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Justiça ambiental, conflitos latentes e externalizados: estudo de caso de pescadores artesanais do norte fluminense

Resumos

Este artigo tem como base um estudo de caso com pescadores artesanais que trabalham na Lagoa de Carapebus,uma lagoa costeira parcialmente localizada dentro de um Parque Nacional, criado em 1998, em uma região que vem adotando um modelo econômico baseado na extração de petróleo há cerca de três décadas no Norte fluminense, RJ. A partir de pesquisa de campo qualitativa e de abordagem teórico-metodológica que privilegia a ecologia política e a teoria do reconhecimento, identificam-se conflitos socioambientais vivenciados por esses pescadores em situações de mudanças de modelo socioeconômico regional e de implantação de unidade de conservação, e discutem-se razões e condições para que os conflitos se apresentem de forma latente - quando a injustiça ambiental não apresenta causas claras para eles - ou externalizada - quando há ação fiscalizadora e punitiva do Estado ou discordâncias quanto a regras de trabalho entre os próprios pescadores.

Justiça ambiental; Conflitos socioambientais; Pescadores artesanais


Este artículo se basa en un estudio de caso con los pescadores que trabajan en la laguna costera parcialmente ubicada dentro de un parque nacional, creado en 1998, en una región que ha adoptado un modelo económico basado en la extracción de petróleo durante tres décadas. Esto artículo usa investigación cualitativa y el enfoque teórico-metodológico que se centra en la ecología política y la teoría del reconocimiento, y el artículo identifica conflictos ambientales experimentadas por los pescadores en situaciones de cambios en el modelo socio-económico regional y el despliegue de la unidad de conservación, y examina las razones y condiciones para que los conflictos están presentes en forma latente - cuando la injusticia ambiental no tiene causas claras para ellos - o subcontratados - cuando hay una acción punitiva y la supervisión por el Estado o desacuerdos con respecto a las normas de trabajo entre los propios pescadores.

Justicia ambiental; Conflictos ambientales; Pescadores


This article is based on a case study about fishermen working in coastal lagoon partially located within a national park, created in 1998, in a region that has adopted an economic model based on the extraction of oil for three decades. On use qualitative research and theoretical-methodological approach that focuses on the teories of political ecology and theory of recognition. The article identifies environmental conflicts experienced by fishermen in situations of model changes and socioeconomic regional deployment of conservation unit, and discusses the reasons and conditions so that conflicts are present in a latent form - when environmental injustice has no clear causes for them - or outsourced - when there is oversight and punitive action by the State or disagreements regarding work rules among the fishermen themselves.

Environmental justice; Environmental conflicts; Fishermen


ARTIGOS ORIGINAIS

Professora de Sociologia na UFRJ/Macaé, doutora em Sociologia pela Unicamp. E-mail: giulianafrancoleal@yahoo.com.br

RESUMO

Este artigo tem como base um estudo de caso com pescadores artesanais que trabalham na Lagoa de Carapebus,uma lagoa costeira parcialmente localizada dentro de um Parque Nacional, criado em 1998, em uma região que vem adotando um modelo econômico baseado na extração de petróleo há cerca de três décadas no Norte fluminense, RJ.

A partir de pesquisa de campo qualitativa e de abordagem teórico-metodológica que privilegia a ecologia política e a teoria do reconhecimento, identificam-se conflitos socioambientais vivenciados por esses pescadores em situações de mudanças de modelo socioeconômico regional e de implantação de unidade de conservação, e discutem-se razões e condições para que os conflitos se apresentem de forma latente - quando a injustiça ambiental não apresenta causas claras para eles - ou externalizada - quando há ação fiscalizadora e punitiva do Estado ou discordâncias quanto a regras de trabalho entre os próprios pescadores.

Palavras-chave: Justiça ambiental; Conflitos socioambientais; Pescadores artesanais.

RESUMEN

Este artículo se basa en un estudio de caso con los pescadores que trabajan en la laguna costera parcialmente ubicada dentro de un parque nacional, creado en 1998, en una región que ha adoptado un modelo económico basado en la extracción de petróleo durante tres décadas. Esto artículo usa investigación cualitativa y el enfoque teórico-metodológico que se centra en la ecología política y la teoría del reconocimiento, y el artículo identifica conflictos ambientales experimentadas por los pescadores en situaciones de cambios en el modelo socio-económico regional y el despliegue de la unidad de conservación, y examina las razones y condiciones para que los conflictos están presentes en forma latente - cuando la injusticia ambiental no tiene causas claras para ellos - o subcontratados - cuando hay una acción punitiva y la supervisión por el Estado o desacuerdos con respecto a las normas de trabajo entre los propios pescadores.

Palabras clave: Justicia ambiental; Conflictos ambientales; Pescadores.

Introdução

A ideia de justiça ambiental pode ser importante para pensar relações sociais existentes e futuros horizontes possíveis, seja como utopias, seja como cenários reais. Trata-se de uma noção que se refere tanto à oportunidade do exercício do direito de decisão sobre a utilização do ambiente, via políticas ambientais, como à distribuição dos custos ambientais de empreendimentos sociais ou econômicos, segundo o princípio de equidade (Herculano, 2002). Por oposição, o termo injustiça ambiental é usado para se referir à desigualdade na exposição aos danos ambientais causados pelo crescimento econômico (FERREIRA, 2011).

Em um sentido semelhante, Martinez-Alier (1997) usa o conceito de distribuição ecológica para se referir "às assimetrias sociais, espaciais e temporais e ao uso desigual de recursos e serviços ambientais pelos seres humanos, isto é, a exaustão de recursos naturais (jncluindo a perda da biodiversidade) e o ônus da poluição" (p.122).

Na vertente de estudos socioambientais conhecida como Ecologia Política, a temática da justiça ambiental remete a conflitos por direitos territoriais e significados culturais, como definem Zhouri et. al. (2005), para quem

o conflito eclode quando o sentido e a utilização de um espaço ambiental por um determinado grupo ocorre em detrimento dos significados e usos que outros segmentos sociais possam fazer de seu território, para com isso, assegurar a reprodução do seu modo de vida (ZHOURI et.al., 2005, p.18).

No desenrolar dos conflitos, estão em questão as condições e formas de reprodução social de indivíduos e de grupos sociais, tanto quanto as relações de poder entre diferentes grupos e classes sociais. Está em questão, enfim, a justiça ambiental. Acselrad (2004) é bastante claro, nesse sentido, ao definir conflitos ambientais como

aqueles envolvendo grupos sociais com modos diferenciados de apropriação, uso e significação do território, tendo origem quando pelo menos um dos grupos tem a continuidade das formas sociais do meio que desenvolvem ameaçada por impactos indesejáveis - transmitidos pelo solo, água, ar ou sistemas vivos - decorrentes do exercício das práticas de outros grupos (ACSELRAD, 2004, p.26).

A formação de conflitos desse tipo é especialmente favorecida em situações de dois tipos: implementação de áreas de preservação ambiental e empreendimentos econômicos com grande impacto ambiental.

Na implementação de áreas de preservação ambiental, Laskefski e Costa (2008) observam a recorrência de divergências entre eles. Os autores enfatizam que os resultados desses confrontos expressam, com frequência, as prioridades de determinados grupos de influência, muitas vezes contraditórias entre si. Desse modo, revelam-se as relações de poder neste campo.

Quanto aos empreendimentos econômicos de grande porte, envolvendo recursos ambientais, Zhouri et.al. (2005) indicam que eles geram injustiças ambientais, ao imputar riscos e danos às camadas mais vulneráveis da sociedade, além de excluí-las dos efeitos positivos do chamado desenvolvimento. Contudo, vários movimentos sociais - tais como aqueles formados por atingidos por barragens, seringueiros e contaminados pela indústria de amianto, entre outros - mostram que as pessoas e grupos que sofrem tais danos não são necessariamente passivos (ZHOURI et.al, 2005).

Todavia, consideramos conveniente lembrar que nem sempre reações, na forma de movimento ou em qualquer outra, são geradas por essas situações. Nesse sentido, sugerimos dividir os conflitos socioambientais em dois grupos: (1) aqueles externalizados em falas e/ou ações dos sujeitos sociais envolvidos; (2) aqueles que permanecem latentes, ou seja, nos quais estão presentes situações de injustiça ambiental, contradições de interesses, de visões de mundo e de condições sociais de reprodução, gerando desigualdades no acesso aos recursos ambientais, tratando-se, porém, de conflitos que não se manifestam abertamente.

Uma situação de múltiplos conflitos, em função tanto de implementação de área de preservação ambiental como de projetos de desenvolvimento econômico, é vivenciada de modo emblemático por um grupo de pescadores artesanais da Lagoa de Carapebus, no município que leva o mesmo nome, no estado do Rio de Janeiro. São considerados pescadores artesanais aqueles que praticam a pesca nos moldes da pequena produção mercantil, com tecnologias de baixo poder predatório e de forma autônoma, com força de trabalho familiar ou do grupo de vizinhança (CARDOSO, 2001).

A região Norte fluminense, onde se localiza Carapebus, sofreu mudanças drásticas com a descoberta de poços de petróleo na Bacia de Campos e a consequente chegada da Petrobrás, em 1974, e de mais de quatro mil empresas do ramo petrolífero à cidade vizinha de Macaé, ao longo da década seguinte. Além dos impactos ambientais que podem influenciar as oportunidades de trabalhos dos pescadores artesanais, a forma de desenvolvimento ocorrida na região atingiu as condições de vida da população em geral e, em espacial, dos estratos mais pobres (entre os quais se encontram os trabalhadores da pesca), como discutiremos no primeiro item deste artigo.

Além disso, na tentativa de proteger áreas ambientalmente ameaçadas, o poder público mais uma vez afetou a vida de grupos de pescadores da região. Em 1998, foi criado por decreto presidencial o Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba (PARNA Jurubatiba), abrangendo parte do território dos municípios de Macaé, Quissamã e Carapebus, incluindo parte da Lagoa de Carapebus. Com a criação do Parque, houve intensificação da fiscalização das atividades pesqueiras - como será exposto com mais detalhes - e, a partir de luta dos pescadores artesanais, foi concedida a uma parcela deles a autorização para pescar na lagoa no interior do parque, sob certas restrições de uso de material e de horário, previstos em um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e pescadores locais.

Nesse cenário, colocam-se as seguintes questões, exploradas neste artigo: 1) Considerando as profundas transformações das condições de vida e de trabalho de pescadores da Lagoa de Carapebus, nas últimas três décadas, quais são os conflitos socioambientais vivenciados por eles?; 2) Quais são as condições e razões para que conflitos se apresentem em forma latente ou de modo externalizado nos discursos e ações desses sujeitos?

Essas questões são pensadas a partir de pesquisa de campo, de caráter qualitativo, realizada entre novembro de 2011 e setembro de 2012, por meio de entrevistas semiestruturadas com onze pescadores artesanais da Lagoa de Carapebus e da observação participante em reuniões formais e informais entre eles.

Serão discutidas, inicialmente, as situações em que os conflitos se apresentam de maneira explícita e, em seguida, serão apresentadas situações de injustiça ambiental que representam conflitos potenciais. Com base na análise dessas duas situações distintas, discutiremos as condições e razões pelas quais conflitos tendem a se apresentar de modo latente ou externalizado.

Resultados e discussão

Conflitos externalizados

Quatro situações aparecem recorrentemente como fontes de conflitos nas narrativas dos pescadores sobre suas histórias: (a) a seleção dos pescadores autorizados a pescar dentro do Parque; (b) a fiscalização da pesca dentro do PARNA Jurubatiba; (c) as atividades ilegais de pescadores durante o período de defeso1 1 O período de defeso continental, decretado pelo IBAMA, compreende os quatro meses nos quais a pesca é proibida, com objetivo de preservação de espécies.(IBAMA, 2008). Os pescadores profissionais são compensados pelo recebimento de um salário mínimo mensal (Brasil, 1998). e (d) a abertura da barra, isto é, quando o cordão arenoso que separa a lagoa do mar adjacente permanece rompido, e a ocorrência de pesca durante esse período.

Nos dois primeiros casos, o conflito dos pescadores é principalmente com o estado - indiretamente, com instâncias federais e municipais responsáveis pela criação das leis e autorizações e, de modo mais direto e visível, com os agentes de fiscalização e punição - e, apenas secundariamente, envolvendo outros colegas de pesca com quem há discordâncias sobre as regras. Já nas situações que envolvem defeso e abertura de barra, é mais central o conflito de pescadores entre si, mas neles também estão entremeadas as relações com o poder público. Este poder aparece na fala dos pescadores centralmente como fiscalizador e punitivo dos que estão fora das regras legais.

A implementação do Parque trouxe esses conflitos à tona, desencadeando o aumento da fiscalização, e como resposta dos pescadores, esforço para se organizar e conhecer questões que envolvem suas condições de trabalho (tais como o defeso), qualificando sua participação nos embates em torno dos rumos assumidos no manejo da Lagoa de Jurubatiba.

O PARNA Jurubatiba foi criado em 1998, com o objetivo de conter a degradação ambiental causada pela ocupação das áreas de restinga por comunidades urbanas, sitiantes e fazendeiros, gerando práticas de aterramentos e barras artificiais para escoamento da água, além de atividades econômicas de criação de gado e de plantação de coco e abacaxi (VAINER, 2010). Segundo Esteves (2011), a mobilização pela sua criação começou em meados da década de 1980, por iniciativa de pesquisadores ligados a universidades, com apoio de ambientalistas participantes de organizações não-governamentais locais e dirigentes do IBAMA.

Houve intensos conflitos em torno de sua criação e implementação, envolvendo, principalmente, pesquisadores de universidades e membros de ONGs e do Ibama, do lado favorável à existência do Parque, e uns poucos moradores do local e vários fazendeiros e sitiantes que praticavam a criação de gado e plantação de coco na área, além de vereadores e prefeitos que os representavam, do outro lado (ESTEVES, 2011).

Quando o Parque foi criado, no fim dos anos 1990, as experiências de implementação de unidades de conservação, no Brasil, já aderiam à contraposição ao modelo oriundo dos Estados Unidos da década de 1960, pelo qual as áreas de preservação não deveriam ter habitantes nem outras pessoas que usassem de seus recursos. Este modelo que pensa a natureza como intocada - criticado por Diegues (1998), entre outros - vinha gerando vários conflitos sociais com as populações expulsas ou do entorno, intensificados especialmente nos anos 1970, inclusive na América Latina. Nas últimas décadas do século XX, percebeu-se que as ações de manejo ligadas ao modo de vida de comunidades tradicionais - entre as quais podem ser incluídos pescadores artesanais - podem contribuir para a conservação da biodiversidade (DIEGUES, 2000).

São considerados como tradicionais os

grupos humanos culturalmente diferenciados que historicamente reproduzem seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base em modos de cooperação social e formas específicas de relações com a natureza, caracterizados tradicionalmente pelo manejo sustentado do meio ambiente (DIEGUES, 2000, p.23).

Vários parques, criados nesse período, passaram a permitir o uso de seus recursos naturais pelas comunidades consideradas tradicionais. Contudo, isso não significou necessariamente que elas fossem protagonistas dos processos de implementação dessas unidades de conservação.

No caso do PARNA Jurubatiba, paradoxalmente, os pescadores não foram ouvidos na criação do Parque, mas a partir dela, e influenciados pela mesma, tornaram-se agentes com voz ativa no que se refere às suas regras de funcionamento. Isso se deveu ao aumento da fiscalização sobre as atividades de pesca na área do Parque, que lhes provocou a necessidade de se documentarem como pescadores e se organizarem como tais para lutar pelo direito de pescar dentro daquela unidade de conservação, como consta em seus depoimentos2 2 Ao transcrever as gravações das entrevistas dos pescadores, palavras incompletas e erros de concordância em relação à norma culta foram corrigidos , sem prejuízo da estrutura e do conteúdo das frases. :

A fiscalização passou a ser mais severa na criação do Parque, Porque nós temos hoje mesmo a Guarda Ambiental, temos a Guarda Florestal e a Polícia Federal, que ela passa a fiscalizar, temos o serviço que é responsável pelo Parque e temos a Guarda Ambiental. No momento, ela não tem autoridade de apreender. Ela tem autoridade de fiscalizar, de ela ir e levar à Polícia Militar ou à Polícia Federal. E a Polícia Federal é aquela história: quando ela vem, ela não vem pra fiscalizar, ela vem pra te prender. (Pescador E)

Não tinha [associação de pescadores em Carapebus antes de 1998]. Só tinha 10 pescadores documentados, entendeu? E a gente fundando a Associação, pegamos, conscientizamos os pescadores que tinha que se documentar.(...) A associação começou na minha cabeça por causa de polícia tirar meu material de pesca, na brutalidade. Quando fui buscar na delegacia, eu [fui] tratado que nem um nada pelo polícia, porque eu não podia provar que eu era pescador. Aí eu comecei a bater de porta em porta, tudo por aqui é meu conhecido, para formar a associação e documentar todo mundo. (Pescador G)

Quatro dos onze pescadores entrevistados queixaram-se, espontaneamente, por não terem sido ouvidos quando se discutiu a criação do PARNA Jurubatiba. Mas parece ter pesado ainda mais para a sua organização a sensação de injustiça por terem sido tratados sem a dignidade que sua condição de trabalhadores lhes confere.

O que mudou pra mim depois do Parque é o seguinte: pra trazer benefício pra nós em que? Na função de ser sabedor do que é certo e o que é errado. A gente nem era informado, como você ouve falar: "a pesca foi perdida em defeso". Mas nós não sabíamos o que era o defeso. O direito do defeso que a gente tinha que ter, todo pescador que é legalizado, ele tinha o direito de ter um plano de saúde, o pescador quando é legal. O pescador, ele tem direito a um plano de empréstimo pra comprar embarcação ou rede ou material de pesca. Isso tudo veio beneficiar o pescador. Através do Parque nós passamos a saber disso. Então, é um beneficio do Parque.(...) Com o Parque, hoje o pescador é ouvido. Antes as pessoas não ouviam. A gente era tratado que nem bandido. A fiscalização chegava, botava uma arma na frente da gente e pedia os documentos. Eles pediam: "Seus documentos de pesca, cadê? Cadê a arma? Eles nem pediam primeiro os documentos. Mas a primeira coisa que eles pediam é a arma. Só que o cidadão quer o respeito, nós somos trabalhadores. (Pescador G)

O depoimento acima sugere que a criação da Associação encarna, na prática, a demanda que o pescador tem de ser ouvido. Ter voz é um requisito para ter a dignidade que eles demandam e que faz parte da construção subjetiva de si como sujeitos ativos na definição das regras que os atingem.

Sua demanda pode ser entendida como busca de reconhecimento, no sentido dado por Honneth (2003). Para este autor, a reprodução da vida social se dá sob o imperativo do reconhecimento recíproco que, em suas formas que vão além das relações amorosas e de amizade, assumem dois formatos: referem-se ao reconhecimento jurídico, sendo cada indivíduo um portador de direitos universais dos seres humanos, ou dizem respeito ao assentimento solidário, pela estima social que permite aos sujeitos referirem-se positivamente a suas capacidades e características concretas.

A negação do reconhecimento ameaça a identidade que as pessoas constroem para si. Em virtude da importância do reconhecimento e da força das expectativas em torno dele, tal negação tende a ser vivida como desrespeito ou ofensa. Quando o causador da quebra das expectativas de reconhecimento é outro sujeito, é esperado que se crie um sentimento de indignação moral no indivíduo não reconhecido. Nesse caso, a experiência do desrespeito, dependendo das formas de discernimento do envolvido e o seu entorno político e cultural, pode se tornar impulso motivacional para uma luta por reconhecimento (HONNETH, 2003).

No caso estudado, os pescadores querem ser reconhecidos como trabalhadores, em oposição a "bandidos" ou a "um nada". Face aos agentes estatais de fiscalização e repressão que promovem a negação desse reconhecimento, sentem-se desrespeitados e motivados a se organizar coletivamente para participar do conflito que se configura.

Além disso, pensando em outro aspecto além da questão subjetiva do reconhecimento, a ação associativa dos pescadores se constitui também em luta por uma meta bastante objetiva: ter o direito de pescar dentro dos limites do PARNA Jurubatiba.

Dentro de Parques Nacionais, a pesca entra em conflito com os objetivos e regulamentos que os embasam a priori, mas sua proibição pode prejudicar os trabalhadores e famílias que usam a pesca como parte de sua estratégia de sobrevivência (SANTOS 2008). Como tentativa de resolução desse problema, sem prejuízo daquelas famílias, a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) prevê a possibilidade de autorização para pesca em unidades de conservação por meio de termo de compromisso, fato que aconteceu na Reserva Ecológica do Lago de Pirituba/AP e no Parque Nacional do Cabo Orange, pela autorização do Ibama e, mais recentemente, com a administração do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio)3 3 O ICMbio é uma autarquia vinculada ao Ministério do Meio Ambiente e integra o Sistema Nacional do Meio Ambiente. (Santos, 2008). Esta tem sido a solução empregada também para os pescadores que atuam na parte da Lagoa de Carapebus localizada no interior do PARNA Jurubatiba. Essa conquista foi fruto da luta dos pescadores, em aliança com os administradores do Parque, sob responsabilidade do ICM-Bio.

Esses pescadores estão pescando aí, brigando, porque nós brigamos muito [para poder pescar dentro do PARNA Jurubatiba], e foi autorizado pelo Ministério Público. O procurador da república veio aqui, entendeu? O Ministério Público. Acharam lá uma brechinha, encaixaram, ajudado por esse rapaz, que é o [vice-diretor do Parque], ajudado por ele. Porque pelo contrário, não teria, não tinha ninguém pescando lá não. (Pescador B)

Vinte e cinco pescadores - dos setenta e três registrados, segundo a Associação de Pescadores de Carapebus - que provaram terem um histórico de atividade pesqueira no Parque e utilizá-la para parte significativa de seu sustento, tendo renda mensal máxima de dois salários mínimos, conseguiram autorização do ministério do Meio Ambiente para pescar nos limites do parque. Essa regra divide os pescadores entre os que podem e os que não podem pescar dentro do parque. O critério e as maneiras de lidar com ele, por vezes, dão origem a sensações de injustiça, dirigidas ao estado, e abrem possibilidades de conflitos dos trabalhadores entre si.

Hoje, com o Parque criado em 98, ele é área ambiental, de preservação. Porque, com a criação do Parque, as coisas mudaram. Beneficiou os pescadores, alguns, que foram beneficiados, que pescam lá dentro porque receberam a carta de autorização e essa carta de autorização, ele fez um termo de responsabilidade. Ele só pode pescar de quatro da tarde até às 8 da manhã. Depois das 8 da manhã, se ele for pego ele pode ser multado e a multa é de R$500 a R$ 1800,00. A multa de R$1800,00 se pegar com pesca e material de arrasto qualquer um que não for autorizado, qualquer um que for pego lá dentro. Está proibido pesca, caça, qualquer coisa. Então, o que acontece? Eu peguei, aí com essa criação do Parque, nós temos 25 [pescadores autorizados a pescar dentro do parque] até hoje, mais 8 pessoas que estamos pra ver se se encaixam num padrão que ele possa pescar aqui ainda. Mas, talvez ele não seja contemplado porque se ele tiver alguma renda além do permitido, ele não se encaixa. (Pescador G)

Do canal pra lá, pertence ao parque; pra cá, já não é mais o Parque, é fora do parque. Da divisão pra lá, só pode pescar quem está autorizado a pescar pelo IBAMA, quer dizer, é uma coisa errada, aquilo que eu tava dizendo lá: se a lei protege você, ela tem que me proteger também, não importa se você tem dinheiro ou é pobre, a mesma lei que protege você tem que me proteger. Vamos supor, eu sou rico, você é pobre, mas a mesma lei que me atinge, atinge você, então minha briga com eles é essa. [Não me deram a autorização porque] o meu salário é avançado. Isso veio a assistente social aqui em casa, fazer levantamento, tanto na minha como em outras casas. (...) Mas quando vem os de fora, chega lá na praia, bota a lancha dentro d'água, vem fazendo tudo, sem autorização. (Pescador B)

Também existem conflitos entre os pescadores que respeitam e os que não respeitam a proibição à pesca no defeso e da abertura de barra.

Em relação ao defeso, há posições que se contrapõem: ele pode ser visto como um benefício - pela preservação de peixes que serão pescados mais tarde em melhores condições e/ou pelo dinheiro recebido do governo durante esse período - , aliás, um direito descoberto a partir da criação do parque, segundo o presidente da Associação de Pescadores de Carapebus. Outros pescadores, pelo contrário, consideram o defeso um estorvo, que os impede de exercer seu trabalho.

Discordâncias semelhantes se dão em torno da abertura de barras, tanto entre os pescadores como entre os demais sujeitos envolvidos, tais como outros moradores e comerciantes de locais próximos à lagoa, pesquisadores e agentes da prefeitura. Segundo Santos (2006), as aberturas artificiais de barras nessas lagoas costeiras são historicamente conduzidas pelos pescadores em intervalos de um ou dois anos para que espécies marinhas entrem e se reproduzam, aumentando a produção. Santos (2008) também destaca o argumento de Esteves (1998) de que a abertura das barras contribui para a melhoria da qualidade da água, a diminuição de inundações que afetam as residências construídas em margens de lagoas e, ainda, para a diminuição da presença de algas que dificultam a atividade de pesca. Contudo, lembra que diversos pesquisadores salientam impactos ambientais negativos das constantes aberturas de barras, entre os quais

intensa mortandade e emigração de espécies ducícolas, incêndios florestais na vegetação às margens da lagoa e seus canais, mudanças bruscas nas características físico-químicas da água alteram a composição de espécies e risco de, havendo período de escassez de chuva, haver uma redução do nível da lagoa durante longos períodos favorecendo a concentração de poluentes (SANTOS, 2008, p.30).

Santos et.al. (2006) relatam conflitos sobre aberturas de barras entre os gestores do Parque Jurubatiba e os pescadores e comunidades residentes nos balneários.

Entre os pescadores entrevistados, nem todos tinham opinião formada sobre a abertura de barras. Entre os sete que se manifestaram sobre o assunto, houve argumentos contrários baseados em experiências anteriores de mortandade de peixes e, do outro lado, argumentos favoráveis à abertura, centrados na necessidade de impedir alagamento das casas da região.

Além da divisão entre os pescadores que são a favor e os que são contrários à medida, existe a oposição entre os que respeitam a interdição de pescar quando a barra está aberta ou quando é período de defeso, de um lado, e os que não a respeitam, de outro.

Um mês, a barra [ficou] aberta, todo mundo pescando. Como é que vai ter peixe nessa lagoa? E a turma toda também quando vinha aqui, vinha pescar, a turma de lá que vem de Carapebus, vem de Macaé, fica do lado de lá, os outros ficam aqui. Mas quando o Ibama chegou, pegou todo mundo lá, que estava pescando ali. Tinha sossegado, daí a pouco veio uma turma de carro, começou a pescar. Quando o cara [policial] entrou na lancha, que partiu pra lá, olha, a turma correu muito, mas corria, mas corria pra ganhar o mato lá. Ganharam o mato lá, fugiram, não sei o que a turma aprontou, mas foi uma troça. O que eu achei que foi um erro. Gente, a polícia deu uma ordem: não pode pescar durante esse defeso. Por que a gente não obedece? Não pode pescar, então vamos todo mundo, não vamos pescar. (...) Diz que tem um rapaz pescando, tem que ir lá impedir, eu levo os fiscais lá. (...) Agora sobre a pesca, vou dizer à senhora: eu acho que esse ano, se acontecer [de] abrir essa barra, meus filhos ou um qualquer que tenha essa força de fazer resistência, tem de botar uns guardas aí pra não deixar o povo pescar, fazer uma ronda aí pra não não deixar pescar. Que ele [fiscal] veja, ande aqui de canoa. Porque quando abria a barra, dava arrastão, grande, 200 metros, matava aí 2, 3 mil quilos de quilos de peixe, robalo, carapeba e tainha. Depois que ele arrastava, o povo pescava, ficava matando peixe o ano todo, que essa lagoa é muito rica. Essa lagoa é rica, é boa demais. Está faltando é uma visão nela, está faltando cuidado. (Pescador A)

O desrespeito de alguns pescadores à interdição da pesca no defeso e na abertura de barras poderia ser lido como dificuldade de estabelecerem reciprocidade, no sentido conferido por Ostrom (1998), como norma moral internalizada, caracterizada pelo desejo de cooperar. Porém, como a reciprocidade implica em sanção em caso de não cooperação, pode-se considerar que a indignação e a busca de punição às atitudes consideradas erradas, por parte de outros membros dessa comunidade de usuários dos recursos naturais, representa um passo na construção da reciprocidade (SABOURIN, 2010).

Todos os conflitos descritos neste item apresentam-se de forma explícita: expressam divergências de posições e contradições de interesses que se externalizam nos discursos e/ou nas ações desses pescadores.

Além deles, a pesquisa também revela que existem conflitos latentes, em que divergências de interesses nascem de situações de injustiça ambiental, mas estas ou não se tornam claras na consciência dos sujeitos envolvidos ou, pelo menos, não se externalizam em palavras e atos. Esse tipo de conflito será discutido no item abaixo.

Injustiça ambiental na reprodução das condições de vida e de trabalho

O modelo econômico adotado na região norte fluminense, centrado na extração de petróleo, afeta duplamente os pescadores da região. Mais diretamente, a indústria do petróleo tem vários impactos ambientais que podem afetar pescadores, entre os quais, a geração de ruídos, que podem afastar animais, riscos de explosões, de vazamentos de óleo e outros danos à fauna (Silva et.al., 2008).

Além disso, a introdução da atividade petroleira em uma região antes predominante pesqueira e agrícola desencadeou aumento populacional drástico. Como esse crescimento se deu sem a criação de infraestrutura urbana correspondente, houve consequências negativas para toda a população da região. Uma delas é a acentuação da degradação ambiental, associada ao lançamento de efluentes domésticos e industriais na água, aterramento de lagoas e brejos e queima de vegetação aquática (ESTEVES, 2011), com decorrentes ameaças a vários ecossistemas (VAINER, 2007). Ocorreu ainda a expansão de favelas e de ocupações ilegais de terrenos, acentuação da desigualdade social (PIZZOL, 2008) e de acesso aos insuficientes serviços urbanos, tais como energia elétrica, asfaltamento, transporte público e saneamento básico (SILVA NETO, 2007).

Os pescadores artesanais são especialmente afetados por tudo isso: por um lado, por serem parte da população mais pobre e, por isso, menos capaz de fugir das más condições de vida com recursos financeiros particulares, como fazem as classes mais altas, ao procurarem as regiões com melhor infraestrutura para morar, comprarem água mineral para beber, pagarem mais caro por alimentos orgânicos etc.; por outro lado, os pescadores sofrem prejuízos nos rendimentos oriundos de seu trabalho, em virtude da sua dependência direta de recursos naturais

É consenso entre os onze pescadores ouvidos que diminuiu a quantidade de peixes e frutos do mar na lagoa em que trabalham, ao longo dos últimos trinta a cinquenta anos. Um deles, que pesca há mais de trinta anos na Lagoa, diz:

A lagoa nossa acabou. Eles falam com a boca grande, "lagoa de Carapebus"... balela! Nossa lagoa acabou. Porque a lagoa, o peixe, tem peixe, tem, mas o pescador, aquele que pesca de rede, não tem nem como botar a rede, aquilo virou mato, puro brejo. Você sabe que o esgoto, ele profui a lagoa, aí vem a brotação e o mato toma conta. (Pescador A)

Outro pescador, atuante na Lagoa há cerca de trinta anos, conta:

[Quando eu comecei], em relação à pescaria, naquilo que pescava, saía. Pegava a tarrafa, chegava na beirada ali e jogava, pegava carapeba, o melhor peixe que tem na lagoa, pegava camarão. Depois, de uns anos pra cá, foi mudando. Demorava a abrir mais [a barra]... tinha tudo isso aí... demorava a abrir e parece que os peixes ficavam espertos demais, difícil de pegar... peixe cação eram os peixes que a gente mais pescava, né? Começou a diminuir. (Pescador D)

A diminuição do pescado se reflete na dificuldade cada vez maior de prover o sustento da família com a pesca. Seis deles contam que foi com o trabalho de pescadores como ocupação principal que sustentaram e educaram seus filhos. Hoje, porém, quase todos afirmam que a pesca já não sustenta sozinha uma família: somente um dos pescadores afirmou que dá para viver satisfatoriamente de pesca, apesar de ele exercer também outras atividades remuneradas; dois pescadores dizem que é possível viver de pesca, mas de modo insatisfatório; todos os outros dizem que não é possível viver bem apenas com o trabalho da pesca, sendo necessário outro trabalho. Um deles calculou que não é possível tirar um salário mínimo por mês com a atividade de pesca.

Para todos os pescadores que foram entrevistados, o arranjo feito para satisfazer as necessidades da família foi usar a pesca como complemento a outra renda, seja de aposentadoria ou de outro trabalho remunerado. Entre os pescadores que deram seus depoimentos, há aposentados, pequenos comerciantes, assessor parlamentar de vereador, pequeno agricultor, funcionário público.

Combinar diferentes atividades não é uma estratégia recente: eles contam que ao longo de suas vidas, sempre exerceram várias atividades ao mesmo tempo, além da pesca. Mas eles afirmam que até cerca de duas décadas atrás, ainda retiravam da pesca uma fatia maior ou principal do orçamento familiar.

Reflexo dessa mudança se encontra nas escolhas das gerações seguintes e nos planos dos pais pescadores para seus filhos, que contemplam a recusa da pesca como profissão. Quatro dos pescadores entrevistados contam que os filhos nem gostam de pescar. Os demais dizem que os filhos pescam por lazer ou como complemento de renda, mas que eles têm outras profissões, todas exercidas nas cidades, a maioria em empresas offshore.

Percebe-se que isso acontece não só porque as condições de pesca estão mais difíceis, mas também porque no mercado de trabalho atual da região, existem mais empregos disponíveis que remuneram melhor. Isso está relacionado ao crescimento das cidades da região, amplamente apoiado nas empresas offshore. Mas essas oportunidades, aproveitadas pelos filhos, não são opções para os próprios pescadores, grande parte com escolaridade menor que o Ensino Fundamental quase sempre exigido. Essa situação - ter suas condições de trabalho pioradas, mas ver seus filhos tendo novas e diferentes oportunidades - revela a ambiguidade da situação dos antigos pescadores artesanais frente ao modelo de desenvolvimento em processo na região.

Para compreender melhor sua visão sobre as transformações socioambientais em curso, investigamos o que esses pescadores têm a dizer sobre os motivos pelos quais os peixes diminuíram, tanto na lagoa como no mar. As explicações variam: dois pescadores dizem que tem muita gente pescando; dois comentam que grandes barcos a motor assustam os peixes, principalmente no mar; quatro pessoas acreditam que o problema vem do aumento da população e do esgoto jogado, no caso da lagoa; três pescadores acham que uma boa parte da responsabilidade está na prática da pesca durante o período de defeso; por fim, uma pessoa diz que os peixes estão mais espertos e aprenderam a fugir das redes, e um trabalhador lembra que a Petrobrás polui o mar, podendo fazer diminuírem as populações de peixes e frutos do mar.

Chama a atenção que a grande maioria deles (com uma exceção), mesmo os que pescam também no mar, não fazem menção à relação entre a diminuição do pescado e a atividade petroleira, tão evidente na região. Contudo, percebem-se as causas indiretas, pelo crescimento da população que leva ao aumento de esgoto.

A Petrobrás - empresa maior e mais conhecida entre as várias que exercem atividades ligadas à extração de petróleo na região - é mais pensada pelos pescadores em relação aos benefícios que traz na forma de empregos e de programas voltados para os trabalhadores da pesca, tais como cursos e doações de material. Alguns comentários sobre a empresa revelam uma visão paternalista e clientelista em relação à mesma - como uma "mãe carinhosa", aquela que "dá" kits e cestas básicas, que "oferece" cursos, como se fossem favores e não formas de mitigação dos impactos ambientais que causa:

Eu conheci Macaé e hoje Macaé está boa, está tudo bom, que tem a Petrobrás que ajuda tudo quanto é cidade, hoje está bom. Petrobrás é uma mãe carinhosa que existe no mundo pra tudo quanto é lugar. Se não fosse a Petrobrás, Macaé não tinha trabalho. (Pescador A)

Dois dos pescadores avaliam as vantagens e desvantagens da chegada da Petrobrás na região:

Pra Macaé foi vantagem a Petrobrás. Deu emprego pra muita gente. Mas Macaé, 90% que trabalha na Petrobrás, é gente de fora, vem de fora. Porque macaense mesmo que trabalha na Petrobrás, tem pouca gente empregada. Isso você pode crer. Veio a Petrobrás, acabou com a praia, uma das melhores praias que nós tínhamos no Rio, que era Imbetiba, acabou com ela. Eu acho que a Petrobrás, ela ajudou em parte e prejudicou em outra. (Pescador B)

Olha, a Petrobras, eu te digo que ela tem sido uma grande parceira pro pescador. Porque hoje se eu posso fazer uma festa, primeiramente eu não teria recursos e aí vem a Petrobras, ela me da um apoio. Você vê: eu tenho aqui 60 kits escolares e eu não teria condições financeiras de doar esse material. Mas eu, através da Petrobrás, hoje eu vou poder entregar, fazer uma criança sorrir, um chefe de família, que se for pro meu filho, eu não vou ter que comprar o material dele. E a gente por aí, eu vejo que a Petrobrás melhorou. Em alguma área [pode ser que] venha prejudicar sim, alguns pescadores. Mas como que ela vai produzir? Porque o trabalho ali na água, é pros dois, é concorrente, e você vê, eu vejo, a Petrobras está preocupada com o pescador. Ela faz uma doação de cesta básica. Ela patrocinou a pintura desses barcos, ela patrocinou esse material de pesca que nós recebemos agora. E eu não vejo que a Petrobrás venha prejudicar nossos pescadores. Desde que ela veio, não vejo. Porque todo mundo está precisando trabalhar. A Petrobras, ela queira ou não ela é uma concorrente dos pescadores porque trabalha tudo na mesma área. É todo mundo trabalhando e defendendo o seu interesse. A Petrobras defendendo o petróleo. Nós defendemos a pesca. Só que os dois trabalham. E sempre está em conflito deles, porque eles alegam que a Petrobras pode ir onde o pescador não pode. E na verdade não pode ir ali na plataforma, que é área de risco. (Pescador G)

Esses dois pescadores, ao falarem sobre a relação com uma empresa offshore, têm uma visão que contempla vantagens e desvantagens, mas mesmo assim o último trecho não se isenta uma visão que, embora parcialmente crítica, pode conter um componente de aceitação ao clientelismo.

Enfim, percebe-se que o conjunto das mudanças do perfil socioeconômico da região, em função da atividade extrativista petroleira, tem dois lados associados que interferem na dinâmica de vida dos pescadores: 1) os impactos ambientais, dos quais pouco falam, e que apenas um associa diretamente aos efeitos negativos no rendimento da atividade pesqueira; 2) a criação de outras oportunidades de trabalho, que muitos de seus filhos aproveitam. Mas ao mesmo tempo, a adesão dos jovens se deve tanto ao interesse intrínseco dessas novas oportunidades profissionais como à falta de possibilidade de seguir a profissão dos pais.

Percebe-se que as situações de injustiça ambiental, geradas pelo modelo de desenvolvimento adotada, manifestam-se seja pelas atividades de empresas que mais afetam os pescadores do universo estudado pela degradação ambiental do que os beneficia diretamente com novas oportunidades, seja na reprodução das relações de desigualdade social, nas quais os pescadores artesanais se encontram nas partes mais baixas da pirâmide há gerações. Tais situações permanecem como fonte de conflitos socioambientais potenciais, que, porém, não se concretizam em lutas específicas da categoria.

No entanto, outros conflitos vêm à tona, como vimos no item anterior. O que os fazem diferentes? Com considerações finais, procuraremos encaminhar algumas hipóteses.

Considerações finais

As situações de injustiça ambiental aqui abordadas, cujos sujeitos envolvidos e atuantes em sua origem e reprodução não podem ser diretamente responsabilizados ou sequer identificados, geram conflitos socioambientais, na medida em que os pescadores artesanais sofrem impactos indesejáveis resultantes das atividades de outros grupos sociais, sendo assim prejudicados na reprodução de seu modo de vida. Mas esses conflitos permanecem latentes, porque não se traduzem numa consciência clara da injustiça nem em ações concretas a esse respeito.

Já os conflitos externalizados, que puderam ser percebidos entre os pescadores da Lagoa de Carapebus, tiveram uma de suas origens em situações de ação direta do Estado, por meio de seus agentes fiscalizadores e repressores, especialmente no que se refere a interdições às atividades de pesca. Além disso, os conflitos externalizaram-se também a partir de situações em que os pescadores não se sentem reconhecidos, de forma respeitosa, como tais. A intensificação desse tipo de ação está associada à criação de um Parque Nacional que abrange a área de atuação daqueles que trabalham no local.

Outros conflitos explícitos têm sua origem nas discordâncias entre os pescadores a respeito de temas como a interdição à pesca no período de defeso e a abertura de barras, intensificando-se quando o desrespeito às leis implica em ameaças à reprodução dos peixes e demais frutos do mar e, portanto, à própria reprodução social dos pescadores.

É interessante perceber que os conflitos latentes identificados - quando comparados ao outro tipo de conflitos manifestados - apresentam muito mais consequências negativas para os pescadores, quanto à reprodução de situações de desigualdade social e mesmo como ameaça à sobrevivência dos pescadores como categoria social (e à sua sobrevivência física, se dependerem exclusivamente dessa atividade). Nenhum vislumbre de encaminhamento desses conflitos no sentido da diminuição ou extinção da injustiça ambiental foi percebido nas narrativas e atitudes dos pescadores.

Pelo contrário, são os conflitos que se tornaram externalizados os que carregam o germe de transformações. As interdições trazidas pela implementação do PARNA Jurubatiba e a intensificação da presença do poder público fiscalizador trouxeram restrições à atividade pesqueira, mas tiveram como resposta a organização daqueles trabalhadores numa associação de defesa de interesses da categoria, que lhes permitiu conhecer melhor e discutir seus direitos e deveres. Eventos como o defeso e a abertura de barras também intensificam essas discussões, trazendo para seu centro as questões das condições de trabalho dos pescadores e da conservação ambiental. Nesse processo, os pescadores afirmam-se como sujeitos sociais que podem e devem ser interlocutores do Estado e dos demais sujeitos sociais envolvidos com as questões regionais relativas a trabalho e ambiente.

No que se refere à distribuição desigual de custos ambientais de empreendimentos econômicos, a justiça ambiental constitui, para aqueles pescadores, uma questão nebulosa, da qual alguns se dão conta, por vezes parcialmente, e outros não, e que não os une como pauta de luta. Já no que diz respeito à participação nas decisões sobre utilização do meio ambiente, a justiça ambiental (mesmo que não referida nesses termos) aparece como uma questão preciosa em seu cotidiano e se constitui em elemento de mobilização.

Notas

Submetido em 20/11/2012

Aceito em: 27/08/2013

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    Giuliana Franco Leal
  • 1
    O período de defeso continental, decretado pelo IBAMA, compreende os quatro meses nos quais a pesca é proibida, com objetivo de preservação de espécies.(IBAMA, 2008). Os pescadores profissionais são compensados pelo recebimento de um salário mínimo mensal (Brasil, 1998).
  • 2
    Ao transcrever as gravações das entrevistas dos pescadores, palavras incompletas e erros de concordância em relação à norma culta foram corrigidos , sem prejuízo da estrutura e do conteúdo das frases.
  • 3
    O ICMbio é uma autarquia vinculada ao Ministério do Meio Ambiente e integra o Sistema Nacional do Meio Ambiente.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Fev 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      20 Nov 2012
    • Aceito
      27 Ago 2013
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