Acessibilidade / Reportar erro

Híbridos na paisagem: uma etnografia de espaços de produção e de conservação

Hybrids from landscape: ethnography of production and conservation spaces

Resumos

Paisagens são construídas, no duplo sentido de serem concebidas e de serem produtos da ação prática de sujeitos sobre o mundo. O artigo trata dos híbridos que emergem nas paisagens construídas por habitantes da zona rural de São Luiz do Paraitinga e por uma equipe de pesquisadores, da qual fiz parte, que estudava a região. A emergência de tais híbridos, num contexto considerado de crise por diversos agentes, em paisagens onde se presume uma divisão em espaços de produção e espaços de preservação, indica uma crise mais ampla da Modernidade, no sentido indicado por Latour, de que "jamais fomos modernos".

Antropologia e meio ambiente; Híbridos; Paisagem


The present article deals with hybrids emerging in the landscapes built by the inhabitants of the rural zone of São Luiz do Paraitinga and a team of researchers studying the region, which I was part of. The appearance of these hybrids, considered to have taken place in a context of crisis, said so by several agents, and in landscapes where there is presumably a division of production and preservation sites, indicates a broad crisis of Modernity, in the sense of Latour that "we have never been modern".

Anthropology and environment; Hybrids; Landscape


ARTIGOS

Híbridos na paisagem:uma etnografia de espaços de produção e de conservação* * Trabalho apresentado na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, Porto Seguro-BA, junho de 2008 , ** ** O material deste artigo é, originalmente, parte da tese de doutorado "Etnografia da paisagem: natureza, cultura e hibridismo em São Luiz do Paraitinga", apresentada ao programa de Doutorado em Ciências Sociais do IFCH/Unicamp (SILVEIRA, 2008)

Hybrids from landscape: ethnography of production and conservation spaces

Pedro Castelo Branco Silveira

Fundação Joaquim Nabuco (Coordenação Geral de Estudos Ambientais e da Amazônia), Recife - PE, Brasil

Autor para correspondência Autor para correspondência: Pedro Castelo Branco Silveira Recide - PE, Brasil E-mail: pedro.silveira@fundaj.gov.br

RESUMO

Paisagens são construídas, no duplo sentido de serem concebidas e de serem produtos da ação prática de sujeitos sobre o mundo. O artigo trata dos híbridos que emergem nas paisagens construídas por habitantes da zona rural de São Luiz do Paraitinga e por uma equipe de pesquisadores, da qual fiz parte, que estudava a região. A emergência de tais híbridos, num contexto considerado de crise por diversos agentes, em paisagens onde se presume uma divisão em espaços de produção e espaços de preservação, indica uma crise mais ampla da Modernidade, no sentido indicado por Latour, de que "jamais fomos modernos".

Palavras-chave: Antropologia e meio ambiente. Híbridos. Paisagem.

ABSTRACT

The present article deals with hybrids emerging in the landscapes built by the inhabitants of the rural zone of São Luiz do Paraitinga and a team of researchers studying the region, which I was part of. The appearance of these hybrids, considered to have taken place in a context of crisis, said so by several agents, and in landscapes where there is presumably a division of production and preservation sites, indicates a broad crisis of Modernity, in the sense of Latour that "we have never been modern".

Keywords: Anthropology and environment. Hybrids. Landscape.

1 Natureza, cultura e modernidade

Este artigo situa-se em uma zona de fronteira entre disciplinas acadêmicas com tradições de pensamento diversas, a antropologia e a ecologia. Ao enveredar por terrenos fronteiriços, corremos um duplo risco. O primeiro é o de, caminhando por regiões pouco conhecidas, ausentes nos mapas e guias, perdermo-nos em nossos caminhos. O segundo risco é o de sermos interpelados pelos soldados das fronteiras, prontos a vigiar as linhas demarcatórias dos territórios, barrando a entrada dos que não possuem autorização. Arriscando-me a me perder em inconsistências e a ser barrado por guardas aduaneiros ao ultrapassar os limites disciplinares, analiso aqui relações postas entre natureza e cultura, entre o social e o ambiental, entre o sócio-antropológico e o ecológico.

Não sou o primeiro a habitar essa região fronteiriça. As fronteiras entre antropologia e ecologia possuem um extenso perímetro, e foram cruzadas anteriormente em alguns pontos de sua extensão. Nesta seção, procuro situar o ponto de fronteira em que estou transitando, diferenciando-o de outros cruzamentos.

Em outro artigo (SILVEIRA, 2007), revisei as formas como o natural foi tradicionalmente analisado na antropologia e como o social foi tradicionalmente tratado na ecologia. Reporto-me a ele no sentido de afirmar que há tradicionalmente uma divisão acadêmica de trabalho entre cientistas biológicos e cientistas sociais, em que estudar os processos da vida "natural" dá-se em chaves diferentes do que estudar os processos da vida "social". Isto está na base de fundação das disciplinas, seja na forma como Weber, Marx e, principalmente, Durkheim, foram acionados para definir a sociologia, seja na forma pela qual a ecologia definiu-se como matematização do mundo biológico, em oposição à abordagem descritiva e diacrônica da história natural (KINGSLAND, 1995). Não pretendo, portanto, analisar o social reduzindo-o a um epifenômeno do natural, ou o natural como algo irrelevante para o estudo do social.

Defendo aqui, entretanto, que essa divisão epistemológica reflete uma divisão ontológica na maneira moderna de se entender o mundo. Voltando à metáfora da fronteira, as divisões na produção acadêmica entre natureza e cultura, entre ambiente e sociedade, refletem a existência de um aparato ontológico, os guardas de fronteira, que constroem um mundo em que natureza e cultura separam-se, e no qual a produção acadêmica está incluída.

Construção, aqui, toma um sentido diverso daquele usualmente usado nas ciências sociais, de construção enquanto operação mental. Ao falar em construção de mundo, estou me remetendo, ao mesmo tempo, ao simbolismo e à prática, simbolismo no sentido de projeto de futuro (SARTRE, 1967) e prática enquanto projeto experienciado no mundo vivido. Nesse sentido, a divisão entre o projeto e a experiência é também dialética, pois, como posto por Ingold (2000), as formas de agir no ambiente são também formas de percebê-lo. Assim, ao construir ambientes, colocamos em prática projetos que se alteram face ao processo de pô-los em prática. É a perspectiva relacional, chamada por Ingold, em inglês, de dwelling perspective, relativa a experienciar um ambiente (INGOLD, 2000). Uso neste texto, como forma de me referir às idéias e práticas de forma relacional, o termo práticas de sentido.

A Modernidade, que tem a divisão entre natureza e cultura como uma de suas bases ontológicas, faz com que, delimitadas as fronteiras, os habitantes das diferentes nações disciplinares ponham em prática políticas espaciais diferentes em cada lado da linha divisória. As fronteiras entre o natural e o cultural passam, portanto, a ter existência na experiência vivida a partir do projeto moderno. É como Tlön, o mundo da metafísica idealista presente em "Ficções", de Borges (1982), em que certos objetos mentais, frutos de crenças e desejos, terminavam por se materializar; afinal, diz Borges, tantos séculos de idealismo não poderiam ter deixado de influir sobre a realidade1 1 A relação da metafísica de Tlön com as práticas de sentido vem da leitura do texto coletivo em construção "A onça e a diferença", presente no wiki do projeto AmaZone, coordenado por Eduardo Viveiros de Castro e com contribuição de diversos autores ( http://amazone.wikia.com/wiki/Projeto_AmaZone, consultado em 26/4/2008). .

Projetos, portanto, põem-se em prática dialeticamente no mundo vivido, mas não necessariamente (e geralmente não o fazem) concretizam-se da forma como projetados. O tema do presente artigo é justamente este: um exemplo empírico da forma como práticas de sentido de referencial moderno encontram, na experiência vivida, elementos que parecem afirmar problemas com esse referencial.

Remeto-me ao ensaio "Jamais Fomos Modernos", de Bruno Latour (1995), em que o autor propõe que a Modernidade caracteriza-se pela suposta divisão do mundo em entes purificados de natureza ou cultura, portanto racionalmente compreensíveis e plenamente diferenciáveis. A Modernidade tornaria necessário, então, que as dimensões de hibridismo (o oposto de purificação) ficassem ocultas, ou postas em segundo plano. Latour afirma então que a descoberta de dimensões híbridas do mundo contemporâneo, ao contrário de nos fazer perceber que passamos da Modernidade à Pós-modernidade, deveria fazer-nos perceber que "jamais fomos modernos", ou seja, que os processos e entes híbridos sempre estiveram presentes no mundo da Modernidade, sob o tapete.

Não é o caso também de glorificar os híbridos. Uma perspectiva pessimista da questão é a de que, talvez, o fato de atualmente percebermos que jamais fomos modernos, e que a divisão entre natureza e cultura pode ser cruzada, signifique uma metamorfose do que chamamos de Modernidade, de modo a incorporar a dimensão do hibridismo.

Como se pode localizar, então, um olhar antropológico da relação entre natureza e cultura sob esse alerta da não-modernidade, com seus entes purificados e híbridos? A antropologia, com sua histórica pretensão de catalogar a diversidade social e cultural humanas, fez-nos, antropólogos, perceber que o que somos é uma das possibilidades do que se pode ser (BOAS, 1896; LÉVI-STRAUSS, 1987). A produção acadêmica das últimas décadas tem estendido tal olhar para a relação entre natureza e cultura. Por um lado, estudos como os de Descola (1994), Overing (1986) e Viveiros de Castro (1998) inspiram-nos a percepção de que há formas não-modernas de práticas de sentido com relação ao não-humano. Estes autores usam, como fonte de tais possibilidades alternativas, as matrizes cosmológicas de grupos indígenas da América do Sul, reunidas por Viveiros de Castro (1998) sob o nome de "perspectivismo ameríndio". Por outro lado, trabalhos como os de Rabinow (1999) e Strathern (1992) inspiram-nos a pensar tal alteridade no âmbito das mudanças em curso na própria matriz moderna - que, enfim, segundo Latour, jamais o foi -, ao abordar práticas tecnocientíficas em "nossa sociedade" que avançam os limites do cultural sobre o biológico, confundindo-os.

Este artigo tem então alguns referenciais fundamentais sobre os quais comentamos nos parágrafos anteriores. O primeiro é, a partir do ensaio de Latour (1995), a idéia de que a Modernidade conforma um jogo entre as dimensões da purificação e do hibridismo, mostrando a primeira e escondendo a segunda. O segundo é a idéia de que projetos coletivos realizam-se parcialmente no mundo vivido (SARTRE, 1967). O terceiro é a idéia presente em Ingold (2000) de que o ambiente é produzido pelo organismo, não havendo fronteiras estanques entre organismo e ambiente, em especial no caso da mente (BATESON, 1972). O quarto remete de novo a Ingold (2000), e também a Viveiros de Castro (2002), referindo-se à idéia de que a socialidade da qual a antropologia discorre deve ser entendida não apenas como a relação entre seres humanos, mas como relações sociais em todas as suas dimensões, inclusive relações entre humanos e não-humanos. Assim, Ingold reposiciona as relações humanas enquanto parte de relações ecológicas, tratando-as todas, ao contrário da perspectiva da ecologia, como sociais. Viveiros de Castro (2002) fala em "social ampliado", afirmando em certo momento que, no contexto do perspectivismo ameríndio, "'humanidade' é o nome da forma geral do sujeito" (VIVEIROS de CASTRO, 1998).

Por fim, o estudo de caso a ser narrado trata de híbridos na paisagem. Paisagem, aqui, refere-se à dimensão espacial das práticas de sentido de (grupos de) agentes e o ambiente com que se relacionam (lembrando-se a perspectiva de Ingold sobre a relação organismo/ambiente). Uma paisagem é, portanto, construída na interação entre projetos humanos e devires humanos e não-humanos.

O uso dessa noção de paisagem refere-se à idéia de que é possível tratar do social e do natural de maneira imbricada e simétrica. A idéia de paisagem remete, necessariamente, a um híbrido de natureza e cultura. Parto também da perspectiva de que diferentes paisagens podem construir-se ao se tomar como base diferentes grupos de agentes discorrendo sobre uma mesma referência espacial2 2 Tratei em minha tese de doutorado sobre as possibilidades, significados e procedimentos para se por em relação diferentes paisagens construídas sobre um mesmo referencial espacial. Para isto, utilizei a idéia de "pluralismo ontológico" e "consensos pragmáticos" que Almeida (1999) usa para repensar o relativismo. Essa questão, entretanto está fora dos objetivos deste artigo, e será explorada em um artigo futuro. .

Narrarei a seguir um estudo de caso realizado na área rural do município de São Luiz do Paraitinga, na região do Vale do Paraíba paulista. A idéia básica desenvolvida é a de que a separação da paisagem em espaços de produção e espaços de conservação faz parte de um contexto de crise sócio-ecológica na região, e que tal contexto faz emergir híbridos na paisagem que não atendem nem aos objetivos da produção, nem aos da conservação. Estes híbridos são identificados a partir da etnografia da produção de conhecimentos sobre a paisagem, tendo um duplo foco em relação aos sujeitos que a constroem: mostro tanto os híbridos que aparecem na paisagem dos habitantes da região quanto os que aparecem para os pesquisadores do projeto "Biodiversidade e processos sociais em São Luiz do Paraitinga", do qual fiz parte.

2 Espaços de produção e espaços de conservação

A questão das áreas de produção e de conservação, ou seja, áreas de direito de domínio da natureza e áreas de direito de domínio dos seres humanos, segundo as regras humanas, aparecia para mim como um problema desde minhas pesquisas de mestrado no Vale do Ribeira (1999-2001). Neste período, estudei grupos humanos que desenvolviam um tipo de relação agroextrativista com a floresta que incluía agricultura itinerante, caça e extração de itens da floresta. A relação estabelecida por esses grupos implicava um imbricamento entre os ciclos dos não-humanos da floresta e os ciclos dos moradores humanos da mesma floresta. Assim, a floresta não era um ente natural a ser eliminado para instaurar o social, mas era parte constituinte da forma de construção do espaço, parte da socialidade. Este tipo não-moderno de relação, no âmbito da Mata Atlântica, não era reconhecido pelo Estado nem era previsto pela legislação ambiental (SILVEIRA, 2001).

O que ocorreu com essas populações foi, em verdade, a marginalização de suas práticas de sentido agroextrativistas. Seja pelo processo avançado de remoção da Mata Atlântica em outros locais que não o Vale do Ribeira, seja pela presença de centenas de cavernas como característica especial do local, seja pelos projetos de futuro de grupos ambientalistas de origem urbana, foi implantado na região o Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (PETAR) (FIGUEIREDO, 2000; SILVEIRA, 2001). Este parque, ao não permitir atividades de uso direto, tornou ilegais as relações previamente estabelecidas pelos moradores da região com a floresta. O PETAR era um espaço de conservação; a cidade de São Paulo era um espaço de produção. Esta é a estratégia pragmática de parte dos grupos ambientalistas no Brasil e no mundo, a de preservar ilhas de vegetação nativa de um processo agressivo de crescimento urbano-industrial considerado inexorável (URBAN, 1998; TERBORGH, 2002).

Em São Luiz do Paraitinga, onde realizei minha pesquisa de doutorado, a mesma questão reaparecia pelo avesso. Ao contrário dos moradores das áreas florestais do Vale do Ribeira, os sitiantes, fazendeiros e outros proprietários de terras de São Luiz do Paraitinga podiam produzir e reproduzir suas práticas de sentido em suas terras. As propriedades, entretanto, eram usadas segundo uma lógica de zoneamento interno, em que teoricamente haveria áreas de uso e áreas de preservação, ou seja, zonas de preservação, de uso proibido, e zonas de uso humano.

Por um lado, isso não me pareceu extraordinário pelo fato de que é a situação comumente encontrada ao longo da faixa antes ocupada por Mata Atlântica. O Código Florestal de 1965 regula a ocupação das áreas rurais brasileiras, prevendo que deve ser preservada 20% da área de cada propriedade com a chamada reserva legal, além das áreas chamadas de preservação permanente (APPs), como margens de corpos d'água, áreas inclinadas e topos de morros.

Por outro lado, a experiência de estudar o uso da terra no PETAR produziu em mim um estranhamento àquela forma de construção da paisagem com a qual eu estava familiarizado no restante do Sudeste brasileiro. As práticas de sentido em São Luiz do Paraitinga, diferentemente das do PETAR, ocorriam segundo a lógica da propriedade, ou seja, havia regulações gerais vindas do Estado e pressões de mercado, mas a decisão sobre a aceitação ou não de tais regulações ou pressões eram decisões na escala do proprietário. Os moradores de São Luiz e outros agentes construíram uma paisagem caracterizada por propriedades de tamanho diverso, justapostas. Cada propriedade era constituída de um conjunto básico de unidades, tais como: pasto; mata, mato ou reserva; roça; calipeiro (o nome local para eucaliptal) e outros. Essas propriedades mudaram de divisas e tamanho no tempo, com uma tendência geral de pulverização das propriedades, mas também com o processo de fusão de algumas delas.

A pesquisa estava inserida em um projeto coletivo em que participavam biólogos e antropólogos, "Biodiversidade e processos sociais em São Luiz do Paraitinga" (PRADO, 2006). Ao ter a atitude de estranhamento com a construção da paisagem pelos moradores de São Luiz, percebi que o mesmo se aplicava a nós, participantes do projeto de pesquisa, em especial aos ecólogos do projeto. Isso porque a paisagem, na perspectiva da ecologia de paisagens (METZGER, 2001), que inspirava a equipe, devia, como método de estudo, ser dividida em unidades discretas, tais como pasto, fragmento florestal, eucaliptal e outros. Este tipo de classificação da heterogeneidade espacial era, de forma grosseira, compatível com a forma como os moradores dividiam a paisagem. Tal classificação, entretanto, se aplicada a uma comunidade no interior do PETAR, provavelmente não seria muito útil para analisar a construção da paisagem, pelo fato de lá as unidades serem menos discretas. O processo de tomada de consciência dessa dimensão pela equipe do projeto foi importante para desenvolver as idéias que aqui apresento.

Durante a pesquisa de campo em São Luiz do Paraitinga, ao olhar para a dimensão histórica, percebi que a lógica de construção da paisagem nem sempre havia sido a de separar a propriedade em espaços de produção e espaços de conservação, apesar de ter sido guiada pela noção de propriedade. Ou seja, a atual divisão da propriedade em subunidades discretas não foi sempre o padrão. Vejamos um pequeno histórico deste processo que caracterizo como uma progressiva purificação entre espaços de natureza e de cultura dentro das propriedades.

Desde o início da colonização da região, o projeto colonial do administrador Morgado de Mateus incluía o ordenamento das práticas agrícolas, no modelo agrícola português, para favorecer a sedentarização da população, que não formava núcleos centralizados de povoação (SCHMIDT, 1951). Desde a povoação colonial, por meio da distribuição de sesmarias, foram demarcados polígonos de propriedades, com um proprietário reconhecido pela Coroa. Um dos grandes desafios colocados pelo Morgado de Mateus para o progresso da região era justamente eliminar a agricultura itinerante, que impedia que os colonos se fixassem como o necessário no modelo agrícola europeu (SCHMIDT, 1951). Enquanto a base da economia de São Luiz do Paraitinga foi a lavoura, este projeto civilizador dos tempos coloniais não se concretizou em sua plenitude, pois parece ter havido em São Luiz um sistema de produção itinerante restrito aos polígonos das propriedades. Com a introdução da pecuária leiteira por migrantes mineiros a partir da década de 1940 é que tal ordenamento das propriedades em subunidades mais ou menos fixas ocorreu de forma mais presente. Isto porque a pecuária removia definitivamente (ou quase) a floresta, tornando as unidades de paisagem discretas no espaço e no tempo. Essa lógica é reforçada hoje pela penetração de monoculturas de eucalipto de empresas de papel e celulose em São Luiz, desde os anos de 1990.

No período anterior à pecuária, quando se plantavam lavouras de milho, feijão e outras culturas nos polígonos das propriedades, com relativa abundância de floresta, os limites entre o espaço de domínio do trabalho humano e o espaço do domínio dos processos naturais era fluido e relativamente flexível. Uma área plantada pelo método de coivara poderia converter-se em capoeira, e após alguns anos voltar a ser cultivada. As florestas eram fontes de caça abundante e madeira para construções. Havia ainda os sertões (BRANDÃO, 1995), áreas do pleno domínio da natureza, porções não domesticadas dentro das propriedades.

Com a introdução da pecuária na região, a criação de áreas de pastagens operou uma significativa mudança na dinâmica das propriedades. Interessava manter a área de pasto como tal. Com o crescimento da pecuária leiteira, construíram-se propriedades organizadas em áreas de pastagem, áreas reduzidas de agricultura e florestas. As florestas eram vistas como domínio parcial do proprietário e domínio parcial de processos não-humanos, como indica a existência de seres como o corpo-seco nas histórias locais. A floresta era lugar de extração de madeira, caça, cipós, remédios. Área de uso, portanto.

Junto ao processo de redução das florestas das propriedades, que parece ter tido seu auge entre as décadas de 1930 e 40, temos a progressiva restrição legal de uso dos recursos florestais, que começou no final da década de 1940, com a primeira versão do Código Florestal, e continuou posteriormente com sua reedição nos anos de 1960, que incluía a proibição da caça. Nos anos de 1990, a Mata Atlântica ganhou proteção especial e a derrubada da floresta passou a ser proibida. Em seguida a Lei de Crimes Ambientais tornou-se mais um mecanismo de impedimento do uso dos recursos das florestas nativas.

A pecuária em São Luiz do Paraitinga parece ter funcionado, portanto, por uma lógica de uso e não-uso, que vem da forma de organização da pecuária em interação com a proibição do extrativismo, resultante da combinação da aplicação de vários dispositivos legais brasileiros. Uma floresta hoje, na lógica das propriedades de São Luiz do Paraitinga, é um espaço legalmente interdito da propriedade, uma reserva. Este espaço interdito é muitas vezes visto como um impedimento à melhoria da propriedade, pois é algo que não se pode usar nem remover. Muitas vezes torna-se um espaço desconhecido, aonde o proprietário não vai. Grande parte das vezes, entretanto, é um espaço utilizado de maneira clandestina pelo proprietário ou por outras pessoas. Como afirmou um dos proprietários com que trabalhamos, referindo-se à retirada de algumas árvores da mata de sua propriedade para fabricação de mourões para uma cerca: "hoje a gente tem que roubar o que é nosso".

Temos então que a legislação ambiental interage com as práticas locais no sentido de transformar as áreas antes destinadas à extração em áreas interditas ao uso, sendo os elementos antes utilizados diretamente das matas substituídos por elementos industrializados. Essa substituição é vista como nociva à vida da população local por grande parte dos moradores da zona rural de São Luiz do Paraitinga. É reconhecida como importante por ambientalistas no sentido de proteger o muito pouco que resta da Mata Atlântica.

Há também itens da legislação que se referem à conservação de funções ecossistêmicas, tais como preservação de mananciais e proibição de queimadas. Estes itens da legislação são considerados, em geral, positivos pelos fazendeiros e sitiantes locais. A permanência de áreas interditas ao uso associa-se também ao processo mais generalizado de migração da população rural para a zona urbana, que aconteceu desde a industrialização do Vale do Paraíba, na segunda metade do século XX. A reconhecida crise da zona rural na região causa um fluxo migratório para as cidades industrializadas do Vale, ao mesmo tempo em que atrai a crescente indústria de papel e celulose, em busca de terras baratas e de fácil acesso para o plantio de eucalipto.

O importante, neste caso, é que a própria lógica de mudanças sócio-ecológicas na região da Mata Atlântica do Sudeste, incluso o Vale do Paraíba (São Luiz), foi a mola propulsora para um conjunto de regulações de uso de florestas que foi exportado como legislação nacional para outras regiões. Desta forma, a modernização destruidora foi acompanhada do disciplinamento legal da destruição, que foi no sentido de resguardar porções ainda não destruídas da cobertura anterior (BARRETTO FILHO, 2001).

A pesquisa de campo de doutorado levou-me a etnografar, além dos moradores de São Luiz, também meus colegas pesquisadores. Ela parecia sugerir-me que tanto nós pesquisadores quanto os moradores estávamos diante uma mesma lógica construção de paisagens baseadas em unidades discretas, algumas delas espaços de produção e outras espaços de conservação. E mais, essa lógica era referendada pela legislação ambiental aplicável à Mata Atlântica. Uma perspectiva moderna, diversa daquela encontrada no Vale do Ribeira (PETAR).

Em resumo, percebia, em minha pesquisa, que havia nas práticas de sentido dos agentes humanos estudados, moradores e pesquisadores, uma separação lógica na paisagem entre espaços de produção e espaços de preservação. Ao mesmo tempo a paisagem pesquisada, da forma como era caracterizada por moradores, pesquisadores, gestores municipais e turistas, tinha uma dimensão de crise, percepção que eu mesmo compartilhava com esses agentes.

Essa idéia de crise no Vale do Paraíba está presente desde os tempos em que Monteiro Lobato, enquanto membro da elite decadente do café em Taubaté, escreveu contos e crônicas sobre a decadência do caipira pelo seu temperamento apático (LOBATO, 1997). Esta visão preconceituosa é contextualizada pela admiração do progresso nas áreas de expansão da cafeicultura, no oeste paulista, cuja propriedade contrastava com a pobreza do Vale do Paraíba após o fim do ciclo cafeeiro.

Dois autores escreveram sobre São Luiz do Paraitinga nos anos 40 e 50. Schmidt (1951) e Petrone (1959), como Monteiro Lobato (1997), continuavam a desenhar um contexto de crise para São Luiz do Paraitinga, e também apontavam a falta de modernização como questão crucial. Esses autores apontavam, entretanto, um novo fenômeno como agravante desta crise: a entrada da pecuária leiteira, em substituição à lavoura, que teria contribuído para a diminuição da densidade demográfica na zona rural, transformando suas relações.

Já na década de 1980, Carlos Brandão e sua equipe realizaram pesquisas no distrito de Catuçaba, em São Luiz do Paraitinga (BRANDÃO, 1995), e novamente identificaram um cenário de crise. O aspecto aí abordado foi a relação entre os processos educacionais formais e não-formais face à realidade das mudanças sociais em curso.

Os próprios moradores de São Luiz, principalmente os ligados à pecuária leiteira, apresentaram-me também um cenário de crise: crise no preço do leite, crise de valores morais, crise no estado de fertilidade do solo, crise por conta das mudanças no clima. Uma dimensão que me intrigou foi o fato de que a crise proposta pelos moradores parecia ser inexorável, quase apocalíptica, independente das ações dos moradores.

Por fim, no projeto de pesquisa do qual participei, chegamos também a um quadro de crise: por um lado, meus colegas ecólogos capturavam na paisagem borboletas comuns em áreas degradadas (RIBEIRO, 2007), encontravam fragmentos de floresta em mau estado de conservação, percebiam espécies de sapos que não conseguiam reproduzir-se pela falta de riachos nos fragmentos (BECKER et al., 2007). Por outro lado percebíamos, na experiência cotidiana na cidade e na pesquisa de campo com os sitiantes, uma situação de crise econômica da atividade da pecuária, que fazia terras baratas serem adquiridas por empresas de papel e celulose para produção de eucalipto.

O processo de compra e arrendamento de áreas do município por empresas de papel e celulose gerou na cidade uma reelaboração da dimensão da crise: mais do que uma economia caipira em crise (CANDIDO, 2001), o caso era a transformação da paisagem de crise construída pelos seus habitantes em paisagem construída pelas empresas de papel e celulose. O eucalipto tornava-se assim o novo agente na expulsão de moradores da área rural de São Luiz. Uma questão, enfim, de substituição dos sujeitos que constroem a paisagem.

Esse processo gerou uma mobilização política na cidade, a ponto dos agentes envolvidos na luta contra o eucalipto, articulados com o movimento de agricultores familiares contra a monocultura de eucalipto, em nível nacional, terem obtido, em março de 2008, a proibição do plantio do eucalipto no município até que se tivesse um estudo de impacto ambiental.

Minha própria posição, que expresso como linha geral deste artigo, é que essa crise pode ser vista como sinal de uma modernidade mal-sucedida, que não foi capaz de se realizar em São Luiz do Paraitinga, mas, suspeito, talvez não seja capaz de se realizar em nenhum outro lugar. Esse projeto civilizador, moderno, pode ser representado pelo projeto do Morgado de Mateus em tempos coloniais, mas também, a seu jeito, pode ser representado pelo projeto dos pequenos pecuaristas mineiros, das empresas de papel e celulose e de pesquisadores acadêmicos. Na perspectiva construída na pesquisa, esse antigo projeto civilizador continuava a não se realizar plenamente em São Luiz do Paraitinga. Daí a idéia generalizada de crise, diagnosticada por diversos sujeitos em diferentes tempos.

Neste contexto de modernidade inacabada, o que eu percebia era que, mesmo com a divisão das propriedades em unidades discretas, de produção e de conservação, havia uma zona de ambigüidade, de incerteza nessas divisões. E mais, apareciam híbridos de natureza e cultura na paisagem purificada que não contemplavam nem produção, nem conservação. A paisagem que eu passava a construir era um grande emaranhado de, na linguagem de Latour, coletivos de entes humanos e não-humanos.

3 Paisagens nunca foram modernas

O geógrafo americano Paul Robbins trata da questão de híbridos de natureza e cultura na paisagem, em um artigo com o sugestivo subtítulo de "why our landscapes have never been modern" (ROBBINS, 2001). O autor descreve práticas de um planejamento espacial modernizador em uma região do Rajastão, na Índia, que se baseavam na separação da paisagem em áreas purificadas como naturais e áreas purificadas como sociais. A argumentação do autor era a de que o resultado de tais práticas de sentido foi a proliferação de um tipo de cobertura vegetal "impuro e híbrido, que mistura características sociais e naturais e combina espécies nativas e exóticas" (ROBBINS, 2001).

Como Robbins, eu também identifiquei híbridos na paisagem, frutos de uma divisão moderna entre natureza e cultura que percebemos não se sustentar enquanto política de uso do espaço. Assim, nossa pesquisa mostrou que uma paisagem sujeita a práticas de sentido de separação entre áreas do domínio da natureza e áreas de domínio da cultura permite a proliferação de espaços e processos híbridos que escapam ao processo de purificação.

O primeiro e mais marcante exemplo é o dos próprios fragmentos florestais. Os fragmentos florestais, objetos criados no contexto das disciplinas da ecologia de paisagens e da biologia da conservação, têm sido geralmente estudados por ecólogos a partir do princípio de que ali ocorrem processos ecológicos naturais, onde a ação humana é um ruído na análise (SILVEIRA, 2007). Os fragmentos pesquisados no projeto "Biodiversidade e processos sociais em São Luiz do Paraitinga", ao contrário, não foram selecionados por seu estado de conservação. Eram resultados de processos de interação de agentes humanos e não-humanos por um período de mais de duzentos anos, sem contar a relação anterior com grupos indígenas3 3 Como postula William Balée e sua escola de pensamento, a ecologia histórica (ver Balée, 2006). .

Os resultados do projeto mostraram que tínhamos um predomínio de florestas nas vertentes sul e oeste dos morros, onde a análise da estrutura da vegetação mostrou haver diferenças significativas em relação à vegetação das vertentes norte e leste. Esse predomínio parece estar relacionado à preferência dos antigos plantadores de lavouras pelas áreas de sol mais abundante. Assim, o uso de áreas mais ensolaradas para lavoura, um processo ocorrido em um passado recente (antes da instauração da pecuária) moldou a comunidade de plantas que ocorre numa região, bem como as características dessas comunidades em cada fragmento de floresta. Tudo isso é perpassado por projetos de paisagem associados a um contexto de instabilidade de ciclos econômicos, do qual a substituição de áreas de pastagem por eucaliptais é o capítulo atual. Isso, somado aos usos atuais das reservas como fonte de madeiras e caça, mostra que a idéia das matas das fazendas como remanescentes de uma vegetação pretérita a serem resguardados de uso não tem funcionado como regra.

Os fragmentos florestais encontrados são áreas em diferentes fases de regeneração, domínio de animais e plantas associados a transições entre pasto e floresta, ou à regeneração inicial de Mata Atlântica; espécies cuja dinâmica populacional é fortemente influenciada pelo uso humano. Os fragmentos florestais, áreas de preservação no zoneamento interno das propriedades, caracterizaram-se ao fim da pesquisa como híbridos de natureza e cultura, dificilmente decodificáveis a partir da purificação que os métodos tradicionais da ecologia implicavam.

Temos, então, que, nas áreas de produção, não há regras especiais resguardando a biodiversidade e que, nas áreas de preservação, a separação como áreas isoladas não funciona empiricamente, pois os fragmentos são híbridos de natureza e cultura.

Um segundo exemplo de proliferação dos híbridos são os pastos. Podemos definir os pastos de São Luiz como um conjunto de áreas sujeitas a uso intenso, o que implica uma constante luta contra o reestabelecimento de um estrato florestal. Assim, os habitantes de São Luiz dizem que há plantas que sujam o pasto, sendo necessário limpá-lo. Do ponto de vista de um biólogo, esse processo refere-se ao estabelecimento de espécies de plantas pioneiras, que seriam um primeiro sinal do reestabelecimento da cobertura florestal.

Os pastos de São Luiz são, portanto, resultado de uma conjugação temporal de processos diversos, tais como a remoção da floresta para agricultura, queimas, adubações, arações, plantio de capins diversos, roçagens, pisoteio por gado, chegada de sementes vindas da floresta. Essas atividades relacionam-se de maneira complexa com a sobrevivência de certas espécies que ocorriam previamente, o estabelecimento espontâneo de espécies exóticas, as mudanças nas condições do solo. Há áreas florestadas classificadas pelos proprietários como pastos, por serem pastos que não foram manejados e voltaram a ser florestas. A área pode ser classificada em termos dos ecólogos como em estado inicial de regeneração, ou mesmo como floresta secundária, mas será manejada pelo proprietário como um pasto, com a liberação de gado e a possibilidade da área ser futuramente limpa por roçagem ou queimada. Podemos dizer que no projeto de paisagem do proprietário aquela área é um pasto.

Assim, se atentarmos à dimensão do pasto como espaço híbrido de natureza e cultura, percebemos que nele há todo um conjunto de não-humanos não considerados como passíveis de proteção. Este conjunto de não-humanos, esta comunidade biológica, só existe ali porque foi capaz de subsistir, ou mesmo proliferar, por sua interação com os humanos. Percebemos ainda que tanto os fragmentos quanto os pastos que foram sujados por pragas são interações entre o uso humano e o processo chamado pelos biólogos de sucessão ecológica. Este tipo de sucessão, uma sucessão sócio-ecológica, parece ser uma situação comum, que escapa das análises disciplinares purificadoras. Ela é percebida com dificuldade pela ecologia, que dirá pela antropologia, mas, penso, entendê-la parece-me importante para a elaboração de projetos de paisagem que procurem incluir os não-humanos como constituintes importantes nos espaços que não sejam mais considerados de produção ou de preservação, mas espaços sócio-ecológicos.

Um terceiro exemplo de híbrido de natureza e cultura aparece nos eucaliptais das empresas de papel e celulose, talvez o tipo de propriedade onde há uma separação mais evidente entre espaços de produção e preservação. No mapa de uma das fazendas de eucalipto visitadas, esse híbrido aparece com o nome de "eucalipto incorporado à reserva". Trata-se de áreas em que a legislação ambiental não foi respeitada nos primeiros anos de plantio, sendo então plantadas árvores de eucalipto até, por exemplo, as margens dos rios. Posteriormente, o corte nessas áreas foi suspenso, uma observância da legislação necessária para a certificação ambiental. Nestas áreas, encontramos grandes árvores de eucalipto ali deixadas que, se acreditarmos nas contundentes afirmativas dos moradores "de que o eucalipto seca a água", podem ter causado diversos prejuízos aos rios que margeavam. Sob esta antiga plantação de eucaliptos cresce uma vegetação com predominância de espécies nativas. Essa área, contabilizada como área de preservação permanente, claramente não obedece ao padrão do que chamaríamos "fragmento de vegetação nativa". É mais um híbrido, de classificação problemática, produzido pelo mesmo processo que divide o espaço em áreas de produção e áreas de preservação.

Um extremo desta situação híbrida é a ocorrência dos carrascais ou carrascaieiros. São áreas de antigos pastos em que proliferaram plantas inúteis ao gado, plantas espinhosas, muitas vezes associadas à erosão do solo. O carrascal, termo que para os habitantes da zona rural de São Luiz engloba uma variedade de situações, está sempre relacionado a uma área em que foi feito um mau uso e que se tornou inútil, uma porção de espaço que escapa totalmente da lógica da produção/preservação. O carrascal é o mesmo tipo de híbrido-monstro descrito por Robbins, fantasma da impossibilidade de continuidade das atividades e dos processos ecológicos, indício de irreversibilidade de processos sócio-ecológicos de degradação: índice de crise da Modernidade.

Mais do que espaços que escapam a procedimentos classificatórios, os híbridos de que estamos falando (Tabela 1) surgem por causa desses procedimentos, fazem parte de paisagens construídas por processos de purificação. Tais híbridos, de fato, também têm uma dimensão política, contradizendo a eficácia dos projetos modernizantes de paisagem. Minha argumentação é que essa contradição, esse insucesso, é o que dá a dimensão de crise para a zona rural de São Luiz.

4 Conclusões

Em resumo, vemos que a dimensão de crise que identificamos ao considerarmos as paisagens construídas em São Luiz, tanto a diagnosticada por moradores atuais quanto a das falas de meus colegas pesquisadores, ou em estudos feitos anteriormente na região, corresponde ao arranjo local de uma crise mais ampla do que podemos chamar de crise da Modernidade. Seguindo Latour (1995), essa é a crise da crença no processo de purificação, que esconde os híbridos sob o tapete. A crise da zona rural de São Luiz, que inclui pastos degradados, declínio de populações de anfíbios, predomínio de madeiras de baixa qualidade e borboletas comuns, migração de pessoas para cidades grandes e crescimento da violência urbana, é, portanto, uma crise sócio-ecológica, em que práticas de sentido de purificação separam o natural do social e performam um uso social da natureza de forma a desconsiderar o valor dos não-humanos enquanto agentes de socialidade.

Podemos então nos remeter à idéia de Latour (2004), usando o vocabulário da democracia, de um Parlamento de pessoas e coisas que trate de fundar uma nova Constituição a respeito de um mundo formado por entes humanos e não-humanos. Diz Latour:

"Uma vez a natureza posta de lado, fica a questão de saber como reunir o coletivo, herdeiro da antiga natureza e da antiga sociedade. Não se pode simplesmente reunir os objetos e os sujeitos, pois a divisão entre natureza e sociedade não foi feita para ser ultrapassada. A fim de sair destas dificuldades para convocar o coletivo, é preciso considerar que ele é composto de humanos e não-humanos, capazes de se assentarem como cidadãos, com a condição de proceder a divisões de capacidades. A primeira divisão consiste em redistribuir a palavra entre humanos e não humanos, aprendendo a duvidar de todos os porta-vozes, tanto daqueles que representam os humanos, como os que representam os não-humanos. A segunda divisão consiste em redistribuir a capacidade de agir como ator social, considerando somente as associações de humanos e não-humanos." (LATOUR, 2004, p. 407)

Latour não deixa claras formas de operacionalização de sua proposta filosófica. Ela parece ficar, de fato, para um mundo comum posto no futuro. Otávio Velho (2005) critica o excesso de zelo de Latour em "evitar reconciliações precipitadas para não cair na armadilha cientificista". O autor pergunta a Latour:

"Como se faz a ponte entre o presente e esse futuro? Devemos ignorar por razões táticas o embate concreto, sob pretexto de que uma unificação apressada levará necessariamente água ao moinho da Ciência, mesmo quando o que se está discutindo (...) é justamente a constituição ou não de uma assembléia parcialmente unificada?" (VELHO, 2005, p. 5)

Alinho-me aqui com Otávio Velho, argumentando que, nos países periféricos à Modernidade de nuances européias, as experiências de parlamentos híbridos já se impõem (ESCOBAR; PEDROSA, 1996; ALMEIDA, 2007). O antropólogo Mauro Almeida aposta, por exemplo, na colaboração entre acadêmicos, representantes do Estado e populações locais em experimentos sociais tais como a criação das Reservas Extrativistas no Acre, nos anos de 1990, ou como um projeto de Universidade da Floresta, na mesma região, quase duas décadas depois, com todas as dificuldades que esses projetos encontrem na prática. Velho recorre ao próprio Latour ao problematizá-lo, remetendo à sua afirmação de que "trata-se de valorizar a experimentação e as trajetórias de aprendizagem." (LATOUR, 2004 apud VELHO, 2005). O caminho que aponto, em conformidade com Velho e também com Arturo Escobar (1995) é o de desenvolver alternativas não-modernas à Modernidade4 4 Velho (2005) usa a expressão modernidades alternativas e Escobar (1995) usa a expressão alter-modernidades. Prefiro a forma como usei: se é que jamais fomos modernos, não há modernidade alternativa a buscar. . Segundo esses autores, a condição periférica da Modernidade dos países do sul é uma posição privilegiada para tal debate.

Parecem-me claras, entretanto, algumas implicações das proposições de Latour. Uma delas é considerar que, por exemplo, um sítio de pecuária de leite de São Luiz é um conjunto de pessoas, mananciais, vacas, pragas, árvores, plantas cultivadas e outros elementos que se podem acrescentar à lista. E é também os seus devires: devir-educação, devir-floresta, devir-dinheiro, dentre outros. A mesma operação pode ser realizada para uma propriedade produtora de eucalipto, para um sítio de final de semana, para um fragmento florestal. Enfim, retornamos aqui à idéia de social ampliado de Eduardo Viveiros de Castro (2002), a de tomar todas as relações como sociais. Penso ser essa uma versão antropológica, e com menor fé em uma utopia da democracia, da proposição de Latour (1995). A partir daí temos um novo arranjo das práticas de sentido, orientadas não mais pela idéia de humanos/sujeitos, de um lado, e não-humanos/objetos, de outro, mas por coletivos de entes humanos e não-humanos em rede.

No plano da política ambiental (e também da ecologia política), há de se reconhecer que a divisão ontológica entre natureza e cultura está em crise, crise esta que se refere ao reconhecimento da crise sócio-ecológica criada pelas cosmologias da Modernidade. Pensar em formas não-modernas de construção de paisagens que fujam da lógica da produção versus conservação, entretanto, pode ter significados diferentes em diferentes contextos regionais. Se no plano da Amazônia isso pode significar, por exemplo, apoiar projetos agroextrativistas de manejo da floresta, baseados em conhecimento tradicional, na Mata Atlântica, onde pouco restou da fisionomia original da vegetação, a construção de paisagens que reconheçam as dimensões híbridas de natureza e cultura talvez precise necessariamente contemplar processos de recuperação de áreas degradadas misturadas com produção, como, por exemplo, as propostas de sistemas agroflorestais sucessionais (VIVAN, 1998). Nesse sentido, além da mera crítica da Modernidade, torna-se importante assumir as implicações práticas decorrentes do fato de que paisagens são construídas de forma coletiva, numa interação entre múltiplos agentes e devires, humanos e não-humanos.

Agradecimentos

Agradeço a Mauro Almeida, que orientou a tese de doutorado que serviu de base a este artigo; agradeço também aos comentários, à tese, dos membros da banca, Henyo Barretto Filho, Geraldo Andrello, Marcio Goldman e Laymert Garcia; e aos comentários de Paulo Inácio Prado. Agradeço também aos demais colegas do projeto "Biodiversidade e Processos Sociais em São Luiz do Paraitinga", aos moradores de São Luiz do Paraitinga que participaram da pesquisa, ao programa Biota/FAPESP pelo apoio ao projeto e ao CNPq e à CAPES por minhas bolsas de estudos.

Notas

Recebido: 9/10/2008

Aceito em 18/3/200

  • ALMEIDA, M. W. B. Caipora, macaxeiras e quilombolas: alguns temas de ontologia política. 2007. (Palestra proferida na Universidade Federal do Paraná em 23/11/2007) (mimeo).
  • ALMEIDA, M. W. B. Guerras culturais e relativismo cultural. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14, n. 41, p. 5-41, 1999.
  • BALÉE, W. The research program of Historical Ecology. Annual Review of Anthropology, v. 35, n. 1, p. 1-24, 2006.
  • BARRETTO FILHO, H. T. Da nação ao planeta através da natureza: uma abordagem antropológica das unidades de conservação de proteção integral na Amazônia brasileira. São Paulo, 2001. 468 páginas. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
  • BATESON, G. Steps to an Ecology of Mind. Chicago: The University of Chicago Press, 2000 [1972]
  • BECKER, C. G. et al. Habitat split and the global decline of amphibians. Science, v. 318, n. 5857, p. 1775, 2007.
  • BOAS, F. The Limitations of the Comparative Method of Anthropology. Science v. 4, n. 10, p. 901-908, 1896.
  • BORGES, J. L. Ficções. 3 ed. Porto Alegre; Rio de Janeiro: Globo, 1982.
  • BRANDÃO, C. R. A partilha da vida. São Paulo: GEIC; Cabral Editora, 1995.
  • CANDIDO, A. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira e a transformação de seus meios de vida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2001.
  • DESCOLA, P. In the society of nature: a native ecology in Amazônia. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.
  • ESCOBAR, A. Encountering Development: The Making and Unmaking of the Third World. Princeton: Princeton University Press, 1995.
  • ESCOBAR, A.; PEDROSA, A. (Eds.). Pacífico, Desarrollo o Diversidad? Estado, Capital y Movimientos Sociales en el Pacífico Colombiano. Bogotá: CEREC/Ecofondo, 1996.
  • FIGUEIREDO, L. A. V. O meio ambiente prejudicou a gente... Políticas públicas e representações sociais de preservação e desenvolvimento. Campinas, 2000. 489 pgs. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação - FE, Universidade de Campinas - Unicamp, Campinas.
  • INGOLD, T. The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling and skill. Londres: Routledge, 2000. 467 p.
  • KINGSLAND, S. Modeling Nature: Episodes in the History of Population Ecology. Chicago: University of Chicago Press, 1995.
  • LATOUR, B. Jamais Fomos Modernos. São Paulo: Editora 34, 1995.
  • LATOUR, B. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. São Paulo: EDUSC, 2004.
  • LEVI-STRAUSS, C. Raça e História. In: Lévi-Strauss, C. Antropologia Estrutural Dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987. p. 328-366.
  • LOBATO, M. Urupês. São Paulo: Brasiliense, 1997.
  • METZGER, J. P. O que é ecologia de paisagens? Biota Neotropica, v. 1, n. 1, p. 1-9, 2001.
  • OVERING, J. Images of cannibalism, death and domination in a 'non-violent' society. Journal de la Societé des Americanistes, v. 72, n. 72, p. 133-56, 1986.
  • PETRONE, P. A região de São Luiz do Paraitinga: estudo de geografia humana. Revista Brasileira de Geografia, v. 21 n. 3, p. 239-336, 1959.
  • PRADO, P. I. K. L. (Coord.). Biodiversidade e processos sociais em São Luiz do Paraitinga., 2006. (Relatório Final de pesquisa apresentado à Fapesp) (mimeo).
  • RABINOW, P. French DNA: trouble in purgatory. Chicago: University of Chicago Press, 1999.
  • RIBEIRO, D. B. A guilda de borboletas frugívoras em uma paisagem fragmentada no Alto Paraíba-SP. Campinas, 2007. 78 páginas. Dissertação (Mestrado em Ecologia) - Universidade Estadual de Campinas.
  • ROBBINS, P. Tracking Invasive Land Covers in India, or Why Our Landscapes Have Never Been Modern. Annals of the Association of American Geographers, p. 637-659, 2001.
  • SARTRE, J. P. Questão de Método. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967.
  • SCHMIDT, C. B. A vida rural no Brasil: a área do Paraitinga, uma amostra representativa. São Paulo: Secretaria de Agricultura de São Paulo; Diretoria de Publicidade agrícola, 1951.
  • SILVEIRA, P. C. B. Etnografia da paisagem: natureza, cultura e hibridismo em São Luiz do Paraitinga. Campinas, 2008. 218 páginas. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade de Campinas.
  • SILVEIRA, P. C. B. Povo da terra, terra do parque: presença humana e conservação de florestas no Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (PETAR). Campinas, 2001. 301 páginas. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade Estadual de Campinas.
  • SILVEIRA, P. C. B. Processos sócio ecológicos: esboço de uma antropologia simétrica da paisagem. Cadernos de Estudos Sociais, v. 23, n. 1-2, p. 115-134, 2007.
  • STRATHERN, M. Reproducing the future. London: Routledge, 1992.
  • TERBORGH, J. Tornando parques eficientes. Curitiba: Ed. UFPR, 2002.
  • URBAN, T. Saudade do matão. Curitiba: Editora da UFPR, 1998.
  • VELHO, O. Comentários sobre um texto de Bruno Latour. Mana, v. 11, n. 1, p. 297-310, 2005.
  • VIVAN, J. L. Agricultura e Florestas: princípios de uma interação vital. Guaíba: Agropecuária, 1998. 207 p.
  • VIVEIROS DE CASTRO, E. Cosmological deixis and Amerindian Perspectivism. The Journal of the Royal Anthropological Institute, v. 4, n. 3, p. 469-488, 1998.
  • VIVEIROS DE CASTRO, E. O nativo relativo. Mana, v. 8, n. 1, p. 113-48, 2002.
  • 1
    A relação da metafísica de Tlön com as práticas de sentido vem da leitura do texto coletivo em construção "A onça e a diferença", presente no wiki do projeto AmaZone, coordenado por Eduardo Viveiros de Castro e com contribuição de diversos autores (
  • 2
    Tratei em minha tese de doutorado sobre as possibilidades, significados e procedimentos para se por em relação diferentes paisagens construídas sobre um mesmo referencial espacial. Para isto, utilizei a idéia de "pluralismo ontológico" e "consensos pragmáticos" que Almeida (1999) usa para repensar o relativismo. Essa questão, entretanto está fora dos objetivos deste artigo, e será explorada em um artigo futuro.
  • 3
    Como postula William Balée e sua escola de pensamento, a ecologia histórica (ver Balée, 2006).
  • 4
    Velho (2005) usa a expressão modernidades alternativas e Escobar (1995) usa a expressão alter-modernidades. Prefiro a forma como usei: se é que jamais fomos modernos, não há modernidade alternativa a buscar.
  • Autor para correspondência:
    Pedro Castelo Branco Silveira
    Recide - PE, Brasil
    E-mail:
  • *
    Trabalho apresentado na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, Porto Seguro-BA, junho de 2008
  • **
    O material deste artigo é, originalmente, parte da tese de doutorado "Etnografia da paisagem: natureza, cultura e hibridismo em São Luiz do Paraitinga", apresentada ao programa de Doutorado em Ciências Sociais do IFCH/Unicamp (SILVEIRA, 2008)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Nov 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2009

    Histórico

    • Recebido
      09 Out 2008
    • Aceito
      18 Mar 2009
    ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revistaambienteesociedade@gmail.com