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Justiça ambiental e práticas de governança da água: (re) introduzindo questões de igualdade na agenda

Resumos

O conceito de governança vem sendo discutido enquanto uma nova forma de gestão de recursos naturais por incorporar a participação de atores sociais no planejamento de políticas ambientais. O objetivo deste texto é verificar de que modo a vulnerabilidade social associada ao saneamento ambiental relaciona-se a injustiça ambiental no Brasil. O trabalho analisa situações de desigualdade, a partir da sistematização de informações realizada por meio de revisão bibliográfica. A análise ressalta a importância de uma boa governança, considerando o papel fundamental das políticas públicas no combate às desigualdades socioambientais. Assim, é importante considerar: a integração das políticas de água com as de solo, bem como programas, agentes e instituições que desenvolvam atividades conjuntas; a prioridade de saneamento ambiental para populações pobres, além do estabelecimento de subsídios; por fim a diferenciação dos usuários na cobrança pelo uso da água, atuando no equilíbrio entre a preservação do recurso e a promoção dos usos múltiplos.

Governança da água; vulnerabilidade social; justiça ambiental


El concepto de gobernabilidad se ha discutido como una nueva forma de gestión de los recursos naturales mediante la incorporación de la participación de los actores sociales en la formulación de políticas ambientales. El objetivo de este estudio es examinar cómo la vulnerabilidad social asociada a servicios de saneamiento se relaciona con la injusticia ambiental en Brasil. El artículo analiza situaciones de desigualdad, a partir de la sistematización de la información utilizando la revisión de la literatura. El análisis pone de relieve la importancia de la buena gobernanza, teniendo en cuenta el papel de las políticas públicas para combatir las desigualdades. Por lo tanto, es importante tener en cuenta: la integración de las políticas del agua con el suelo, la prioridad de saneamiento ambiental para los pobres y la diferenciación de los usuarios en los cargos de uso de agua, que actúa sobre el equilibrio entre la preservación de los recursos y la promoción de usos múltiples.

Políticas del agua; la vulnerabilidad social; la justicia ambiental


The concept of governance has been discussed as a new form of management of natural resources by incorporating the participation of social actors in environmental policymaking. The objective of this study is to examine how the social vulnerability associated to environmental sanitation relates to environmental injustice in Brazil. The paper analyses situations of inequality, based on the systematization of information by literature review. The analysis highlights the importance of good governance, considering the fundamental role of public policies to combat social and environmental inequalities. Thus, it is important to consider: the integration of water policies with the soil, as well as programs, actors and institutions to develop joint activities, the priority of environmental sanitation for the poor, and the establishment of subsidies and finally the differentiation of users in water use charges, acting on the balance between resource preservation and promotion of multiple uses.

Governance of water; social vulnerability; environmental justice


Justiça ambiental e práticas de governança da água: (re) introduzindo questões de igualdade na agenda

Ana Paula FracalanzaI; Amanda Martins JacobII; Rodrigo Furtado EçaIII

IProfessora doutora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP), do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo (PROCAM/USP) e do Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política da Universidade de São Paulo (PROMUSPP/USP). Email: fracalan@usp.br

IIMestranda do curso de Pós-graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo (PROCAM-USP). E-mail: amandamartins.usp@gmail.com

IIIMestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo (PROCAMUSP). E-mail: igofurtado@gmail.com

RESUMO

O conceito de governança vem sendo discutido enquanto uma nova forma de gestão de recursos naturais por incorporar a participação de atores sociais no planejamento de políticas ambientais. O objetivo deste texto é verificar de que modo a vulnerabilidade social associada ao saneamento ambiental relaciona-se a injustiça ambiental no Brasil. O trabalho analisa situações de desigualdade, a partir da sistematização de informações realizada por meio de revisão bibliográfica. A análise ressalta a importância de uma boa governança, considerando o papel fundamental das políticas públicas no combate às desigualdades socioambientais. Assim, é importante considerar: a integração das políticas de água com as de solo, bem como programas, agentes e instituições que desenvolvam atividades conjuntas; a prioridade de saneamento ambiental para populações pobres, além do estabelecimento de subsídios; por fim a diferenciação dos usuários na cobrança pelo uso da água, atuando no equilíbrio entre a preservação do recurso e a promoção dos usos múltiplos.

Palavras-chave: Governança da água; vulnerabilidade social; justiça ambiental.

RESUMEN

El concepto de gobernabilidad se ha discutido como una nueva forma de gestión de los recursos naturales mediante la incorporación de la participación de los actores sociales en la formulación de políticas ambientales. El objetivo de este estudio es examinar cómo la vulnerabilidad social asociada a servicios de saneamiento se relaciona con la injusticia ambiental en Brasil. El artículo analiza situaciones de desigualdad, a partir de la sistematización de la información utilizando la revisión de la literatura. El análisis pone de relieve la importancia de la buena gobernanza, teniendo en cuenta el papel de las políticas públicas para combatir las desigualdades. Por lo tanto, es importante tener en cuenta: la integración de las políticas del agua con el suelo, la prioridad de saneamiento ambiental para los pobres y la diferenciación de los usuarios en los cargos de uso de agua, que actúa sobre el equilibrio entre la preservación de los recursos y la promoción de usos múltiples.

Palabras clave: Políticas del agua: la vulnerabilidad social, la justicia ambiental.

Introdução

O presente trabalho busca associar o conceito de governança da água à noção de sustentabilidade, em seu sentido mais amplo. Portanto, descarta-se a interpretação limitada do conceito de governança da água como práticas de planejamento, implementação e gestão de políticas de recursos hídricos. Consideram-se como sustentáveis as políticas que se fundamentam em aspectos econômicos, ambientais e sociais, sendo esses últimos centrais para a elaboração de políticas ambientais.

Neste artigo, enfatiza-se a importância de garantir que o processo de elaboração de políticas públicas no campo dos recursos hídricos incorpore medidas compensatórias e distributivas que minimizem os efeitos perversos das desigualdades socioeconômicas.

Neste sentido, a participação de novos atores sociais nas políticas públicas relacionadas à água seria ampliada a partir de uma dimensão predominantemente técnica da gestão da água para uma dimensão que envolva questões sobre os seus múltiplos usos e formas de apropriação; ou seja, considera-se necessário abrir espaço para o debate que questiona as considerações exclusivamente mercantis de utilização da água e advoga formas e modelos mais igualitários e sustentáveis de acesso e apropriação desse recurso natural fundamental.

A distinção entre os valores mercantis da água e os valores de uso da água enquanto substância necessária à vida possibilita a discussão sobre o caráter da água enquanto mercadoria no sistema capitalista. Este é o ponto central que demanda uma reformulação da agenda de debate, levando ao cerne das reflexões as questões sobre (re)valorização da água enquanto elemento natural, não considerando apenas o debate quanto ao seu valor econômico.

A intenção em se discutir esses conceitos através da associação de temas como, por exemplo, de uso e ocupação do solo, renda, saneamento ambiental e áreas de risco é indicar como a forma de ocupação do espaço urbano na sociedade capitalista contemporânea perpetua a desigualdade no acesso aos recursos naturais. No caso da água, as condições desiguais de apropriação não só acentuam as dificuldades de uso por uma parte da população, como também resultam em situações de maiores riscos associados ao uso do território para fins de moradia.

O artigo procura, em um primeiro momento, apresentar a relação entre o crescimento urbano e a vulnerabilidade social associada aos problemas de saneamento ambiental. Em seguida, conceituam-se os problemas de injustiça ambiental a partir da perspectiva da desigualdade no acesso a água em quantidade e qualidade adequadas para abastecimento humano no meio urbano.

Por último, são discutidas as consequências da ausência ou precária participação dos representantes dos grupos sociais de mais baixa renda nos comitês de bacias hidrográficas, arenas nas quais ocorrem os debates, negociações e decisões sobre a gestão dos recursos hídricos.

Crescimento urbano, vulnerabilidade e injustiça socioambiental

O processo de urbanização no Brasil foi caracterizado pelo crescimento acelerado das cidades e aglomerações urbanas com a criação das metrópoles – o fator decisivo para que tal fato ocorresse se relaciona à existência de um eixo migratório que perdurou durante décadas, deslocando grandes contingentes populacionais do Norte do país para a região Sudeste, devido ao desemprego estrutural provocado principalmente pela modernização agrícola (MELLO; NOVAIS, 1998).

As grandes metrópoles no Brasil funcionaram como polo de atração de populações migrantes, localizadas principalmente no Sudeste: São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte – nelas, a industrialização e a urbanização criaram oportunidades de trabalho para os migrantes, principalmente nos setores da construção civil, transportes e na indústria. Segundo Mello e Novais (1998), durante os anos 1950 no Brasil, oito milhões de pessoas migraram para as cidades; uma década depois, esse número subiu para 14 milhões; e em três décadas, o número total de pessoas que migraram dos campos para as cidades foi de 39 milhões.

Com o advento da globalização e a necessidade crescente de mão de obra para a manutenção dos fluxos de produtos e serviços, os movimentos migratórios continuam em curso ainda hoje, provocando o deslocamento em massa de pessoas de regiões carentes para os centros urbanos do Sudeste (SASSEN, 2004). Em virtude disso, o crescimento descontrolado e sem planejamento da malha urbana acabou por concentrar a população migrante de baixa renda em áreas periféricas das cidades, destituídas de infraestrutura mínima, como acesso a meio de transporte, energia elétrica, saneamento básico e serviços de saúde (YOUNG; FUSCO, 2006).

Dessa forma, os grupos sociais excluídos economicamente, quando alocados em espaços urbanos exclusos tendem a ser mais vulneráveis, por serem alijados de acesso adequado a bens de consumo, condições de vida e infraestrutura urbana (SEN, 2008; HOGAN et al; 2001). A alocação desses espaços está comumente associada a regiões de alto risco ambiental como margens de rios, represas e encostas, que, por possuírem características de áreas "protegidas", são removidas do mercado imobiliário formal, constituindo-se em alternativas habitacionais aos grupos sociais excluídos (HOGAN et al; 2001).

A própria dinâmica da metrópole afasta os pobres e migrantes para as áreas mais afastadas dos centros econômicos e de serviços (SASSEN, 2004); longe desses centros, essa população possui menores oportunidades de acesso a emprego e renda – esse processo aliado à falta de planejamento urbano para alocar esse contingente em áreas apropriadas para a habitação faz com que o avanço desta urbanização precária ocorra sobre unidades de conservação ambiental ou áreas de risco (HOGAN et al; 2001).

Com a justificativa de diminuir a pobreza através da aquisição de bens materiais, a superexploração dos recursos ecossistêmicos de maneira insustentável é feita por meio de políticas de desenvolvimento que negligenciam o cenário dos recursos em longo prazo, sem considerar problemas como seu esgotamento e degradação, além das perdas econômicas e sociais (MILLENNIUM ECOSYSTEM ASSESSMENT, 2003).

Nesse sentido, uma parcela significativa dos problemas socioambientais se fundamenta em uma política de desenvolvimento baseada exclusivamente no crescimento econômico como único meio de se promover equidade social, negligenciando assim, os direitos individuais dos cidadãos em possuir qualidade de vida e acesso a bens ambientais primários como ar limpo e água tratada (SEN, 2008).

A injustiça ambiental, no contexto do desenvolvimento humano, manifesta-se de maneira perversa, negando aos pobres a liberdade de ter acesso a recursos para se alimentar, ter saúde, morar em local adequado, dispor de educação de qualidade e de um emprego decente, e ainda priva-lhes do acesso aos recursos ambientais fundamentais (SEN, 2008) como, por exemplo, água potável.

Nesse sentido, a injustiça ambiental é traduzida como a iniquidade na distribuição dos danos ambientais sobre populações de diferentes condições socioeconômicas (ALVES, 2007) e pela desigualdade no acesso aos recursos ambientais, reforçando a relação entre riscos ambientais e desigualdades socioeconômicas (VEIGA, 2007). De acordo com Porto (2004:122), injustiça ambiental é o "mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos sociais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis".

A produção da injustiça ambiental manifesta-se de duas maneiras, segundo Acselrad (2009): proteção ambiental desigual e acesso desigual aos recursos. A primeira ocorre quando os riscos ambientais são gerados pela execução de políticas ambientais (ou pela falta delas), e direcionados às populações socialmente excluídas em termos de renda, habitação, condições sociais, dentre outros. A segunda pode ocorrer tanto na etapa de produção dos bens (manifestando-se quanto ao acesso de recursos sobre o território), como também na etapa de consumo (acerca do poder aquisitivo das populações e da discussão sobre necessidades básicas).

Não há tratamento socialmente justo quando se analisa a questão do oferecimento de serviços relacionados ao saneamento ambiental para a população. Ao contrário, há uma tendência de a população de baixa renda habitar territórios sujeitos a maiores riscos em relação a problemas ambientais, tais como em áreas: sujeitas a inundações; com condições inadequadas de saneamento ambiental; próximas a lixões; com riscos de desabamento associados a processos erosivos.

Estas áreas, mesmo dispondo de proteção legal, não se encontram amparadas pela atuação dos órgãos licenciadores e fiscalizadores, principalmente quando a população impactada é socialmente discriminada; esse cumprimento desigual da legislação resulta em proteção ambiental desigual (ACSELRAD et al., 2009). Nesse contexto, a falta de uma atuação firme do Estado, tanto na questão habitacional, como na questão ambiental de preservação dos mananciais, facilita a ocorrência das forças econômicas, que alocam os pobres e as "minorias" em locais economicamente desvalorizados, socialmente exclusos e ambientalmente frágeis (ACSELRAD, 2009).

Dessa forma, a falta de planejamento e orientação para lidar com as consequências socioambientais do crescimento econômico, experimentado pelos grandes centros urbanos no Brasil, como a cidade de São Paulo, se configurou na materialização de duas cidades – a formal e a informal. Na cidade informal, um grande contingente populacional, atraído por esses polos de oportunidade de trabalho ou de melhor qualidade de vida, acaba deparando-se com uma realidade inadequada para viver (TUCCI, 2008).

Enfatiza-se nesse trabalho os problemas decorrentes da ausência dos serviços de saneamento básico, mais especificamente, a relação entre a pobreza e o acesso aos serviços citados.

Entre os principais riscos associados especificamente à gestão de recursos hídricos, segundo Mitjavila et al. (2011), destacam-se a escassez e a má qualidade do recurso no meio urbano, a distribuição desigual dos riscos socioambientais relacionados às condições sociais da população e o estado do espaço geográfico, além do abuso de poder na gestão da água e os conflitos resultantes de sua apropriação.

Não obstante, esses riscos, assim como todos os outros riscos socioambientais, são politicamente construídos, de forma que a percepção do problema, bem como seu enfrentamento por meio de ações organizativas, devem ser considerados sob a perspectiva de ampliação da cidadania com a utilização de instrumentos socialmente justos, inclusivos e democráticos (IORIS, 2009).

Dessa forma, procura-se examinar como o novo modelo de gestão das águas no Brasil, fundamentado na abertura do processo decisório à participação de um maior número de atores sociais e no reconhecimento da água como um bem público, ou seja, um recurso natural pertencente a todos, mas cuja gestão é de responsabilidade do poder público, interfere no ciclo de vulnerabilidade social e ambiental a que certas populações estão expostas.

Agenda invisível dos Comitês de Bacia: atores e problemas excluídos do debate

A disponibilidade de água em quantidade e qualidade adequadas para abastecer as grandes metrópoles têm mobilizado os órgãos gestores responsáveis, em especial devido ao crescimento da demanda e à inserção da proteção ambiental na agenda política.

O modelo de desenvolvimento e crescimento econômico ao preconizar usos outros da água como energia, produção industrial e abastecimento agrícola, intensifica a competição pela apropriação do recurso, gerando conflitos em torno de sua gestão (VARGAS, 1999).

Nesse cenário é fundamental a adoção de uma nova estratégia de gestão integrada e participativa que considere não apenas os conflitos envolvidos nos usos múltiplos, mas que principalmente seja capaz de estabelecer prioridades de uso do recurso.

A primeira Política Estadual de Recursos Hídricos (PERH) do Brasil foi promulgada no estado de São Paulo, em 1991. As diretrizes e os princípios que passaram a reger esse novo sistema de gestão da água refletiam profundas mudanças com relação ao modelo anterior. Segundo Jacobi (2009), nesse momento crucial de inflexão, observou-se a substituição de uma gestão institucionalmente fragmentada, composta por práticas históricas de planejamento tecnocrático e autoritário, por uma gestão baseada na tríade: integração, descentralização e participação. Com isso, houve uma mudança significativa na forma pela qual o manejo dos recursos hídricos era feito, sendo que a nova lógica orientada pela gestão colegiada e integrada tem o objetivo de arbitrar conflitos e ajustar interesses considerando o debate e o acordo sociotécnico (MACHADO, 2003).

O modelo de gestão de recursos hídricos adotado pelo estado de São Paulo no final de 1991, após a Lei Estadual nº 7.663 entrar em vigor, foi replicado em esfera nacional com a promulgação da Lei Federal nº 9.433, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos. Ambas legislações apresentam claramente aspectos em comum com a noção internacionalmente aceita de Gestão Integrada de Recursos Hídricos (GIRH), Integrated Water Resources Management em sua versão original, termo este amplamente divulgado pelos especialistas da Global Water Partnership (GWP), no ano de 2002, na Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável. Entretanto, a construção do conceito de GIRH ocorreu de forma gradual ao longo dos anos, sendo modificado e absorvendo novos elementos conforme era compreendida a complexa rede de fatores de ordem natural, social, política e econômica que orbitam nas questões relacionadas à água.

O grande marco internacional, cujas consequências influenciaram os trabalhos do GWP, foi a Conferência sobre Água e Meio Ambiente, realizada pelas Nações Unidas na Irlanda em 1992. Inspirada pelo lançamento do Relatório Brundtland e pela difusão do paradigma do desenvolvimento sustentável, a conferência, considerada um evento preparatório para o encontro "Rio + 10" que ocorreria em 2002, tinha como objetivo formular políticas sustentáveis para o uso da água e propor um programa de ações que possibilitassem a sua implementação. A abordagem dada até então à GIRH sofre uma reformulação, cujas principais características podem ser sintetizadas em três pontos: 1) reconhecimento da água doce como um recurso vulnerável, finito e essencial para garantir o desenvolvimento e a manutenção da vida e das condições ambientais; 2) ampliação dos atores participantes no processo de tomada decisão, garantindo a presença dos usuários dos recursos hídricos; 3) reconhecimento da água como um bem econômico, fato que facilitaria a alocação eficiente e igualitária desse recurso entre todos os usuários, além de promover a sua conservação e proteção (RAHAMAN e VARIS, 2005; SNELLEN e SCHREVEL, 2004).

É a partir desse debate, retomado em outras grandes conferências internacionais, que em 2002 a GWP estabeleceu a definição de GIRH que, segundo Biswas (2004) e Jeffrey e Gearey (2006), logo se tornou a solução sustentável mais aceita para a gestão da água, sendo endossada, adotada e difundida por diversas instituições internacionais como a principal ferramenta para gestão desse recurso. Resumidamente, GIRH pode ser definida como um processo que promove o desenvolvimento e gestão coordenada da água, solo e recursos relacionados, com o objetivo de maximizar os resultados econômicos e de bem-estar social de uma forma equitativa e sem comprometer a sustentabilidade de ecossistemas vitais. A gestão integrada defendida no GIRH deveria ocorrer preferencialmente na escala da bacia hidrográfica, sob os princípios da boa governança e da participação pública (RAHAMAN e VARIS, 2005).

A definição do que é uma boa governança da água pode levar a diferentes vertentes da discussão sobre políticas públicas e participação da sociedade civil na gestão da água. Neste sentido, "boa governança" pode ser considerada, em uma vertente, aquela que, por meio de regras claras e capacidade institucional dos governos, diminua as incertezas e corrija as "falhas de mercado" (WORLD BANK, 1992).

Em outra vertente, pode-se considerar a "boa governança" da água como aquela que considere a integração entre políticas públicas, almejando o atendimento adequado de serviços ambientais de saneamento para populações de baixa renda, assim como a diminuição de disparidades socioeconômicas entre a população (CAMPOS e FRACALANZA, 2010). Neste trabalho, consideramos a boa governança da água pelo enfoque desta segunda vertente apresentada, no sentido de destinação prioritária de financiamentos para saneamento ambiental da população de baixa renda, principalmente aquela em condições de vulnerabilidade socioambiental.

Quando comparados à lei paulista e nacional de recursos hídricos, constatamos a presença de alguns dos marcos conceituais citados anteriormente. Logo, um levantamento junto aos autores cujos trabalhos estão concentrados em analisar criticamente os resultados, sucessos e fracassos da implantação do modelo de GIRH pode iluminar alguns dos problemas e obstáculos enfrentados nas experiências brasileiras de gestão de recursos hidrícos. Enfatizando-se as questões que envolvem o conceito de justiça ambiental, dois aspectos podem ser destacados – a mercantilização da gestão da água e a democratização dos espaços de decisão.

Para operacionalizar e alcançar as metas e os objetivos previstos nas novas legislações foram criados diversos instrumentos de suporte, como os planos de recursos hídricos, enquadramento dos corpos hídricos em classes, outorga dos direitos de uso, cobrança pelo uso e o Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos.

A cobrança pelo uso da água bruta é considerada uma das principais inovações do novo modelo de gestão dos recursos hídricos. Esse instrumento baseia-se nos princípios do produtor-pagador e usuário-pagador, estabelecendo que a recuperação e garantia das condições de disponibilidade hídrica, em qualidade e quantidade, sejam asseguradas pelos próprios usuários que utilizam esse recurso diretamente ou se beneficiam dos serviços ambientais por ele proporcionados.

Ao adotar o instrumento de cobrança e vincular o consumo da água ao pagamento de uma tarifa, os gestores públicos almejavam corrigir uma disfunção do mercado, representada pelo conceito de externalidade negativa, que teria como consequência a exploração irracional dos recursos naturais e o aumento dos níveis de poluição (CÂNEPA, 2003; SILVIA 2003).

Sob a perspectiva da Justiça Ambiental, ressalta-se o impacto que o instrumento de cobrança pelo uso da água somado à já tradicional cobrança pelos serviços de saneamento pode infringir aos grupos sociais de baixa renda.

Cobrança pelo uso da água e desigualdades sociais no acesso ao saneamento

De acordo com Britto (2010), os custos relacionados ao acesso à água e aos serviços de esgoto são responsáveis por criar novas desigualdades sociais. Se no passado, as regiões habitadas pelas camadas sociais de mais baixa renda não eram atendidas pelas companhias de saneamento, que priorizavam o investimento nas áreas mais nobres e valorizadas da cidade, onde a garantia de retorno financeiro era certa, hoje, apesar da expansão do sistema de saneamento para essas regiões, essas pessoas ainda convivem com o risco de não contar com esses serviços (BRITTO, 2010; VARGAS, 2005). Britto (2010) afirma que muitos moradores não possuem condições financeiras para pagar as tarifas cobradas por esses serviços, recorrendo consequentemente a meios alternativos, através de ligações clandestinas nas redes de abastecimento, utilização inapropriada de poços artesianos e disposição incorreta dos esgotos, medidas que colocam em risco a saúde dessas populações e a integridade do meio ambiente, eternizando um ciclo de injustiça socioambiental.

Diante desse quadro, qualquer aumento que recaia sobre as despesas financeiras das camadas mais carentes da população, como o repasse por parte das companhias de saneamento dos custos provenientes da cobrança pelo uso dos recursos hídricos, pode acarretar no agravamento da situação, intensificando o estado de vulnerabilidade dessas populações caso não sejam adotadas medidas que as protejam.

No caso dos serviços de saneamento, a implantação de tarifas diferenciadas para usuários de baixa renda busca universalizar o acesso aos serviços, minimizando os efeitos causados pelas desigualdades socioeconômicas. Entretanto, não existe consenso sobre a real eficiência dessa iniciativa em proteger os mais pobres. Segundo Brito (2010), mesmo com a adoção dessas tarifas, as condições financeiras dos consumidores de baixa renda podem ser tão precárias, que eles continuariam impossibilitados de acessar tais serviços. Hübner (2010) acrescenta que mesmo pagando pelos serviços, áreas menos valorizadas correm o risco de receberem serviços e redes de infraestrutura de qualidade inferior aos disponibilizados nas áreas mais valorizadas. A autora conclui que a universalização desses serviços pode apenas mascarar novas faces da desigualdade social. Por fim, outro obstáculo enfrentado pelos consumidores de baixa renda está relacionado ao acesso às informações, visto que as prestadoras desse serviço nem sempre oferecem as informações necessárias para que os consumidores de baixa renda possam tomar conhecimento e requisitar o direto às tarifas de cobrança diferenciadas (BRITTO, 2010).

Ao examinar o mecanismo de cobrança pelo uso da água bruta à luz do conceito de justiça ambiental, pode-se identificar uma possível contradição entre seus objetivos ou uma oportunidade de promover a conciliação entre justiça ambiental e social. A cobrança é um instrumento econômico de gestão, valorização e racionalização do uso da água, que tem como objetivo internalizar as externalidades negativas ou os custos sociais e possui a capacidade de modificar o comportamento dos usuários, disciplinando o uso do recurso através da diminuição do consumo e do desperdício. A cobrança também é um instrumento essencial para a manutenção da sustentabilidade financeira do sistema de gerenciamento de recursos hídricos, possibilitando a recuperação e a preservação dos diversos corpos de água através de intervenções estruturais, como a introdução de novas técnicas de irrigação e reúso, e não estruturais, como a implantação e aprimoramento de programas de monitoramento e fiscalização. Logo, pode-se deduzir a importância que o valor estipulado para a taxa de cobrança terá para o sucesso dos objetivos almejados por esse instrumento.

Caso a taxa de cobrança estipulada seja baixa, os usuários poderão não se sentir incentivados a adotar práticas mais racionais de uso, diminuindo a demanda e o desperdício do recurso, e o sistema de gestão pode não alcançar o patamar financeiro necessário para financiar os planos e intervenções que possibilitariam a recuperação e preservação dos recursos hídricos (SANTOS, 2003). Em um cenário caracterizado pelo agravamento da escassez hídrica, sob os aspectos de qualidade e quantidade, as populações mais carentes provavelmente arcariam com a maior parte dos efeitos negativos e se observaria o aumento da vulnerabilidade ambiental de mananciais e outros corpos d' água.

Por outro lado, o estabelecimento de taxas relativamente elevadas para a cobrança poderia garantir o funcionamento eficiente do sistema de gestão e promover mudanças mais radicais no comportamento dos usuários (GARRIDO e FERNANDEZ, 2002). Entretanto, a diminuição da vulnerabilidade ambiental nesse caso provavelmente seria acompanhada pelo aumento da vulnerabilidade social, já que as camadas sociais de baixa renda poderiam ser economicamente impedidas de acessar os serviços de saneamento ou forçadas a utilizá-los abaixo dos níveis adequados.

Portanto, uma das principais preocupações quando se debate a cobrança é encontrar uma taxa que proporcione o equilíbrio entre a preservação dos recursos hídricos e a promoção de seus múltiplos usos, tratando diferentemente os usuários diferentes, a fim de diminuir as desigualdades socioambientais já existentes. O estabelecimento da fórmula de cobrança, com sua respectiva taxa, é de competência do Comitê da Bacia Hidrográfica onde tal instrumento será aplicado. Os comitês, criados pelas leis paulista e nacional de recursos hidrícos, são órgãos colegiados com atribuições normativas, consultivas e deliberativas. Nesses órgãos, é prevista a participação de representantes da sociedade civil, cuja atuação conjunta com representantes do poder municipal e estadual (no caso paulista) e de usuários e do poder público (no caso nacional), deve promover o debate sobre as questões relacionadas à água e planejar o uso sustentável desse recurso na bacia hidrográfica de sua competência.

Questões sobre participação e descentralização podem ser discutidas e analisadas à luz das três dimensões que envolvem o conceito de accountability. Tal conceito refere-se a um conjunto de condições e mecanismos que proporcionem maior controle e participação da sociedade civil no processo de elaboração e definição de políticas públicas, tornando esse processo mais transparente e democrático. Descreve-se a seguir de forma sintética as três dimensões ou variações da accountability: vertical, horizontal e societária (PÓ e ABRUCIO, 2006; WAMPLER, 2005).

A dimensão vertical está relacionada com o processo eleitoral, enfatizando o comportamento do eleitorado e sua capacidade de controlar as autoridades públicas. Como o mecanismo disponível nessa dimensão é a escolha dos representantes durante o processo eleitoral, a disponibilidade de informação e a transparência das ações da gestão pública possuem grande importância, pois vão interferir diretamente na capacidade de avaliação dos cidadãos e na seleção de seus candidatos. Na accountability horizontal o foco é a dinâmica entre as organizações governamentais dentro de um determinado arranjo institucional. Nesse caso, os mecanismos materializam-se nas capacidades, competências e atribuições que as agências estatais possuem para supervisionar, controlar, punir ou retificar ações e decisões de autoridades em outras agências. A última dimensão, a dimensão societária, é uma expansão da accountability vertical, já que também depende das escolhas e ações dos atores das organizações da sociedade civil. Essa dimensão, formada por mecanismos institucionais e não institucionais, envolve as pressões exercidas pelas organizações da sociedade civil para fiscalizar e influenciar as decisões e atividades das agências governamentais. Essa dimensão enfatiza a diversidade de estratégias políticas disponíveis, que ultrapassam a simples e pontual ação de votar durante o período eleitoral. Ações legais, manifestações públicas, denúncias na mídia, audiências públicas e as novas instituições participativas são alguns dos mecanismos legais e políticos que caracterizam essa dimensão (VIEIRA, 2006; WAMPLER, 2005; PÓ e ABRUCIO, 2006).

Como podemos observar, as dimensões da accountability apresentam alto grau de dependência quando, em última instância, o objetivo almejado é aumentar a capacidade da sociedade civil de fiscalizar as atividades e influenciar as decisões governamentais, ou seja, aumentar o controle sobre o Estado. A dependência dessas dimensões torna-se clara quando analisamos as novas arenas de gestão participativas, como os comitês de bacias hidrográficas. Segundo Wampler (2005), a eficiência e o alcance da atuação dessas arenas irão depender da disponibilização de informações completas e transparentes (dimensão vertical), da capacidade de executar suas decisões e monitorar as decisões de outras agências (dimensão horizontal) e, por fim, da abertura ao debate público e a mobilização (dimensão societária).

A abertura do processo de decisão e gestão ao debate e participação pública é uma das principais inovações do novo modelo de gestão da água. Através da participação, abre-se aos segmentos da sociedade tradicionalmente excluídos dos processos de tomada de decisão a possibilidade de influenciar e acompanhar os processos de formulação, avaliação e implementação de políticas. Segundo Jacobi e Fracalanza (2005), a lógica do colegiado, baseada em negociações sociotécnicas, e a sua dinâmica, que torna mais transparente a interação entre os atores envolvidos, deveriam desestimular atitudes de abuso de poder e neutralizar práticas predatórias estimuladas por interesses econômicos e políticos. Os ganhos nesse processo envolvem o fortalecimento da democracia, a inovação institucional e a aprendizagem social (WARNER, 2005).

Entretanto, como fica explícito em um conjunto de estudos, a simples criação de cadeiras específicas para a participação das associações cívicas não garante maior pluralidade e equilíbrio na participação da sociedade civil, ou seja, não é suficiente para modificar a tradicional lógica do poder. Estudos que enfocam as dinâmicas desses conselhos citam uma série de explicações para esses fenômenos.

Primeiramente, existe certo consenso sobre as consequências do histórico legado de desigualdade na sociedade brasileira. Segundo essa linha de raciocínio, parte da concretização dos princípios democráticos que fundamentam essas novas arenas é dificultada pela capacidade desigual quanto à posse e mobilização dos recursos de poder por parte dos atores que participam desses processos políticos. Assim, as desigualdades econômicas, educacionais e de poder enviesariam o processo decisório, que continuaria beneficiando os grupos política e economicamente mais influentes (JACOBI, 2009; DAGNINO, 2004; FUKS et al., 2003; ABERS et al., 2009).

Os grupos de mais baixa renda também encontram dificuldades para ocupar as cadeiras desses colegiados, como dos comitês de bacia, devido à falta de mobilização e organização existente. A participação nos comitês não ocorre de forma individual, como nos conselhos de orçamento participativo, mas através de entidades constituídas. Portanto, enquanto esses grupos não se organizarem para defender seus interesses, eles não poderão se candidatar a uma das cadeiras representativas (ABERS e KECK, 2008; LÜNCHMANN, 2002).

Analisando os pontos e argumentos apresentados anteriormente, conclui-se que as iniciativas de cobrança pelo uso da água bruta ou pelos serviços de saneamento que a acompanha precisam necessariamente conciliar a preservação desse recurso natural e o seu fornecimento adequado, em qualidade e quantidade, para garantir o funcionamento de uma diversificada gama de atividades econômicas, industriais e agrícolas, e, o mais importante, garantir o atendimento das necessidades básicas e vitais dos seres vivos, já que a água é imprescindível para a ocorrência e manutenção da vida.

Dentre os conflitos que surgem entre os múltiplos usos dos recursos hídricos e as consequências da aplicação dos diversos instrumentos existentes para administrá-los, os grupos de baixa renda, cuja possibilidade de mobilização e organização é menor, podem continuar praticamente invisíveis, excluídos do processo de gestão. Como aponta Abers e Keck (2008), as arenas participativas de gestão, atualmente, não são mais consideradas como espaços de identificação de interesses comuns, mas ao invés disso, são interpretadas como um espaço para a expressão das diferenças e dos conflitos; ou seja, a exclusão desses grupos sociais pode acarretar na exclusão de seus problemas e demandas, que não entrarão nas agendas governamentais e, consequentemente, continuarão invisíveis, aumentando a intensidade da vulnerabilidade social e da injustiça ambiental a que estão expostos.

Para finalizar, grande parte das experiências participativas descritas na literatura surgem ou desenvolvem dois tipos de vulnerabilidades que afetam significativamente o seu potencial de intervenção nos processos de tomada de decisão. Em primeiro lugar, as novas arenas são altamente dependentes das organizações tradicionais de gestão, que podem dificultar o repasse de informações e não oferecer suporte financeiro, material e humano.

Além disso, a falta de poder vinculante claramente limita a autonomia desses conselhos de gestão participativa, cujas decisões geralmente necessitam ser ratificadas e executadas por outras instituições, condição que aumenta o risco de ingerência, principalmente, por parte do poder Executivo (ABRAMOVAY, 2001; JACOBI e FRACALANZA, 2005; JACOBI, 2009). A segunda vulnerabilidade está relacionada ao que Santos (2002) chama de democratização da democracia. Diante das desigualdades socioeconômicas e diferenças culturais, a qualidade da atuação dos atores ou grupos sociais que participam das novas arenas de gestão acaba sendo determinada pelos recursos de poder – renda, escolaridade e suporte político – que dominam as suas crenças e formas de percepção do mundo. É necessário que se promova a ampliação da participação, atraindo, garantindo e qualificando o envolvimento de grupos sociais historicamente excluídos do processo de tomada de decisão.

Para superar esse problema é necessária uma mobilização social ativa por parte dos grupos sociais excluídos, com enfoque na discussão dos direitos universais dos indivíduos em relação aos bens ambientais; a participação desses grupos nos processos decisórios levará em conta princípios de justiça ambiental, a começar, pelo direito de acesso e consumo de água em quantidade e qualidade suficiente e adequadas a todos.

Considerações finais

Este artigo procurou verificar de que modo a vulnerabilidade social associada ao saneamento ambiental relaciona-se a injustiça ambiental no Brasil.

A intenção em se discutir os conceitos de vulnerabilidade social e injustiça ambiental, relacionando o uso e a ocupação do solo, a questão da renda, a qualidade do saneamento ambiental e as áreas de risco é indicar como a forma de ocupação do espaço urbano na sociedade capitalista contemporânea perpetua a desigualdade no acesso a recursos naturais. No caso da água, as condições desiguais de apropriação deste recurso fundamental à vida não só acentuam as dificuldades de seu uso por uma parte da população, como também resultam em situações de maiores riscos associados ao uso do território para fins de moradia.

É importante observar que muitas vezes as políticas públicas relacionadas à água priorizam determinados usos dos recursos hídricos que se relacionam a geração de valor pelo sistema capitalista, sem interface com os problemas distributivos do recurso que dizem respeito à população de baixa renda.

Como decorrência da situação de desigualdade apresentada, e para exercício de uma boa governança da água, ressalta-se o papel fundamental das políticas públicas de água e solo no sentido de combaterem as disparidades observadas.

Nesse sentido, é importante ressaltar a necessidade da integração entre as políticas de recursos hídricos com as de uso e ocupação do solo, políticas de saneamento básico, e até mesmo com políticas sociais que minimizem as vulnerabilidades e injustiças ambientais intensificadas pelo processo de desenvolvimento.

A prioridade principal é a promoção de saneamento ambiental para as populações de baixa renda que não têm condições de usufruto de sistemas alternativos para abastecimento de água e coleta, afastamento e tratamento de esgotos; além do estabelecimento de subsídios para os setores de saneamento, considerando que a água é um bem comum e, portanto, deve ser oferecida em qualidade e quantidade adequadas para toda a população.

Ainda assim, a instauração da cobrança diferenciada pelo uso da água para diferentes usuários, por meio do instrumento de taxação, pode auxiliar na busca pelo equilíbrio entre a preservação dos recursos hídricos e a promoção de seus múltiplos usos, a fim de diminuir as desigualdades socioambientais já existentes. Deste modo, o pagamento diferenciado de taxas ambientais pode induzir os maiores usuários de água a diminuírem seu uso, de modo a coibir usos abusivos da água. Em contrapartida, os investimentos em saneamento ambiental para as populações de baixa renda podem contribuir para a minimização de problemas de saúde da população, problemas ambientais e diminuição da injustiça ambiental.

É importante observar que não necessariamente é estabelecido um trade-off entre pagamento de taxas versus uso abusivo de água. É certo que minimizar o uso da água é um dos objetivos da cobrança pelo uso da água, mas o fornecimento de água em quantidade e qualidade adequadas para toda a população continua sendo objetivo primordial da política de recursos hídricos no Brasil.

Neste sentido, mesmo que se coloque a questão de eventuais usos abusivos da água, considera-se a questão de saúde da população como fundamental dos pontos de vista social, ambiental e econômico, o que pode conduzir à necessidade de financiamento e subsídios para saneamento ambiental da população de baixa renda.

Finalmente, considera-se que as questões ambientais discutidas na sociedade capitalista contemporânea, das quais aquelas relacionadas à água são exemplos, podem contribuir para a adoção de valores éticos associados à igualdade, à vida e à justiça, já que explicitam padrões abusivos de produção e consumo e alertam para a necessidade de modificações nas formas de uso e apropriação dos recursos naturais.

Submetido em: 15/08/2012

Aceito em: 17/12/2012

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Maio 2013
  • Data do Fascículo
    Mar 2013

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2012
  • Aceito
    17 Dez 2012
ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
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