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A modernidade insustentável. As críticas do ambientalismo à sociedade contemporânea, de Héctor Ricardo Leis

LEIS, Héctor Ricardo. A modernidade insustentável. As críticas do ambientalismo à sociedade contemporânea. Annablume, 2014. 236

LEIS, Héctor Ricardo. A modernidade insustentável. As críticas do ambientalismo à sociedade contemporânea. Annablume, 2014, 236p.

Quis o devir das coisas que a segunda edição de "A modernidade insustentável" viesse a ser lançada poucos dias após a morte de seu autor, Héctor Ricardo Leis. Há algo de mistério nessa circunstância, não planejada mas previsível, que talvez esteja falando alguma coisa, seja da obra, seja do autor.

"A modernidade insustentável" é a culminação de um dos temas que Leis desenvolveu no último terço da sua vida, o qual foi coincidente com o ciclo da questão ambiental iniciado em 1986 com a publicação do Relatório Brundland. Este ciclo implicou na consagração da noção de desenvolvimento sustentável e sua conhecida ambiguidade retórica que combina apelo moral para o futuro com o realismo político para o presente. No bojo desta ambiguidade, um vetor, o ético-normativo, chamou a civilização à responsabilidade pela sua negligência ecológica, enquanto um outro, o pragmático, preocupou-se principalmente em ir acomodando interesses diante de uma transição que, mais cedo ou mais tarde e pela força das circunstâncias, deveria acontecer.

Hoje percebemos que o vetor pragmático não apenas foi acomodando os interesses, mas também retardou indevidamente providências que em vários aspectos já deveriam ter acontecido. É esse atraso negligente que torna esta reedição muito mais do que oportuna.

O livro, inicialmente publicado em 1999, foi concebido como um subsídio ao ambientalismo e um convite à reflexão crítica sobre as armadilhas da modernidade neste momento histórico. Nele, a crise ecológica seria a principal expressão dessas armadilhas, mas representaria, também, a melhor oportunidade de transição evolutiva (não evolucionista, como esclarece o autor). Com esta mensagem o livro tornou-se uma das obras de reflexão teórica mais lidas e citadas no Brasil, como lembra no seu prólogo Eduardo Viola.

Contudo, esta segunda edição, quinze anos depois, pode ser lida com novos olhares. Ela já não é apenas um subsídio para o ambientalismo compreender a modernidade, mas um espelho para este enxergar aonde falhou, ou vem falhando. Esta pista de leitura é dada pelo próprio autor no seu prefácio para a segunda edição. Nele, ele argumenta que enquanto poucas décadas atrás o ambientalismo parecia questionar os paradigmas dominantes do mundo, agora, fragmentado em pedaços temáticos, parece apenas focado em consertar os aspectos mais deletérios da atividade humana de modo pragmático. Com isto, o ambientalismo teria deixado de sustentar teses atraentes, mesmo que difíceis, no espaço público, o que ajudaria a explicar o caráter morno do debate atual. E de modo incisivo, adverte,

Seria um erro atribuir a perda de vitalidade do ambientalismo nos últimos anos a fatores externos a sua própria dinâmica. Ainda que ao longo da sua história tenha sido sempre atacado por inúmeros atores e interesses, a explicação das causas de seu atual impasse deve ser procurada na mudança de estratégia, acontecida de modo insensível, para uma intenção inscrita no campo da ação instrumental característica dos atores políticos e econômicos contemporâneos. Sem uma percepção clara da mudança de rumo acontecida, o ambientalismo está esquecendo um passado de esforçadas lutas pela reviravolta dos valores predatórios, materialistas, consumistas e individualistas da cultura predominante nas sociedades modernas (LEIS, 1014 P 16). [O grifo é meu].

Embora esse recado já estava implícito na intenção original, tem-se a impressão de que na época Leis considerava aquela tendência como tendo maiores possibilidades de reversão do que agora. O título do último capítulo "O ambientalismo está morto. Viva o ambientalismo!" expressa com clareza o pessimismo alegrei com que Leis encarava esta questão. Neste capítulo, um dos mais brilhantes e ousados, Leis condensa sua análise do ethos ambientalista repassando aspectos da teoria social que, mesmo não sendo cunhados como "ambientais" trazem contribuições relevantes para analisar a cisão entre natureza e sociedade. A este ponto Leis chega após explorar e alinhavar, com notável audácia e criatividade, riquíssimas reflexões relativas às dimensões por ele identificadas como as fundamentais: a estética, a científica, a da sociedade civil, à do Estado, à do mercado e a religiosa espiritual. Através desse percurso o autor nos convida a reconquistar elementos que constituem forças reflexivas do ambientalismo. O intuito de Leis foi o de construir uma cunha ao serviço do vetor ético-normativo do campo ambiental pós Rio-92, buscando resgatar e aprofundar a crítica ao projeto civilizatório que sempre conteve nas suas bases e que, para Leis, constitui a força vital do ambientalismo.

Mas a obra de Leis não fica apenas com isso, na medida em que ao reconstruir os componentes do ethos ambientalista por meio das dimensões mencionadas, examina os obstáculos e recupera os indícios de caminhos possíveis de superação. O papel da ciência, da sociedade civil e da espiritualidade são especialmente destacados como elementos de uma nova racionalidade política que deveria unir sensibilidades, não necessariamente racionais, num senso de vida boa, ao modo clássico, agora compartilhado por uma comunidade política que reconhece os limites ecológicos do planeta e reorganiza suas aspirações dando centralidade ao amor e a um novo contrato entre indivíduos, culturas e espécies. Para elaborar esta proposição o autor, passa revista às contribuições da Escola de Frankfurt, da obra de Michel Serres, Hans Jonas e outros na busca dos valores e das práticas que ajudem a superar a impotência política que caracteriza atualmente a problemática ambiental.

No âmago da análise, Leis identifica o dualismo Natureza e Sociedade como alicerce tanto da modernidade quanto da crise ecológica. Para isto, ele vai fundo no exame das concepções religiosas que são fundamento da modernidade, encontrando no monoteísmo o ambiente simbólico no qual este dualismo pode se gestar e procriar. No capítulo "A globalização e espiritualização do ambientalismo" Leis se dedica a este ponto cuidadosamente. Não se contentando com a mera enunciação do problema do dualismo, ele analisa as tentativas teológicas cristãs de evitar as implicações desastrosas da interpretação literal da passagem do Gênese "crescei e multiplicai... dominai as criaturas da terra". Aqui Leis descobre interessantes tentativas na busca de leituras teológicas não antropocêntricas, dentre as quais as de Leonardo Boff. Estas, no entanto, no seu entender, esbarram na dificuldade dos teólogos que têm dificuldade em superar a divisão entre Deus e a sua obra, ficando em última instância cativos ao dualismo mencionado.

Este dualismo é o que estaria por trás da fórmula que associa o antropocentrismo a uma visão meramente instrumental da natureza e do mundo na qual os atores ambientalistas também estariam ficando aprisionados, a despeito dos auspiciosos conteúdos evidenciados por muitos deles na conferência paralela da Rio-92. Estes atores traziam nos finais dos anos 1980 e dos 1990, elementos para a recuperação do sentido ético-político clássico da busca da vida boa, perdido em detrimento da política instrumental que colonizou a vida política especialmente após a segunda guerra mundial. A queda do muro de Berlim representaria também uma oportunidade em que as necessárias novas formas de cooperação poderiam ganhar espaço e o ambientalismo traria no seu ethos saberes racionais e não racionais que seriam de relevância ímpar para essa transição.

O entusiasmo de Leis se explica não apenas pelo que ele enxergava nos fatos (vários deles evidenciados ao longo do texto), mas também pela conjuntura política global e as experiências passadas do autor. É que Leis se encontrou no Rio, em 1992, no lugar certo na hora certa buscando entender o que esse momento significava para a humanidade, tanto em termos de desafio quanto de oportunidade. Essa atitude reflexiva trazia também na bagagem uma releitura das utopias e ativismos políticos dos anos 1970, dos quais ele fora também protagonista na Argentina. Essa combinação de fatores, somada à sua formação filosófica e política, resultou não apenas no aspecto ambiental da sua obra, do qual "A modernidade insustentável" é expressão, mas também na mais incisiva autocrítica pública realizada por um ex-guerrilheiro na Argentinaii i Tomo emprestada a expressão que Eduardo Viveiros de Castro utiliza para se referir à atitude daqueles (no caso, os índios) que não perdem a alegria ao encarar a finitude e entender o mundo, que vai se tornando cada vez pior (VIVEIROS DE CASTRO e DANOWSKI, 2014). .

Analisar as conexões entre a autocrítica política do ex-guerrilheiro e a reflexão ambiental de Leis foge ao escopo desta resenha, mas vale como advertência para estarmos cientes de algumas tensões e pulsões que dão densidade à leitura de Leis. Com efeito, a experiência dos 1970 fez a Leis entender que a pretensão de que o mundo se ajuste ao que gostaríamos que fosse encerra uma matriz totalitária na medida em que os sujeitos deixam de enxergar a falibilidade das suas concepções. Por isso, para Leis, a ação política externa torna-se também uma tarefa interna na qual a autocrítica honesta cumpre um papel fundamental. Internamente, ao se revisar e despir de conceitos e das conveniências do poder. Externamente, ao se comunicar corajosamente com a comunidade política convidando-a a fazer sua própria reflexão.

A atitude de Leis não é diferente quando encara a ética ambiental. Ele provoca a pretensão de sustentar uma solução aos desafios éticos a partir da simples extensão de critérios igualitários às outras espécies.

O desafio da humanidade não é tanto encontrar soluções que tenham como pressuposto uma imaginária igualdade entre os seres humanos e entre estes e o resto das espécies, mas aceitar a realidade como ela é, entendendo como tal a complexidade da reciprocidade hierárquica existente. São poucos os que enxergam corretamente que o reducionismo antropocêntrico foi reforçado na modernidade porque os indivíduos tornaram-se sujeitos de direito ao serem considerados todos relativamente iguais, sendo impossível então atribuir o mesmo direito àqueles que, evidentemente, não são "tão" iguais a nós. O aumento da separação com o mundo natural dá-se, por consequência, porque a modernidade tende a obscurecer (ou assumir como transgressão) qualquer relação não racional entre os seres humanos.

A provocação, apoiada na leitura de Homo Hieraquicus de Luis Doumont é talvez a mais espinhosa de todo o livro na medida em que toca um tabu da política moderna. Infelizmente, o autor não explora os diversos modos em que a questão da igualdade é ou pode ser entendida (ontológica, de consideração de interesses, de direitos, etc.), para assim precisar melhor o caráter da sua objeção, o que teria facilitado as coisas para seus leitores. Mas isto não lhe impede de estabelecer que nesta questão talvez resida uma das dificuldades para concebermos relações mais amorosas não apenas entre humanos, mas com todas as categorias de seres.

Essa é, o que parece, uma marca do trabalho de Leis - levar-nos a pensar naquilo que não imaginávamos que precisaríamos pensar. E agora devemos, infelizmente, fazer isso já sem ele. Héctor Leis está morto. Viva Héctor Leis!

Agradecimentos

Esta resenha faz parte de projeto que conta com Auxílio Financeiro do CNPq A versão em inglês foi realizada por Rita de Cassia da Silveira Cordeiro

References

  • AZZI, Carolina e RACIOPPI, Pablo. El Diálogo: Graciela Fernández Meijide - Héctor Ricardo Leis. 2014. [https://vimeo.com/95210051].
    » https://vimeo.com/95210051
  • FERNANDEZ MEIJIDE, Graciela e LEIS, Héctor. El diálogo. El encuentro que cambió nuestra visión sobre la década del 70. Sudamericana. Buenos Aires, 2015.
  • LEIS, Héctor Ricardo. Un testamento de los años 70. Terrorismo, política y verdad en Argentina. Editora Katz, Buenos Aires, 2013a.
  • LEIS, Héctor Ricardo. Memorias en fuga. Una catarsis del pasado para sanar el presente. Sudamericana, Buenos Aires y Madrid, 2013b.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo e DANOWSKI, Déborah. Diálogos sobre o fim do mundo. Entrevista concedida a Eliane Brum. Diario El País, Edição Brasil, 24 de Setembro de 2014.
  • i
    Tomo emprestada a expressão que Eduardo Viveiros de Castro utiliza para se referir à atitude daqueles (no caso, os índios) que não perdem a alegria ao encarar a finitude e entender o mundo, que vai se tornando cada vez pior (VIVEIROS DE CASTRO e DANOWSKI, 2014VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo e DANOWSKI, Déborah. Diálogos sobre o fim do mundo. Entrevista concedida a Eliane Brum. Diario El País, Edição Brasil, 24 de Setembro de 2014.).
  • ii
    Esta autocrítica está expressa nos seus três últimos trabalhos. São dois livros (LEIS, 2013aLEIS, Héctor Ricardo. Un testamento de los años 70. Terrorismo, política y verdad en Argentina. Editora Katz, Buenos Aires, 2013a. e LEIS 2013bLEIS, Héctor Ricardo. Memorias en fuga. Una catarsis del pasado para sanar el presente. Sudamericana, Buenos Aires y Madrid, 2013b.) e um documentário (AZZI e RACIOPPI, 2014AZZI, Carolina e RACIOPPI, Pablo. El Diálogo: Graciela Fernández Meijide - Héctor Ricardo Leis. 2014. [https://vimeo.com/95210051].
    https://vimeo.com/95210051...
    ), sendo que o documentário foi também publicado na forma de livro (FERNANDEZ MEIJIDE e LEIS, 2015FERNANDEZ MEIJIDE, Graciela e LEIS, Héctor. El diálogo. El encuentro que cambió nuestra visión sobre la década del 70. Sudamericana. Buenos Aires, 2015.)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2014
  • Aceito
    23 Jan 2015
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