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Monitoramento limnológico: um instrumento para a conservação dos recursos hídricos no planejamento e na gestão urbano-ambientais

Limnological assessment: a tool for water conservation in the environmental-urban planning and management

Resumos

O processo de urbanização está diretamente relacionado ao de degradação da qualidade das águas naturais. Este artigo discute o papel do diagnóstico de qualidade de água advindo do monitoramento limnológico para subsidiar o planejamento e a gestão urbano-ambientais. Um modelo Pressão-Condição-Resposta foi utilizado para descrever a importância do monitoramento limnológico para a conservação dos recursos hídricos.

Monitoramento limnológico; Planejamento urbano-ambiental; Gestão urbano-ambiental; Modelo pressão-condição-resposta; Esgoto urbano


Urbanization is often related to the degradation of water quality. The global freshwater shortage must be a central concern in our society. This article discusses the role of water quality evaluation from limnological assessment to subsidize environmental-urban planning and management. A Pressure-State-Response model was used to describe the importance of limnological assessment to water resource conservation.

Limnological assessmen; Environmental-urban planning; Environmental-urban management; Pressure-state-response model; Urban sewage


ARTIGO

Monitoramento limnológico: um instrumento para a conservação dos recursos hídricos no planejamento e na gestão urbano-ambientais

Limnological assessment: a tool for water conservation in the environmental-urban planning and management

Humberto MarottaI; Roselaine Oliveira dos SantosII; Alex Enrich-PrastI

ILaboratório de Biogeoquímica, Departamento de Ecologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

IINúcleo de Pesquisas sobre Desenvolvimento Sócio-Espacial (NUPED), Departamento de Geografia, Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

Autor para correspondência Autor para correspondência: Alex Enrich-Prast Centro de Ciências e Saúde - CCS Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Bloco A, sala 102, 2º andar, CP 68020 Rio de Janeiro, RJ, Brasil E-mail: aeprast@biologia.ufrj.br

RESUMO

O processo de urbanização está diretamente relacionado ao de degradação da qualidade das águas naturais. Este artigo discute o papel do diagnóstico de qualidade de água advindo do monitoramento limnológico para subsidiar o planejamento e a gestão urbano-ambientais. Um modelo Pressão-Condição-Resposta foi utilizado para descrever a importância do monitoramento limnológico para a conservação dos recursos hídricos.

Palavras-chave: Monitoramento limnológico. Planejamento urbano-ambiental. Gestão urbano-ambiental. Modelo pressão-condição-resposta. Esgoto urbano.

ABSTRACT

Urbanization is often related to the degradation of water quality. The global freshwater shortage must be a central concern in our society. This article discusses the role of water quality evaluation from limnological assessment to subsidize environmental-urban planning and management. A Pressure-State-Response model was used to describe the importance of limnological assessment to water resource conservation.

Keywords: Limnological assessmen. Environmental-urban planning. Environmental-urban management. Pressure-state-response model. Urban sewage.

1 Introdução

O meio urbano já pode ser considerado o espaço onde a maioria da população da América Latina está estabelecida (LEE, 2000). No Brasil, quinto maior território nacional do mundo e onde aproximadamente 81% dos habitantes são considerados urbanos (IBGE, 2000a), o processo de urbanização corporativa, que, segundo Santos (1993), privilegiou os interesses das grandes firmas em detrimento dos serviços sociais, não foi acompanhado pela adequada constituição de infra-estrutura sanitária. Cerca de 65% dos dejetos domésticos captados pela rede coletora brasileira não são tratados, contaminando o solo e os ecossistemas aquáticos (IBGE, 2000b).

Em escala global, a água deve ser analisada como um recurso essencial ao uso humano que, apesar de renovável, necessita cada vez mais de um manejo criterioso para não se tornar escasso pela própria degradação antropogênica (VITOUSEK et al., 1997). Nesse sentido, desde a década de 1970, a questão tem recebido atenção cada vez maior da comunidade política internacional, dando origem a diversas iniciativas primeiramente lideradas pelas agências multilaterais de desenvolvimento, e, posteriormente por diversas organizações não governamentais, em prol da segurança hídrica das nações (VARGAS, 2005).

Sabe-se que a extensão dos tecidos urbanos à margem da legislação de uso do solo e associada à especulação imobiliária vem sendo reproduzida por diferentes classes sociais, resultando na ocupação de áreas sem infra-estrutura sanitária e causando a degradação da qualidade das águas naturais. Assim, a principal causa de degradação das águas no espaço urbano é o lançamento de efluentes domésticos sem o tratamento adequado, os quais são ricos em matéria orgânica e nutrientes. Dessa forma, o excessivo aporte de nutrientes nos ecossistemas aquáticos é fortemente correlacionado com a ocupação humana na bacia hidrográfica (ARBUCKLE; DOWNING, 2001).

O aumento antropogênico das concentrações de nutrientes, principalmente nitrogênio e fósforo, nos ecossistemas aquáticos é denominado de "eutrofização artificial" (SMITH et al., 1999). Este processo pode causar expressivos prejuízos à sociedade humana, especialmente no que tange a problemas de saúde pública e de redução do potencial de irrigação, de produtividade pesqueira, de balneabilidade e de inúmeras outras possibilidades de uso pelos agentes sociais (ESTEVES, 1998). Assim, o enfrentamento da carência de infra-estrutura urbana e a mitigação da degradação ecológica são considerados pelo próprio Banco Mundial (1991) como dois eixos fundamentais para a política urbana a fim de contribuir para o melhor desempenho da economia em nível local e global.

O presente estudo enfoca a degradação da qualidade da água em conseqüência da expansão urbana desprovida da adequada constituição de infra-estrutura sanitária (relacionada aos equipamentos de coleta e tratamento dos esgotos). O objetivo é discutir o papel do monitoramento da qualidade das águas como um importante instrumento ao planejamento e à gestão no espaço urbano, relacionando-o especificamente à problemática do lançamento de esgotos domésticos sem tratamento nos ecossistemas aquáticos continentais.

2 Definição e importância do monitoramento limnológico

Um programa de monitoramento ecológico pode ser definido como a tentativa de identificar mudanças nas variáveis bióticas e abióticas de maneira a gerar propostas de manejo para viabilizar o uso futuro dos recursos existentes (BARBOSA, 1994). Inserido nesse contexto, o monitoramento limnológico trata especificamente da qualidade da água dos ecossistemas aquáticos continentais, incluindo rios e lagos (WETZEL, 2001). Assim, abrange tecnicamente a coleta periódica associada à análise de dados e informações de qualidade da água para propósitos de efetivo gerenciamento dos ecossitemas aquáticos (BISNAS, 1990).

Entre as variáveis limnológicas utilizadas na avaliação da qualidade da água, as quais são diretamente influenciadas pelo uso do solo na bacia de drenagem, destacam-se as concentrações de fósforo, nitrogênio, oxigênio dissolvido e clorofila a, bem como os valores de pH, turbidez e densidade de coliformes fecais e totais.

É importante ressaltar, que, além do conhecido caráter técnico de diagnóstico, qualquer análise sobre a importância do monitoramento limnológico demanda a inclusão da pesquisa científica, a qual pode ser amplamente subsidiada pelas ações ou mesmo pelos dados desse monitoramento. A pesquisa científica contribui para tornar as ações para mitigação da degradação ecológica mais eficientes e viáveis economicamente, pois permite a geração de informação, recurso-chave de administração na sociedade humana (HENDERSON, 2003).

3 Alteração da qualidade da água pelo lançamento de efluentes domésticos sem tratamento: síndrome da ocupação humana desprovida de infra-estrutura adequada

As alterações na qualidade da água dos ecossistemas podem ser causadas por processos predominantemente naturais ou antropogênicos. Enquanto as alterações naturais são comumente lentas e graduais, resultantes da lixiviação terrestre e do escoamento hídrico, as alterações antropogênicas são em geral induzidas rapidamente (ESTEVES, 1998). Assim, o lançamento de efluentes domésticos sem tratamento inviabiliza diversos usos humanos dos ecossistemas aquáticos continentais. Essa redução do potencial de uso é decorrente da degradação ecológica (redução da diversidade de espécies biológicas) e sanitária (redução da qualidade da água para o uso humano) causada pelo aporte de esgotos nos rios e lagos.

Na Tabela 1, incluímos somente as variáveis limnológicas mais utilizadas na avaliação de impactos decorrentes do aporte de esgotos nos ecossistemas aquáticos. No entanto, é importante ressaltar que o monitoramento limnológico poderá melhor subsidiar a tomada de decisões na medida em que inclua um maior número de variáveis, especialmente em relação ao levantamento das espécies bioindicadoras da qualidade da água.

Constatada a gravidade dos efeitos relacionados à alteração das variáveis limnológicas, cabe ressaltar que um adequado manejo do lançamento dos efluentes domésticos sem tratamento implica em gastos extras no orçamento destinado à construção de sistemas de coleta. Existe a necessidade adicional de integrá-los a um criterioso planejamento do uso do solo e a programas de educação ambiental, os quais venham contribuir para uma distribuição mais racional da ocupação e também para estimular e qualificar a participação popular na gestão dos recursos hídricos através de canais participativos.

4 O monitoramento limnológico no contexto do planejamento e da gestão urbano-ambientais

De acordo com Franco (2000), a palavra planejamento já carrega em seu valor semântico o sentido de empreendimento, projeto, sonho e intenção. Como empreendimento, já revela o ato de intervir ou transformar uma dada situação numa determinada direção, a fim de que se concretizem algumas intenções.

O sociólogo Manuel Castells (1996) define o planejamento como um processo pelo qual se adotam decisões racionais acerca de objetivos e linhas de conduta futuros. Já o geógrafo Marcelo Lopes de Souza (2002) atenta para a diferença entre o planejamento e a gestão, pois:

Planejar sempre remete ao futuro (...) significa tentar prever a evolução de um fenômeno ou (...) tentar simular os desdobramentos de um processo, com o objetivo de melhor precaver-se contra prováveis problemas, ou, inversamente, com o fito de melhor tirar partido de prováveis benefícios (...) Gestão remete ao presente (...) gerir significa administrar uma situação dentro dos marcos dos recursos presentemente disponíveis e tendo em vista as necessidades imediatas (SOUZA, 2002, p. 46).

Tanto o planejamento quanto a gestão, entretanto, não prescindem à necessidade de diagnósticos que possam embasar o processo decisório, e, neste sentido, os diagnósticos de qualidade da água no âmbito específico do monitoramento limnológico mostram-se de grande valia no sentido de compor possíveis cenários urbano-ambientais futuros, norteando o processo de tomada de decisões em diferentes momentos, sendo que:

O planejamento é a preparação para a gestão futura, buscando-se evitar ou minimizar problemas e ampliar margens de manobra; a gestão é a efetivação, ao menos em parte (...), das condições que o planejamento feito no passado ajudou a construir. Longe de serem concorrentes ou intercambiáveis, planejamento e gestão são distintos e complementares (SOUZA, 2002, p. 46, grifo do autor).

Inserido nesse contexto, o planejamento urbano pode ser definido como a aplicação de estudos prévios, visando a realização de objetivos pré-estabelecidos, relativos ao crescimento e ao desenvolvimento de zonas urbanas (CASTELLS, 1996). A constituição de infra-estrutura sanitária, acompanhada pelo monitoramento das variáveis limnológicas, nesse sentido, mostram-se providências essenciais à expansão do tecido urbano, de forma a evitar a propagação de problemas de saúde pública e a inviabilidade de usos aquáticos em decorrência de alterações limnológicas.

Muito embora a mitigação da degradação ecológica seja sabidamente relevante à melhoria da qualidade de vida da população em geral, essa meta só passa a ser prioridade sob a ótica capitalista tradicional (representada, no meio urbano, pelo planejamento funcionalista) quando passa a existir escassez de recursos capaz de comprometer a reprodução futura do modelo produtivo.

Todavia, uma vez que a escassez global da água já é uma realidade (VITOUSEK et al., 1997) a qual vem atingir a todas as classes sociais, a preservação dos ecossistemas aquáticos constitui-se atualmente em bandeira comum aos mais diferentes atores, não obstante estejam em lados antagônicos do modelo produtivo. Dessa forma, a demanda pela gestão sustentável dos recursos hídricos vem sendo ideologicamente apropriada, tanto por modelos de planejamento e/ou gestão inseridos em uma ótica capitalista que objetiva, sobretudo, a reprodução a longo prazo do modelo produtivo e de seus agentes, quanto por uma perspectiva que prioriza a diminuição das injustiças sociais e a melhoria da qualidade de vida da população. Trata-se de uma questão abraçada tanto pelas agências multilaterais de desenvolvimento quanto pelas mais diversas organizações da sociedade civil, somente para citar atores dos mais expressivos.

Nas origens da preocupante situação atual das águas doces, está o modelo de fornecimento intensivo desse recurso, fundado com a urbanização Pós-Revolução industrial. Esta "estratégia da oferta" (VARGAS, 1999) viabilizada por modelos de planejamento e gestão comprometidos com interesses privados de lucro, trouxe prejuízos à percepção da água, pelo cidadão, enquanto recurso escasso, e gerou uma cultura consumista da água, a qual veio trazer crescentes dificuldades de abastecimento, principalmente nas grandes cidades, as mais "consumistas" e mais distantes dos mananciais (JACOBI, 1999; VARGAS, 2005).

É para "amenizar" problemas dessa natureza que o planejamento ambiental em áreas urbanas pode favorecer uma dinâmica de crescimento sócio-econômico mais integrada à conservação dos ecossistemas naturais. É nesse sentido que o capítulo 7 da Agenda 21 (ONU, 1992) destaca que o planejamento ambiental deve viabilizar sistemas de infra-estrutura ambientalmente saudáveis para absorver futuras demandas, ou seja, que possam ser traduzidos pela sustentabilidade do desenvolvimento urbano. O documento ressalta que a premissa desse desenvolvimento deve ser pautada na disponibilidade dos suprimentos de água, na qualidade do ar, na drenagem, nos serviços sanitários e no tratamento adequado dos rejeitos (ONU, 1992).

Embora, tal como Vargas (2005), acredita-se que seja indispensável haver mudanças nos valores sócio-culturais atrelados ao consumo da água, passando a racionalizar o seu uso de acordo com uma demanda pautada em necessidades reais (e não "inventadas"), que possibilitem passar de um modelo de utilização extensiva dos recursos hídricos para um modelo de utilização intensiva (VARGAS, 2005), prioriza-se aqui, o fato de que, na atualidade, a imprópria utilização dos recursos hídricos é responsável, direta ou indiretamente, por uma série de problemas ambientais que afetam o meio urbano deteriorando sua qualidade de vida (problemas ligados à poluição, enchentes, propagação de doenças, assoreamento, erosão, deslizamentos e escorregamentos de encostas etc). Principalmente em áreas periféricas, em razão da insuficiente rede de esgotos, é sabidamente freqüente o lançamento de esgotos a céu aberto, a existência de conexões clandestinas no sistema de águas pluviais e de lançamentos diretos nos rios, entre outras irregularidades que deterioram a saúde pública e a qualidade de vida da população, contribuindo com as injustiças sociais.

A grave dimensão dos problemas decorrentes da má utilização dos recursos hídricos no meio urbano demanda urgentes medidas no sentido de sua mitigação, e, por outro lado, demonstra a relação entre a conservação dos ecossistemas aquáticos e o bem-estar social, tornando ainda mais flagrante a inadequação de uma visão dissociada entre as dimensões ambiental e urbana no planejamento e na gestão. Acredita-se, a exemplo de Lima e Roncaglio (2001), que tais dimensões devem ser consideradas como partes sobrepostas de um mesmo todo, ou seja, o meio ambiente em seus níveis natural e social. Apesar de a problemática urbana possuir uma dinâmica extremamente complexa e singular, merecendo uma esfera própria de planejamento, esta não deve ser independente, mas integrada à dimensão do "planejamento ambiental" (ULTRAMARI, 2001).

Assim, o planejamento e a gestão urbano-ambientais podem ser entendidos como instrumentos que partem de uma premissa fundamental: a ótica de interseção entre as necessidades de um crescimento urbano aliado de forma inerente à conservação dos recursos naturais. É dentro desse contexto que o monitoramento limnológico torna-se um instrumento para previsão e manejo de uma importante problemática ambiental urbana, fornecendo subsídios à execução de medidas de planejamento e gestão urbano-ambientais no que tange aos recursos hídricos.

5 Monitoramento limnológico como instrumento ao saneamento ambiental: premissa à utilização de longo prazo dos recursos hídricos

Qualquer discussão sobre a utilização de recursos naturais em longo prazo perpassa por preceitos de uma lógica de uso sustentável desses recursos. Embora seja bem disseminada (e muito polêmica) a demanda por se aliar crescimento econômico, bem-estar social e conservação dos recursos naturais, ainda não existe um consenso acadêmico sobre o significado e, principalmente, sobre a viabilidade prática do conceito de sustentabilidade (FABER et al., 2005). Sem entrar nesse debate, mas enfatizando a gravidade da situação atual, o presente estudo considera ser imprescindível e urgente, determinado nível de mitigação da degradação ambiental por meio de instrumentos técnicos disponíveis, tendo em vista uma melhor qualidade de vida dos agentes sociais e até mesmo a utilização econômica em longo prazo dos recursos naturais (utilização necessária a qualquer modo produtivo).

Assim, denominamos de "trajetória sustentável" a priorização da complexidade ambiental no âmbito do planejamento e da gestão, ou seja, a busca por maior integração entre as indissociáveis e interdependentes dimensões preponderantes de atuação (a ecológica, a social e a econômica), considerando a necessidade de uma ampla mobilização e articulação política comprometida com o bem público. Nesse contexto, a dimensão política deve ser entendida como um eixo integrador entre o planejamento e a gestão comprometidos com o interesse público, pois é a via que possibilita a tomada de decisão. As condições ecológica, social e econômica foram didaticamente separadas para a descrição simplificada de sua interdependência na Figura 1.


Considerando que é no meio urbano que existem atualmente as maiores concentrações populacionais e de unidades de produção, nele se faz intensa a degradação dos ecossistemas, e, portanto, a necessidade tanto de mitigação dos problemas urbano-ambientais decorrentes, quanto de um planejamento que, ao trilhar uma trajetória sustentável, possibilite o avanço da urbanização de forma mais integrada à manutenção dos ecossistemas, à maior justiça social e à qualidade de vida. Dessa forma, trajetórias sustentáveis que viessem contribuir para maiores níveis de eqüidade social e de conservação ecológica nos aproximariam do alcance de um verdadeiro "desenvolvimento urbano", menos predatório e mais racional.

Sem aprofundar, aqui, a questão supracitada, restringe-se a mencionar que a "ciência da sustentabilidade" ainda carece de reflexões de fôlego, além de ferramentas técnicas, inclusive de metodologias, para se diagnosticar a vulnerabilidade e a resiliência dos ecossistemas frente aos distúrbios antrópicos (KATES et al., 2001). Essa carência de meios técnicos é ainda agravada pela falta de integração entre a pesquisa científica e a gestão do espaço.

No sentido da composição de trajetórias sustentáveis no uso dos recursos hídricos, é importante ressaltar que a eficácia na implantação do monitoramento limnológico está incondicionalmente associada à universalização das infra-estruturas, especialmente de coleta e tratamento dos esgotos. A constituição dessas infra-estruturas, por sua vez, faz parte das ações de saneamento que em sentido amplo pode ser definido como:

O conjunto de ações e relações que o homem estabelece para manter ou alterar o ambiente, no sentido de evitar ou controlar doenças, promovendo o conforto e o bem-estar. Reflete e condiciona diretamente a qualidade de vida, (...) [mantendo] interface com diversas outras políticas, notadamente a da saúde, a da Ecologia e a do Desenvolvimento Urbano. (COSTA, 1998, p. 50)

A composição do conceito de "saneamento básico" no Brasil esteve associada à "escassez de verbas" associada à urbanização corporativa detentora de outras prioridades. Assim, a noção foi criada, na década de 1950, no sentido de delimitar as ações que envolviam somente o abastecimento de água e o esgotamento sanitário. Já na década de 1980, com a crítica ao Plano Nacional de Saneamento do Brasil (PLANASA), diversos profissionais do setor passaram a reivindicar a ampliação do conceito de saneamento básico, uma vez que a dimensão ecológica e de saúde pública não estavam plenamente contempladas. Foi com a entrada da agenda ambiental no cenário político que se passou à discussão do termo "saneamento ambiental" no sentido de compreender todas as medidas necessárias para evitar problemas de saúde pública (COSTA, 1998). Assim, o conceito saneamento ambiental inclui não somente o abastecimento de água e o tratamento dos esgotos sanitários, mas também o tratamento de outros resíduos químicos, as obras de drenagem urbana, o controle populacional de vetores de doenças e a mitigação da degradação dos ecossistemas aquáticos.

Nesse cenário, o presente estudo também considera pertinente incluir o monitoramento limnológico enquanto etapa necessária à implementação do saneamento ambiental, pois o entende como um instrumento de diagnóstico e de aprimoramento de metodologias, essencial à sua prática efetiva. A execução do saneamento ambiental, que inclua esse monitoramento, explicita muito bem a já citada interdependência ecológica, social e econômica do planejamento e da gestão comprometidos com o longo prazo, pois perpassa por todas essas dimensões. Assim, investir também no monitoramento limnológico (inserido no contexto do saneamento ambiental) constitui esfera de interesse comum à mitigação da degradação ecológica ou sanitária e à execução de políticas sociais.

A necessidade de inserção do monitoramento limnológico no saneamento ambiental torna-se ainda mais evidente ao se destacar que a maioria dos ecossistemas aquáticos urbanos realmente pertence à categoria de "ambiente de assimilação de resíduos", constituindo sistemas dissipadores da desordem advinda da sociedade urbano-industrial (ODUM, 1985). Por esse motivo, são ecossistemas onde o monitoramento limnológico se mostra imprescindível para subsidiar as constantes ações de manejo, que permitem por sua vez conservar seus múltiplos usos e exemplificar como a Ecologia é inseparável da Economia (CONSTANZA, 1997). Dessa forma, entendemos que somente se torna possível praticar o saneamento ambiental sob óticas sustentáveis, quando houver, em suas ações, uma efetiva e integrada política de inserção do monitoramento limnológico.

6 Monitoramento limnológico: um instrumento essencial às ações de ordenamento espacial com inserção no modelo pressão-condição-resposta para uso dos recursos hídricos

A interdependência entre as condições ecológica, social e econômica no espaço urbano evidencia como o monitoramento limnológico, inserido nas políticas sociais de saneamento ambiental, também é essencial ao ordenamento espacial. Apesar de que nenhum sistema de uso dos recursos hídricos possa ser eficientemente planejado e gerenciado sem os diagnósticos adequados (BISNAS, 1990), deve-se reconhecer que o monitoramento isolado, ou seja, que não se encontra inserido em outras ações de saneamento ambiental, dificilmente pode se reverter em melhorias efetivas à população.

Portanto, a localização dos empreendimentos, os padrões de assentamento e a capacidade de suporte dos sítios, tanto em relação à disponibilidade de água quanto à capacidade de assimilação ou de encaminhamento da carga poluidora, são fundamentais ao planejamento territorial (COSTA; MONTENEGRO, 1998). Associado aos estudos sobre dinâmica de uso do solo na bacia de drenagem, o monitoramento limnológico possibilita detectar precocemente as fontes de degradação antropogênica dos ecossistemas aquáticos. Por sua vez, o diagnóstico ambiental precoce é de suma importância para subsidiar a tomada de decisão, a qual permita evitar ou reverter os prejuízos ecológicos, sociais e econômicos da degradação sanitária.

As pesquisas limnológicas nas escalas de análise espacial e temporal são instrumentos que possibilitam detectar as principais áreas fonte de degradação antropogênica (WIT; BENDORICCHIO, 2001) e justificar a composição do saneamento ambiental, considerando a demanda e os impactos de empreendimentos imobiliários. Em uma bacia de drenagem, uma fonte de poluição sanitária pode comprometer a qualidade das águas de outros locais situados à jusante. Dessa forma, o monitoramento limnológico também pode embasar o planejamento e a gestão urbano-ambientais em diferentes escalas de análise, da municipal à internacional.

Por conseguinte, o monitoramento limnológico pode ser considerado um instrumento ao planejamento de atuações tanto preventivas, ao detectar, precocemente, tendências prejudiciais; quanto corretivas, ao possibilitar o diagnóstico da efetiva degradação ecológica e sanitária. As pesquisas subsidiadas por esse monitoramento, se devidamente difundidas e adaptadas às peculiaridades de cada local, resultam em tecnologias e conhecimentos que podem ser aplicados em distintas áreas. O próprio uso humano dos cursos d'água somente deveria ser planejado e viabilizado após a comprovação da possibilidade dos diversos usos pelo monitoramento limnológico.

O modelo conceitual Pressão-Condição-Resposta (PCR) foi proposto pela Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento para estruturar seus trabalhos sobre políticas ambientais e de informação (OECD, 1998). Este modelo considera que as atividades humanas degradam direta e indiretamente os recursos naturais, causando um prejuízo que gera, por sua vez, resposta contrária da sociedade. Essa resposta é originada desde o nível de governos e grandes corporações públicas ou privadas até o nível do cidadão. O modelo PCR considera três grandes tipos de indicadores (OECD, 1998): a) de Pressão, que descrevem a degradação causada pelas atividades humanas sobre os recursos naturais; b) de Condição, que avaliam a qualidade e a quantidade dos recursos naturais; e c) de Resposta, que mostram a extensão da resposta da sociedade, incluindo as reações individuais e coletivas. A partir do modelo PCR, o presente estudo propôs um modelo conceitual que insere o monitoramento limnológico na pressão de degradação promovida pelas atividades humanas e na resposta mitigadora dos agentes sociais, tendo como foco central de análise a busca por trajetórias sustentáveis no uso de recursos hídricos urbanos (Figura 2).


De acordo com o modelo conceitual descrito na Figura 2, o monitoramento limnológico gera a informação sobre a condição sanitária dos ecossistemas aquáticos urbanos (item [1]; Figura 2). O diagnóstico técnico da degradação antropogênica possibilita embasar a cobrança e o monitoramento, por parte da sociedade civil, por decisões acertadas dos gestores (item [2]; Figura 2). A conservação dos recursos hídricos passa a ser uma demanda cada vez mais disseminada entre os agentes sociais, uma vez que sua escassez compromete a sobrevivência humana e ainda prejudica a própria reprodução do capital em longo prazo. Embora a resposta dos agentes sociais por meio de medidas mitigadoras (item [3]; Figura 2) dependa de muitos outros fatores (especialmente educação, vias de divulgação da informação, fiscalização pública e viabilidade técnica), é o monitoramento limnológico que embasa tecnicamente essa resposta. Além disso, esse monitoramento também subsidia a constituição do saneamento ambiental (item [4]; Figura 2), seja por embasar a cobrança pela tomada de decisão ou mesmo por viabilizar (em associação com a pesquisa científica) formas de manejo mais apropriadas à conservação dos ecossistemas e dos recursos.

Exposto isto, nota-se que o monitoramento limnológico permite embasar tecnicamente a tomada de decisões tanto em um nível "macro" (representado por governos, entidades supranacionais e privadas, movimentos sociais etc.) quanto em um nível "micro" (representado por cada cidadão e formas locais de associativismo). Obviamente, os níveis "macro" e "micro" de tomada de decisões se complementam em importância no que tange a viabilizar o uso dos ecossistemas em longo prazo.

Dessa forma, o monitoramento limnológico pode contribuir efetivamente para reduzir a pressão de degradação antropogênica sobre os ecossistemas aquáticos (item [5]; Figura 2), a qual reduz a possibilidade de conservar o potencial de uso dos recursos hídricos por trajetórias sustentáveis. Assim, o mesmo subsidia o planejamento de medidas de mitigação da degradação ecológica, além de contribuir para um melhor conhecimento acerca das propriedades bióticas e abióticas dos ecossistemas aquáticos.

Acredita-se que somente seja possível a composição de trajetórias sustentáveis no uso dos recursos hídricos mediante a inserção de ações de planejamento para articular a resposta dos agentes sociais (item [7]; Figura 2). A construção de trajetórias sustentáveis, permitiria, ao menos, buscar uma conservação racional do potencial uso de longo prazo dos ecossistemas aquáticos (item [8]; Figura 2), e, sendo assim, o monitoramento limnológico vem contribuir com as esferas social, ecológica e econômica, auxiliando a manutenção da qualidade e da quantidade das águas doces, essenciais às atividades humanas (item [6]; Figura 2).

7 Considerações finais

A informação sobre a condição ecológica e sanitária dos ecossistemas aquáticos é essencial para subsidiar as ações tanto no tempo presente (gestão) quanto no futuro (planejamento). A análise integrada entre as interdependentes condições ecológica, social e econômica no espaço urbano é esfera básica de interesse do planejamento e da gestão urbano-ambientais. O monitoramento limnológico quando isolado de políticas sociais mais amplas (notadamente o saneamento ambiental) pouco se traduz em melhorias efetivas à sociedade. No entanto, o seu papel técnico de gerar informações e de subsidiar o aprimoramento de metodologias é imprescindível e insubstituível para a efetiva execução do planejamento e da gestão urbano-ambientais. Sendo assim, qualquer sistema produtivo comprometido com o uso dos recursos hídricos em longo prazo, deve considerar o monitoramento limnológico não como um ônus, mas como um investimento vital às gerações futuras.

Recebido: 7/11/2006

Aceito: 24/9/2007

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  • Autor para correspondência:
    Alex Enrich-Prast
    Centro de Ciências e Saúde - CCS
    Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
    Bloco A, sala 102, 2º andar, CP 68020
    Rio de Janeiro, RJ, Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Out 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2008

    Histórico

    • Aceito
      24 Set 2007
    • Recebido
      07 Nov 2006
    ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
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