ou padrões dominantes do mercado, da tecnologia, da moda, de consumo, etc. mas isso não anula a possibilidade de existência de outros padrões.

Essa constatação é fundamental para o debate sobre concepção de ciência, condições de produção e de acesso ao conhecimento, paradigma da complexidade, co-evolução entre modelo de desenvolvimento social e sistema científico, multiculturalismo, desenvolvimento sustentável, diálogo de saberes, cultura científica, tecnológica e institucional, etc.

Assim, podemos estar de acordo com que o conhecimento científico (ou tecnocientífico) é a expressão hegemônica das sociedades de mercado e de que o "conhecimento científico é hoje a forma oficialmente privilegiada de conhecimento e a sua importância para a vida das sociedades contemporâneas não oferece contestação" (DE SOUSA SANTOS, 2004: 17).

Outra coisa, bastante distinta, embora parecida, é considerar que esta é a única e inexorável forma e via de funcionamento das sociedades e que tudo deve, portanto, responder a esse tipo de organização centralizadora. Seria mais ou menos pensar que os shopping centers e os Mcdonalds são as únicas realidades possíveis de se olhar o mundo, muito embora para onde se olhe aí estivessem eles. Em um certo sentido (e em diversos outros!), eles são dominantes. Mas não em todos os sentidos!

É possível encontrar esse sistema de crenças também entre nós, da comunidade científica, a começar pelo entendimento que temos da própria ciência. Para os epistemólogos "puros,"a ciência é um valor universal, tanto em seus instrumentos conceituais como operacionais. Aquilo que é validado matemática e experimentalmente em seus procedimentos de manipulação dos testes tende a ser apresentado como pertencente ao domínio do estritamente científico. Estamos diante dos shoppings epistemológicos. Não são todas as disciplinas que se prestam hoje a esse tipo de procedimento metodológico: o que funciona para algumas é inoperante para outras. Já nos anos 40 do século que passou, Bachelard (1991: 294) afirmava que "a ciência moderna é cada vez mais uma reflexão sobre a reflexão".

Uma visão restritiva dos esquemas cognitivos pode cair na tentação de defender valores para a ciência, independentemente de seu uso e acima das questões éticas e políticas. Por outro lado, não podemos, nós mesmos, cair na tentação de negar a emergência da sociedade do conhecimento, nem da ciência, que hoje se instalou como a forma predominante de explicação do real e da intervenção prática na gestão dos negócios humanos (não importa se para salvar vidas ou acabar com elas), o que implica uma forte intervenção na natureza e nas sociedades.

Sob esta perspectiva, a ciência pode ser apresentada como uma relação de meios (eficácia para a vida e para a morte) e de fins (lucro capitalista e permanência institucional), como mera racionalidade instrumental.

Mas é pouco verossímil separarmos as condições de produção teórica do conhecimento científico das condições mesmas de acesso ao conhecimento, sob pena de erigirmos a ciência como um lugar vazio ou como um fetiche auto-sustentável.

A produção teórica do conhecimento científico é facilitada pelas condições de acesso ao conhecimento que, por sua vez, reforçam e condicionam as formas de apropriação material do mundo. A ciência moderna é interdependente não só das condições teórico-metodológicas e dos procedimentos técnicos sobre os diversos objetos do mundo, mas é igualmente interdependente das condições gerais e específicas do contexto social do qual emerge.

É causa e efeito do sistema de produção e de apropriação do mundo, no interior do sistema cultural que a gera e que é por ela gerado. É neste sentido que se admite o mecanismo da reflexividade da vida social moderna consistindo "no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim constitucionalmente seu caráter" (GIDDENS, 1999).

Da mesma maneira, as interações entre os indivíduos produzem a sociedade, que não pode existir sem eles; porém, a sociedade retroage sobre os indivíduos humanos, uma vez que ela proporciona a eles a cultura, a linguagem, os conceitos, a educação, a segurança, etc. Produzimos uma sociedade que nos produz. Fazemos parte da sociedade que faz parte de nós (FLORIANI, 2000: 32).

A ciência ocidental moderna desenvolveu um sistema de mútua interação com os recursos naturais, sob forma de co-evolução, ao facilitar o uso do carvão e do petróleo, por exemplo, ajudando a determinar os rumos e a intensidade de esforço da própria ciência e definindo o desenho institucional de produção das tecnociências, associadas ao uso daqueles recursos.

Reflexamente, os mecanismos de percepção, escolha e uso de tecnologias estão imersos nas estruturas sociais que, por sua vez, são produto das modernas tecnologias (REDCLFIT & WOODGATE, 1994: 57-58).

Para Morin (1984), a resposta mais difícil para a ciência está contida na seguinte pergunta: o que é ciência? Desse paradoxo deveria emergir a necessidade de um auto-conhecimento do conhecimento científico.

A história do pensamento humano criou essa ambigüidade, ao mesmo tempo maravilhosa e terrível que é a verdade. Uma das denúncias contemporâneas contra a razão é a de que ela não é excessivamente racional, mas irracional. Como conseqüência dessa denúncia, as idéias de razão e de verdade são re-significadas: a) a razão não é algo estático e reificado; b) as construções operatórias da razão seguem as mudanças de paradigmas; c) a razão é biodegradável pelo fato de ser viva.

Essa nova razão deverá aprender a conviver com o acaso, a desordem e o singular. Signo de uma razão aberta, essa nova razão se constitui em racionalidade crítica, sabendo reconhecer a existência de fenômenos que são ao mesmo tempo irracionais, racionais, a-racionais ou supra-racionais. Uma razão aberta poderá dialogar com todas essas expressões da racionalidade.

OBJETOS COMPLEXOS E DIÁLOGO ENTRE SABERES CIENTÍFICOS: AS CIÊNCIAS EM TRÂNSITO

Se antes a razão científica tinha suas 'afinidades eletivas' com um grupo de ciências, fechadas sobre seus próprios objetos particulares, a emergência de um novo padrão de cientificidade tende a abrir suas comportas para outros domínios dantes não navegados. Essa nova racionalidade emergente extrapola os próprios limites dos territórios protegidos pela antiga visão de ciência e de conhecimento científico.

O jogo pela nova emergência é ainda muito desigual em relação ao padrão dominante (hegemônico), mas começa a ter eco nas estruturas de poder das instituições de conhecimento e das organizações sociais, ampliando os espaços para a constituição de outras culturas de conhecimento do mundo e de outras práticas de produção e apreensão material. É por isso que consideramos que os cânones clássicos dos paradigmas científicos, embora reconhecidamente insuficientes para explicar a emergência de uma ciência "pós-normal", não tenham sido substituídos pelos novos paradigmas ainda incompletos e em trânsito. Resta saber da pretensão de um pensamento complexo que queira substituir os antigos paradigmas fechados por outros, sem levar em conta que esse pensamento é incompatível com a idéia de fechamento e de completude.

As condições de acesso a essas novas racionalidades são inseparáveis de outras, vinculadas aos aspectos políticos e históricos contemporâneos da produção do conhecimento científico. Esse processo de construção é devedor de lógicas investigativas, de procedimentos práticos das comunidades científicas e da conseqüente crítica filosófica e epistemológica dos pressupostos científicos, cujos resultados são localizados em diversas opiniões disseminadas ultimamente pela comunidade acadêmico-científica (DE SOUSA SANTOS, 2004: 17-55) Algumas dessas novas visões podem ser assim sintetizadas:

a) Todo conhecimento científico-natural é científico-social; todo conhecimento é auto-conhecimento; todo conhecimento é local e total; todo conhecimento científico visa transformar-se em senso comum (ARRISCADO NUNES, 2004; ESCOBAR, 2004).

Sobre esta asserção, há evidentemente exageros, uma vez que a mesma enuncia um princípio de indeterminação. Podemos dizer que a produção e o significado do conhecimento científico-natural são sociais, mas daí dizer que se confunde com o conhecimento social propriamente dito, em um contexto de especialização e fragmentação do conhecimento, já é uma coisa totalmente distinta.

Neste sentido, advogar o princípio da interdisciplinaridade na ciência é algo específico às distintas disciplinas científicas que abordam objetos complexos do conhecimento, pela impossibilidade de cada uma das disciplinas em presença fornecerem respostas plausíveis e cabais sobre um determinado tema de fronteira. Nada impede, entretanto, que cada uma das disciplinas insista, por seu lado, sobre o entendimento de seu objeto de conhecimento; porém, a crítica social e científica que pode decorrer da parcialidade da abordagem feita por uma disciplina sobre seu próprio objeto, pode produzir virtuais mudanças de condução da pesquisa, em função da crítica social ou científica, da maneira de se conduzir a pesquisa, do uso social de seus resultados e da emergência de outros grupos de pesquisadores que conduzirão para outros domínios a pesquisa até então restrita a alguns especialistas.

Temas emergentes, indicando novas combinações de abordagens por especialistas podem expressar grupos de pesquisas e novas associações institucionais. Isso é visível, atualmente, nos grupos de pesquisa registrados no CNPq, e conseqüentemente nas Universidades, bem como pelos temas novos abordados em diversas áreas de conhecimento (ciências da vida, da natureza, tecnológicas, humanas e sociais aplicadas).

Em decorrência dessas novas práticas de produção e associação do conhecimento, em especial no espaço acadêmico, emergem metodologias de pesquisas (multi-inter-trans-disciplinaridade) já bastante divulgadas a essa altura do debate, embora muito difundidas e pouco entendidas e precisadas do ponto de vista conceitual. A multidisciplinaridade e a interdisciplinaridade referem-se a estratégias de construção e de intercâmbio de conhecimentos que observam os cânones das diversas ciências, independentemente dos paradigmas, onde cada uma delas reivindica para si sua pertença, de acordo com seu respectivo alinhamento teórico-metodológico. Embora não seja tão evidente como quer parecer para os que professam alguns "credos" arraigados de ciência, os instrumentos e procedimentos metodológicos, que permitem a cada uma das disciplinas medirem, controlarem e objetivarem resultados, não ocorrem sem uma determinada visão e compreensão do que é o conhecimento científico e em nome de qual concepção o mesmo está sendo operacionalizado (filiação epistemológica).

A transdisciplinaridade já é um domínio mais complexo de aproximações entre diversos conhecimentos, não apenas entre os de natureza científica, mas os culturais, religiosos ou aqueles tradicionalmente arraigados. A discussão aqui é da alçada de uma ciência pós-normal, invocando razões filosóficas e epistemológicas de natureza metacientíficas e paracientíficas, de acordo com a discussão estabelecida por Piaget (1967; apud FLORIANI, 2003).

A segunda idéia que circula entre as comunidades científicas hoje é de um apelo à unidade entre as ciências:

b) O que esteve, está e estará em causa nos próximos tempos é a quebra do muro entre as duas culturas, ou seja, a separação entre cultura científica e cultura humanística, entre o estudo dos fatos e o estudo dos valores, e o desafio que tal quebra põe às estruturas de produção e de distribuição de conhecimento (LEE, 2004).

Esta posição já não legitima mais a racionalidade instrumental, encerrada em sua própria esfera de materialidade do mundo que obedece a razões desvinculadas dos múltiplos sentimentos culturais do mundo. Mesmo que haja sobreposição dessas esferas sistêmicas ao mundo da vida, há espaços para resistências. Dessas resistências culturais e políticas emergem outros sentidos e razões de vida e de sociedade. O conflito de sentidos sobre o mundo tende a liberar outros novos sentidos sobre o mesmo. Não há uma teleologia antecipada para a ação humana, embora existam cálculos premonitórios nas intenções dos atores. As ações individuais podem ser obstadas ou desviadas de suas intenções iniciais pelo efeito agregado e pelos resultados inesperados que esse efeito produz.

É como se estivéssemos diante da emergência do fenômeno científico como produto da cultura de massa em que os laboratórios e as universidades são a expressão institucional das agências peritas, a exemplo dos templos religiosos que não cessam de se multiplicarem e que institucionalizam a dimensão social do sagrado.

Problemas de saúde e de doença são permanentemente debatidos em programas televisivos e de rádio, aparecendo em colunas de revistas (magazines) com ampla leitura popular, disseminando e definindo formas de comentários e de apropriações de sentidos os mais diversos sobre os mais amplos temas (medicina, estética, consumo de medicamentos para emagrecer, dietas para manter o controle da obesidade, do colesterol, da diabete, etc.).

A ciência, assim, transita entre o erudito (sob o controle das instituições detentoras de certificação) e o profano (as diversas formas de divulgação e de apreensão social do sentido sobre inúmeros temas e produtos de consumo), que se realiza pelo mercado, sob a formade: informação, educação, tratamento clínico, consumo de produtos, etc.

c) Uma terceira dimensão, da comunidade de ciência, é relativa à atitude do cientista, não apenas epistemológica, mas existencial, que vincula o sujeito ao seu próprio conhecimento, e não apenas por via das suas capacidades racionais, mas antes de todas as faculdades. A idéia do "planejamento participativo" e do "envolvimento flexível" do cientista a partir da identificação do tipo de reflexão que leva o cientista a modificar reflexivamente (feedback) os sistemas sobre os quais produz conhecimento.

O entendimento de que o conhecimento racional depende das condições e situações emocionais desloca as dicotomias que separam o corpo da alma, a emoção da razão e os meios dos fins, buscando operar com esquemas de pensamento mais complexos, priorizando a lógica da conjunção no lugar da disjunção.

Morin (2001: 88) nos adverte sobre os riscos formidáveis de erro e ilusão por parte do espírito humano. Esses riscos são de diversas ordens: individuais (auto-engano, falsas lembranças, recalques inconscientes, alucinações, racionalizações excessivas, etc.); culturais ou sociais (impressão – imprint – de certezas no espírito, normas, tabus de uma cultura); paradigmáticos (quando o princípio organizador do conhecimento impõe a dissociação no lugar da unidade, a unidade no lugar da pluralidade, a simplicidade no lugar da complexidade); noológicos (quando um deus, um mito, uma idéia se apoderam de um indivíduo que termina possuído pelo deus ou pela idéia). O problema da ilusão, segundo Morin, atravessa toda a história, todas as sociedades, todos os indivíduos, e os espíritos recém desencantados estão sujeitos a cair novamente em outra ilusão (da ortodoxia comunista ao evangelho neoliberal, por exemplo).

d) O quarto componente da comunidade de ciência refere-se ao reconhecimento de outros conhecimentos, geralmente designados como não científicos, alternativos à ciência, e às relações desses conhecimentos com a ciência (ESCOBAR, 2004).

Tratam-se de confrontos culturais, políticos e filosóficos diante dos quais se encontram os paradigmas da ciência dominantes e aqueles que emergem desde diversos lugares. Esse confronto é de natureza civilizatória, uma vez que estão em jogo alternativas científicas, tecnológicas, valorativas, culturais de diversas ordens e sentidos. A co-existência e/ou a sobreposição dessas alternativas ocorrem sob o signo de disputas simbólicas de sentidos.

A diferença, talvez, em relação aos momentos de rupturas anteriores das sociedades, é que já há maior consciência sobre os limites do hegemonismo, isto é, do pensamento único. O que muda nas sociedades tecnológicas atuais, comparativamente às anteriores, é a velocidade, a intensidade e o volume dos processos interativos entre as fontes produtoras dos múltiplos conhecimentos, apropriados materialmente (transformados tecnicamente), seu utilitarismo e a crítica social derivada dos efeitos do uso (vantajoso ou maléfico). Risco e reflexividade são assim potencializados, mas também "democratizados", pois tornam-se objetos massificados, rotinizados, descartáveis, mas também criticáveis. Há uma mutação permanente de significado entre o tempo da divulgação das descobertas científicas, da criação de novos gadgets, a divulgação e a propaganda pela mídia (e pela indústria cultural) e a apropriação real/imaginária que é feita pelos consumidores e consumidoras de mercadorias.

Ao mesmo tempo em que as sociedades "sabem" mais (pela informação e pelo consumo) sobre si mesmas, desconhecem mais (ignoram perigos), não apenas porque a divisão social do trabalho é incessante, mas porque o sistema de produção e gestão do conhecimento e da informação privilegia os sistemas de valores, das estruturas de funcionamento das instituições, da propaganda, do comércio, do consumo, das profissões, enfim da organização do sistema científico (escolar e universitário) em moldes de oferta e demanda do próprio mercado. Aqui, estamos considerando apenas uma parte do sistema social e de mercado que é funcional e dominante, e não o seu lado disfuncional, isto é, o que decorre da contradição do sistema.

Sobre isso, há duas maneiras de abordarmos a questão: por um lado, levando em conta que os mecanismos centrais do sistema de mercado integram uma parte da sociedade, desintegrando a outra; e por outro, tendo a perspectiva da emergência de um pensamento e de uma práxis críticos, de atores e movimentos sociais, em especial daqueles vinculados ao socioambientalismo, que encaminham saberes e práticas oriundos de comunidades e sistemas sociais não produtivos, isto é, não comprometidos umbilicalmente com a racionalidade instrumental do mercado, embora pudessem coexistir com ele e fatalmente nele, como é o caso dos sistemas agroecológicos que produzem para um nicho (exigente) do mercado consumidor.

De todas as maneiras, e independentemente do tipo de abordagem que se possa fazer dessas duas dimensões contraditórias, porém integradas, vale o seguinte princípio epistemológico: ao real complexo deve corresponder um pensamento complexo do real.

e) Por sua vez, as assimetrias de poder na produção global da ciência geram também uma injustiça cognitiva global, assentada na hierarquia entre ciência moderna e conhecimentos locais, e com a qual se articulam as hierarquias entre o Norte e o Sul, entre desenvolvido e subdesenvolvido, entre doador e recipiente da filantropia internacional. Como contrapartida, aparece a idéia da pluralidade de saberes apoiados na multi-situacionalidade da sua criação (MIGNOLO, 2004).

Se o conhecimento associado com as tecnociências se tornou insumo e valor agregado nas sociedades do conhecimento globalizadas, é válido supor que ele participa do sistema de trocas desiguais de riqueza e de poder mundializados. Se há uma lógica de assimetrias sobre o controle das tecnologias e da geopolítica, o acesso e os mecanismos de produção do conhecimento científico pertencem ao mesmo sistema de poder.

Durante séculos, as relações de subordinação da periferia ao centro respondiam por mecanismos coloniais de poder político, econômico e ideológico que foram deslocados, ao longo do século XX, para a esfera do mercado (instituições financeiras e inovações tecnológicas) e do poderio militar de algumas nações centrais (do norte) sobre as demais (do sul). O fim da Guerra Fria consolida esse último modelo.

A emergência da questão ambiental, em escala global, é um complicador para a organização assimétrica do poder mundial, abrindo novas tensões em relação à apropriação dos recursos naturais, que começam a escassear, e a conseqüente politização entre países e regiões detentores de um "capital natural" e demais países detentores de tecnologia. O confronto não se limita apenas a questões econômicas, políticas e tecnológicas, mas também éticas, filosóficas e culturais, configurando um novo campo de disputas simbólicas sobre a vida, a natureza, o desenvolvimento...

f) As ciências estão convocadas a reconhecerem a extrema fragmentação do campo das experiências e a dificuldade em conferir sentido à transformação social (DE SOUSA SANTOS, 2004: 53). Esse reconhecimento resgata a ética da ciência socialmente empenhada na afirmação dos valores da democracia, da cidadania, da igualdade e do reconhecimento da diferença.

O sistema de avaliação ética sobre a produção e os usos do conhecimento científico deveria estar associado também com o alcance positivo e negativo produzido pela ciência e pela técnica. A legitimidade dos investimentos em engenharia militar deveria ser contestada pela comunidade de poder internacional, assim como as prioridades dos demais investimentos em ciência e tecnologia.

Segundo o físico inglês John Ziman (2002: 26), é o exercício "aberto, imaginativo, auto-crítico desinteressado e comunitário que torna o conhecimento científico confiável. Neste sentido, alinham-se a essa posição as idéias de uma "ciência pública" e do "bem público" em oposição às forças de mercado". Ambos pólos são abstratos (dada a dificuldade de delimitar a extensão da idéia de 'público'e de 'mercado'), mas são claramente verificáveis quando se defrontam em contextos concretos, por exemplo, quando se trata de definir meios e fins da ciência e da técnica (a produção de transgênicos, a clonagem humana, etc., são exemplos desse conflito). Conclui Ziman que "os cientistas dos três setores (da academia, da indústria e do governo) deveriam lutar abertamente contra as mudanças que não consigam reconhecer, celebrar e apoiar, em sua totalidade, o papel diferenciador e insubstituível da "ciência pública" em uma sociedade aberta e pluralista" (apud FLORIANI, 2004).

CONCLUINDO BREVEMENTE

Podemos afirmar que as condições estruturais que possibilitam a emergência do conhecimento científico tornam-se mais cruciais hoje do que no decorrer de boa parte do último século, por algumas razões: as situações materiais (naturais e tecnológicas) transformaram profundamente o quadro de vida no Planeta Terra, restringindo seriamente os limites para a sua expansão.

Por sua vez, o sistema de crenças (valores) e de saberes (tecnociências) tornaram-se solidariamente prisioneiros desse sistema de produzir, consumir e conhecer o mundo, reforçando os mecanismos desse círculo vicioso.

As distorções do funcionamento desse sistema podem ser captadas através da simplificação hegemônica nas suas diferentes esferas: econômica (mercado), de consumo (indústria cultural), nível de vida (quantidade, em detrimento da qualidade), sem deixar de considerar as profundas distorções sociais e ambientais produzidas pela (des)organização sistêmica: agravamento da violência, exclusão social, contaminação dos ecossistemas, esgotamento dos recursos não-renováveis, deterioração crescente dos recursos renováveis...

Se para Weber as conexões conceituais entre os problemas guardam conexões íntimas com os sistemas de valores, tornando-os dessa maneira problemas objetivos para os cientistas, o sentido do mundo de hoje, para alguns deles (pelo menos) e para boa parcela da humanidade, já não aparece como tragédia da modernidade clássica, em que as múltiplas esferas da mesma (direito, medicina, economia, política, educação...) operavam ou ainda operam de forma objetiva e independente do 'mundo da vida'; podemos representar as conexões entre os problemas da atualidade como passíveis de serem tratados em conjunção com uma nova 'episteme', buscando reencantar o próprio sentido de ciência e de vida e tramando para a emergência de outras alternativas de sociedade.

Assim, uma outra (para não dizer 'nova') ciência deve buscar integrar o que o progresso técnico e o que o próprio conhecimento separaram, fragmentando o mundo em infinitas formas de operar com o real. A crítica social contribuiu para que emergissem novos entendimentos sobre como abordar o real, apontando os limites lógicos de um pensamento simplificador que aprisiona esse real em escaninhos disciplinares, afásicos nas operações de permuta com os demais conhecimentos (científicos e não-científicos).

Os problemas das sociedades contemporâneas e das suas interfaces com as dinâmicas ecossistêmicas podem ser melhor captados, estudados e explicados se os diversos e diferentes conhecimentos se confrontarem com novos objetos complexos, vistos e visitados por olhares distintos e complementares, acompanhados por novos procedimentos metodológicos. Dessa forma, novas 'epistemes' são necessárias, apoiadas no seguinte enunciado: "ao real complexo deve corresponder um pensamento complexo do real".

Esses novos procedimentos implicam aprender e desenvolver uma nova cultura científica, o que não ocorrerá sem conflitos e resistências filosóficas e institucionais, ancorados em interesses estabelecidos.

É bom considerar que a ocorrência de outros paradigmas, capazes de abrigar o conjunto das condições de emergência de um novo conhecimento, é assunto que levará muito tempo ainda para ser definido; por isso consideramos tratar-se de uma situação em que as ciências se encontram em trânsito, isto é, em direção a uma situação em que não está completamente dado saber, de antemão, o alcance dessa metamorfose em andamento.

Daí nossa discussão atravessar algumas das dimensões constituídas por códigos, interesses e objetivos perseguidos pelos intelectuais, educadores, militantes e cientistas, no interior de suas diversas comunidades: enfoque que inicia pelo entendimento que cada um faz sobre as oposições entre cultura científica e cultura humanística, passando pela transformação semântica dos resultados do próprio conhecimento, ao sofrer alterações de sentidos pelas distintas apropriações feitas socialmente, até a abordagem da forma como o saber científico é distribuído desigualmente pelas diversas nações, detentoras do poder tecnológico, em escala global.

Um dos resultados esperados desse debate é a possibilidade de que a produção e os usos do conhecimento científico tendem a sofrer o efeito de uma avaliação ética, tanto pelas comunidades científicas, como pelas sociedades, e cuja expressão também pode ser captada através do dissenso epistemológico, filosófico e político que ocorre principalmente no interior das agências de conhecimento, mas também abertamente, na escala de todas as sociedades mundiais.

Recebido em 09/2005 – Aceito em 11/2005.

NOTAS

1. A citação completa da frase implica em uma insondável resposta, se desdobrarmos a mesma questão em uma série de outras, decorrentes da mesma, conforme assevera a citada autora: "Why do I believe what I believe about what it is that makes me believe it ? " (ROBINSON, 1973: 7).

2. Muito próximo dessa assertiva, temos o seguinte enunciado de BACHELARD (1991: 282): "O objeto não pode designar-se de imediato como "objetivo"; em outros termos, um caminhar para o objeto não é inicialmente objetivo. Deve-se aceitar, portanto, uma verdadeira ruptura entre o conhecimento sensível e o conhecimento científico".MORIN (2001, p.71) enuncia o seguinte paradoxo: "A objetividade não pode vir senão de um sujeito. (...) Niels Bohr havia claramente percebido o caráter inseparável do conteúdo objetivo e do sujeito observador".

3. "A história desafia toda predição. Seu vir a ser é aleatório, sua aventura sempre foi, sem que se soubesse, e agora se deveria saber, uma aventura desconhecida. (...) O futuro é indecifrável. Os destinos locais dependem cada vez mais do destino global do planeta,que por sua vez depende também de eventos, inovações, acidentes, desajustes locais que podem desencadear ações e reações em cadeia, bifurcações até, decisivas, afetando esse destino global" (MORIN, 2001: 210 e 219).

4. O entendimento que se pode dar aos 'estilos de vida' corresponde à discussão de WEBER (1979) em diversos de seus textos, quando analisa os conceitos de classe e de estamento, além da análise de situações históricas concretas dos brâmanes e dos letrados chineses. Embora Weber opusesse processos de mercado, que não conhecem distinções pessoais ("interesses" funcionais), à ordem estamental (estratificação em termos de honras e estilos de vida peculiares), trata-se de uma distinção típico-ideal e o próprio autor reconhece a existência de influência mútua quando em condições históricas coexistem 'classes sociais' e 'estamentos'; ou seja, modernamente 'estilos de vida' derivam de situações de mercado que por sua vez reforçam processos de estratificação social, sem as profundas clivagens das sociedades tipicamente estamentais . BOURDIEU (1978, 2003) designa de 'distinção social' a esses mecanismos, em sociedades modernas, pela capacidade de acesso ou de detenção de diversos 'capitais sociais' adquiridos pelos distintos agentes, através de diferentes disposições individuais (habitus).

5. "A meu ver, não se consegue encontrar um único filósofo da ciência renomado que ainda acredite na concepção de ciência natural a que muitos cientistas sociais aspiraram. A ciência natural, tal como claramente demonstrado na filosofia da ciência pós-kuhniana, consiste em esforços hermenêuticos ou interpretativos. Sem dúvida, existem leis nas áreas de ciências naturais, contudo as leis têm de ser interpretadas, e isso deve ocorrer no âmbito de sistemas teóricos. A ciência natural, portanto, envolve sistemas interpretativos de significado, e a natureza da ciência encontra-se envolvida na criação de grades teóricas. Com efeito, o enquadramento do significado demonstra-se mais importante do que a descoberta de leis. Uma primazia indevida foi dada à descoberta de leis como elementos constitutivos da "ciência" nos modelos tradicionais da ciência natural, e os cientistas sociais, ingenuamente, aceitaram essa condição" (GIDDENS, 2001: p.101).

6. Sobre ciência pós-normal, consultar Information tools for environmental policy under conditions of complexity. S.O Funtowicz, J. Martinez-Alier, G. Munda, J.R. Ravetz (org.). Environmental Issues Series 9. European Environment Agency, 1999, (http://europa.eu.int).

7. Não é nosso objetivo aqui discutir as diferentes concepções de ação social, expressas em teorias conflitantes: da "escolha racional" (micro-fundamentos da ação, individualismo metodológico de ELSTER e BOUDON), da fenomenologia em suas diversas vertentes (de SARTRE a GOFFMAN) ou ainda do coletivismo metodológico (macro-fundamentos da ação da tradição clássica marxista, sistêmica ou estruturalista).

8. Aqui estamos diante de um paradoxo semelhante ao apontado por GARRETT HARDIN (1968) e tomado emprestado de WIESNER e YORK, ao indicarem que a corrida armamentista nuclear entre os países, no lugar de produzir mais segurança, tornava-os mais inseguros. Por analogia, podemos dizer que o volume crescente de informação disponível para os indivíduos em sociedade, torna-os mais ignorantes da realidade.

9. A esse respeito e também para uma discussão mais abrangente (filosófica, epistemológica e política), consultar as obras de ENRIQUE LEFF, HECTOR LEIS, LEONARDO BOFF, dentre outros autores ainda, que abordam os temas de racionalidade ambiental, modernidade insustentável e ecosofia.

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  • *
    Pesquisador (CNPq) atuando no Programa de Doutorado Interdisciplinar em Meio Ambiente e Desenvolvimento e no curso de Ciências Sociais da UFPR. Publicou mais recentemente dois livros: '
    Educação Ambiental: Epistemologia e Metodologias' (em co-autoria), Editora Vicentina, Curitiba, 2003 e '
    Conhecimento, Meio Ambiente e Globalização', Editora Juruá, Curitiba, 2004.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Out 2006
    • Data do Fascículo
      Jun 2006

    Histórico

    • Aceito
      Nov 2005
    • Recebido
      Set 2005
    ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
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