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Propostas metodológicas em pesquisas sobre risco e adaptação: experiências no Brasil e na Austrália

Resumos

Neste artigo, os autores discutem a utilização de grupos focais e de planejamento com cenários envolvendo stakeholders e pesquisadores como instrumentos metodológicos em estudos qualitativos sobre risco, tanto para aferir percepções, identificar demandas, discutir propostas e soluções, como para promover a participação de uma comunidade ampliada de pares na produção de dados e no enfrentamento dos riscos associados a eventos extremos e mudanças ambientais. A partir deste recorte temático e metodológico os autores apresentam e analisam resultados de dois estudos realizados no Litoral Norte paulista (Brasil) e na parte Norte da costa de Queensland (Austrália), entre 2011 e 2013. Tais estudos apontam que os instrumentos metodológicos explorados alcançaram os objetivos propostos, contribuindo, em particular, para estreitar o diálogo e articulação entre cientistas e stakeholders.

Métodos qualitativos; Integração de conhecimentos; Mudanças ambientais; Brasil; Austrália


En este artículo, los autores discuten la utilización de grupos focales y de planificación con escenarios con stakeholders e investigadores como instrumentos metodológicos sobre riesgo, tanto para comparar percepciones, identificar demandas, discutir propuestas y soluciones, como para promover la participación de una comunidad ampliada de pares en la producción de datos y en el enfrentamiento de los riesgos asociados a eventos extremos e cambios ambientales. A partir de esta propuesta temática y metodológica los autores presentan y analizan los resultados de dos estudios realizados en el Litoral Norte del estado de Sao Paulo (Brasil) y en la zona Norte de la costa de Queensland (Austrália), entre 2011 y 2013. Los estudios apuntan que los instrumentos metodológicos explorados alcanzaron los objetivos propuestos, contribuyendo, en particular, para estrechar el diálogo y la articulación entre científicos y stakeholders.

Métodos cualitativos; Articulación de conocimentos; Cambios ambientales; Brasil; Australia


In this article the authors introduce a debate about focus groups and scenarios planning with stakeholders and researchers as methodological tools for qualitative studies on risks aimed to investigate perceptions and needs, to debate proposals and solutions, as well as to promote the participation of the extended peer community in producing knowledge and dealing with risks associated to extreme events and environmental change. Considering this theoretical and methodological approach the paper focuses on two research projects undertaken in urbanizes coastal areas in Brazil (North Coast of São Paulo) and in Australia (Nort Cost of Queensland), between 2011 and 2013. The findings highlight that both methods achieved the proposed goals and improved the dialogue and articulation between scientists and stakeholders.

Qualitative methods; Knowledge articulation; Environmental change; Brazil; Australia


Propostas metodológicas em pesquisas sobre risco e adaptação: experiências no Brasil e na Austrália1 1 . Os autores do estudo brasileiro agradecem à Fapesp (Processos 2010/51849-8, 2012/02125-2, 2008/58159-7), aos membros da Defesa Civil dos municípios envolvidos no estudo e aos participantes dos grupos focais. Os autores do estudo australiano agradecem o apoio do Griffith Climate Change Response Program, da Câmara do Comércio de Cardwell e dos membros da comunidade.

Gabriela Marques Di GiulioI; Sílvia Serrao-NeumannII; José Eduardo ViglioIII; Lúcia da Costa FerreiraIV; Darryl Low ChoyV

IDoutora em Ambiente e Sociedade pela UNICAMP e docente do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da USP. E-mail: ggiulio@usp.br

IIDoutora em Educação pela UNICAMP e pesquisadora do Urban Research Program, Griffith University, Austrália. E-mail: s.serrao-neumann@griffith.edu.au

IIIDoutor em Ciências Sociais pela UNICAMP e pesquisador colaborador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM-UNICAMP), onde realiza seu estágio de pós-doutoramento. E-mail: eduviglio@hotmail.com

IVDoutora em Ciências Sociais pela UNICAMP e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM-UNICAMP). E-mail: luciacf@unicamp.br

VDoutor em Planejamento Urbano e Regional pela University of Queensland, professor e diretor da escola de Planejamento, Griffith University, Austrália. E-mail: d.lowchoy@griffith.edu.au

RESUMO

Neste artigo, os autores discutem a utilização de grupos focais e de planejamento com cenários envolvendo stakeholders e pesquisadores como instrumentos metodológicos em estudos qualitativos sobre risco, tanto para aferir percepções, identificar demandas, discutir propostas e soluções, como para promover a participação de uma comunidade ampliada de pares na produção de dados e no enfrentamento dos riscos associados a eventos extremos e mudanças ambientais. A partir deste recorte temático e metodológico os autores apresentam e analisam resultados de dois estudos realizados no Litoral Norte paulista (Brasil) e na parte Norte da costa de Queensland (Austrália), entre 2011 e 2013. Tais estudos apontam que os instrumentos metodológicos explorados alcançaram os objetivos propostos, contribuindo, em particular, para estreitar o diálogo e articulação entre cientistas e stakeholders.

Palavras-chave: Métodos qualitativos; Integração de conhecimentos; Mudanças ambientais; Brasil; Austrália.

RESUMEN

En este artículo, los autores discuten la utilización de grupos focales y de planificación con escenarios con stakeholders e investigadores como instrumentos metodológicos sobre riesgo, tanto para comparar percepciones, identificar demandas, discutir propuestas y soluciones, como para promover la participación de una comunidad ampliada de pares en la producción de datos y en el enfrentamiento de los riesgos asociados a eventos extremos e cambios ambientales. A partir de esta propuesta temática y metodológica los autores presentan y analizan los resultados de dos estudios realizados en el Litoral Norte del estado de Sao Paulo (Brasil) y en la zona Norte de la costa de Queensland (Austrália), entre 2011 y 2013. Los estudios apuntan que los instrumentos metodológicos explorados alcanzaron los objetivos propuestos, contribuyendo, en particular, para estrechar el diálogo y la articulación entre científicos y stakeholders.

Palabras clave: Métodos cualitativos; Articulación de conocimentos; Cambios ambientales; Brasil; Australia.

Introdução

A ampliação do debate sobre participação pública no processo decisório em situações de risco é resultado de diversas experiências empíricas que têm evidenciado a necessidade de considerar as percepções individuais e coletivas frente aos riscos que os indivíduos estão potencialmente expostos e integrar conhecimentos locais aos conhecimentos técnico-científicos, de forma a estender o diálogo sobre a formulação de políticas a todos os afetados pela questão (FREITAS, 2000; FUNTOWICZ, RAVETZ, 1997; RENN, 2008; DI GIULIO, 2012; DI GIULIO et al., 2012).

Para compreender as percepções e comportamentos frente aos potenciais riscos associados aos eventos extremos e às mudanças climáticas e ambientais e possibilitar um debate sobre as ações de mitigação e adaptação necessárias no nível local, foram testados dois instrumentos metodológicos em dois estudos: grupo focal aplicado no Litoral Norte paulista (Brasil) e planejamento com cenários na parte Norte da costa de Queensland (Austrália), ambos entre 2011 e 2013.

Embora conduzidos de forma independente, esses estudos envolveram objetivos e estratégias similares, já que em ambos os pesquisadores elegeram a adoção de métodos qualitativos e participativos, envolvendo a participação de stakeholders (gestores e lideranças civis locais) e pesquisadores para aferir percepções, identificar demandas, discutir propostas e soluções e buscar a participação na produção de dados e no enfrentamento dos riscos.

Dentro da perspectiva de promover pesquisas participativas, os estudos conduzidos procuraram dialogar com o paradigma da ciência pós-normal, entendendo que avaliações críticas dos problemas ambientais não podem ser desempenhadas apenas por um corpo restrito de especialistas; o diálogo e a formulação de políticas devem ser estendidos a todos os afetados pela questão – a uma comunidade ampliada de pares (FUNTOWICZ E RAVETZ, 1997).

Com o objetivo de contribuir para o debate teórico e metodológico atual sobre instrumentos de pesquisa em estudos sobre riscos, este artigo propõe apontar potencialidades e limitações da adoção desses métodos qualitativos, a partir dos estudos realizados nas duas localidades definidas.

Contexto das pesquisas realizadas

A vulnerabilidade das regiões costeiras aos eventos extremos e às mudanças ambientais tem sido apontada como uma questão importante para as agendas nacionais e internacionais de pesquisa e de política.

No Brasil, particularmente, onde 26,6% da população residem em municípios da zona costeira (IBGE, 2010), estudos sinalizam os possíveis impactos associados à ocorrência de eventos extremos nestas regiões, como erosão costeira; danos a obras de proteção costeira, de saneamento e urbanização; prejuízos estruturais ou operacionais a portos e terminais; exposição de dutos enterrados ou danos estruturais a dutos expostos, entre outros (NEVES E MUEHE, 2008).

Alguns desses impactos já podem ser observados na zona costeira de São Paulo, que conta com 16 cidades e uma população de 1.996.007 habitantes (IBGE, 2010). Especialmente na porção Norte, formada pelos municípios de São Sebastião, Ilhabela, Caraguatatuba e Ubatuba, estudos apontam que há em torno de 745 km2 de áreas com riscos a deslizamentos/escorregamentos e inundações (Ferreira et al., 2012) e que diversos empreendimentos dos setores portuário e petrolífero com grande potencial para provocar mudanças na vocação econômica local e no meio ambiente têm sido desenvolvidos (VIGLIO, 2012).

Semelhante ao que vem ocorrendo em termos de assentamentos urbanos no mundo e no Brasil, na Austrália aproximadamente metade da população vive a menos de sete quilômetros da zona costeira e cerca de 30% dessa população vive a menos de dois quilômetros de distância do mar (CHEN E MCANENEY, 2006).

Considerando o crescente desenvolvimento urbano da zona costeira australiana, espera-se que muitos desses centros urbanos terão grande vulnerabilidade aos efeitos das mudanças climáticas e ambientais, como o aumento do nível do mar, mais intensos ciclones/furacões e inundações costeiras (HENNESSY et al., 2007).

Um exemplo desses centros urbanos é a cidade costeira de Cardwell, localizada no estado de Queensland, na região Nordeste australiana, com uma área de 4,9 km2 e uma população de 1.176 pessoas (Australian Bureau of Statistics, 2011).

No verão de 2010/2011, o padrão La Niña causou intensas enchentes em mais de 70% da área total do estado de Queensland. Nessa mesma época, em fevereiro de 2011, a cidade costeira de Cardwell foi severamente afetada pelo ciclone Yasi, que atingiu o valor máximo na escala de intensidade de tempestades tropicais (The World Bank e QRA, 2011).

É a partir dessas similaridades em termos de vulnerabilidades socioambientais frente aos eventos extremos e às mudanças ambientais e do diálogo entre os pesquisadores envolvidos em dois projetos de pesquisa realizados nestas duas localidadesi i No caso do Brasil, foi desenvolvido o Projeto Temático Urban Growth, Vulnerability and Adaptation: social and ecological dimensions of climate change on the Coast of São Paulo, financiado pela FAPESP. Já no caso da Austrália, foi desenvolvido o Projeto the South East Queensland Climate Adaptation Research Initiative (SEQCARI). O diálogo entre os pesquisadores envolvidos nesses dois projetos, autores desse artigo, teve início com a realização do 1º Workshop de cooperação internacional Mudanças climáticas em áreas costeiras no Estado de São Paulo (Brasil) e South East Queensland (Austrália) em julho de 2011. , que este artigo explora a adoção de dois métodos qualitativos em pesquisas sobre riscos, buscando apontar suas potencialidades e limitações.

Grupos focais e planejamento com cenários – instrumentos de pesquisa e engajamento

Grupos focais e planejamento com cenários foram adotados nos estudos realizados visando-se à proposição de pesquisas participativas, a partir de uma adaptação dos princípios da pesquisa ação e da pesquisa de intervenção.

A pesquisa-ação passa pela geração de conhecimento prático que seja útil às pessoas em suas vidas cotidianas e pelo entendimento de que, com base nesse conhecimento, os indivíduos e as próprias comunidades, e especificamente nos temas ambientais, possam melhorar seu bem-estar e estabelecer um relacionamento mais sustentável com o ambiente em que vivem (REASON E BRADBURY, 2006).

A pesquisa de intervenção, que é uma variante da pesquisa-ação, parte de uma perspectiva integrada de produção de conhecimento que leva em conta tanto as implicações para a condução da pesquisa como para a prática, no sentido de promover transformações na realidade estudada (ROTHMAN E THOMAS, 1994). Avenier e Nourry (1999) sustentam que a pesquisa de intervenção envolve um processo de interação contínuo entre pesquisadores e stakeholders. Esse processo de interação tem início ainda na fase de negociação entre o projeto de pesquisa liderado por pesquisadores e os projetos (ou em outras palavras, as demandas) dos stakeholders.

A segunda etapa é denominada de fertilização cruzada (cross-fertilization) porque envolve possibilidades de cruzamentos entre os projetos e demandas identificadas, resultando, assim, na (re)elaboração de um projeto final que deve ser mutuamente benéfico tanto para a equipe de pesquisa como para as partes interessadas. Cabe ainda ressaltar que o modo de interação entre pesquisadores e interessados durante a pesquisa deve visar aprendizagem coletiva e produção de conhecimentos a partir da troca de informações. Estes conhecimentos gerados incluem conhecimento local que deve oferecer resultados para as demandas dos stakeholders; metaconhecimento, que se refere ao conhecimento obtido com a condução da pesquisa sobre os stakeholders e grupos que representam, incluindo conhecimento sobre as dinâmicas e práticas sociais locais, experiências vividas, percepções sobre as questões e problemas debatidos, elementos que interferem nas percepções, possibilidades de diálogo entre os grupos sociais etc; além de conhecimento publicável, que se refere ao conhecimento produzido por pesquisadores a partir dos seus objetivos de pesquisa.

Esses tipos de pesquisa, argumento defendido neste artigo, podem ser úteis em estudos sobre adaptação aos eventos extremos e às mudanças ambientais e climáticas, uma vez que identificam as demandas e opções das comunidades locais para se adaptarem a esses fenômenos e como essas escolhas podem reduzir a vulnerabilidade local. Além disso, a perspectiva de uma pesquisa embasada no modo de interação entre pesquisadores e interessados, visando aprendizagem coletiva e produção de conhecimentos, pode potencializar o uso do conhecimento gerado pelas partes interessadas, uma vez que stakeholders e pesquisadores trabalham juntos desde a identificação do problema até a análise das recomendações e estratégias propostas baseadas nas informações levantadas.

Neste sentido, no caso brasileiro, o estudo no Litoral Norte paulista priorizou a realização de grupos focais, um instrumento de pesquisa qualitativa baseado em entrevistas grupais, cujo objetivo principal é propiciar um entendimento de como se formam e se diferem as percepções, opiniões e atitudes acerca de um fato, produto ou serviço. Considerando que as percepções, opiniões e atitudes são socialmente construídas, o método de grupo focal possibilita extrair mais facilmente a expressão dos indivíduos participantes, já que no processo de interação os comentários colocados pelos envolvidos podem estimular e gerar opiniões de outros participantes sobre o assunto debatido (KRUEGER, 1994).

Morgan (1988), ao fazer uma ampla revisão sobre grupo focal, argumenta que do ponto de vista das ciências sociais esse método é útil para obter interpretações dos participantes sobre o assunto debatido e conexões com o tema em um âmbito mais amplo, gerar hipóteses com base nas informações providas pelos participantes, desenvolver posteriormente questionários, além de captar as percepções dos indivíduos participantes sobre o assunto debatido e apreender suas experiências e perspectivas.

O número de participantes em um grupo focal varia, sendo a média entre seis e dez. Grupos menores são interessantes quando o pesquisador deseja um envolvimento forte – um claro sentido de reação – de cada participante sobre o tema debatido. Esses participantes, em geral, costumam ter um alto nível de envolvimento com o tema, são especialistas ou sabem muito sobre o assunto debatido que, quase sempre, é controverso ou complexo. Já grupos maiores, com mais de 10 participantes, são realizados quando os indivíduos têm um nível baixo de envolvimento sobre o tópico discutido e o objetivo é apenas ouvir inúmeras sugestões sobre um assunto (como em um brainstorming).

Em todos os grupos focais, os participantes devem ter algo a dizer sobre o tópico em questão e devem sentir-se confortáveis nos seus comentários com os outros – por isso grandes diferenças sociais ou de estilos de vida devem ser evitadas. Como sustenta Morgan (1998), o objetivo é homogeneidade entre os participantes e não homogeneidade de atitude.

Krueger (1994), ao discorrer sobre esse método, oferece dicas importantes para que a realização de grupos focais alcance os resultados esperados. É preciso que o local onde será realizado o encontro seja de fácil acesso, o ambiente neutro e que propicie o contato visual entre os participantes que deverão estar sentados em círculo. Para facilitar a realização de um grupo focal, é válido contar com uma equipe de pelo menos três pessoas: o moderador, que conduz o debate entre os participantes, explora e media questões de interesse da pesquisa desenvolvida, esclarece a finalidade e o formato da discussão e incentiva a participação de todos; o relator, que deve tomar notas dos pontos principais do debate, incluindo observações sobre atitudes não verbais dos participantes (expressões faciais e gestos, por exemplo) e destacar em um quadro visível as palavras-chave da discussão, com a finalidade de auxiliar o fechamento do debate; e o operador da câmera de vídeo, que deverá filmar a reunião.

É válido lembrar que, em um grupo focal, o moderador não busca convencer, ensinar, organizar ou censurar os participantes; seu objetivo é criar uma oportunidade para que os outros falem e ele escute (MORGAN, 1998). Assim, cabe a ele prover diferentes tipos de questões para fomentar e aquecer a discussão e deixar os participantes confortáveis para que desenvolvam seus comentários e sustentem seus argumentos. Neste sentido, o moderador pode lançar mão de: (i) questões iniciais para identificar características comuns entre os participantes; (ii) questões introdutórias, para introduzir o tópico geral do debate e prover aos participantes oportunidade para refletirem sobre experiências passadas e conexões com o assunto debatido; (iii) questões de transição, para ajudar os participantes a vislumbrarem o tema em um âmbito mais amplo; (iv) questões chaves, que direcionam de fato para os objetivos do estudo; (v) questões de finalização, que devem fechar a discussão, ajudando os participantes a fazerem uma análise crítica do que foi debatido (KRUEGER, 1994).

Há, todavia, como nos demais métodos adotados em pesquisas qualitativas, algumas limitações. Gondim (2003), ao fazer uma análise sobre elas, enfoca, por exemplo, o tamanho da amostra, ressaltando que a representatividade de um grupo focal pode tornar inviável a generalização para a população investigada; a falta de controle do desempenho do moderador; o nível de resposta a ser considerado para efeito de análise nos grupos focais, já que a formação de opinião é resultado das interações sociais; e as limitações de comparação de resultados obtidos nos grupos focais com outras técnicas de investigação.

No caso australiano, o estudo baseou-se na adoção do planejamento com cenários, um instrumento estratégico/futurista usado para desenvolver estruturas de decisão baseadas no conhecimento científico para lidar com a incerteza provocada pela falta de informações mais precisas ou situações em que existe baixa margem de controle (PETERSON et al., 2003). Este tipo de instrumento propicia a geração de um enfoque sistêmico para o desenvolvimento e avaliação de planos, estratégias e políticas públicas para enfrentar situações e circunstâncias incertas através da criação de futuros plausíveis nos quais eles podem ser testados (O'BRIEN, sem data). O planejamento com cenários possibilita a criação de futuros plausíveis para informar o processo de decisão no presente.

Em se tratando de um instrumento de cunho futurista, o planejamento com cenários necessita de uma estrutura sistêmica através da qual uma série de futuros plausíveis pode ser explorada (CORK et al., 2005). Nesse contexto, as etapas envolvidas no planejamento com cenários incluem: (i) identificação de um problema ou assunto focal; (ii) avaliação de fatores certos e incertos que influenciam esse problema ou assunto durante um período determinado; (iii) desenvolvimento de opções baseadas nesses fatores – a criação de cenários plausíveis e coerentes com as ideias de futuros plausíveis; (iv) desenvolvimento de narrativas para descrever a transição do presente para os futuros plausíveis (incluindo uma trajetória para cada cenário assim como sinais que poderiam indicar que um futuro estaria se tornando mais real do que o outro); (v) avaliação de planos, estratégias e políticas públicas de acordo com as características desses futuros plausíveis.

O potencial do planejamento com cenários está relacionado com a possibilidade da geração de um contexto para que uma decisão sobre um determinado assunto ou problema possa ser feita agora, mesmo que suas consequências só possam ser sentidas num futuro que ainda é incerto (O'BRIEN, sem data). Isso é possibilitado através de uma descrição e exploração sistêmica das formas como as incertezas poderiam se manifestar no futuro além dos impactos que estas poderiam causar na decisão em questão.

O planejamento com cenários pode apresentar variações no seu enfoque qualitativo ou quantitativo. No entanto, é importante ressaltar que esse método, baseado na geração de descrições de futuros plausíveis, envolve um alto grau de incerteza e não resulta em previsões de nenhum futuro especificamente (O'BRIEN, sem data).

Em campo – Litoral Norte paulista

No caso da pesquisa no Litoral Norte brasileiro, incluindo os municípios de São Sebastião, Caraguatatuba e Ubatuba, foram realizados oito grupos focais, com uma média de 6-7 participantes em cadaii: um com pesquisadores representando o Projeto Temático financiado pela Fapesp, ao qual esse estudo esteve vinculado; três deles com gestores e técnicos que atuam direta e indiretamente em avaliação e gestão de riscos nos três municípios abordados na pesquisa; dois com lideranças de bairros considerados áreas de riscos nos municípios de São Sebastião e Caraguatatuba; e um com jovens de 12 a 17 anos de idade, estudantes e moradores de um bairro considerado área de risco e de proteção ambiental, pertencente ao município de Caraguatatubaiii. Todos os participantes assinaram um termo dando consentimento livre e esclarecido para participarem como voluntários do projeto.

Antes da organização dos grupos focais foi imprescindível a realização de reuniões com os chefes das Defesas Civis dos três municípios, a partir da perspectiva de que a pesquisa conduzida seria participativa. Apesar de não ter a intenção inicial de seguir as etapas propostas em uma pesquisa de intervenção (descritas anteriormente), é possível traçar paralelos aos objetivos propostos neste tipo de pesquisa, a partir da ideia de interação contínua entre stakeholders e pesquisadores.

Neste caso, o processo de interação, na fase de negociação, envolveu reuniões com os chefes das Defesas Civis, nas quais foi apresentada a pesquisa desenvolvida. Os técnicos, por sua vez, além de proverem informações sobre as áreas de risco existentes nessas localidades, as estratégias de ação, comunicação e prevenção adotadas, expressaram suas demandas em termos de pesquisa (ressaltando a importância de estudos com foco nas percepções e estratégias de comunicação e enfrentamento) e a necessidade de diálogo mais estreito entre quem produz conhecimento científico e quem usa esse conhecimento para tomar decisões. Foi acordado, ainda que informalmente, que os chefes das Defesas Civis ajudariam os pesquisadores a identificar os possíveis participantes dos grupos focais e os locais mais adequados para a realização dos encontros, bem como participariam dos grupos focais a serem realizados com gestores e técnicos locais. Os pesquisadores, por sua vez, buscariam atuar com a perspectiva de que é necessário melhorar o diálogo e a articulação com técnicos e gestores locais.

Já na fase de fertilização cruzada entre projetos e demandas, foi estabelecido – também de maneira informal – que esses técnicos indicariam possíveis participantes dos grupos focais e compartilhariam informações sobre as áreas de riscos. Também foi colocado que no processo de pesquisa seriam envolvidos stakeholders e comunidade através da realização de reuniões e workshops.

Em relação aos três tipos de conhecimento que podem ser gerados a partir de pesquisas de intervenção, conforme a perspectiva proposta por Avenier e Nourry (1999), o estudo realizado contribuiu para:

(i) o conhecimento local, especialmente através da realização dos grupos focais que, de alguma forma, provocaram os participantes a refletirem sobre os problemas dos locais onde vivem e atuam, os riscos associados às mudanças ambientais, possibilidades de cooperação;

(ii) para o metaconhecimento, uma vez que foi possível gerar conhecimento sobre os stakeholders e os grupos que representam, identificando inclusive possibilidades de melhorar o diálogo entre os grupos sociais; além da possibilidade de testar e verificar que a realização de grupos focais como método participativo para investigar situações de risco é bastante apropriado;

(iii) conhecimento publicável, como atestam os resultados e análises ora apresentados.

Particularmente com os grupos focais, os participantes se mostraram confortáveis para desconstruir e reconstruir conceitos, trazendo para o debate experiências pessoais, informações acessadas (seja através de fontes oficiais, da mídia ou das conversas com familiares, vizinhos e amigos), possibilidades de relações e conexões dos assuntos debatidos com outras questões que emergiram naturalmente nos encontros, buscando respostas para suas inquietações e para seus anseios.

Em comum, ao debaterem sobre as mudanças ambientais, enfocando particularmente as alterações climáticas, os participantes apresentaram potenciais ameaças associadas a este fenômeno, como enchentes, deslizamentos, mudanças na paisagem e aumento do nível do mar. Apontaram também potenciais causas, como desflorestamento, poluição de carros, emissão de CO2 e efeito-estufa e mostraram que não há consenso sobre isso. Sinalizaram ainda potenciais dificuldades para enfrentar os riscos e ameaças no nível local como as contradições e controvérsias na previsão do tempo e nos estudos científicos feitos, a falta de diálogo entre aqueles que produzem conhecimento científico e aqueles que deveriam ter acesso a esse conhecimento para usá-lo em suas decisões diárias e as condições sociais, econômicas e afetivas para se mudarem, quando residem em áreas consideradas de risco.

As percepções que os participantes têm sobre riscos associados às mudanças ambientais refletem o processamento daquilo que observam através dos seus sentidos (os chamados sinais físicos; neste caso as alterações observadas no local onde vivem) e das informações que recebem (como as notícias veiculadas pela mídia e pelos órgãos públicos, como prefeitura e defesa civil; as informações compartilhadas entre vizinhos e familiares e o acesso aos resultados de estudos realizados) e como formam seus julgamentos. Na formação desses julgamentos, pesam suas experiências passadas, as variáveis contextuais, os valores, a confiança nas organizações e instituições envolvidas, as incertezas, entre outros elementos.

Estudos sobre percepções de risco e mudanças ambientais têm mostrado que as percepções dos indivíduos vão sendo construídas em meio a um processo de associação e de afetividade, baseado nas informações que eles têm, na atenção que dispensam ao assunto e na confiança nos dados divulgados (WEBER, 2010).

Neste sentido, cabe lembrar, por exemplo, as menções dos participantes sobre dados controversos divulgados acerca de previsões do tempo (falta de confiabilidade); sobre a falta de acesso aos resultados dos estudos realizados na região, inclusive de pesquisas relacionadas às alterações climáticas (falta de informações); e sobre a cobertura midiática acerca do assunto, caracterizada, em geral, por um foco mais alarmista.

As narrativas colhidas apontaram que a confiança entre os atores sociais da arena tem sido colocada em xeque a todo o momento: de um lado, gestores e técnicos atuais responsabilizam a falta de fiscalização e de ações nas gestões anteriores, o que permitiu ou facilitou a ocupação desordenada em áreas de risco; de outro, moradores reconhecem essa falta de fiscalização nas gestões passadas e atuais (mas, neste caso, sobretudo para as construções de alto padrão em áreas de encostas) e responsabilizam a falta de preocupação e de ação das administrações públicas municipais e de maior envolvimento dos afetados nas decisões tomadas.

As narrativas colhidas com os pesquisadores do Projeto Temático mostraram esforços para estreitar o diálogo com os outros grupos sociais, como comunicação direta a respeito dos estudos realizados, participação em audiências públicas e palestras, entrevistas para os meios de comunicação e visitas técnicas a agências e setores públicos. Todavia, as narrativas colhidas nos grupos focais com gestores, técnicos e moradores evidenciaram a ausência de informações sobre estudos realizados na região e a falta de uma maior articulação e um diálogo mais estreito com aqueles que produzem conhecimento científico. Comentários como "como se a gente estivesse numa casca de vidro com as pessoas observando", "o que falta é a gente saber o porquê dessas pesquisas, qual o foco" e "o pessoal está cansado de diagnóstico" mostram que esse diálogo truncado entre os grupos sociais pode levar à impressão de que as pesquisas realizadas visam o benefício de alguns, mas não da coletividade.

Quanto à capacidade de proteção, adaptação e reação frente aos riscos associados aos eventos extremos e às mudanças ambientais e a atribuição de responsabilidades, as narrativas sinalizam que o poder público tem parte da responsabilidade por pessoas continuarem a ocupar áreas de risco que podem ser potencializadas pelas variações climáticas e eventos extremos (como áreas ribeirinhas e de encostas). Todavia, parte da responsabilidade também é direcionada aos próprios moradores que, mesmo conscientes dos riscos aos quais estão expostos, continuariam a viver nessas áreas, alegando falta de condições financeiras, psicológicas, afetivas e sociais e creditando sua permanência à ideia de que o perigo não se concretizaria.

Cabe ressaltar ainda outro elemento relevante nas percepções quanto às ameaças das mudanças ambientais: o componente religioso. Schipper (2008) reconhece que a influência da religião no caso dos riscos às alterações climáticas pode se dar também numa perspectiva negativa: a de entender que os eventos são provocados por uma força divina ou sobrenatural e que seriam, assim, castigos enviados aos homens por um ser superior. Neste sentido, vale relembrar o comentário de uma liderança: "A gente hoje é muito protegido pelo morro de Ilhabela, hoje também por Deus", que evidencia que os moradores se sentiriam protegidos dos potenciais riscos ambientais também pela ação divina.

Se o poder público e os próprios moradores são apontados pelos participantes como responsáveis pelas ocupações em áreas de risco, são também apontados como corresponsáveis pelo enfrentamento dos riscos associados às mudanças ambientais e pelas ações de mitigação e adaptação.

Ao analisar as narrativas é possível pensar que enquanto os riscos associados aos eventos extremos e às mudanças ambientais e climáticas ainda aparecem como uma prioridade relativamente baixa se comparadas a outras questões debatidas durante os grupos focais, confirmando a análise de Leiserowitz (2007/2008) sobre o que apontam pesquisas de opinião pública acerca das alterações climáticas realizadas em diversos países, os potenciais conflitos e problemas gerados com os novos empreendimentos instalados na região parecem ser encarados com maior preocupação. Neste sentido, as narrativas mostram as questões que demandam maior preocupação atualmente:

(i) a infraestrutura e o planejamento das cidades para receber turistas e novos moradores;

(ii) a ocupação de áreas de proteção ambiental e áreas de risco – o que poderia agravar os riscos e ameaças associados às alterações climáticas, já que mais moradores poderiam estar expostos a deslizamentos e enchentes;

(iii) os potenciais riscos tecnológicos advindos das atividades de exploração, transporte e armazenamento de óleo e gás.

Em campo – zona costeira de Queensland

No caso do estudo no Litoral Nordeste australiano, foi adotado o planejamento colaborativo (Healey, 2006 e 2008) entre os pesquisadores e membros da comunidade da cidade de Cardwell, incluindo líderes e membros de grupos comunitários locais e moradores em geral, como base principal de uma investigação iniciada imediatamente após a região ser atingida pelo ciclone Yasi em fevereiro de 2011.

Uma combinação de métodos qualitativos foi utilizada para a realização da coleta de dados, com workshops, entrevistas semiestruturadas e observação participante. No total, sete workshops focados no planejamento com cenários foram realizados com a participação de membros da comunidade entre março de 2011 e novembro de 2012. Com uma média de 15 participantes cada, os workshops tiveram por objetivo o desenvolvimento colaborativo de um plano de ação estratégico para fortalecer a capacidade de Cardwell para lidar com fenômenos naturais recorrentes que afetam a região como os ciclonesiv.

O processo de negociação e participação envolvido nessa pesquisa foi iniciado pela Câmara do Comércio de Cardwell que entrou em contato com pesquisadores da universidade. Naquela ocasião, representantes da Câmara estavam interessados em tomar uma iniciativa para revitalizar e fortalecer a atividade econômica da cidade, severamente afetada pelo ciclone Yasi. Além disso, também existia interesse em posicionar a cidade como foco de atração, tanto turística como de migração interna, como medida necessária para viabilizar a existência de atividades comerciais e fortalecer a comunidade.

O projeto dos pesquisadores focou-se, assim, na investigação dos atributos que caracterizam comunidades autocapacitadas para lidar com as consequências ocasionadas por desastres. Como resultado das negociações entre a Câmara do Comércio e os pesquisadores ficou estabelecido que uma série de workshops focados em planejamento com cenários seria realizada para desenvolver alternativas futuras para Cardwell, as quais foram compiladas em um plano de ação estratégico finalizado no final de 2012.

Em termos de fertilização cruzada entre os dois projetos, ficou estabelecido que os pesquisadores facilitariam o processo de geração do plano de ação estratégico em troca da participação dos membros da comunidade nas atividades de pesquisa. Apesar do acordo ter sido combinado durante o primeiro episódio de negociação entre pesquisadores e membros da comunidade, foi necessária a realização de outras rodadas de negociações durante todo o processo de preparação do plano de ação, principalmente no tocante à inclusão de outros representantes da comunidade para dar legitimidade ao processo. Essa contínua negociação caracterizou o modo de interação entre os pesquisadores e participantes da pesquisa.

Vale ressaltar que, durante os primeiros contatos, existia forte resistência por parte dos membros da comunidade envolvidos na pesquisa em perceber e aceitar os riscos associados às alterações climáticas, mesmo havendo forte consenso sobre a percepção de que a área poderia ser facilmente atingida por outros ciclones no futuro. Isso é evidenciado pelas narrativas colhidas através das entrevistas: "Sabe, nós tivemos o Larry; cinco anos depois tivemos o Yasi. Agora, nós vivemos nessa estrada [rodovia que conecta com o norte do estado] e não podemos dizer, 'da próxima vez o ciclone vai atingir Townsville'. Não sabemos qual a localidade que será afetada. Não existem previsões sobre como os ciclones irão se comportar..." (traduzido do inglês pelos autores).

Em relação aos três tipos de conhecimento que podem ser gerados a partir de pesquisas de intervenção, foram observadas as seguintes contribuições para aumentar a capacidade dos stakeholders para lidar com a frequência contínua do risco posto por ciclones:

(i) o conhecimento local permitiu a identificação dos riscos e possibilidades de enfrentamento através do desenvolvimento do plano de ação, levando a inclusão de ações relacionadas ao autogerenciamento de assuntos pertinentes ao futuro da localidade assim como melhorar aspectos relacionados à defesa civil;

(ii) a geração de metaconhecimento centrou-se nas vantagens de se estabelecer exercícios de planejamento colaborativo com o apoio do uso de planejamento com cenários, através do qual foi possível identificar e discutir assuntos que afetam a comunidade local bem como melhorar a comunicação entre a comunidade e as autoridades locais;

(iii) os conhecimentos publicáveis são discutidos a seguir.

Tendo em vista que as discussões durante os workshops e atividades de engajamento com a comunidade não deveriam ser focados no debate sobre a existência ou não de mudanças climáticas, os pesquisadores e participantes focaram as discussões sobre o risco de futuros ciclones e subsequentes impactos socioambientais que poderiam atingir a região.

Os debates promovidos mostraram que, apesar do amplo entendimento sobre o risco que os moradores enfrentam anualmente e a existência de mecanismos institucionais para lidar com esse risco, houve falhas e problemas tanto no processo de resposta como de recuperação relativo ao ciclone Yasi.

As narrativas colhidas, através das entrevistas, ressaltaram o problema em torno da forma como a comunicação do risco antes e após o ciclone Yasi foi feita pelas autoridades: (Antes do ciclone) "Não houve nenhuma segurança para nós. Não havia nenhum lugar que fosse seguro. Por um lado, falaram para a gente 'fique na sua própria casa, é o lugar mais seguro que existe' e, então, as autoridades locais disseram 'saia da sua casa, evacue porque a ressaca do mar será intensa'"; (Após o ciclone) "A coisa mais triste foi que algumas pessoas me disseram 'não beba água da torneira'. Eu não sabia disso. O primeiro boletim oficial que saiu daí dizia 'agora vocês podem tomar água da torneira'" (Traduzido do inglês pelos autores).

Ao tratar a questão sobre como a população de Cardwell poderia melhorar a forma de lidar com os riscos associados aos ciclones, o uso de planejamento com cenários provou-se ser bastante eficaz. Considerando que uma das principais previsões associadas às mudanças ambientais relevantes a essa localidade é a intensificação de ciclones (ABBS, 2012), o plano de ação estratégico final incluiu várias estratégias que podem ser consideradas adequadas para a cidade lidar com essa questão, como:

(i) a construção de um abrigo para ciclones afastado da linha do mar e em uma altitude mais elevada;

(ii) a realocação da parte urbana da cidade também para uma área de altitude mais elevada;

(iii) um levantamento das habilidades dos membros da comunidade que poderiam auxiliar na resposta coletiva a esses eventos extremos;

(iv) a preparação de um plano local e específico de gerenciamento de desastres para melhorar o processo de evacuação e comunicação de risco.

Essas estratégias, na opinião dos participantes e pesquisadores, também se mostram adequadas para lidar indiretamente com riscos ligados às alterações climáticas.

Considerando que a obtenção do consenso coletivo consiste numa das principais dificuldades de processos de planejamento de cunho colaborativo (HEALEY, 2006 e 2008), vale ressaltar que, nesse caso específico, o uso de planejamento com cenários através da condução de sete workshops permitiu que os participantes aumentassem sua tolerância em relação às diferentes aspirações e interesses de cada indivíduo e compartilhassem o sentimento de que todos queriam um futuro similar e mais resiliente para a região. Dessa forma, as relações de poderes puderam ser apaziguadas à medida que os participantes reconheceram seus interesses comuns relacionados à necessidade de resolver os problemas locais, como a estagnação econômica e evasão de residentes.

Além disso, o estudo também possibilitou a identificação de duas características sociais entendidas como facilitadoras na recuperação de desastres: fortes laços sociais e apego ao lugar (COLTEN et al., 2008). Essas características foram evidenciadas durante os workshops nos quais os participantes puderam reafirmar como valorizam seu padrão e estilo de vida associados às qualidades do ambiente natural, bem como valorizam a participação voluntária e o envolvimento de membros da comunidade em assuntos de interesse coletivo.

Inferências sobre os métodos aplicados e os resultados obtidos

Se as narrativas colhidas nos dois estudos permitem identificar e analisar como os participantes pensam e percebem sua capacidade de proteção, adaptação e reação frente aos riscos associados aos eventos extremos e às mudanças ambientais, permitem pensar também nas possibilidades e desafios quanto ao diálogo entre os diferentes grupos sociais e a participação dos atores, sobretudo os afetados, no enfrentamento desses riscos e no processo de decisão associado a esses riscos.

No caso brasileiro especificamente, as narrativas parecem confirmar que o processo de enfrentamento dos riscos no Brasil, em geral, ainda é caracterizado pelo atraso ou a ausência de ações institucionais; falta de confiança do público afetado nas agências e órgãos responsáveis pela regulação e gerenciamento dos riscos; ausência de um plano para engajar o público no processo decisório (o envolvimento público ainda é limitado ao acesso à informação e à participação em alguns exercícios de consulta); e um processo decisório ainda excessivamente centralizado (DI GIULIO et al., 2012; DI GIULIO, 2012).

Já no caso australiano, apesar da existência consolidada de procedimentos envolvendo a defesa civil no enfrentamento de situações de riscos e desastres, as narrativas apontam a falta de coordenação em torno da comunicação desses riscos às pessoas afetadas. Isso tanto na comunicação que antecede a ocorrência do desastre, que nesse caso concentrou-se nas medidas de preparação para enfrentar o ciclone, quanto nas mensagens que sucedem o evento e que visam assegurar o bem-estar e a segurança das pessoas afetadas. Além disso, houve limitado envolvimento da comunidade nas decisões que sucederam esse evento extremo, principalmente durante o período de reconstrução pós-desastre.

As narrativas também sinalizam duas limitações importantes que os indivíduos, tanto no âmbito institucional como no âmbito coletivo, têm para agir e tomar decisões em situações de risco. Em ambos os casos, foi possível observar a ausência de informação técnica e científica sobre mudanças ambientais e riscos e dificuldade de usar a informação disponível nas decisões. Essa dificuldade está associada, particularmente, às controvérsias e incertezas relacionadas a causas e efeitos das mudanças ambientais e, em particular das alterações climáticas, o que torna, por exemplo, a adoção e legitimação de medidas ambientais e políticas mais difíceis. Como questiona um participante do grupo focal com gestores e técnicos de São Sebastião: "a questão é: como você planeja o futuro com incerteza?"

Além das incertezas, outra dificuldade de usar o conhecimento científico nas decisões está relacionada à forma como as informações são divulgadas. O uso da linguagem científica e rebuscada pode dificultar um dos objetivos da comunicação da ciência: criar o conhecimento que servirá de base para alcançar mudanças de atitudes e práticas e exercer influência sobre a adoção de políticas públicas orientadas à promoção de bem-estar dos indivíduos.

Essas observações dialogam com a reflexão de Patt e Dessai (2005), que argumentam que a disseminação de conhecimento científico sobre mudanças ambientais poderia prover uma oportunidade para os tomadores de decisão fazerem suas escolhas, as quais poderiam impactar a qualidade de vida dos indivíduos no presente e no futuro. Isso porque os governantes poderiam, a partir do acesso e compreensão acerca das informações comunicadas, decidir optar por mitigar os efeitos das mudanças ambientais, e os atores (governamentais e não governamentais) poderiam decidir adaptar suas vidas diárias, investindo em padrões e hábitos de consumo focados nas alterações já em curso.

Todavia, nesse ponto, vale lembrar que não há necessariamente uma relação linear entre ciência e política, de modo que a existência e disponibilidade de uma base técnica e científica não resultam necessariamente em decisões políticas racionais e corretas (PIELKE JR, 2007).

No caso brasileiro, a partir da dinâmica empregada nos grupos focais, é possível apontar que esta experiência, além de alcançar os objetivos propostos respondendo às questões iniciais da pesquisa, promoveu maior aproximação entre os atores sociais envolvidos na arena de risco e possibilitou intercâmbio de conhecimentos.

No caso australiano, foi possível verificar que o instrumento aplicado, por seu caráter interativo e participativo, tem potencial para ser utilizado em iniciativas que buscam o desenvolvimento da adaptação às mudanças ambientais, principalmente devido à sua capacidade de lidar com incertezas (PETERSON et al., 2003). No estudo, os stakeholders tiveram a oportunidade de investigar futuros plausíveis para sua localidade apesar da existência de incertezas associadas aos impactos das mudanças ambientais. Além disso, tiveram a oportunidade de ter maior envolvimento e participação tanto na proposição das ações contidas no plano de ação para o futuro da cidade de Cardwell quanto na própria implementação de tais ações, conferindo maior legitimidade ao processo.

Considerações Finais

Os estudos explorados neste artigo evidenciam que um dos grandes desafios impostos à ciência, neste cenário de incertezas, controvérsias e complexidade, tão característico das mudanças ambientais e eventos extremos, parece ser o de fazer uma reflexão sobre suas possibilidades de atuação mais efetiva nas arenas de risco e de envolvimento de outros atores sociais na produção, validação e utilização do conhecimento científico.

Nesta direção e partindo de uma abordagem participativa, elegendo a realização de grupos focais e de planejamento com cenários com stakeholders e pesquisadores como possibilidades metodológicas para aferir percepções, investigar estratégias de comunicação e enfrentamento dos riscos e possibilitar intercâmbios de experiências e conhecimentos, foi possível explorar como aqueles que estão potencialmente expostos e aqueles que precisam dar uma resposta urgente às situações de risco percebem os riscos e suas capacidades de proteção, adaptação e reação.

Os resultados discutidos confirmam que os instrumentos metodológicos explorados alcançaram os objetivos propostos, contribuindo, em particular, para estreitar o diálogo e articulação entre cientistas e stakeholders.

Todavia, uma reflexão mais ampla sobre os desafios no tocante ao gerenciamento participativo de situações de riscos associadas às mudanças ambientais e aos eventos extremos sugere limitações e carências que precisam ser propriamente pensadas.

De um lado, ainda carecem ações para estreitar o diálogo e a articulação entre pesquisadores e stakeholders visando uma produção de conhecimento mais participativa e socialmente distribuída. De outro, é notável a necessidade em avançar nas tentativas de envolver o público no processo decisório.

A superação desses desafios e o alcance dessas demandas passam pelo entendimento das dimensões subjetivas e objetivas envolvidas na definição, construção e negociação dos riscos e pelas possibilidades, como as exploradas neste artigo, de uma produção de conhecimento mais participativa, no qual a ciência esteja aberta ao debate, as fronteiras entre especialistas e não especialistas sejam reduzidas e a legitimidade da decisão venha do exercício do debate aberto.

Notas

ii Além dos grupos focais, no período foram realizadas 15 entrevistas com moradores de áreas consideradas de risco nos três municípios estudados, três entrevistas com os chefes das Defesas Civis desses municípios, duas entrevistas com geólogos que atuam em institutos públicos de pesquisa e têm realizados estudos na região; além de workshops.

iii Entendendo que os estudos sociológicos e culturais sobre percepção de risco enfocam os estímulos sociais e culturais que evocam certos padrões ou atributos específicos associados a diferentes tipos de risco (RENN, 2008), foi proposta a realização de um grupo focal com jovens de 12 a 17 anos de idade, tendo em vista possibilidades de identificar e confrontar semelhanças e diferenças com as narrativas obtidas com os outros grupos.

iv Além disso, 36 entrevistas foram realizadas com membros da comunidade para obter informações sobre o processo de preparação, resposta e recuperação após a ocorr

Submetido em: 13/12/2013

Aceito em: 30/07/2014

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  • i
    No caso do Brasil, foi desenvolvido o Projeto Temático
    Urban Growth, Vulnerability and Adaptation: social and ecological dimensions of climate change on the Coast of São Paulo, financiado pela FAPESP. Já no caso da Austrália, foi desenvolvido o Projeto the South East Queensland Climate Adaptation Research Initiative (SEQCARI). O diálogo entre os pesquisadores envolvidos nesses dois projetos, autores desse artigo, teve início com a realização do 1º Workshop de cooperação internacional Mudanças climáticas em áreas costeiras no Estado de São Paulo (Brasil) e South East Queensland (Austrália) em julho de 2011.
  • 1
    . Os autores do estudo brasileiro agradecem à Fapesp (Processos 2010/51849-8, 2012/02125-2, 2008/58159-7), aos membros da Defesa Civil dos municípios envolvidos no estudo e aos participantes dos grupos focais. Os autores do estudo australiano agradecem o apoio do Griffith Climate Change Response Program, da Câmara do Comércio de Cardwell e dos membros da comunidade.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 2014

    Histórico

    • Recebido
      13 Dez 2013
    • Aceito
      30 Jul 2014
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