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Mudança ambiental e globalização: duplas exposições

RESENHA

Mudança ambiental e globalização: duplas exposições*

Rafael D'Almeida Martins

Doutorando em Ambiente & Sociedade, Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais, Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP, Campinas - SP, Brasil

Autor para correspondência Autor para correspondência: Rafael D'Almeida Martins Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP Rua dos Flamboyants, 155, Cidade Universitária. Zeferino Vaz CEP 13083-867, Campinas - SP, Brasil E-mail: rafael@cepps.org.br

Vivemos um momento de profundas mudanças cuja magnitude e intensidade não têm precedentes na história humana e, provavelmente, na própria história do planeta (STEFFEN et al., 2004). São mudanças que passam pela perda de biodiversidade, extinção de espécies, desaparecimento de manguezais e redução dos níveis da camada de ozônio, entre tantas outras, que compõem as mudanças ambientais globais. Essas alterações no ambiente físico e biogeoquímico, que incluem o solo, os oceanos e a atmosfera, são causadas tanto por fenômenos naturais como também induzidas por atividades humanas como o desmatamento, o consumo de combustíveis fósseis, urbanização, uso da terra, atividade agrícola intensiva, extração de água doce, sobre-exploração da pesca e produção de resíduos (WILBANKS; KATES, 1999; STEFFEN et al., 2004). Também se manifestam por meio de alterações climáticas, mudanças em sistemas hidrológicos e degradação do solo, cujos efeitos são sentidos em muitas atividades como, por exemplo, a produção de alimentos (SOLOMON et al., 2007; PARRY et al., 2007).

Ao mesmo tempo, mudanças radicais nos padrões de produção e consumo, interdependência financeira e comercial, privatização de recursos naturais e avanço contínuo das telecomunicações são algumas das muitas características do processo de globalização. A globalização tem impactos sobre praticamente todos os domínios da vida, com efeitos sobre as dimensões culturais, econômicas, políticas e ambientais do planeta. é comumente entendida como um movimento global em direção a integração de nações no âmbito dessas diferentes dimensões (HELD et al., 1999; BECK, 2000).

Apesar desses dois processos - mudanças ambientais globais e globalização - serem comumente estudados e analisados de forma separada e independente, eles estão profundamente interligados. A comunidade científica dedicada ao estudo da interface entre ambiente e sociedade tradicionalmente não leva em conta o grande número de interações entre os dois processos, não somente no Brasil, mas também internacionalmente (O'BRIEN; LEICHENKO, 2000; HOGAN, 2007; MARTINS; FERREIRA, 2009). Tais investigações tendem a operar segundo discursos específicos que pouco, ou nada, dialogam entre si (LEICHENKO; O'BRIEN, 2008). Assim, deixa-se de lado o fato de que as mudanças ambientais globais e a globalização estão influenciando o destino da humanidade e criando riscos e incertezas crescentes sobre o futuro (BECK, 1992, 2000; HELD et al., 1999; STEFFEN et al., 2004). Ambos os processos se reforçam mutuamente entre as escalas do espaço e do tempo, de tal forma que ações em uma localidade podem ter efeitos mais visíveis em outras localidades, muitas vezes de maneiras difíceis de prever.

É desta constatação que parte o livro "Environmental Change and Globalization: Double Exposures" (New York, Oxford University Press, 2008) de Robin M. Leichenko, Departamento de Geografia da Rutgers, The State University of New Jersey, Estados Unidos e Karen L. O'Brien, Departamento de Sociologia e Geografia Humana da University of Oslo, Noruega. No livro de oito capítulos, as autoras apresentam e operacionalizam um marco conceitual e analítico intitulado "dupla exposição" (double exposure no original) para analisar as interações entre mudanças ambientais globais e globalização. Este marco ressalta os múltiplos tipos de interação entre os dois processos globais que compõem trajetórias de dupla exposição que levam a crescentes desigualdades e vulnerabilidades, além de processos acelerados de mudança e transformação em sistemas sócio-ecológicos. Tais sistemas caracterizam-se por seu dinamismo, complexidade e incerteza (BERKES et al., 2003).

A partir do desenvolvimento do marco de "dupla exposição", o livro chama a atenção para a necessidade de pesquisadores não focarem somente em processos estritamente delimitados, mas, sobretudo, nas diferentes dinâmicas de relacionamento entre respostas e resultados dessa exposição aos dois processos. Entender mudanças ambientais globais e globalização como dois fenômenos separados limita tanto a compreensão das múltiplas interfaces existentes, bem como as análises sobre mudanças globais em curso. O primeiro capítulo do livro atenta para esses fatos, bem como ressalta as oportunidades de entendimento dos desafios do século XXI em termos de segurança da humanidade.

O capítulo 2 debruça-se sobre os diferentes discursos de mudanças ambientais globais e globalização que estão colocados no debate e na literatura, atentando para o fato que ambos os termos remetem a mudanças de larga-escala, que ocorrem em longo-prazo, com capacidade de influenciar indivíduos e instituições. Todavia, a análise dos discursos mostra que mudanças ambientais globais e globalização significam "coisas diferentes para pessoas diferentes". Assim, apesar de serem termos comumente adotados e empregados indiscriminadamente por diferentes disciplinas, eles são interpretados de diversas maneiras, levando a múltiplas abordagens. A análise dos discursos mostra, ainda, que a ênfase na interdisciplinaridade e nos diferentes pontos de vista muitas vezes não é levada em conta e observa-se uma tendência de tradições de pesquisa pautadas em visões singulares de determinado discurso limitando não só o potencial de investigação, como também a capacidade de perceber interações fundamentais entre os dois processos.

Como forma de enxergar e compreender esses diferentes tipos de interações que vêem sendo mencionados torna-se necessário um marco conceitual e analítico que leve em conta essa realidade. Tal marco deve fornecer conceitos e ferramentas metodológicas para a investigação e análise de fenômenos sociais e físicos de forma multiescalar. Entretanto, marcos de pesquisa e análise usualmente adotados também estão imbricados em discursos específicos que limitam a visão de processos globais.

O capítulo 3 apresenta e define o marco de "dupla exposição" como ferramenta conceitual para investigação das múltiplas interações entre mudanças ambientais globais e globalização, entendidos como processos globais de transformação. Parte-se da premissa de que vários processos de mudança global estão ocorrendo de forma simultânea e sequencial, impactando tanto positivamente, como negativamente indivíduos, comunidades e grupos sociais.

Mudanças ambientais globais e globalização manifestam-se como mudanças graduais ou repentinas, como estresse ou choques, que têm efeitos diferenciais em um quadro de exposição. Dependendo do foco da pesquisa, o objeto da exposição pode ser, por exemplo, uma cidade, uma região, uma política pública, um ecossistema ou mesmo um setor econômico. Desta exposição resultam resultados mensuráveis, que podem, por sua vez, afetar outros processos, bem como o contexto em que as mudanças correntes ou futuras irão ocorrer. Em cada caso particular, a exposição aos processos de mudança global é influenciada pelas características da mudança (em termos de direção, frequência, magnitude, intensidade e extensão espacial) e pelos fatores contextuais (institucionais, econômicos, sociais, políticos, biogeofísicos, culturais e tecnológicos).

As respostas à exposição, que incluem as ações e medidas a serem tomadas, estão condicionadas pelos fatores contextuais, bem como pelos atributos individuais de cada ator afetado (riqueza, acesso a recursos e capital social, por exemplo). Os resultados, definidos como os efeitos que podem ser observados, dependem tanto do grau de exposição, como também da estratégia perseguida pelos indivíduos afetados e pelo coletivo de atores envolvidos. Na Figura 1, os processos de mudanças ambientais globais e de globalização são representados por triângulos parcialmente sobrepostos, que se manifestam em um ambiente específico, influenciado por um contexto que é retratado pela figura oval. A extensão ou magnitude da exposição é descrita pela interseção entre os triângulos e as figuras ovais. Respostas, por sua vez, são representadas por uma seta em direção a um quadrado que simboliza os resultados. Resultados são representados de forma separada do ambiente contextual como forma de salientar que qualquer resultado reflete condições mensuráveis em um ponto específico no tempo.


Este marco também incorpora ligações dinâmicas entre os componentes. Dessa forma, os processos podem alterar o ambiente contextual, assim como as respostas podem afetar os processos e os resultados podem influenciam as respostas, e assim por diante. Essa dinâmica integrada entre processos e resultados dá-se de maneira reflexiva. Na figura, esses tipos de relações circulares são os "feedbacks" representados pelas setas que vão das respostas e dos resultados de volta para os processos dos triângulos. Embora a figura represente uma única unidade de exposição, é importante notar que os resultados e as respostas ocorrem dentro de uma situação de exposição que pode ter influências generalizadas em outras situações de exposição tanto no espaço e no tempo. Ao enfatizar as interações dinâmicas entre os processos, as respostas e os resultados, este marco tem como objetivo obter novos insights e questões de investigação para além dos comumente associados aos discursos de cada processo de mudança global, mudanças ambientais globais e globalização.

O capítulo 4 lança luz sobre possíveis trajetórias de dupla exposição a partir do marco acima apresentado. Ao descrever trajetórias de dupla exposição, as autoras buscam articular e explorar situações específicas de interações entre mudanças ambientais globais e globalização levando em conta implicações em termos de equidade, resiliência e sustentabilidade. Para isso, apresentam-se três trajetórias denominadas por: resultado de dupla exposição; contexto de dupla exposição e feedbacks de dupla exposição. O primeiro mostra como a exposição conjunta a processos de mudança global podem exacerbar desigualdades regionais e sociais. O segundo mostra como esses processos, separados ou conjuntos, podem aumentar a vulnerabilidade de indivíduos, comunidades e grupos sociais a choques e estresses de várias ordens. O terceiro, e último, enfatiza que os processos de mudança global podem originar respostas que amplificam a situação levando para novos ciclos de dupla exposição.

Nos capítulos seguintes, 5, 6 e 7, explora-se em detalhes as três distintas trajetórias de dupla exposição operacionalizando o marco e a abordagem tendo como ponto de partida exemplos concretos. No capítulo 5, trata-se do setor agrícola a partir da análise sobre mudança climática, liberalização do comércio internacional e os impactos no meio rural da índia. A análise mostra que a combinação desses dois processos prejudica produtores rurais indianos, criando situações de ganhadores versus perdedores que acirram desigualdades e comprometem iniciativas de justiça social e desenvolvimento humano no longo-prazo.

O capítulo 6 mostra como as mudanças ambientais globais e a globalização está afetando a exposição e a capacidade de resposta de áreas urbanas em termos de eventos climáticos extremos e desastres naturais. Tomando como exemplo o caso do furacão Katrina que em 2005 devastou New Orleans, Estados Unidos, as autoras mostram que o desastre não foi resultado somente da locação geográfica, do rompimento das barragens e do histórico de pobreza e desigualdade da cidade, mas também de reformas neoliberais que enfraquecerem a capacidade da Federal Emergency Management Agency (FEMA) e retirou recursos destinados a manutenção das barragens.

O capítulo 7 detalha como esses processos podem contribuir para aceleração do derretimento das geleiras do ártico. A mudança climática é clara na região do ártico e vem sendo amplamente documentada pela comunidade científica, inclusive no último relatório do Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) (STEFFEN et al., 2004; SOLOMON et al., 2007). Esse derretimento representa mudanças dramáticas em condições biofísicas da região que desafiam a sustentabilidade de ecossistemas e de grupos populacionais que habitam o ártico. Assim, mudanças que representam ameaças para alguns, são vistas como oportunidades por outros. Esse é o caso das empresas de transporte marítimo que vêem no derretimento das geleiras, corredores mais rápidos, baratos e seguros para navegar. Além disso, já existe uma literatura que reconhece novas oportunidades para exploração de petróleo, gás natural e recursos minerais. Todavia não levam em conta as conseqüências em termos de degradação ambiental, tampouco os feedbacks em termos de maior uso de combustíveis fósseis, emissões líquidas de gases de efeito estufa e, consequentemente, agravamento do aquecimento global e das mudanças climáticas.

O último capítulo revela como a análise combinada dos dois processos pode não somente contribuir para a compreensão dos impactos negativos e dos novos desafios para pensar a segurança da humanidade, como também traz oportunidades para diminuir vulnerabilidades e desigualdades e aproveitar a mudança global para construir um futuro mais igual, justo e resiliente. O livro e o marco da "dupla exposição" é uma contribuição robusta para pesquisadores interessados na análise de temas na interface ambiente e sociedade a partir do reconhecimento das múltiplas escalas e níveis de interação entre os dois processos que se colocam como desafios sem precedentes para humanidade: mudanças ambientais e globalização.

Recebido em 18/2/2010.

Aceito em 23/3/2010.

  • BECK, U. Risk society: towards a new modernity. London: Sage Publications, 1992.
  • BECK, U. What is globalization? Cambridge: Polity Press, 2000.
  • BERKES, F. et al Navigating social-ecological systems: building resilience for complexity and change. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.
  • HELD, D. et al Global transformations: politics, economics and culture. Cambridge: Polity Press, 1999.
  • HOGAN, D. J. Human dimensions of global environmental change. Ambiente & Sociedade, v. 10, n. 2, p. 161-166, Jul./Dez. 2007.
  • LEICHENKO, R. M.; O'BRIEN, K. L. Environmental change and globalization: double exposures. New York: Oxford University Press, 2008.
  • MARTINS, R. D. A.; FERREIRA, L. C. Assessing the research on the human dimensions of global environmental change in Latin America. Teoria & Pesquisa, v. 18, n. 2, p. 31-52, 2009.
  • O'BRIEN, K. L.; LEICHENKO, R. M. Double exposure: assessing the impacts of climate change within the context of economic globalization. Global Environmental Change, v. 10, n. 3, p. 221-232, 2000.
  • PARRY, M. et al Climate Change 2007: impacts, adaptation and vulnerability. contribution of working group ii to the fourth assessment report of the IPCC. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
  • SOLOMON, S. et al Climate Change 2007: the physical science basis. contribution of working group i to the fourth assessment report of the IPCC. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
  • STEFFEN, W. et al Global change and the earth system: a planet under pressure. Berlin: Springer, 2004.
  • WILBANKS, T. J.; KATES, R. W. Global change in local places: how scales matters. Climatic Change, n. 43, p. 601-628, 1999.
  • * LEICHENKO, R. M.; O'BRIEN, K. L. Environmental Change and Globalization: Double Exposures. New York: Oxford University Press, 2008. 167 p. ISBN: 978-0-19-517731-2
  • Autor para correspondência:

    Rafael D'Almeida Martins
    Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP
    Rua dos Flamboyants, 155, Cidade Universitária. Zeferino Vaz
    CEP 13083-867, Campinas - SP, Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Dez 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010
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