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O que é pós-normal nas relações ambiente e sociedade?

EDITORIAL

O que é pós-normal nas relações ambiente e sociedade?

A modernidade e o positivismo instituíram nos domínios da cultura ocidental que o saber científico clássico é a única maneira de gerar conhecimento e respostas para os anseios e dilemas da humanidade.

A ciência consagrada na modernidade se fez hegemônica e hiperespecializada, além de se constituir de forma adstrita, em que cada especialidade se reproduz sob o domínio de grupos consolidados de pares, orientados por paradigmas vigentes que pautam a legitimação dos saberes e a própria reprodução dos paradigmas vigentes.

Essas comunidades de pares, com sua organização social influenciam e são influenciadas por políticas de ciência e tecnologia, também mediando a formação de jovens pesquisadores, que são capacitados a reproduzirem os modelos estabelecidos. Desse modo, se caracterizam por meio de estruturas com a propriedade de se autorreproduzirem ao mesmo tempo em que se conservam herméticas no que diz respeito a se distanciar do senso comum, não sendo permeáveis à criticas e controle de qualidade proveniente de outros grupos sociais que detenham saberes ou interesses por hora divergentes dos postulados científicos.

Evidentemente, novos paradigmas sistematicamente vêm a confrontar os antigos e, ocasionalmente, estes logram êxito. Todavia, prevalece a tendência de estabelecer uma similar lógica de autorreprodução, de política, de treinamento de novos pesquisadores e de consagração da hegemonia, que sendo esta a representação da certeza, coloca todas as demais formas de conhecimento à margem. A esse modelo de organização da comunidade de pares em torno de determinado paradigma e ao processo inerente de autorreprodução denomina-se, segundo Thomas S. Kuhn, de ciência normal.

Não é intenção acusar que a ciência hiperespecializada seja exclusivamente um processo de organização de um grupo de atores sociais com o mero intuito de deter hegemonia e poder. A ciência, como a conhecemos, é indubitavelmente motivada pela busca de explicações e soluções de suma relevância. É muito óbvio contestar que os adventos científicos e tecnológicos são fundamentais para a humanidade. Também é fato que o grande avanço da ciência que se constata hoje se consuma de uma lógica organizacional em torno de paradigmas, mas que estes, não são simplesmente nem verdades estáticas, nem mesmo perspectivas que apenas unem os pares acadêmicos sob a égide de sua própria credibilidade. As comunidades de pares devem também ser analisadas e compreendidas de modo aprofundado como estruturas sociais e políticas.

Mas, por outro lado, as crises das incertezas e as dimensões e complexidades dos efeitos colaterais do sucesso da era urbana e industrial trouxeram evidências da premente consideração de distintos saberes dentro de uma racionalidade includente e interativa. A modernidade desprovida dessa racionalidade, com sua perspectiva objetiva, não só gerou impedimentos a outros saberes como também, inclusive, fomentou situações perversas.

Este contexto de exclusão cognitiva é correspondente ao contexto de exclusão social e, do mesmo modo como outros saberes não encontram possibilidade de se pronunciar e tomar decisões quanto aos problemas mais relevantes da humanidade, também se perpetua que grandes massas populacionais também não tenham meios de se protegerem das consequências e desdobramentos destes problemas.

Para Zygmunt Bauman, a pós-modernidade vem a oferecer a possibilidade maior de tolerância e inclusão, de modo a permitir espaço e relevância para aquilo que diverge dos padrões de certeza. Essa perspectiva não se constitui por uma forma de redenção aos erros do passado, no entanto, se consome mediante à seriedade e magnitude de crises e incertezas, identificáveis, sobretudo, na segunda metade do século XX.

Nos dias atuais, temos nos confrontado com um problema de magnitude global e com as mais complexas possibilidades de desdobramentos em nível regional e local, que é a perspectiva das mudanças climáticas globais e suas consequências sistêmicas, que podem ocorrer de modo intrínseco à contextos socioambientais ao longo de distintas escalas espaciais e temporais.

Essa problematização vem a exigir um amplo envolvimento dos mais diversos atores sociais em torno das incertezas científicas e necessidade de decisões urgentes, mesmo que as consequências vindouras possam ser de médio a longos prazos.

Considerando-se as incertezas quanto a previsão de futuro com um desejado nível de certeza e confiança, o que realmente importa é se teremos uma sábia visão que nos possibilite uma perspectiva de futuro, para a qual tenhamos a responsabilidade de alterá-la.

Nesse sentido, encontramos correspondência com a crítica oferecida por Silvio Funtowicz e Jerome Ravetz, de que uma nova perspectiva deve se efetivar com a ruptura do modelo vigente para produzir ciência frente a questões de elevado grau de incertezas.

Nesse contexto, a favorável conjuntura pós-moderna, de inclusão e tolerância, pode contribuir para que haja um amplo controle crítico e para que decisões consensuais por parte dos mais diversos atores da sociedade quanto àquilo que convencionalmente era restrito às comunidades de pares, na lógica da ciência normal, sejam tomadas.

De um lado, a democratização da ciência, de outro a corresponsabilização da sociedade e a necessária defesa de seus interesses. Assim, temas de elevada importância e complexidade, que envolvem dinâmicas socioambientais, podem ser conduzidos sob o enfoque da ciência pós-normal.

Este volume da revista reúne doze artigos, sendo onze em português e um em inglês, que se desdobram em cinco temas, biodiversidade e patrimônio, conflitos socioambientais, cidades e vulnerabilidade, certificação ambiental, e agroecologia.

O artigo Regime jurídico da mata atlântica e o risco à sobrevivência in situ de espécies ameaçadas das autoras Fernanda Bloise Prado, Fernanda Carla Wasner Vasconcelos e Cristina Kistemann Chiodi, realiza uma avaliação dos processos ecológicos que envolvem a vulnerabilidade à extinção de espécies ameaçadas da Mata Atlântica. Para tanto, as autoras questionam a aplicação dos dispositivos das legislações legais vigentes.

As autoras Martha Schaer-Barbosa, Yvonilde Dantas Pinto Medeiros e Maria Elisabete Pereira dos Santos, avaliam a viabilidade de implantação do reúso da água na região agrícola do município de São Domingos, no semiárido baiano. O artigo Viabilidade do reúso da água como elemento mitigador dos efeitos da seca no semiárido da Bahia coloca em discussão os principais obstáculos à reutilização da água na região.

As autoras Christiane Fernandes dos Santos, Elisabete Stradiotto Siqueira, Iriane Teresa de Araújo e Zildenice Matias Guedes avaliam aspectos de ordem social, econômica e ambiental nas práticas de agricultores familiares de Mossoró no artigo A agroecologia como perspectiva de sustentabilidade na agricultura familiar, ressaltando as conquistas e desafios a serem superados na busca pelo desenvolvimento sustentável.

Os autores Renan Almeida Baptistini e Tulio Alberto Martins de Figueiredo abordam os desafios do trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) na zona rural, ressaltando as inovações e formas diferenciadas de atendimentos realizados por esses agentes. O artigo Agente comunitário de saúde: desafios do trabalho na zona rural baseou-se em entrevistas e observação do cotidiano destes profissionais que atuam no município de Jerônimo Monteiro – Espírito Santo/Brasil. No artigo Guardiões de imenso estoque de carbono – floresta Amazônia, populações tradicionais e o dispositivo da sustentabilidade, as autoras Shaula Maíra Vicentini de Sampaio e Maria Lúcia Castagna Wortmann, discutem as novas relações que envolvem a floresta amazônica e as populações tradicionais na proteção do estoque de carbono; com isso, integram o tema das mudanças climáticas ao mercado de preservação da natureza.

No artigo "Patrimônio cultural, cidade, sustentabilidade: qual o papel da legislação urbanística na preservação e no desenvolvimento?" a autora Vanessa Gayego Bello Figueredo discute a articulação entre tombamento e instrumentos urbanísticos, como o plano diretor e as Zonas Especiais na discussão sobre planejamento territorial e desenvolvimento urbano, sobretudo na gestão de sítios históricos.

As autoras Cássia de Souza Rares e Ana Lúcia Brandimarte desenvolvem uma discussão sobre a pressão antropogência em ambientes aquáticos e sua relação com os serviços ambientais envolvidos na conservação dos corpos de água. O artigo "O desafio da conservação de ambientes aquáticos e manutenção de serviços ambientais em áreas verdes urbanas: o caso do Parque Estadual da Cantareira" chama atenção para o fato de que a proteção da vegetação nem sempre resulta em proteção dos habitats aquáticos e da qualidade da água.

O artigo Conflicts between humans and giant otters (Pteronura brasiliensis) in Amanã Reserve, Brazilian Amazonia identifica e avalia as ameaças a espécie acerca do impacto humano sobre sua população. Os autores Danielle dos Santos Lima, Miriam Marmontel e Enrico Bernard chamam atenção para a importância da mitigação e monitoramento dos impactos ambientais para a manutenção das ariranhas na Reserva Amanã.

Os autores Mauro Silva Ruiz, Rosany Correa, Amarilis Lúcia Gallardo e Ayrton Sintoni analisam no artigo Abordagens de conflitos socioambientais em casos de subsidência de minas de carvão no Brasil e EUA os conflitos socioambientais relacionados aos impactos de subsidência nas minas de carvão em Santa Catarina e Illinois, com o objetivo de identificar práticas apreendidas no processo de implantação das regulamentações de subsidência no estado americano que poderiam ser incorporadas no Brasil.

O artigo A vulnerabilidade do idoso em situações de desastres: necessidade de uma política de resiliência eficaz busca apresentar uma análise da situação de vulnerabilidade do idoso considerando seu grau de fragilidade em situações de emergência. Neste contexto, os autores Airton Bodstein, Valéria Vanda Azevedo de Lima e Angela Maria Abreu de Barros, alertam para a necessidade de elaboração de protocolos específicos de prevenção, preparação e resgate da população idosa por parte dos agentes da Defesa Civil.

Os autores Heloísa Bot Borges e Valdir Fernandes discutem no artigo "O uso do amianto no Brasil: o desafio do desenvolvimento sustentável no Supremo Tribunal Federal" a relação entre meio ambiente e economia em processos julgados sobre o uso do amianto em âmbito do Supremo Tribunal Federal. A abertura desta instituição à noção de desenvolvimento sustentável contribui para a construção de uma racionalidade ambiental, mesmo diante de interesses econômicos e da dinâmica do capital.

Com o intuito de identificar a certificação de melhor desempenho a ser utilizada para edificações residenciais no Brasil, os autores Sergio Fernando Tavares, Marcelo Henrique Farias de Medeiros e Paula Regina Mendes Grunberg, realizaram uma análise comparativa entre os três sistemas de certificação mais utilizados no Brasil. O artigo Certificação ambiental de habitações: comparação entre LEED for Homes, Processo Aqua e Selo Casa Azul, consiste na avaliação de múltiplos critérios para definir o melhor sistema de certificação mais adequado à realidade brasileira.

Saudações e boa leitura!

Pedro Roberto Jacobi e Leandro Giatti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Ago 2014
  • Data do Fascículo
    Jun 2014
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