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Ciência e Política

ENTREVISTA

Ciência e Política

Entrevista com Marcelo Furtado Diretor de Campanhas do Greenpeace Brasil por Samira Feldman Marzochi1 1 Doutoranda em Sociologia pelo IFCH, é graduada em Sociologia, Ciência Política (UNICAMP, 1995), Antropologia (UNICAMP, 1996) e mestre em Sociologia da Cultura (UNICAMP, 2000). De 1994 a 1995, participou do projeto População e Meio Ambiente na Bacia dos rios Piracicaba e Capivari, coordenado pelo professor Daniel Hogan, como bolsista de iniciação científica (NEPO/Unicamp). Finaliza sua tese de doutorado em Sociologia sob orientação do professor Renato Ortiz (IFCH/Unicamp), com doutorado-sanduíche em Paris sob orientação do professor Michael Löwy (2002).

Autor para correspondência Autor para correspondência: Samira Feldman Marzochi Departamento de Sociologia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH, Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP Rua Cora Coralina, s/n CP 6110, CEP 13083-970 Cidade Universitária Zeferino Vaz Campinas, São Paulo, Brasil Fone: (19) 3521-1685 E-mail: marzochi@gmail.com

Esta entrevista, concedida gentilmente por Marcelo Furtado (Diretor de Campanhas do Greenpeace Brasil) no escritório da ONG em São Paulo, a 8 junho de 2005, foi realizada para minha pesquisa de doutorado em sociologia sob a orientação do professor Renato Ortiz e co-orientação do professor Michael Löwy.

Inicialmente interessada pela análise das relações institucionais entre ONGs Internacionais e Nações Unidas sob a hipótese de uma "nova cartografia de poder", fui levada a escolher uma ONG Internacional para estudo de caso. Vale dizer que a derrubada das Torres Gêmeas no mesmo ano de ingresso no doutorado e a subseqüente reação americana a despeito das Nações Unidas e das campanhas não-governamentais contra a Guerra ao Iraque, de certo modo responderam o problema central do projeto. O crescente movimento antiglobalização, que sugeria uma sofisticação sem precedentes da cultura política internacional combinando as idéias da velha e da nova esquerda ao conhecimento da economia global, não mais podia indicar a linha de fuga das transformações políticas.

A incorporação do Greenpeace à pesquisa abriu a tese para novas questões ligadas à cultura política mundial: produção de conhecimento, ciência, financiamentos, ações diretas, mídia, movimentos ecológicos, contracultura, cidadania. Diante da história particular da organização e do modo como ela trabalha em cada país, a relação desta ONG com o Sistema das Nações Unidas se tornou secundária. Sem abandonar o estudo anterior (ONGs e ONU), tive de me orientar conforme duas questões interligadas: uma sociedade civil "global" está sendo construída de fato? O Greenpeace pode ser considerado um "contra-poder"?

O conjunto de perguntas a seguir expressa, entretanto, apenas algumas das várias dimensões que esta ONG Internacional permite explorar. Ao perceber que a riqueza das respostas poderia interessar aos estudiosos das questões ambientais em interface com a ciência e as novas formas do fazer político, sugeri a publicação desta entrevista inédita à Revista Ambiente & Sociedade do Nepam/Unicamp.

Marcelo Furtado trabalha na organização há dezessete anos e sua trajetória é pouco convencional: começou pelo GP2 2 GP = Greenpeace. EUA, trabalhou no GP Internacional (Europa) e só então veio para o GP Brasil como Diretor de Campanhas. Recentemente, tem-se destacado como porta-voz da organização nas discussões sobre mudanças climáticas, revelando-se um intelectual orgânico não-governamental habilidoso. A entrevista traz não só informações sobre a ONG como expressa um modo particular de se construir o discurso militante pela causa simultaneamente ecológica e organizacional.

Samira Feldman Marzochi

Campinas, 25 de abril de 2007

Marzochi: Você é atualmente diretor de campanhas. Entrou no Greenpeace já exercendo esta função?

Furtado: Entrei no Greenpeace há 15 anos. Comecei no Greenpeace como campaigner, que faz os projetos na área de tóxicos (...). Entrei no escritório do Greenpeace nos Estados Unidos, em Washington. Depois, fui para uma posição do Greenpeace na Europa, depois vim para cá. Ainda fiquei vários anos trabalhando aqui como Greenpeace Internacional, mas baseado no Brasil. E agora, há uns dez meses, estou nesta posição de diretor de campanhas.

Marzochi: Era você quem representava o Greenpeace nas Nações Unidas?

Furtado: Antes de pegar esta posição de Diretor de Campanhas, e depois que fui coordenador internacional da Campanha de Comércio de Lixo Tóxico, teve um período em que fiz um trabalho de "políticas públicas na área internacional" e focava a região da América Latina. Então, aí sim, grande parte do meu portfolio era acompanhamento de processos multilaterais, fossem eles Nações Unidas, como convenções de biodiversidade, de clima, Rio+10, fossem outros processos como, por exemplo, Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio, entre outros.

Marzochi: Você notava muitos conflitos entre o Greenpeace e estas agências, o Banco Mundial, a OMC...?

Furtado: Não é tanto um conflito do Greenpeace com elas. Existe um conflito inerente entre as instituições multilaterais e a Sociedade Civil. Por quê? No caso, por exemplo, das Nações Unidas, existe uma tendência, hoje em dia, de privatização do Estado, ou seja, menos e menos o Estado tem poder. A gente vê isso no Brasil e isso também está acontecendo na esfera internacional. O sistema multilateral está muito enfraquecido e ação do Estado, como um agente de políticas públicas internacional, está muito enfraquecido. Na OMC, acho que esse embate é maior ainda porque há um espaço muito pequeno para a Sociedade Civil. Se você imaginar que as decisões da OMC têm um impacto fundamental na vida do cidadão e, no entanto, o cidadão não tem mecanismos de influenciar a Organização Mundial do Comércio, você aí tem um claro ponto de ruptura e impacto com os interesses da Sociedade Civil (...).

Marzochi: Em relação à OMC, o Greenpeace tem status de observador?

Furtado: Nós temos o mesmo status que outras organizações da Sociedade Civil, que é de observador. A gente acompanha, quando possível, as negociações. É um sistema muito fechado, você tem muito pouco espaço para acompanhar o que está acontecendo, e espero que a tendência seja abrir mais, mas a grande questão que fica no ar é a seguinte: se é um sistema multilateral tão poderoso, eles teriam que estar mais integrados às Nações Unidas e com as políticas públicas definidas nas Nações Unidas. O que é frustrante para a Sociedade Civil é que são os mesmos governos quase em um lugar e no outro, e eles agem como se não houvesse nenhuma compatibilidade entre o que ele fala em Nova Iorque ou Genebra, no prédio das Nações Unidas, e o que ele fala na OMC. E isso faz com que a gente tenha que fazer um trabalho forte de tradução. E, às vezes, lembrar ao público, no caso o povo brasileiro, que se é o mesmo governo, então tem que ter política coerente. Afinal de contas, é o mesmo Celso Amorim que está assinando embaixo das duas estratégias e é o mesmo presidente Lula que está dando o tom de qual é a Política Internacional do país. Então, isso a gente tem que lembrar. E, ironicamente, às vezes eles mesmos não têm essa noção. Eles perdem essa noção de qual é a ligação que existe entre uma decisão tomada na reunião ambiental da ONU e numa reunião da Organização Mundial do Comércio.

A gente participa do processo Nações Unidas, eu diria, que já no final dos anos 70 a gente estava envolvida, porque a gente estava envolvida num tratado internacional de banimento dos testes nucleares. Então, a nossa entrada no sistema multilateral se deu através das nossas campanhas. Depois, teve uma campanha importante que foi o banimento da prática de matança das focas, e aí teve uma discussão... A entrada em processos multilaterais aconteceu muito cedo porque ao mesmo tempo em que a gente começa a poder usar esses processos multilaterais como oportunidade para fazer nossas campanhas e transformar resultado de campanha em lei (portanto, dar segurança de que irá haver mudança de processos e padrões), a gente se expandiu pelo mundo. Então, uma organização que começa com uma atividade ali no norte dos Estados Unidos, sul do Canadá, poucos anos depois já começa a se expandir pela Europa, nos anos 80 a gente entra mais no Leste Europeu, nos anos 90 a gente entra na América Latina, meados dos anos 90 a gente entra na ásia. Então, teve todo um processo de crescimento da organização que também refletiu um pouco nosso processo de crescimento dentro das organizações multilaterais, sendo que uma organização internacional como o Greenpeace conta com o fortalecimento das instituições multilaterais.

Para nós, só existe um jeito de fazer um contrapeso ao processo destrutivo de globalização, porque a gente não acha que globalização seja necessariamente ruim. Existem processos de globalização que podem ser muito positivos. A questão é: a globalização tem que ter "cheques e balanços"3 3 Do original, em inglês, checks and balances. , controles e monitoramentos e, num processo globalizado, você tem que ter instituições multilaterais bem estruturadas. E, para chegar nestes processos internacionais bem estruturados, você tem que garantir que a base seja forte. "Base forte" significa: instituições democráticas fortes na base.

Marzochi: Que seriam os Estados...

Furtado: Que seriam os Estados. Então, a gente se sente muito à vontade com essa dinâmica, o que fez com que essa relação, por exemplo, com o movimento sócio-ambiental brasileiro, desde o início, fosse muito tranqüila. E hoje o Greenpeace, depois de tantos anos no Brasil, é reconhecido como uma organização brasileira. A gente ajudou a fundar o Fórum Brasileiro de ONGs no Brasil em 92, a gente participou de todo o crescimento junto com o movimento ambiental brasileiro, a gente sempre teve brasileiros coordenando as políticas do escritório com muito conhecimento de Brasil. E é assim na Índia, é assim na China. Não é que a gente faça alguma coisa diferente. A política da organização é ser forte no país onde está, com a cara dos desafios que o país tem. E, sendo forte no país onde está, contribui para uma arquitetura internacional. Essa é a idéia.

Existe uma questão importante, eu acho, um paradigma colocado à sociedade, que é o "público/privado". Onde termina o "público", onde começa o "privado"? A gente tem uma experiência latino-americana de um Estado ineficiente, uma experiência no Leste Europeu de um Estado que quebrou e uma experiência asiática de um Estado forte sendo fortemente privatizado. Essas são as três experiências que a gente carrega hoje como organização. Em todas elas se mostra que, onde você abriu mão do público para o privado sem "cheques e balanços" apropriados, abriu-se mão do direito do cidadão. Então, não é que nós sejamos contra a privatização, nem nada. A questão é: você tem que fazer com que os gestores e os detentores do poder respondam ainda ao público. Caso contrário, você vai estar privatizando o mundo e criando políticas específicas para grupos de interesse específicos e não estará resolvendo os grandes desafios da humanidade. Um deles é a iniqüidade que (...) tem um impacto ambiental seríssimo. Um mundo tão desigual, em que 20% da população consome 80% dos recursos do planeta, em que uma minoria concentra toda a riqueza e a maioria não tem acesso à educação, serviços públicos, a maneira como essa maioria vai se desenvolver, certamente, será de um jeito ambientalmente bastante destrutivo. Então, a gente só consegue encontrar sustentabilidade no momento em que a gente tem maior eqüidade dentro de um país e nas relações internacionais. Essa é nossa postura de busca dessa eqüidade. Portanto, a gente tem um discurso muito afinado com nossos companheiros do Fórum Social Mundial. Fundamentalmente, estamos todos lutando por eqüidade, acesso, democracia, que são bases, pilares fundamentais.

Existe uma característica do movimento ambientalista, particularmente o europeu e o americano, que segmenta muito a questão ambiental da questão sócio-econômica. No Brasil e nos países em desenvolvimento você jamais pôde fazer essa diferenciação porque as coisas estão muito juntas. A própria organização Greenpeace aprendeu muito com a sua expansão para essas regiões porque aprendeu a lidar e a trabalhar essas questões de maneira conjunta. Jamais foi um processo de cima para baixo aonde você chegava e falava "é assim que a gente faz e vamos fazer assim no Brasil". Foi um processo realmente de aprendizado e retroalimentação. A organização aprendeu muito com a sua entrada na América Latina, com a sua entrada na ásia... Portanto, por que a gente continua sendo uma organização internacional relevante? Nós continuamos relevantes porque a gente aprendeu a escutar e aprendeu as lições. Se você olha o nosso Conselho Internacional você vai achar brasileiros, indianos, que representam um pouco a nossa expansão nessas regiões e que trouxeram conhecimentos ao acaso que ajudam a organização como um todo.

Marzochi: E como são definidas as campanhas do Brasil, por exemplo? Essas pessoas que estão no Conselho Internacional contribuem para a definição das prioridades do Greenpeace?

Furtado: A maneira como a gente trabalha no Brasil e fora do Brasil é a mesma. Quer dizer, você tem um escritório que gera as idéias, monta as idéias, apresenta para o Conselho e o Conselho é que aprova.

Marzochi: O Conselho Internacional?

Furtado: No caso das grandes linhas organizacionais internacionais, é o Conselho Internacional. No caso das campanhas do Brasil, é o Conselho Brasileiro. São pessoas eminentes em várias áreas. A gente tem, no caso do Brasil, (...), advogados, ambientalistas, grupos de mulheres, vários setores interessados que a gente combina num pool de talentos para ajudar a definir o que é melhor para o Brasil. Agora, como é uma organização internacional, há uma linha de negociação quando a gente entra num acordo de um veio central. Então, por exemplo, o que é um "veio central"? "Florestas" é uma campanha importante para o Greenpeace no mundo todo. No Brasil, a floresta em que a gente atua é a Amazônica. No sudeste asiático, a floresta é Papua Nova Guiné, Indonésia, ou seja, muda um pouco o objeto do seu trabalho, mas a linha é essa. Outra linha: "Energia", uma linha importante para a gente. Tanto há no Brasil o desafio energético como na China, na Europa. Todos trabalhamos a questão de energia. No Brasil, é para eliminar a aventura nuclear, para que não se jogue dinheiro fora, para trabalhar pelas energias renováveis e mudar a matriz energética brasileira para uma matriz absolutamente compatível com as características que a gente tem das habilidades naturais do nosso país. E um outro trabalho sobre a questão de Mudança Climática, por quê? Do ponto de vista ambiental, a questão de mudança climática é um dos maiores desafios ambientais que o homem tem hoje pela frente. Havendo mudanças climáticas, havendo um aquecimento do planeta, teremos mudanças no padrão de chuva, na agricultura, no acesso à água, nas condições climáticas, o que significa saúde pública, e as pessoas não sabem direito ainda sobre isso. Então, é nosso papel traduzir isso para o público, alertar o público e pedir a ele ajuda para a gente conseguir mudar as políticas públicas, eliminar esse problema ou minimizá-lo já que estamos chegando num ponto sem retorno. É um pouco por aí que vão as coisas.

Marzochi: Como vocês argumentam em relação às posições que vocês adotam contra transgênicos, contra energia nuclear... Como vocês acumulam conhecimento e passam isso para o público? Cada escritório nacional reúne essas informações?

Furtado: A gente tenta otimizar o fato de ser uma organização internacional. Em primeiro lugar, a gente tem um laboratório que está baseado na Universidade de Exeter, na Inglaterra, que serve como depositário de informações que ajudam a gente a transformar uma informação dura, científica, numa informação estratégica para o público. Quando a gente consegue traduzir com coerência e respaldo científico as conclusões de um determinado estudo, o que isso significa para o cidadão comum, e como baseado nesse estudo você poderia exigir uma mudança numa lei, ou uma mudança de postura, ou o fim de uma indústria, o que for. Eu acho que a gente tem vários exemplos disso, por exemplo, com os organoclorados. Hoje tem uma convenção que se chama Convenção de Estocolmo, que lida com a questão de substâncias tóxicas, que é muito interessante porque lida com dois mitos. O mito número um: "poluição é restrita ao seu quintal, você resolve ela em casa, não existe esse conceito de 'poluição global', ficou-se provado que não". Existe a questão da poluição global. Na verdade, se um país pára de produzir um produto tóxico, mas outro não, todos nós somos afetados. Como chegamos a essa conclusão: foram feitos alguns estudos no Pólo Norte, onde foram tiradas amostras de tecido adiposo, gordura animal, sangue, e verificaram no leite materno das índias Inuit ou no urso polar que jamais saiu dessa região, PCB4 4 PCB = policlorobifenilos ou bifenilos policlorados. , ascarel. Substâncias químicas que jamais foram usadas nessa região podem ser traçadas de grandes centros industriais. Aí falaram "pô, mas a gente baniu o DDT há quinze anos na América do Norte. De onde pode estar vindo isso?". Isso pode estar vindo do México, pode estar vindo da América Central e do Brasil. Bom, então, se continuam fazendo, existe um processo que se chama "processo de gafanhoto" em que isso pode migrar na atmosfera e chegar aos pólos? Pode. Bom, então, se a gente liberar o DDT, se o México, a China, a Índia continuarem usando o DDT, o planeta todo responde por isso? Responde. Então, nós temos que eliminar isso globalmente. Como a gente faz para eliminar isso dado que a gente ainda tem problema de malária? Aí teremos que achar uma alternativa. Isso faz com que a gente tenha que negociar numa escala global. E o lugar para ter essa discussão, o fórum para ter essa discussão, são as Nações Unidas. E a maneira como a gente trabalha essa discussão é traduzindo esse estudo desse professor, dessa Universidade canadense, num instrumento de denúncia, num instrumento de preocupação, num instrumento de educação pública (...).

Marzochi: Esse trabalho de tradução vocês fazem localmente?

Furtado: Ambos, local e internacional. Tem um relatório recente de que a gente fez tradução. Fizemos um estudo grande na Alemanha. O estudo foi solicitado a um instituto renomado alemão para fazer uma pesquisa sobre a insegurança das usinas nucleares. O que se encontrou nesse estudo vale para o mundo todo. A gente traduz e usa aqui. Com a vantagem de que não haverá um cientista brasileiro, inclusive pró-nuclear, que dirá que esse estudo é ruim, porque a base do estudo é muito forte. É um instituto alemão com conhecimento vasto, com história tecnológica... Então, isso ajuda.

Marzochi: O Greenpeace se preocupa muito com as fontes científicas...

Furtado: Olha, nós somos mais conhecidos pelo barquinho de borracha porque é o que as pessoas vêem na televisão. O que elas não sabem é que por trás dessa ação com barquinho de borracha, tem pesquisa, tem política e tem envolvimento emocional. Tem tudo isso. A gente tem uma situação, por exemplo: até a década de 80, era permitido se jogar lixo tóxico num outro país, especialmente um país pobre. Isso aconteceu inclusive no Brasil. Tinham empresas européias que contratavam empresas brasileiras, jogavam seu lixo tóxico aqui e a empresa ainda misturava com fertilizante e jogava na nossa agricultura. Isso era legal, era permitido. Então, o fato de a gente fazer coisas contra a lei não significa que nós sejamos bandidos porque nós estamos querendo mudar as leis e a gente sempre faz isso sem violência. Só que para fazer uma denúncia e dizer "isso está errado", não basta dizer "isso está errado". A gente precisa dizer "isso está errado" e por que. Daí temos as amostras que a gente faz, que a gente retira. Invadimos a propriedade, entramos na Bayer, fomos presos por causa disso e denunciamos a Bayer. Aí o cara vai falar assim "mas por que você denunciou?", "porque tem essa contaminação". "Ah, prova isso", e eu tenho os estudos. Eu tenho as amostras que foram feitas, analisadas no nosso laboratório com cromatografia de ponta, com os picos de um cromatógrafo. Quando você lê uma amostra desse tipo, o que ela faz: ela gera um pedigree que é uma seqüência de picos e você tem que ter uma biblioteca muito boa para comparar esses picos e dizer "isso é isso". A nossa biblioteca é maravilhosa porque a gente coleta amostra há décadas de vários lugares do mundo. Então, a gente faz a imagem de pico, mostra e comprova que aquilo tem problema de contaminação. E aí, o cara tem que explicar como é que está lá. E às vezes consegue explicar, às vezes não. A gente fez uma denúncia da Gerdau, pó ao redor da sua unidade em que apareciam traços de ascarel, uma substância cancerígena. Eles não sabiam explicar como isso apareceu. Mas estava lá. Então, tiveram que fazer uma pesquisa. Aí eles falaram "será que isso vem porque a gente andou incinerando carcaças de transformador que poderiam não estar bem lavadas...?" Eles vão ter que procurar. Então, a comunidade científica reconhece o nosso valor. Esta é a parte científica.

A parte política: nos anos 80, lá por 86, criamos um conceito chamado "produção limpa" para explicar o que a gente queria. Queríamos uma indústria que pudesse produzir sem poluir. E a gente criou o conceito de produção limpa que significa eliminar o problema na raiz. Se você está com problema de chumbo na atmosfera, o que tem que fazer não é botar filtro na bomba de gasolina. Retire o chumbo da gasolina e aí não gera o problema. E aí tem que achar uma alternativa porque você não tem o componente de chumbo que ajuda a explodir a gasolina, tem que achar uma alternativa tecnológica para isso, para não lançá-lo no meio ambiente. "Produção limpa" significa que se não tem nada entrando na cadeia que é contaminante, prejudicial, não vai ter nada na saída da cadeia.

Na época que a gente lançou esse conceito, as pessoas riram. A gente lançou lá nas Nações Unidas esse conceito e eles acharam que era um "sonho de verão". Hoje, as Nações Unidas têm um centro chamado "Centro de Produção mais Limpa" do Programa das Nações Unidas. Esse Centro de Produção mais Limpa é exatamente um centro que promove alternativas que não são exatamente uma cadeia limpa, mas o que você pode fazer numa cadeia chamada "suja" para substituir elementos problemáticos e transformá-la em mais limpa possível. Ou seja, o conceito que a gente jogou lá no meio dos anos 80, hoje é uma realidade política adotada pelas Nações Unidas. E muita gente que está lá negociando isso não sabe que quem criou esse conceito foi o Greenpeace. Até porque, se a gente falar isso, e a gente fala mesmo, muitos, se soubessem, iriam desqualificar: "mas um conceito vindo de ONG... e ainda mais dessa ONG"... Porque é esperado que esses conceitos venham da academia, governos. Acho que está mudando muito isso. E, obviamente, não é que a gente esteja sempre na ponta. O que eu quero dizer é que a gente tem uma preocupação muito séria em compatibilizar a nossa denúncia com isso. E, noutras vezes, o que a gente está fazendo é canalizando a indignação das pessoas. Por exemplo, o "prêmio moto-serra de ouro" que a gente está fazendo. Você pode dizer "ah, mas é só uma votação para quem é o responsável maior pela devastação da Floresta Amazônica". É verdade, é só isso, só que se você olhar o número de pessoas que estão votando no nosso site, você vai ver que a indignação do povo brasileiro com essa situação é alta, o que significa que na hora que o governo federal vir o volume de pessoas que está se mobilizando por isso, eles vão entender que eles têm que tomar mais cuidado com sua política florestal no país e vão ter que dar uma resposta a essa indignação. E isso não é só indignação no Brasil, é indignação fora também. No dia em que a gente lançou essa campanha, saiu na primeira página do site da CNN. Então, se o meu site tem 90.0005 5 Cliques de uma única máquina por mês. pessoas por mês acessando, o site da CNN deve ter uns 9.000.000.

Marzochi: Por qual instituição das Nações Unidas vocês entraram para propor o conceito de "produção limpa"?

Furtado: Pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). Nasceu através do PNUMA. Não fomos nós que propusemos, a gente levou esse conceito para as discussões. Na época, a gente falava sobre a Convenção de Londres sobre o Lançamento de Resíduos Perigosos ao Mar, trabalhando pelo banimento da incineração em alto mar. Nesse contexto, foi criado esse conceito. As Nações Unidas se apropriaram do conceito e o levaram mais adiante criando esse arcabouço.

Marzochi: Este conceito foi criado em reuniões entre ONGs e representantes da Sociedade Civil que ocorrem paralelamente aos encontros oficiais do PNUMA?

Furtado: Não. Dentro do próprio programa você tem alguns espaços para a participação da Sociedade Civil. Antigamente, nesta época, quase não tinham organizações da Sociedade Civil que acompanhavam as reuniões, especialmente na área ambiental. Tinha uma tradição grande na área de direitos humanos, na área de saúde... Na área ambiental tinham poucas organizações. Tínhamos nós, tinha a WWF, mas não eram muitas as organizações que acompanhavam as negociações internacionais, pressionavam. Hoje tem muito mais. Hoje você vai à reunião do Conselho de Desenvolvimento Sustentável e tem quase que uma agenda paralela da Sociedade Civil (...).

Notas

Recebido: 20/5/07

Aceito: 14/6/07

  • 2
    GP = Greenpeace.
  • 3
    Do original, em inglês,
    checks and balances.
  • 4
    PCB = policlorobifenilos ou bifenilos policlorados.
  • 5
    Cliques de uma única máquina por mês.
  • Autor para correspondência:
    Samira Feldman Marzochi
    Departamento de Sociologia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH, Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP
    Rua Cora Coralina, s/n
    CP 6110, CEP 13083-970
    Cidade Universitária Zeferino Vaz
    Campinas, São Paulo, Brasil
    Fone: (19) 3521-1685
    E-mail:
  • 1
    Doutoranda em Sociologia pelo IFCH, é graduada em Sociologia, Ciência Política (UNICAMP, 1995), Antropologia (UNICAMP, 1996) e mestre em Sociologia da Cultura (UNICAMP, 2000). De 1994 a 1995, participou do projeto
    População e Meio Ambiente na Bacia dos rios Piracicaba e Capivari, coordenado pelo professor Daniel Hogan, como bolsista de iniciação científica (NEPO/Unicamp). Finaliza sua tese de doutorado em Sociologia sob orientação do professor Renato Ortiz (IFCH/Unicamp), com doutorado-sanduíche em Paris sob orientação do professor Michael Löwy (2002).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Set 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2007
    ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
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