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Enchente de 1974 como drama social: relações entre percepção de risco, conflito e gentrificação

Resumos

O artigo é baseado em uma pesquisa etnográfica sobre a reconfiguração socioespacial do município de Tubarão após a enchente de 1974. Entendida como um drama social, a enchente proporcionou um encontro entre indivíduos de camadas sociais distintas, que estabeleceram relações de solidariedade, em um período em que as hierarquias sociais foram temporariamente suspensas. De acordo com a pesquisa, a percepção de risco de novas inundações levou moradores das classes média e alta a procurarem locais de residência em regiões mais altas da cidade, como o Morro da Caixa e seus arredores, antes habitadas apenas por moradores de classes populares. O artigo conclui que a presença destes moradores, ocasionada principalmente pelo risco após a enchente, representou mudanças da representação da localidade, além do estabelecimento de relações de conflito entre moradores de classes sociais distintas e de um processo de gentrificação no local.

Enchente; Desastre; Risco; Drama social; Gentrificação


El artículo se basa en la investigación etnográfica de la configuración social y espacial de la ciudad de Tubarão después de la inundación de 1974. Comprendida como un drama social, la inundación ha promovido un encuentro entre personas de distintos estratos sociales, que estableció relaciones de solidaridad, en un período que las jerarquías sociales fueron suspendidos temporalmente. Según la encuesta, la percepción del riesgo de una nueva inundación llevó a los residentes de classes media y alta a buscar hogares de residencia en las regiones más altas de la ciudad, como el Morro da Caixa y sus alrededores antes habitados solamente por los residentes de las clases populares. El artículo concluye que la presencia de estos residentes, causada principalmente por el riesgo de otras inundaciones, representó un cambio de la representación de la ubicación, además del establecimiento de las relaciones de conflicto entre los residentes de distintas clases sociales y la promoción de un proceso de gentrificación en el sitio.

Inundación; Desastre; Riesgo; Drama social; Gentrificación


The article is based on ethnographic research on the socio-spatial reconfiguration of the city of Tubarão after the flood of 1974. Taken as a social drama, the flood provided a meeting between individuals from different social classes, who established relations of solidarity, in a period that social hierarchies were temporarily suspended. According to the survey, the perception of risk of further flooding led middle and high class individuals to seek places of residence in the higher regions of the city, like the Morro da Caixa and its surroundings, which were inhabited only by residents of the popular classes. The article concludes that the presence of these residents, caused mainly by the perception of risk after the flood, represented a change of representation of the location, besides the establishment of relations of conflict between residents of different social classes and a process of gentrification at the neighborhood.

Flood; Disaster; Risk; Social drama; gentrification


Enchente de 1974 como drama social: relações entre percepção de risco, conflito e gentrificação

Viviane Kraieski de Assunção

Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais (PPGCA) da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com estágio-sanduíche no Institute of Latin American Studies (ILAS) da Columbia University. Realizou pós-doutorado na Vrije Universiteit Amsterdam. E-mail: vivianekraieski@gmail.com

RESUMO

O artigo é baseado em uma pesquisa etnográfica sobre a reconfiguração socioespacial do município de Tubarão após a enchente de 1974. Entendida como um drama social, a enchente proporcionou um encontro entre indivíduos de camadas sociais distintas, que estabeleceram relações de solidariedade, em um período em que as hierarquias sociais foram temporariamente suspensas. De acordo com a pesquisa, a percepção de risco de novas inundações levou moradores das classes média e alta a procurarem locais de residência em regiões mais altas da cidade, como o Morro da Caixa e seus arredores, antes habitadas apenas por moradores de classes populares. O artigo conclui que a presença destes moradores, ocasionada principalmente pelo risco após a enchente, representou mudanças da representação da localidade, além do estabelecimento de relações de conflito entre moradores de classes sociais distintas e de um processo de gentrificação no local.

Palavras-chave: Enchente; Desastre; Risco; Drama social; Gentrificação.

RESUMEN

El artículo se basa en la investigación etnográfica de la configuración social y espacial de la ciudad de Tubarão después de la inundación de 1974. Comprendida como un drama social, la inundación ha promovido un encuentro entre personas de distintos estratos sociales, que estableció relaciones de solidaridad, en un período que las jerarquías sociales fueron suspendidos temporalmente. Según la encuesta, la percepción del riesgo de una nueva inundación llevó a los residentes de classes media y alta a buscar hogares de residencia en las regiones más altas de la ciudad, como el Morro da Caixa y sus alrededores antes habitados solamente por los residentes de las clases populares. El artículo concluye que la presencia de estos residentes, causada principalmente por el riesgo de otras inundaciones, representó un cambio de la representación de la ubicación, además del establecimiento de las relaciones de conflicto entre los residentes de distintas clases sociales y la promoción de un proceso de gentrificación en el sitio.

Palabras clave: Inundación; Desastre; Riesgo; Drama social; Gentrificación.

Introdução

Este artigo aborda a enchente de 1974 no município de Tubarão, no sul do estado de Santa Catarina, e seus impactos sobre a configuração socioespacial da cidade. Esta inundação pode ser definida como um desatre a partir de uma abordagem sociólogica (NASREEN, 2004). Além de ser um fenômeno natural, o desastre constitui também "um acontecimento não rotineiro que provoca uma disrupção social, cujo seu grau de impacto reflete em grande parte, o tipo e o grau de preparação de uma determinada comunidade para lidar com os riscos naturais e tecnológicos" (RIBEIRO, 1995).

A partir deste entendimento, o conceito de desastre não pode ser tomado apenas como um fenômeno da natureza, mas em sua relação com aspectos socioculturais (QUARANTELLI, 1998). Deste modo, deve ser definido a partir da associação de uma série de fatores (JENA, 2004; QUARANTELLI, 1981). Por um lado, os desastres provocam uma ruptura abrupta de rotinas, hábitos e rituais cotidianos, o que pode pôr em questão formas de dar sentido ao mundo pelos sujeitos envolvidos (CONFALONIERI, 2003). Por outro lado, podem dar origem a buscas por estratégias de autoproteção de indivíduos e grupos, construídas a partir de um ideal altruísta (THORNGURB et al., 2005).

Gilbert (1998) destaca que o conceito de desastre pode ser abordado a partir de três paradigmas formulados em períodos distintos. O primeiro traria a noção de desastre como resultado da ação de um agente externo ameaçador, que teria sido formulado a partir de um modelo de guerra. O segundo paradigma seria desenvolvido por cientistas sociais europeus, principalmente a partir da década de 1970, segundo o qual os desastres seriam a expressão social da vulnerabilidade. Já o terceiro traria a noção de que os desastres gerariam incertezas, geradas não apenas por falta de informações como também pela falta de articulação entre diferentes campos de saberes, o que dificultaria a formulação de medidas para a prevenção destas ameaças.

A partir de diferentes perspectivas, as consequências destes desastres sobre grupos em áreas consideradas "de risco" vêm sendo estudadas por acadêmicos de diferentes áreas do conhecimento e com temáticas distintas.

Existem pesquisas que têm como tema a construção de abrigos para os desabrigados, a remoção de grupos destas áreas de risco, e a relação entre a vulnerabilidade dos indivíduos a estes desastres e a desigualdade social (ver, por exemplo, NEVES, 2008; SIENA e VALENCIO, 2006; VALENCIO, 2008a, 2008b; VARGAS, 2006). Estes trabalhos indicam que o conceito de vulnerabilidade ajuda a entender como indivíduos e grupos sociais estão desigualmente expostos a estes riscos, o que já foi compreendido também em relação à organização territorial e aos processos de desterritorialização (HAESBAERT, 2004).

Este artigo insere-se nesta problemática a partir de um enfoque diferente, pois centra-se em um processo de sentido inverso das pesquisas que relacionam as consequências dos desastres sobre grupos vulneráveis, ou sobre a relação entre ambos. O argumento deste artigo, baseado em uma pesquisa etnográfica, é a de que, após a enchente de 1974 em Tubarão, o Morro da Caixa e suas proximidades, como o Morro do Caeté e o Morro do Becker, antes identificados como localidades de moradores pobres, passou a ser procurado por pessoas de camadas médias e altas, que temiam que novas enchentes atingissem o município. Durante a inundação, os moradores do Morro não tiveram suas casas atingidas e chegaram a abrigar moradores provenientes de outros bairros e classes sociais da cidade.

O desastre, além de um fenômeno natural e social, é aqui analisado como um drama social (TURNER, 1982, 2008), que expõe hierarquias sociais e promove a reorganização espacial de atores sociais de classes sociais distintas. A ocupação do Morro da Caixa após a enchente por parte de indivíduos de classes média e alta provocou mudanças sobre as representações da localidade, antes conhecida apenas como local de moradia de pessoas pobres. Nesta reconfiguração socioespacial, a pesquisa evidenciou uma sociabilidade mediada por tensões e conflitos entre moradores de camadas sociais diferentes – "os pobres" e "os ricos", nas palavras de meus interlocutores. A investigação também concluiu que a percepção de risco de novos desastres está atrelada a um processo de gentrificação da localidade, que produz indiretamente formas de reprodução capitalistas. Estas são exemplificadas pelo surgimento de supermercados na região pesquisada, que substituíram os pequenos comércios no local.

Estratégias metodológicas

Este artigo baseia-se em pesquisa etnográfica realizada em dois momentos distintos. O primeiro, no ano de 2006, durante a realização de trabalho de campo com moradores do Morro da Caixa. Durante a realização da etnografia, foram evidenciadas as tensões entre moradores provenientes de classes sociais distintas, e existiam relatos sobre a mudança do perfil socioeconômico dos moradores da localidade após a enchente de 1974. Durante o segundo momento da pesquisa, no ano de 2014, foram realizadas entrevistas em profundidade com moradores mais antigos do Morro da Caixa que vivenciaram a enchente no município, com o objetivo de compreender suas vivências durante a enchente de 1974, e atentar para a possível mudança na ocupação do morro após a inundação. As idades destes moradores mais antigos variam de 52 a 84 anos. Também foram ouvidos moradores que se mudaram para o Morro após a enchente de 1974, totalizando 21 entrevistas em profundidade.

Enchente de 1974

A enchente de 1974 marcou a história do município de Tubarão, localizado no sul do estado de Santa Catarina, e a de seus moradores. Esta, no entanto, não fora a primeira inundação ocorrida no município. Há registros da imprensa local sobre enchentes ocasionadas pelo transbordamento do rio Tubarão durante os séculos XIX e XX.i Referindo-se a uma destas enchentes, ocorrida em 1887, Freitas (2001, p. 12) afirma que "os habitantes da cidade já estavam habituados a assistirem enchentes e sabiam que as águas não ultrapassariam um determinado nível". Perspectiva semelhante é apresentada pelo historiador Amadio Vettoretti (1992, p. 225): "os moradores da cidade de Tubarão haviam perdido a memória das enchentes anteriores, porque, nas últimas décadas, elas aconteciam somente nos campos".

Freitas (2001) afirma que, nas três décadas anteriores à enchente de 1974, as inundações ocorriam com frequência e em qualquer época do ano, devido às chuvas, e atingiam principalmente a produção agrícola. Devido à restrição a estas áreas rurais, havia um desconhecimento destas cheias, o que explicaria o fato de "muitos consideram a inundação de 1974 como fenômeno, algo inédito, e para alguns, até um castigo." (VETTORETTI, 1992, p. 224).

Atingindo predominantemente as zonas agrícolas do município de Tubarão, as enchentes ocorridas antes do ano de 1974 não impediram que a ocupação da cidade avançasse para as áreas próximas ao rio que corta a cidade. Como expõe Porto (1995), bairros residenciais foram construídos em zonas ribeirinhas e em terrenos baixos próximos aos rios, o que aumentaria o risco de que estas enchentes atingissem a população do município. No caso de Tubarão, o rio corta o centro da cidade, onde está localizada a maior parte dos estabelecimentos comerciais do município, e área de moradia economicamente bastante valorizada pelo mercado imobiliário.

Em 1974, as chuvas intensas na sexta-feira, dia 22 de março, e no sábado, 23 de março, já haviam alagado regiões mais baixas do município, que já estava em estado de alerta. Segundo autores, a enchente teria sido causada por uma combinação de diversos fatores. Os principais deles seriam um período prolongado de chuvas, em março do mesmo ano, que levara a um encharcamento do solo, e a "lestada", como são chamadas as chuvas e os ventos vindos do litoral, que provocara o represamento das águas do rio na Serra Geral. A maré sizígia, no mesmo período, também dificultou o escoamento da água, além do assoreamento do rio (VETTORETTI, 1992; CARGNIN, 2000). Estes fatores – principalmente as fortes chuvas e a "lestada" – também estão presentes nos discursos dos moradores de Tubarão que vivenciaram a enchente. Eles alegam que os fortes ventos impediram que as águas do rio escoassem para o mar, o que contribuiu para seu transbordamento.

A forte correnteza destruiu casas, ruas e os trilhos da estação ferroviária. A cidade ficou sem energia elétrica e rede telefônica. As águas começaram a baixar dois dias depois da inundação. Segundo dados oficiais, a enchente de 1974 causou a morte de 199 pessoas e desalojou 60 mil dos 70 mil habitantes da cidade de Tubarão na época. O número de mortos, no entanto, é contestado pelos moradores que vivenciaram a enchente. A imprensa noticiara, durante a inundação, que a estimativa do número de mortos chegaria aos milhares. Entrevistados por esta pesquisa relataram a existência de valas comuns para enterrar corpos e o grande número de desaparecidos, o que não é confirmado por documentações oficiais.

Segundo comentários de moradores mais antigos, um comandante da polícia militar teria proibido a emissora de rádio de Tubarão de transmitir informações sobre as cheias, para que não houvesse pânico. Muitos atribuem as mortes à falta de informação dos moradores, que não sabiam da gravidade da situação. A enchente levou muitos moradores a se abrigarem nos telhados das casas ou em prédios vizinhos. Houve também o deslizamento de encostas de morros, que teriam provocado, segundo dados oficiais, 25 mortes – número que, segundo atingidos pela enchente, seria muito superior. O resgate e o envio de comida foram feitos por helicóptero e barcos do Corpo de Bombeiros.

As vivências de moradores de Tubarão durante a enchente de 1974 foram amplamente documentadas (ALBERICE, 1981; CARGNIN, 2000; ENCHENTE DE 74, 2007; FEUERSCHETTE, 2004; FRASSON, 2012; FREITAS, 2001; MACHADO, 2005; VETTORETTI, 1992). Alguns relatos destas vivências, semelhantes aos coletados por essa pesquisa, retratam o temor destes sujeitos de que a inundação se repetisse no município. Este medo, ainda segundo estes relatos, seria reativado a cada período de chuvas. É bastante comum, por exemplo, após períodos chuvosos prolongados, que os moradores da cidade se desloquem até a beira do Rio Tubarão, para observarem seu nível.

O desastre como drama social

Os relatos dos atingidos pela enchente, coletados pela pesquisa, concordam que, durante o período da enchente, houve fortes laços de solidariedade entre os atingidos. "Não tinha pobre, não tinha rico... todos tinham que se ajudar", disse-me uma das moradoras do Morro da Caixa que abrigara em sua casa, durante a inundação, aproximadamente 20 pessoas, entre parentes, amigos e desconhecidos. Esta experiência é comum aos moradores das localidades mais altas da cidade que vivenciaram o desastre. Esta ajuda mútua e a suspensão da situação de classes, que aproximou em um mesmo espaço física pessoas de posições econômicas distintas, podem ser pensadas como um período de communitas, vivenciados por indivíduos em situação de liminaridade. De acordo com o trabalho clássico de Van Gennep (1978), a liminaridade é um dos estágios dos ritos de passagem, que estaria entre a fase da separação e da reassimilação. Durante as fases deste processo, o indivíduo perde seu status social anterior e posteriormente é reintroduzido à sociedade com um novo status (TURNER, 1987). Nas palavras de Douglas (1976), o indivíduo liminal não possui nada que o demarque estruturalmente de outros indivíduos.

Como explica Dawsey, baseando-se em Turner, esta experiência de liminaridade vivenciada nas communitas levaria os indivíduos a refletirem sobre suas posições e diferenças sociais:

Nos momentos de suspensão das relações cotidianas é possível ter uma percepção mais funda dos laços que unem as pessoas. Despojadas dos sinais diacríticos que as diferenciam e as contrapõem no tecido social, e sob os efeitos de choque que acompanham o curto-circuito desses sinais numa situação de liminaridade, pessoas podem ver-se frente a frente. Sem mediações. Voltam a sentir-se como havendo sido feitas do mesmo barro do qual o universo social e simbólico, como se movido pela ação de alguma oleira oculta, recria-se. (DAWSEY, 2005, p. 266)

Além dos estados de liminaridade e de communitas, a enchente pode ser vista ainda como um drama social, ou seja, como uma sucessão de acontecimentos sincrônicos que representam uma interação entre padrões normativos provindos de regularidades de níveis profundos da vida social, além de um conjunto de objetivos e lutas conscientes de indivíduos e grupos no momento presente (TURNER, 1996, 2008). Nesta definição, Turner compara os processos sociais às dramatizações teatrais realizadas em um palco, que resultam em um clímax. Segundo Turner, os dramas sociais emergeriam dos "interstícios da estrutura social", e levariam os atores a desempenharem papéis que corresponderiam uma inversão simbólica das posições sociais e do status que possuem na hierarquia da estrutura social (SILVA, 2005).

Este drama social seria possível ocorrer a partir de um sistema social, que é visto por Turner como análogo a um sistema orgânico, no sentido de que opera em períodos de crescimento e decadência. Este sistema também se desdobra em ações que podem ser interpretadas como "uma prova de força entre interesses conflitantes de pessoas e grupos que tentam manipular, cada qual em seu próprio benefício, a rede de relações sociais estruturais e circunstanciais" (CAVALCANTI, 2007). Neste sentido, estes processos sociais revelariam também que o embate entre estas forças oponentes "abre um campo de alternativas possíveis para a ação" (CAVALCANTI, 2007).

Além de tomar a enchente como um drama social, este trabalho também evidencia que as relações de reciprocidade podem ser tomadas em seus sentidos positivo e negativo. Isso abarcaria tanto relações de trocas e os intercâmbios (de favores, bens, serviços etc.), no sentido positivo, como também o das guerras, vinganças, sequestros, em seu sentido negativo (CLASTRES, 1980). É a partir desta perspectiva que a unidade social não existe apenas a partir da ausência de conflitos. Ao contrário, o conflito seria um mediador das relações em uma estrutura social (GLUCKMAN,1986). Deste modo, é possível pensar que as relações hierárquicas entre os moradores do município de Tubarão foram temporariamente suspensas durante o desastre da enchente, constituindo um período de liminaridade. Entretanto, é importante pontuar que, ainda que seja a antítese da estrutura, o estado de liminaridade também é a fonte da emergência de novas estruturas, como demonstrado a partir da reconfiguração socioespacial do Morro da Caixa.

A seguir, é apresentado como moradores de estratos sociais mais altos, temendo o risco de novas enchentes, passaram a comprar terrenos e propriedades e se mudaram para o Morro. Isso teria levado, segundo os moradores, a uma mudança positiva das representações do morro. Por outro lado, evidencia-se a existência de conflitos entre os moradores de camadas sociais distintas, e o início de um processo de gentrificação na localidade.

Ruas dos pobres e rua dos ricos

É no território que se manifestam as relações sociais hierarquizadas (SANTOS, 1996). Autores como Velho (2002) mostram a ligação de alguns bairros com determinadas camadas ou status social, o que também pode ser verificado no município de Tubarão: na maioria dos bairros, concentram-se mais moradores de determinada camada social. De acordo com Velho (2002), esta hierarquia entre bairros se concretiza apenas em sociedades onde há uma acentuada identificação entre o local de residência e o prestígio social.

No Morro da Caixa, após a enchente de 1974, esta segregação espacial foi parcialmente modificada, pois famílias de camadas médias e altas e de camadas populares passaram a cohabitar o mesmo bairro. Neste sentido, parece relevante entender o bairro através da oposição englobante-englobado, que preside a relação entre o conjunto e o elemento, na qual Dumont (1997) define a hierarquia. Segundo o autor, as relações hierárquicas se apresentam em níveis diferenciados, havendo, num primeiro momento, identidade entre os elementos e, no seguinte, diferença ou oposição entre eles. Assim, o Morro da Caixa seria representativo das contradições sociais que se verifica no município de Tubarão de uma forma mais ampla.

Convivendo com os moradores, percebia-se que muitos deles não se referiam ao lugar onde residem como Morro da Caixa. Vários de seus habitantes dizem que moram na continuação do bairro de Oficinas, que é ao lado. Quando fornecem o endereço, informam apenas o nome da rua. Explicaram-me também que ali não há uma caixa d'água da empresa de abastecimento do município, mas que esta caixa está localizada no Fábio Silva, bairro vizinho, e que, por essa razão, não há sentido em dizer que moram no Morro da Caixa. É interessante perceber, nas explicações dos moradores, que o bairro está negativamente associado a um lugar de famílias pobres e de negros. Frequentemente adotam uma posição de defesa ao se referirem ao bairro.

Tem gente que é muito bairrista. Me falavam: você vai morar no Morro? Mas aqui nunca ninguém mexeu em nada. Uma quadrilha foi presa por roubo em um prédio em Oficinas. (Marisa, 42 anos)

Falavam para mim que o bairro não era bom, que era o lugar de gente malencarada. Mas não importa o lugar. O que importam são as pessoas. (Dona Isabel, 67 anos)

Em uma das minhas visitas ao bairro, ouvi uma de minhas interlocutoras falar a uma conhecida que passava de bicicleta: "Não te vi mais. Só passa agora na rua dos ricos?" O comentário chamou-me a atenção. A senhora me explicou que chama as ruas pavimentadas, onde ficam as melhores casas, das camadas médias, de "rua dos ricos". Já o lugar onde mora, de chão batido, e de casas mais simples, é a "rua dos pobres". A filha desta senhora disse-me que "muita gente tem medo de passar por ali". A existência destas duas ruas mostra que, apesar de indivíduos de classes sociais distintas habitarem a mesma localidade, persiste uma segregação espacial entre estes moradores.

Ainda que haja atitudes discriminatórias contra os moradores do Morro da Caixa, e que muitos se refiram ao local onde moram como Morro, alguns interlocutores relataram que houve uma diminuição desta discriminação. Esta percepção das mudanças foram relatadas pelos residentes mais antigos. De acordo com as palavras destes moradores, o Morro da Caixa era visto como uma "favela", o que significava que era considerado lugar de residência de pessoas pobres e lócus da criminalidade. Eles contam que "até para conseguir emprego era difícil", referindo-se às desconfianças que seus habitantes enfrentavam em outras localidades de Tubarão.

Os relatos destes moradores mais antigos retratam que o Morro era visto com indiferença pelos demais habitantes do município: "Era como se o Morro não existisse. Ninguém dava valor", contou-me Maria, de 84 anos, que mora no mesmo local desde que nascera. Joana, de 64 anos de idade, moradora do Morro há 40 anos, afirmou que "ninguém subia o Morro. Só mesmo quem morava lá, e tinha a necessidade de ir. Muita gente tinha medo".

De acordo com os participantes da pesquisa, as representações negativas sobre o Morro da Caixa teriam mudado após a enchente. A vinda de moradores de classes mais elevadas para a localidade fora acompanhada pelo aumento da infraestrutura, como luz elétrica (que até a inundação não havia na comunidade), iluminação pública, rede de esgoto e pavimentação nas ruas.

O aumento da procura por imóveis para vender e alugar na localidade, tem sido percebido por moradores que vivem no local desde antes da enchente de 1974:

Esses dias passou uma senhora de carro perguntando se tinha alguma casa para comprar, porque ela queria morar aqui. Eu fiquei pensando: meu Deus, agora tem gente que quer morar no Morro! Que mudança! (Silvana, que vive na localidade há 35 anos)

Você pode perceber que já não tem mais espaço para construir. Não tem mais terreno vazio. Está tudo ocupado. Antes tinha muito espaço. Ninguém queria morar aqui. Morava porque precisava, por necessidade. (Marlene, moradora do Morro há 42 anos)

Esta procura de residências no Morro da Caixa também foi acompanhada por uma valorização imobiliária. Todos os entrevistados pela pesquisa, que residem no Morro desde antes da enchente de 1974, garantem que não conseguiriam adquirir um imóvel no local atualmente. Neste sentido, o depoimento de Ana é bastante representativo: "Eu moro onde meus pais moraram a vida inteira. Antes ninguém queria morar aqui. Agora, para comprar uma casa aqui, só mesmo rico".

Os interlocutores da pesquisa não temem novas enchentes em Tubarão, pois sentem-se seguros morando em uma região mais elevada, apesar da proximidade do rio. Este sentimento de segurança é exemplificado pela fala de George, 52 anos, morador do morro desde seu nascimento: "se a água chegar até aqui, é porque aí é o fim do mundo. Seria como aquele filme sobre o dilúvio".

Apesar de relatarem a presença do tráfico de drogas, os moradores não demonstram medo ou sensação de insegurança: "a gente não mexe com eles, eles não mexem com a gente". "Esses dias, eu passei por eles, pedi licença e eles disseram: claro, tia!" Para estes moradores, os estreitos laços de vizinhança torna o lugar mais seguro: "aqui todo mundo se conhece. Quando tem uma pessoa estranha, a gente logo sabe que não é daqui".

Este sentimento não é compartilhado por moradores de maior poder aquisitivo. Muros altos, grades nas janelas, cercas elétricas e cães de guarda demonstram as tentativas destes moradores de evitarem furtos e assaltos. Uma das pessoas ouvidas durante a pesquisa, um bancário aposentado, proprietário de terrenos no alto do morro, afirmou que ainda não construíra sua casa por temer pela insegurança do local. Ele afirmou que comprara o terreno na localidade por temer uma nova enchente no município. Quando há um período prolongado de chuvas, ele e a esposa vão para o apartamento que possuem no município de Laguna, a cerca de 30 quilômetros de Tubarão. Segundo o casal, desde a enchente, "a cidade não trabalhou", referindo-se ao fato de não haverem ações e políticas específicas para a prevenção de novos desastres decorrentes de inundações no município.

As famílias mais abastadas vivem em casas que se assemelham aos enclaves fortificados – termo cunhado por Caldeira (2000) para definir tipos de moradias, principalmente condomínios fechados, construídas tendo como princípios básicos a segurança, o isolamento, a homogeneidade social, equipamentos e serviços. As casas com muros e grades, e monitoradas por câmeras de segurança e empresas especializadas demonstram as tentativas dos moradores de imporem regras de inclusão e exclusão naquele espaço, através de barreiras físicas. Torna-se uma nova forma de segregação espacial, distanciando-se de outros moradores de classes sociais com menor poder aquisitivo (CALDEIRA, 2000).

Além das tentativas de se precaverem contra roubos e assaltos, estes moradores de camadas altas e médias tentam se distanciar das relações de pessoalidade que cercam o bairro. De acordo com os moradores de camadas populares, lá "todo mundo se conhece". Sabem o nome um dos outros, em que casa mora, quem são os pais, a profissão. Ouvi várias vezes comentários entre vizinhas sobre pessoas que passavam nas ruas. Tentavam descobrir onde moravam, de quem eram filhos ou parentes, e o que estavam fazendo ali. Isso aconteceu com minha presença constante no bairro. Enquanto andava pelas ruas, moradores me cumprimentavam e faziam-me perguntas. As relações são marcadas pela pessoalidade, uma situação semelhante à encontrada por Prado (1987) na cidade de Cunha, interior de São Paulo, que conclui que "o reconhecimento é, portanto, algo básico nesse sistema; reconhecimento no sentido de saber-se quem é quem. E, em paralelo com isso, a confiança, na medida que todos são identificados, ou rapidamente identificáveis, pela relação com alguém" (PRADO, 1987, p. 52).

Esta situação é semelhante ao que DaMatta descreve em relação a pesquenas cidades. De acordo com o autor, a expressão "você sabe com quem está falando?", que expressa as relações hierárquicas e autoritárias nas sociedades brasileiras, não faz sentido. Segundo o autor, em cidades pequenas, "o anonimato não existe". "O mesmo ocorre em sociedades tribais onde a posição numa família, o fato de se possuir um certo conjunto de nomes ou de se pertencer a uma dada linhagem já definem a pessoa como tendo certas prerrogativas sociais" (DAMATTA, 1997, p. 70).

Estas relações de reconhecimento mútuo e de maior proximidade chocam-se com as tentativas das famílias de camadas médias de busca de maior privacidade. Estas situações podem ser exemplificadas pelas formas diferenciadas que as famílias de classes sociais diferentes criam e socializam seus filhos. Fátima também não gosta que o neto de nove anos que ela cria desde bebê para que a filha possa trabalhar "brinque com outras crianças do Morro da Caixa". A criança está sempre próxima a ela. Fátima não presenteou o neto com uma bicicleta com receio de que ele "suba o Morro": "Prefiro que ele desça", o que significa ir em direção ao centro. Segundo a dona-de-casa, o contato com outras crianças do bairro poderia levar o menino a adquirir "maus comportamentos", como "falar palavrão", "fumar cigarro", "beber (bebida alcoólica)". Além disso, há o perigo dos "ajuntamentos", que é o agrupamento de jovens nas ruas, que geram a "bagunça". Os "ajuntamentos" são vistos negativamente. Nas camadas mais populares, ao contrário, as crianças têm maior liberdade para andar e brincar na rua. Para a avó, sua neta deve brincar fora de casa. "Criei todos os meus filhos na rua, e nunca aconteceu nada. Estão aí todos fortes". Ela acredita que, na rua, as crianças adquirem mais força e aprendem a se defender dos possíveis perigos.

Risco e Gentrificação

Enquanto drama social, a enchente possibilitou a reestruturação do Morro da Caixa, que passou a ser habitado por moradores de classes sociais distintas. Isso ocorreu principalmente devido à percepção de riscos de novas inundações por parte de moradores de estratos sociais mais elevados. No ano de 2011, uma comissão formada por engenheiros e políticos pela prefeitura do município discutiu os riscos de uma enchente da mesma proporção de 1974. De acordo com o relatório, isto pode ocorrer caso se repita o volume de chuva igual ou superior do ocorrido naquele período (COMISSÃO, 2011). Como aponta Frasson (2012), fatores importantes para a prevenção de enchentes, como a preservação da vegetação ciliar, a limitação da construção civil sobre áreas mais sujeitas a inundações e a proteção de APPs (Áreas de Preservação Permanente) e APAs (Áreas de Proteção Ambiental), não foram considerados pela comissão. Segundo Feuerschette (2004), prefeito de Tubarão durante a enchente de 1974, não foi realizado o aprofundamento do rio devido ao risco de desabamento de construções próximas às margens. Outra ideia levantada após a tragédia, a construção de barragens para represar a água das chuvas antes de chegarem a Tubarão, nunca foi realizada, assim como os canais extravasores, que deveriam criar uma ligação entre o Rio Tubarão e a Lagoa do Camacho (FRASSON, 2012).

Para os entrevistados pela pesquisa, estes riscos de uma enchente com as mesmas proporções da de 1974 ocorrem devido à falta de ações preventivas, por parte do poder público, contra novas inundações. Para problematizar esta percepção de risco, utilizam-se aqui as noções de risco que apontam para sua construção sociocultural nas sociedades modernas. Discussões feitas por Beck e Giddens sobre sociedade de risco alertam para a produção social destes, o que coloca a atenção para a ação humana sobre o ambiente. Para estes autores, os desastres estariam mais relacionados à organização social do que propriamente às ações da natureza, como períodos prolongados de chuvas. Desta forma, Beck e Giddens ajudaram a desconstruir as noções de que os desastres romperiam com uma ordem social de normalidade.

Segundo Beck, os riscos provocam transformações sociais no século XX, sendo, ao mesmo tempo, causa da mudança social e o meio através do qual se organiza e interpreta a vida social. "A sociedade moderna se tornou uma sociedade de risco à medida que se ocupa, cada vez mais, em debater, prevenir e administrar os riscos que ela mesma produziu" (BECK, 2008). Para o sociólogo alemão, os riscos não possuem realidade concreta em dimensões espacial, temporal ou social, mas possuem força política porque transformam-se em presente, a partir da tentativa de evitá-los, influenciando as decisões dos atores sociais envolvidos (BECK, 2006). Neste sentido, "a ideia de um critério objetivo, segundo o qual se possa medir o grau de um risco, desconsidera que somente após uma determinada percepção e avaliação, riscos são considerados como urgentes, perigosos e reais ou como desprezíveis e irreais". (BECK, 2006, p. 36)

Os interlocutores da pesquisa que se mudaram para o Morro da Caixa a partir de sua percepção de risco de novas enchentes citaram algumas medidas que deveriam ser tomadas pelos governos municipal e estadual para evitar um novo desastre. A maioria deles citou o aprofundamento do rio, a construção de barragens e canais, o que demonstra a apropriação, por parte desses interlocutores, de uma linguagem técnica e científica. Como afirma Douglas (1994), ao contrário do perigo, o risco possui uma "aura de ciência", e possui a pretensão da possibilidade de um cálculo mais preciso ou exato por parte de especialistas. Estas noções corroboram a de Beck (2006) de que, a sociedade moderna está baseada em uma racionalidade técnica e científica. Neste sentido, em uma "sociedade de risco", os indivíduos convivem com uma série de ameaças advindas do progresso e da modernização – o que fez emergir uma "cultura de segurança" (GIDDENS, 1991).

Esta "cultura de segurança" faz emergir na sociedade contemporânea uma apropriação do risco para a produção e reprodução do capital, o que dá início a novas formas de capitalismo, economia, ordem global, forma de sociedade e modo de vida pessoal (BECK, 2006). Beck explicita a relação entre a produção social de bens e a produção social de riscos. Apesar dos riscos não atingiriam uma classe social específica, o autor admite que estes riscos podem reforçar as diferenças entre classes sociais distintas, já que as classes mais abastadas teriam maior poder de escolha para decidir um melhor lugar para morar, ter acesso a mais informações e segurança (BECK, 2007).

Estas mudanças que emergem a partir desta apropriação do risco podem ser percebidas por meio de um processo de gentrificação que vêm ocorrendo no Morro da Caixa, já que o local passou a ser habitado por moradores de maior capital econômico. Percebe-se aqui um efeito indireto entre a produção capitalista e a produção social do risco. Logo que iniciei a etnografia, em 2007, ocorreram dois fatos importantes no Morro da Caixa, em dias próximos: a abertura de um supermercado há poucos metros do Morro, no bairro Oficinas, e o fechamento da verdureira do Seu João, pequeno mercado que vendia frutas e verduras. Segundo relatos de moradores, outros pequenos mercados fecharam em épocas recentes no bairro, como uma padaria e uma outra verdureira.

Este processo é definido aqui como gentrificação, por se tratar de um conjunto de processos de mudanças sociais, econômicas e físicas (HAMNET, 1991). Entretanto, não se trata de um esquema clássico do fenômeno. A gentrificação não está restrita à construção de casas ou condomínios, pois também pode ser percebida no aumento da oferta de comércio, serviços e comércio, alterando a paisagem urbana para atrair possíveis consumidores. Como afirma Smith (2007, p. 73): "a gentrificação produz agora paisagens urbanas que as classes médias e médias altas podem consumir e que contribuem para a formação de identidades de classe através de um espectro de classes significativo, ainda que de maneiras muito diferenciadas." Segundo Bidou-Zachariasen (2006), bairros gentrificados podem se inserir em novos processos de crescimento.

Este novo crescimento, percebido pelo fechamento dos pequenos mercados, representa também a mudança no modo de consumo dos moradores locais. Nos pequenos mercados, havia certas relações de pessoalidade que havia entre quem comprava e quem vendia os alimentos. Dona Maria das Dores tem uma padaria no bairro há 30 anos. O marido é padeiro. Eles moram na casa que fica aos fundos da loja. No atendimento dos clientes, trabalham duas sobrinhas adolescentes da dona. Em troca, recebem material escolar, roupas e fazem as refeições no próprio lugar. As duas sobrinhas se alternam no trabalho de acordo com o turno na escola: uma atende no balcão à tarde, e estuda pela manhã, enquanto a outra estuda à tarde e trabalha pela manhã. Os clientes são todos conhecidos por Dona Maria das Dores. É muito comum a compra a fiado, mas apenas entre aqueles que a proprietária permite. Estas relações baseadas na pessoalidade e na confiança não se encontram em supermercados. Nestes, dificilmente os clientes têm contato com o dono do estabelecimento no momento da compra são sempre atendidos por funcionários e o pagamento é feito com dinheiro, cartão bancário ou cheques, mas estes com a apresentação de documentos e informações extras, como o número de telefone.

Ortiz descreve este mesmo processo na França citando o trabalho de Chombart de Lauwe sobre o cotidiano de famílias operárias. Este autor percebe que estas famílias costumam fazer compras em pequenas quantidades em comércios próximos a suas casas. "Presta-se menos atenção aos preços e à qualidade dos produtos do que na familiaridade do lugar ou na simpatia do dono da loja. Dito em jargão sociológico, as relações pessoais predominam sobre as impessoais" (ORTIZ, 1994, p. 83-4).

Conclusões

Mais do que um desastre natural, a enchente ocorrida no ano de 1974 no município de Tubarão pode ser pensada como um drama social, no sentido de que levou a suspender temporariamente hierarquias sociais, introduzindo a liminaridade, e produziu posteriormente algumas mudanças na configuração socioespacial da cidade. A percepção do risco de novas inundações como as de 1974 – risco aqui entendido aqui como uma produção social – levou moradores de estratos sociais mais elevados a procurarem moradias em uma localidade antes identificada apenas como local de residência de indivíduos pobres e em situação de marginalidade. Neste caso, as relações entre os atuais moradores do Morro da Caixa e seus arredores são marcadas por situações de conflito, através do qual é possível estabelecer uma unidade social (GLUCKMAN, 1986).

Percebe-se, no entanto, que apesar de viverem na mesma localidade, houve uma reprodução da segregação espacial que pode ser observada no município de Tubarão de forma mais ampla, retratada por alguns moradores como "rua dos pobres" e "rua dos ricos". Observa-se também que este movimento de pessoas com maior poder aquisito para o Morro da Caixa também foi apropriada por formas de reprodução capitalista, dando origem a um processo de gentrificação no local, através das mudanças no mercado e do aumento do valor das propriedades.

Submetido em: 29/05/2014.

Aceito em: 14/08/2014.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 2014

Histórico

  • Recebido
    29 Maio 2014
  • Aceito
    14 Ago 2014
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