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PRIVATIZAÇÃO DAS COMPANHIAS ESTADUAIS DE SANEAMENTO: UMA ANÁLISE A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE MINAS GERAIS1 Os autores agradecem à FAPEMIG pelo apoio financeiro à pesquisa que resultou neste artigo.

Resumo

O artigo avalia as consequências da oferta pública de ações da Companhia de Saneamento de Minas Gerais para os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário ofertados por ela. Recorre a métodos estatísticos exploratórios e inferenciais para a análise de indicadores reunidos junto a bases de dados oficiais. Complementa as reflexões com informações obtidas por meio de entrevistas semiestruturadas realizadas com gestores, técnicos e especialistas ligados ao tema. Conclui que a experiência estudada assemelha-se aos casos reportados na literatura nacional e internacional. Os resultados obtidos pela Empresa não justificaram a alteração do modelo de gestão. Embora a Companhia ainda seja controlada pelo poder público, as mudanças observadas durante o período considerado estão mais alinhadas aos interesses do mercado e, frequentemente, opõem-se às necessidades da população.

Palavras-chave:
Privatização; Gestão; Saneamento

Resumen

El trabajo evalúa las consecuencias de la oferta pública de acciones de la Compañía de Saneamiento de Minas Gerais para los servicios de provisión de agua potable y eliminación de aguas residuales ofrecidos por ella. Utiliza métodos estadísticos exploratorios y inferenciales para el análisis de los indicadores recogidos en las bases de datos oficiales. Complementa las reflexiones con la información obtenida con la ayuda de entrevistas semi-estructuradas con gerentes, técnicos y especialistas relacionados con el tema. Concluye que la experiencia se asemeja a los casos reportados en la literatura nacional y internacional. Los resultados obtenidos por la Compañía no justificaron el cambio del modelo de gestión. Aunque la Compañía sigue estando controlada por el gobierno, las modificaciones observadas durante el período considerado son más alineadas con los intereses del mercado y, con frecuencia, se oponen a las necesidades de la población.

Palabras clave:
Privatización; Gestión; Agua; Saneamiento

Abstract

This article assesses the outcome of the initial public offering (IPO) of the Minas Gerais Sanitation Company Companhia de Saneamento de Minas Gerais in relation to its water supply and sewage services. Exploratory and inferential statistical methods are used to analyze indicators based on official data. Information obtained through semi-structured interviews with managers, experts and specialists on this topic is also considered. The study concludes that the experience under analysis is similar to other cases reported in the national and international literature. Results obtained by the Company did not justify a change in the management model. Although the Company is still under public control, the changes observed during this period are more in line with the interests of the market and are often in opposition to the needs of the population.

Key Words:
Privatization; Management; Water; Sanitation.

O contexto e a questão de estudo

As companhias estaduais de saneamento básico foram criadas a partir de meados da década de 1960 e, em poucos anos, consolidaram-se como agentes principais na prestação dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário no País, pois contavam com abundantes investimentos públicos, captados por meio de operações de crédito realizadas junto a diferentes instituições financeiras (OGERA; PHILIPPI JR., 2005OGERA, R. C.; PHILIPPI JR., A. Gestão dos serviços de água e esgoto nos municípios de Campinas, Santo André, São José dos Campos e Santos, no período de 1996 a 2000. Revista Engenharia Sanitária e Ambiental. v.10. n.1. 2005. p.72-81.).

Mas, logo na década de 1980, este modelo entrou em crise - sobretudo após a extinção do Banco Nacional de Habitação, principal órgão financiador do setor. Naquele tempo, o Brasil passava por uma turbulência na economia e as fontes de recursos esgotaram-se, ao mesmo tempo em que findavam os períodos de carência dos empréstimos contraídos e aumentavam as despesas com encargos da dívida.

Estas dificuldades foram em parte solucionadas apenas nos anos 1990, quando o Governo Federal, no mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso, trabalhou para aumentar a rentabilidade das empresas, preparando-as e tornando-as mais atrativas para a adoção de uma política neoliberal e privatizante (TUROLLA, 2002TUROLLA, F. A. Política de saneamento básico: avanços recentes e opções futuras de políticas públicas. IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2002.; ARANTES, 2007ARANTES, B. R. M. Financiamento dos sistemas de saneamento básico: estudo multicaso de três prestadores de serviços públicos do triângulo mineiro no período de 2001 a 2005. 2007. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia.; REZENDE; HELLER, 2008REZENDE, S. C.; HELLER, L. O saneamento no Brasil: políticas e interfaces. 2.ed. rev. ampl. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. 387 p.).

Todavia, as ações que visavam à venda das companhias enfraqueceram-se diante da resistência liderada pelos partidos de oposição e da contrariedade que o tema despertava na opinião pública. Somente em alguns estados do Sul e Sudeste as propostas privatistas tiveram prosseguimento, embora os tomadores de decisão tenham recorrido a uma estratégia menos polêmica: a abertura de capital nas bolsas de valores.

Governantes e gestores das companhias estaduais de Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina e São Paulo valeram-se de discursos técnicos para legitimar a necessidade da oferta pública de ações no mercado. Entre os principais argumentos apresentados, destacavam-se a maior capitalização e o aumento da profissionalização, do planejamento, da transparência, da cobertura das redes e da qualidade dos serviços prestados.

Tais justificativas, entretanto, não encontram respaldo entre todos os especialistas da área, pois existe na literatura uma clara diferenciação entre aqueles que defendem a organização dos serviços de saneamento a partir de critérios mercantis, considerando que são atividades privadas, e os que ressaltam seu caráter de direito básico, pregando que devem submeter-se aos interesses da sociedade.

Entre os autores que se posicionaram favoravelmente à participação da iniciativa privada no setor estão Vargas e Lima (2004VARGAS, M. C.; LIMA, R. F. Concessões privadas de saneamento no Brasil: bom negócio para quem? Ambiente & Sociedade. v.7. n. 2.jul./dez. 2004.), que compararam três sistemas em municípios brasileiros. Para eles, este tipo de modelo revelou-se uma alternativa para alavancar investimentos. Em um dos casos, os recursos foram destinados às obras de uma estação de tratamento de esgotos e, nos demais, focaram a expansão do abastecimento de água nas localidades atendidas.

Benefício diferente foi encontrado por Clarke, Menard e Zuluaga (2002CLARKE, G. R. G.; MENARD, C.; ZULUAGA, A. M. Measuring the welfare effects of reform: urban water supply in Guinea. World Developmentv. 30, p. 1517-37. 2002.), que concluíram pela elevação do bem-estar da população após a privatização do sistema de abastecimento de água em Guiné, embora reconhecessem que diversos problemas, como a submedição do consumo, a pequena cobertura, o baixo nível de cobrança, as elevadas tarifas e o fraco relacionamento institucional, ainda persistiam.

Fujiwara (2005FUJIWARA, T. A privatização beneficia os pobres? Os efeitos da desestatização do saneamento básico na mortalidade infantil. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA, 33, 2005, Natal. Anais. Natal: ANPEC, 2005.), por sua vez, constatou que a privatização dos sistemas de saneamento em determinados municípios no Brasil implicou a redução da mortalidade infantil por doenças infecciosas e parasitárias, em virtude da elevação da qualidade da água ofertada à população carente naquelas localidades - consideração contrária à ideia de que os ganhos advindos da desestatização seriam absorvidos pelas próprias empresas ou transmitidos somente às elites.

Conclusões como estas não são compartilhadas por Bayliss (2002BAYLISS, K. Privatization and poverty: the distributional impact of utility privatization Centre on Regulation and Competition - Working Paper, n.16, Manchester, jan. 2002. 16 p.), Justo (2004JUSTO, M. C. D. M. Financiamento do saneamento básico no Brasil: uma análise comparativa da gestão pública e privada. 2004. 164 p. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Econômico, Espaço de Meio Ambiente) - Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.), Hall e Lobina (2002HALL, D; LOBINA, E. La privatización del agua en América Latina. Informe a la Conferencia Sobre el Agua de la ISP Américas. San José: Costa Rica, jul. 2002. 36p.; 2007HALL, D.; LOBINA, E. From a private past to a public Future? The problems of water in England and Wales. Greenwich: Public Services International Research Unit (PSIRU), University of Greenwich, 2007. Disponível em: <Disponível em: http://www.psiru.org/reports/2008-02W-UK.doc .> Acesso em 14 abr. 2009.
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), Oliveira (2007OLIVEIRA, C. F. Água e saneamento básico: a atuação do grupo Suez em Limeira e Manaus. 2007. 233 p. Tese (Doutorado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.), Castro (2007CASTRO, J. E. Poverty and citizenship: sociological perspectives on water services and public-private participation. Geoforum v.38. 2007. p. 756-771.; 2008aCASTRO, J. E. Proposiciones para el examen teórico y empírico de la privatización: el caso de los servicios de agua y saneamiento en América Latina. El agua, derecho humano y raíz de conflictos. Zaragoza, Spain: Government of Aragon, Fundación Seminario de Investigación para la Paz (SIP), 2008a, p. 367-390.; 2008bCASTRO, J. E. Neoliberal water and sanitation policies as a failed development strategy: lessons from developing countries. Progress in Development Studies, v.8, n.1, 2008b, p.63-83.), e Rezende e Heller (2008REZENDE, S. C.; HELLER, L. O saneamento no Brasil: políticas e interfaces. 2.ed. rev. ampl. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. 387 p.), entre outros autores, que enxergaram efeitos muito abaixo das expectativas na maioria das experiências nacionais e internacionais de atuação privada no setor, embora admitam a melhoria pontual de alguns poucos indicadores econômicos ou operacionais.

Na visão destes especialistas, grande parte dos investimentos realizados por grupos privados contou com subsídios governamentais e priorizou o abastecimento de água, em detrimento do esgotamento sanitário. Já as tarifas foram elevadas para custear as operações e demais despesas, onerando as parcelas pobres da população e agravando desigualdades sociais e regionais que deveriam ser combatidas.

Outros problemas na gestão privada do saneamento envolveram a falta de concorrência, a dificuldade de revogar os acordos insatisfatórios, a pouca transparência para com os usuários, a consolidação dos interesses das elites dominantes, os casos de corrupção e a precarização das relações trabalhistas (HALL, 2001HALL, D. El agua en manos públicas. La administración del agua en el sector público: una opción necesaria. Informe de la Internacional de Servicios Públicos (ISP). 2001, 33p.; BAYLISS, 2002BAYLISS, K. Privatization and poverty: the distributional impact of utility privatization Centre on Regulation and Competition - Working Paper, n.16, Manchester, jan. 2002. 16 p.; HALL; LOBINA, 2002HALL, D; LOBINA, E. La privatización del agua en América Latina. Informe a la Conferencia Sobre el Agua de la ISP Américas. San José: Costa Rica, jul. 2002. 36p.; HELLER;CASTRO, 2007HELLER, L.; CASTRO, J. E. Política pública de saneamento: apontamentos teóricoconceituais. Engenharia Sanitária e Ambiental. v.12. n.3. 2007. p. 284-295.).

Além disso, nem sempre os operadores privados conseguiram cumprir as metas traçadas pelo poder concedente, pois as necessidades dos usuários habitualmente se opunham aos princípios de viabilidade e eficiência mercantil. Para Melo e Jorge Neto (2007MELO, J. A. M.; JORGE NETO, P. M. Bem-estar social, regulação e eficiência no setor de saneamento básico. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA, 35, 2007, Recife. Anais. Recife: ANPEC, 2007.), somente os sistemas explorados nos municípios maiores, mais populosos e já estruturados tornaram-se economicamente atrativos aos grupos privados, em detrimento dos demais.

Situações como esta fizeram com que os especialistas do Banco Mundial revisassem o discurso histórico daquela instituição em favor das privatizações do saneamento. Primeiro, admitiram que os resultados obtidos eram ambíguos, com virtudes e falhas. Depois, iniciaram uma defesa do papel central do poder público, pois o setor privado não conseguia servir aos mais pobres (RICHARD; TRICHE, 1994RICHARD, B., TRICHE, T. A. Reducing regulatory barriers to private-sector participation in Latin America's water and sanitation services. Policy Research Working Papers. v.1322. Washington DC: Water and Urban Development Department, The World Bank, 1994.; BANCO MUNDIAL, 2003BANCO MUNDIAL. World development report 2004: making services work for poor people. Washington D.C.: Banco Mundial, 2003.).

Um dos instrumentos para a intervenção governamental seria a regulação, mas, em muitos casos, os organismos criados para este fim não tiveram a devida independência. A dificuldade para aplicação de sanções também ocasionou gestões ineficientes, comprometendo os serviços (PEROSA, 2002PEROSA, R. T. Y. Regulação dos serviços de saneamento básico: aspectos conceituais e fatores intervenientes. 2002. Dissertação - FSP/USP. São Paulo.). Por isso, Castro e Heller (2013CASTRO, J. E.; HELLER, L. A participação privada em saneamento e seus sofismas. Plataforma Política Social. Debates e Contrapontos. 23 jan. 2013. Disponível em: <Disponível em: http:// www.plenitude21.com.br/p21/lc.pdf.pdf >. Acesso em 09 fev. 2013.
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) entenderam que, mesmo nos locais com excelência regulatória, os resultados atingidos estariam muito distantes do desejado.

Nos países desenvolvidos, o Estado sempre foi protagonista não só na fiscalização, mas na implantação, melhoria e gestão do saneamento, embora os contextos fossem diferentes da realidade brasileira (HELLER; CASTRO, 2007HELLER, L.; CASTRO, J. E. Política pública de saneamento: apontamentos teóricoconceituais. Engenharia Sanitária e Ambiental. v.12. n.3. 2007. p. 284-295.; CASTRO, 2008aCASTRO, J. E. Proposiciones para el examen teórico y empírico de la privatización: el caso de los servicios de agua y saneamiento en América Latina. El agua, derecho humano y raíz de conflictos. Zaragoza, Spain: Government of Aragon, Fundación Seminario de Investigación para la Paz (SIP), 2008a, p. 367-390.). Entretanto, Hall (2001HALL, D. El agua en manos públicas. La administración del agua en el sector público: una opción necesaria. Informe de la Internacional de Servicios Públicos (ISP). 2001, 33p.) lista experiências exitosas nas nações em desenvolvimento, onde companhias públicas apresentaram bons indicadores de eficiência, mesmo priorizando o bem-estar da população.

Infelizmente, os bons exemplos e as lições da história são frequentemente ignorados, levando à repetição das falhas cometidas. No geral, Castro (2008aCASTRO, J. E. Proposiciones para el examen teórico y empírico de la privatización: el caso de los servicios de agua y saneamiento en América Latina. El agua, derecho humano y raíz de conflictos. Zaragoza, Spain: Government of Aragon, Fundación Seminario de Investigación para la Paz (SIP), 2008a, p. 367-390.; 2008bCASTRO, J. E. Neoliberal water and sanitation policies as a failed development strategy: lessons from developing countries. Progress in Development Studies, v.8, n.1, 2008b, p.63-83.) pensa que isso seria comum na América Latina, onde as privatizações - nos mais variados formatos e estratégias - ocorreram de forma apressada, atendendo aos interesses das grandes corporações e alcançando, na maioria das vezes, resultados pouco animadores.

A este respeito, não existem ainda elementos suficientes para uma reflexão profunda acerca da abertura de capital das companhias estaduais no Brasil, uma vez que os processos são relativamente recentes e as informações disponíveis restringem-se basicamente às estatísticas oficiais e ao material divulgado pelas próprias empresas. Em geral, os trabalhos publicados nos últimos anos concentraram-se nos aspectos financeiros das operações, enquanto que outras variáveis relevantes foram pouco exploradas.

Os autores nacionais que se debruçaram sobre essa estratégia específica de privatização focam suas análises em experiências estrangeiras. Nascimento e Queiroz (2000NASCIMENTO, L. V.; QUEIROZ, C. M. Regulação e privatização dos serviços de saneamento: experiências de países da América Latina e da Inglaterra. In: CONGRESSO INTERAMERICANO DE ENGENHARIA SANITÁRIA E AMBIENTAL, 27, Porto Alegre. Anais. Rio de Janeiro: ABES, 2000.), por exemplo, relatam casos na América Latina e Inglaterra. Amparo e Calmon (2000AMPARO, P. P.; CALMON, K. M. N. A Experiência Britânica de Privatização do Setor de Saneamento. Texto para Discussão Nº. 701. Brasília: IPEA, jan. 2000.) tratam da realidade britânica, mas identificam dificuldades para a sua reprodução no País. Já Ohira e Turolla (2005OHIRA, T. H.; TUROLLA, F. A. Economia e Regulação do Setor de Saneamento Básico. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ECONOMISTAS, 16, Florianópolis. Anais. Brasília: COFECON, 2005.) abordam a governança e a regulação pelo mercado de capitais, defendendo que este modelo seja aplicado às empresas brasileiras.

Diante da escassez de trabalhos específicos sobre a oferta de ações das companhias públicas no Brasil e suas consequências sobre os serviços prestados, realizou-se uma pesquisa dedicada a discutir a questão mais a fundo, avaliando criticamente os indicadores alcançados após a adoção do novo modelo de gestão. Esta investigação, em particular, focou-se na experiência do estado de Minas Gerais, concretizada no ano de 2006.

Espera-se, pois, que os resultados e conclusões apresentados forneçam subsídios concretos para incrementar o debate permanente sobre o aperfeiçoamento das políticas públicas e da gestão do setor de saneamento no País, contribuindo para a melhoria da qualidade e para a tão almejada universalização do acesso aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário.

Metodologia

Pesquisas preliminares em fontes secundárias relevantes levantaram subsídios para a compreensão do processo de abertura de capital da Companhia de Saneamento de Minas Gerais - COPASA e suas consequências, em conformidade com os objetivos traçados para o trabalho. Consultaram-se leis e decretos estaduais, assim como relatórios, balanços e outros documentos oficiais disponibilizados pela Empresa.

Depois, investigaram-se as transformações observadas na prestação dos serviços, ao longo da primeira década do século XXI, em localidades atendidas pela Companhia. Verificou-se se as mudanças estavam mais alinhadas aos interesses do mercado ou às necessidades da população atendida, tendo em vista o cumprimento de sua função social. Mais do que isso, avaliou-se se estas modificações foram reflexos da negociação da Empresa nas bolsas de valores.

As dimensões analisadas foram escolhidas com base no discurso dos especialistas contrários e favoráveis à privatização do setor. Elas retratam as características geralmente impactadas positiva ou negativamente pela participação privada, segundo a visão dos autores citados na revisão da literatura: a cobertura, a integralidade e a qualidade dos serviços prestados, bem como a satisfação com o atendimento.

Diante da pequena série histórica disponibilizada pela COPASA (2003 a 2012), os dados oriundos dos seus relatórios e balanços anuais foram tratados e trabalhados com o auxílio de métodos descritivos e exploratórios. Os valores e médias dos indicadores de interesse foram confrontados por meio de tabelas, que permitiram uma rápida visualização da sua evolução no intervalo de tempo considerado.

Para avaliar o comportamento da cobertura dos serviços de água e esgotos no Brasil, recorreu-se a informações da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico - PNSB 2000 / 2008. Após verificação, constatou-se que os dados não seguiam uma distribuição normal. Por este motivo, foi aplicado o teste não paramétrico de Wilcoxon (1945WILCOXON, F. W. Individual comparisons by Ranking Methods. Biometrics Bulletin. v.1, n.6, 1945. p.80-83.) para amostras pareadas. Os resultados foram ilustrados na forma de gráficos do tipo box-plot.

Os indicadores relativos ao estado de Minas Gerais foram construídos a partir de dados da PNSB 2000 / 2008 e do Censo Demográfico 2000 / 2010. Com o auxílio de tabelas, compararam-se os valores médios observados nos conjuntos de municípios atendidos unicamente pela COPASA (67 e 128) e por entidades ligadas às prefeituras (346 e 284), no início e no final da primeira década do século XXI, respectivamente.

Para analisar o progresso de cada variável, com base no modelo de gestão da instituição responsável, as amostras foram reduzidas, de modo que apenas os municípios operados exclusivamente pela COPASA (64) ou por órgãos municipais (256), durante todo o intervalo analisado, fossem contabilizados. Desta maneira, excluíram-se as localidades que, em algum dos dois momentos, eram atendidas conjuntamente pela Empresa e pelo poder local.

Calcularam-se inicialmente as diferenças nos valores dos indicadores de cada município entre os dois períodos estudados. Depois da verificação da normalidade, realizou-se o Teste U de Mann-Whitney (1947MANN, H. B.; WHITNEY, D. R. On a Test of Whether One of Two Random Variables is Stochastically Larger Than The Other". Annals of Mathematical Statistics, v. 18, 1947. p. 50-60.) para amostras independentes, com o objetivo de avaliar se as mudanças observadas divergiam significativamente, conforme o modelo de gestão adotado. Os resultados foram igualmente representados por gráficos box-plot.

Os métodos quantitativos foram ainda complementados por entrevistas semiestruturadas realizadas com quinze especialistas, gestores e técnicos ligados à condução das políticas estaduais e à administração / operação do saneamento em Minas Gerais. Os participantes foram selecionados durante a fase de pesquisa documental e por meio da indicação de outros agentes consultados, em virtude das posições que ocupavam ou ainda ocupam em diferentes instituições ligadas ao setor, como pode ser observado na Tabela 1.

Tabela 1:
Participantes das Entrevistas Semiestruturadas

As entrevistas, pela sua natureza interativa, permitiram que temas complexos fossem tratados e explorados em profundidade, na medida em que se buscava a compreensão das relações entre os atores e a realidade local, bem como dos significados atribuídos por eles a eventos, situações ou personagens ligados a suas vidas cotidianas (MINAYO, 2006MINAYO, M. C. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 10.ed. Rio de Janeiro: Hucitec, 2006. 403 p.; GASKELL, 2007GASKELL, G. Entrevistas individuais e grupais. In: BAUER, M. W.; GASKELL, G. (Ed.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. 6. ed., Petrópolis: Vozes 2007. p. 64-89.).

A utilização de um roteiro semiestruturado permitiu que os questionamentos básicos elaborados fossem extrapolados. Novas perguntas surgiram a partir das respostas dadas pelos participantes a indagações anteriores. Eles também tiveram maior liberdade para seguir uma linha de pensamento, ao contrário do que aconteceria em entrevistas padronizadas ou questionários (FLICK, 2004FLICK, U. Uma introdução à Pesquisa Qualitativa. 2.ed. Porto Alegre: Bookman, 2004. 312p.).

As gravações das conversas foram minuciosamente transcritas. Métodos de análise de conteúdo foram empregados para identificar as ideias mais frequentes (BARDIN, 2004BARDIN, L. Análise de Conteúdo. 3.ed. Lisboa: Edições 70, 2004. 225 p.; VERGARA, 2004VERGARA, S. C. Métodos de pesquisa em administração. São Paulo: Atlas S.A., 2004. 287p.; ROCHA; DEUSDARÁ, 2005ROCHA, D; DEUSDARÁ, B. Análise de Conteúdo e Análise do Discurso: aproximações e afastamentos na (re)construção de uma trajetória. ALEAv.7. jul-dez. 2005, p.305-322.; BAUER, 2007BAUER, M. W. Análise de conteúdo clássica: uma revisão. In: BAUER, M. W.; GASKELL, G. (orgs.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 189-243.). Já a análise dos discursos permitiu o estabelecimento de relações entre as opiniões e as circunstâncias em que foram expressas (MACHADO; JACKS, 2001MACHADO, M. B.; JACKS, N. O discurso jornalístico. Brasília: Compós, 2001.; ROCHA; DEUSDARÁ, 2005ROCHA, D; DEUSDARÁ, B. Análise de Conteúdo e Análise do Discurso: aproximações e afastamentos na (re)construção de uma trajetória. ALEAv.7. jul-dez. 2005, p.305-322.).

Na discussão dos resultados, trechos representativos das falas dos entrevistados foram recortados e utilizados de forma intercalada com os dados numéricos para ilustrar, complementar, aprofundar, qualificar e validar as reflexões propostas, na medida em que parte dos indicadores disponíveis apenas delinearam e refletiram indiretamente as dimensões abordadas.

Por motivos éticos, as identidades de todos os sujeitos foram preservadas. Neste trabalho, eles serão identificados pela sigla da instituição à qual estavam ou estão vinculados. No caso dos órgãos com mais de um representante, adicionou-se um número indicativo da ordem em que deram seus depoimentos [SIGLA-NÚM.], para que seja possível diferenciá-los. Destaca-se, todavia, que cada fala expressa a opinião individual do entrevistado, independentemente da posição oficial da entidade por ele representada.

Avanços e perspectivas da gestão da COPASA: para que e para quem?

A abertura de capital da Companhia de Saneamento de Minas Gerais na Bolsa de Valores de São Paulo resultou no aprofundamento da vocação empresarial e mercantil que já norteava a atuação da Empresa desde a sua criação, em 1973, ainda no bojo do modelo de gestão proposto pelo governo militar, consolidado pelo Plano Nacional de Saneamento - PLANASA.

Um sinal claro do reforço dessa postura, a partir de 2006, foi a expansão da quantidade de municípios atendidos pela Empresa, que passou a trabalhar ativamente para a ampliação de seus mercados. Analisando-se as Tabelas 2 e 3, observa-se que o crescimento da atuação em serviços de esgotamento sanitário foi maior que no abastecimento de água - algo natural diante da elevação da demanda e da menor capacidade das operadoras locais para assumir tais investimentos.

Todavia, a diferença na abrangência dos dois serviços manteve-se alta, em virtude da própria política adotada pela Companhia até então. Trata-se, pois, de um quadro de difícil solução, na opinião de um especialista da Agência Reguladora, uma vez que "há um desincentivo ao investimento em esgotos se a remuneração é baixa (...) e o custo é mais alto. Novas concessões reduziriam o lucro dela. Por isso você vê essa disparidade" [ARSAE-03].

Tabela 2:
Serviços de Abastecimento de Água
Tabela 3:
Serviços de Esgotamento Sanitário

Há ainda espaço para crescimento, mas, como previsto por Melo e Jorge Neto (2007MELO, J. A. M.; JORGE NETO, P. M. Bem-estar social, regulação e eficiência no setor de saneamento básico. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA, 35, 2007, Recife. Anais. Recife: ANPEC, 2007.), a Empresa não se interessa pelos municípios pequenos. Um dos gestores consultados explica que "existe um problema de escala e de retorno; eles não dão conta de arcar com o custo que a COPASA coloca. Esse jogo trava o desenvolvimento deles com relação ao saneamento, embora haja recurso disponível para investimento na área." [FJP-01]

Critérios de viabilidade econômica também determinam sua atuação em áreas carentes. Um entrevistado com bastante conhecimento de causa reconheceu que a Empresa até assume a operação em regiões deficitárias, "com foco social", mas "o importante é que, no global, exista um retorno igual ou maior que o custo de capital, tendo em vista a sustentabilidade da Companhia no longo prazo" [COPASA-03].

As ações de saneamento rural também "não são prioridades para a Empresa" - fato que não pode ser atribuído à abertura de capital, pois, "com exceção de alguns curtos períodos, nunca houve muitos recursos [disponíveis] para esses fins" [CMBH]. A despeito da construção de módulos sanitários ou cisternas, em parcerias com entidades não governamentais e com o apoio financeiro de programas estaduais e federais, os entrevistados não enxergam a existência de uma política consolidada, devido às poucas perspectivas de lucro.

Também é necessário considerar que os dados das Tabelas 2 e 3 refletem apenas o nível de penetração da Empresa em Minas Gerais e não retratam com fidelidade e exatidão o grau de cobertura dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, uma vez que, mesmo nas localidades onde a COPASA está presente, podem existir soluções individuais e sistemas controlados por associações, autarquias ou empresas municipais.

As Tabelas 4 e 5 ilustram de forma mais apropriada a evolução destes indicadores no estado, embora desconsiderem o modelo de gestão adotado em cada município e não permitam a diferenciação e a qualificação dos serviços ofertados - o atendimento adequado não depende apenas da infraestrutura, mas de aspectos socioeconômicos / culturais, da qualidade e da solução empregada, conforme conceituação já adotada pelo Plansab (2011)PLANSAB - Plano Nacional de Saneamento Básico. Proposta de Plano. Brasília: Ministério das Cidades, 2011. 153 p. Disponível em: <Disponível em: http://www.abm.org.br/PLANSAB.pdf >. Acesso em 18 jun. 2012.
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Tabela 4:
Grau de Cobertura de Abastecimento de Água em Minas Gerais
Tabela 5:
Grau de Cobertura de Esgotamento Sanitário em Minas Gerais

Na Tabela 5, em especial, verifica-se o crescimento do número de municípios com algum serviço de esgotamento sanitário. Este avanço pode ser justificado pela precariedade da situação inicial, uma vez que, historicamente, o abastecimento de água foi sempre priorizado. Entretanto, com base apenas nestas informações, não é possível atribuí-lo exclusivamente à COPASA e muito menos à mudança no modelo de gestão da Empresa.

Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE indicam que houve melhorias destes indicadores também nos outros estados brasileiros. A aplicação do teste estatístico de Wilcoxon (1945WILCOXON, F. W. Individual comparisons by Ranking Methods. Biometrics Bulletin. v.1, n.6, 1945. p.80-83.) para amostras pareadas revelou uma diferença significativa na cobertura dos serviços de água e esgotos entre os anos de 2000 e 2008, no conjunto do país - o que pode ser facilmente observado nas Figuras 1 e 2.

FIGURA 1:
Média de Municípios Por Estado com Rede Geral de Água. Fonte: UBGE (2012a).

FIGURA 2:
Média de Municípios Por Estado Com Serviço de Coleta de Esgoto. Fonte: UBGE (2012a).

Estas evidências indicam que o cenário de evolução não pode ser creditado à abertura de capital da Companhia de Minas Gerais, mas se deve a fatores diversos igualmente experimentados nas demais unidades da federação, como a ampliação de recursos disponíveis e a consolidação da política federal para o setor. Como resume um especialista consultado, "o que teve de melhoria foi devido à conjuntura favorável, embora tenha havido avanços localizados" [COMUSA].

Outro fenômeno retratado pela Tabela 6 foi o crescimento da atuação da COPASA em municípios antes atendidos por operadoras locais, entre 2000 e 2010. Mesmo que não seja possível relacionar este panorama ao novo modelo de gestão da Companhia, fica clara a sua movimentação nesta direção, com o estabelecimento de "metas que precisam ser alcançadas pelos gerentes locais, para que estes não percam a gratificação adicional que compõe uma parcela variável de seus salários" [COPASA-02], como revela um gestor da Empresa.

Tabela 6:
Expansão do Atendimento Integral pela COPASA em Minas Gerais

Quando os municípios integralmente atendidos por ela são analisados separadamente (Tabela 7), observa-se um leve retrocesso na porcentagem de domicílios com acesso à rede geral de abastecimento de água entre 2000 e 2008. Já a rede geral de esgotos teve um pequeno acréscimo, assim como a utilização de fossa séptica - consequências do início de operação em distritos e localidades onde as condições anteriores eram mais precárias.

TABELA 7:
Formas de Abastecimento de Água e Disposição de Esgotos em MG

Ainda a respeito da Tabela 7, observa-se que os valores médios da COPASA eram melhores que os das demais operadoras com outros modelos de gestão para quase todos os indicadores, tanto em 2000 quanto em 2010. As exceções residiam em parâmetros relacionados ao esgotamento sanitário, historicamente relegado a um plano secundário, devido aos elevados custos para sua implantação. Após a abertura de capital, essa discrepância foi mantida.

Tal conclusão está alinhada à percepção de um dos especialistas consultados. Para ele, a situação "é realmente melhor" nas localidades atendidas pela Companhia, "principalmente no sistema de abastecimento de água, [alvo de maiores investimentos]. No esgotamento sanitário seria o contrário: onde a Empresa opera, o serviço tende a ser pior" [FJP-02], quando comparado com os municípios onde ela não atua.

A aplicação de testes estatísticos para comparar a evolução detectada neste período de dez anos em domicílios atendidos pela Empresa e por entidades locais revelou que, em muitos casos, não houve diferenças entre os modelos de gestão considerados. Em outros, o avanço conquistado por autarquias e empresas municipais foi significativamente maior que naqueles sob a responsabilidade da Companhia Estadual.

No entendimento dos especialistas, essa circunstância é coerente com a atual política do Governo Federal, que "prioriza o recurso não oneroso para os pequenos municípios e para as companhias mais desestruturadas", em detrimento das "empresas mais eficientes" [UFMG]. Como exemplo, a Figura 3 mostra o avanço dos domicílios com rede geral de água. Para este indicador, o desempenho das localidades atendidas exclusivamente pela COPASA foi significativamente inferior às demais.

FIGURA 3
Evoluçao dos Domicilios com Rede Geral de Abastecimento de Água. Fonte: IBGE (2012bIBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2000. Disponível em: <Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/default_censo_2000.shtm >. Acesso em 31 ago. 2012b.
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/...
; 2012cIBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2010. Disponível em: <Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm >. Acesso em 31 ago. 2012c.
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/...
).

Este ponto, em especial, divergiu dos resultados do trabalho de Vargas e Lima (2004VARGAS, M. C.; LIMA, R. F. Concessões privadas de saneamento no Brasil: bom negócio para quem? Ambiente & Sociedade. v.7. n. 2.jul./dez. 2004.), pois, diferentemente do fenômeno detectado por aquele estudo, a participação privada no controle da companhia mineira não implicou necessariamente o aumento dos investimentos para a realização de obras direcionadas à expansão das redes de abastecimento nos municípios atendidos por ela.

Mesmo que a forma dos gráficos seja distinta, estatisticamente não é possível afirmar que a mudança experimentada pelos municípios operados pela COPASA foi realmente inferior à ocorrida nos demais com relação ao percentual de domicílios que tinham banheiro ou sanitário (Figura 4), bem como com a proporção daqueles que estavam ligados à rede geral de esgoto ou pluvial (Figura 5), quando considerado um nível de confiança de 95%.

FIGURA 4:
Evolução dos Domicílios que Tinham Banheiros ou Sanitário. Fonte: UBGE (2012b; 2012c).

FIGURA 5:
Evolução dos Domicílios com Rede Geral de Esgoto ou Pluvial. Fonte: UBGE (2012b; 2012c).

Por fim, observa-se uma redução consistente na proporção de domicílios que não tinham banheiro ou sanitário ao longo da primeira década do século XXI. Entretanto, a evolução alcançada nos municípios atendidos pela COPASA foi significativamente menor que aquela experimentada nas demais localidades onde ela não estava presente, conforme ilustrado pela Figura 6.

FIGURA 6:
Evolução dos Domicílios que Não Tinham Banheiro ou Sanitário. Fonte: IBGE (2012bIBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2000. Disponível em: <Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/default_censo_2000.shtm >. Acesso em 31 ago. 2012b.
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/...
; 2012cIBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2010. Disponível em: <Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm >. Acesso em 31 ago. 2012c.
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/...
).

Quanto às consequências da abertura de capital da COPASA sobre a qualidade dos serviços prestados, uma avaliação mais precisa esbarra na escassez de parâmetros comparáveis entre si, diante da diferença entre os protocolos da PNSB em 2000 e 2008 - principalmente com relação ao esgotamento sanitário. Faltam informações também sobre regularidade, intermitências, interrupções e racionamentos no abastecimento de água.

A respeito deste assunto, os sujeitos entrevistados não identificaram mudanças na última década. Em geral, as manobras no sistema são programadas para que haja a manutenção das redes. Não se vislumbrou, no relato dos informantes, nenhum privilégio para áreas de maior poder aquisitivo: "não tem como ser seletivo; seria difícil esse tipo de escolha. [Além do mais], o sistema é muito integrado" [UFMG]. Fatores climáticos sazonais também ocasionaram problemas, mas nada diferente do que já acontecia.

Ainda que não abordem especificamente este tema, os dados da Tabela 06 apontam indiretamente para a melhoria gradual nos serviços de água e esgotos durante o período de tempo considerado neste trabalho, como consequência do crescimento da utilização de processos, tecnologias e soluções cada vez mais eficientes para a captação de água e a disposição final de efluentes.

Já a Tabela 8 retrata a elevação dos volumes de água tratada, embora tenha aumentado a proporção da aplicação de métodos não convencionais simplificados e menos onerosos. Também se observa que a Empresa apresentou valores médios superiores para todos os indicadores relacionados, quando comparada às demais operadoras com outros modelos de gestão.

Tabela 8:
Volume de Água Por Tipos de Tratamento em Minas Gerais

Ainda a respeito da Tabela 8, ficou evidente o maior progresso dos sistemas controlados por entidades ligadas às prefeituras municipais. Entretanto, essa questão precisa ser relativizada, uma vez que a realidade destas localidades era muito pior. Além do mais, grande parte do volume de água que passou a ser tratado recebeu apenas cloração ou outro processo de desinfecção. A comparação desta evolução pode ser acompanhada nas Figuras 7 e 8.

FIGURA 7:
Evolução do Volume Total de Água com Tratamento. Fonte: IBGE (2012a)IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. PNSB. Disponível em: <Disponível em: http:// www.sidra.ibge.gov.br/bda/pesquisas/pnsb/default.asp >. Acesso em 31 ago. 2012a.
http:// www.sidra.ibge.gov.br/bda/pesqui...
.

FIGURA 8:
Evolução do Volume de Água Sem Tratamento. Fonte: IBGE (2012a)IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. PNSB. Disponível em: <Disponível em: http:// www.sidra.ibge.gov.br/bda/pesquisas/pnsb/default.asp >. Acesso em 31 ago. 2012a.
http:// www.sidra.ibge.gov.br/bda/pesqui...
.

O depoimento de um dos agentes consultados indica que a COPASA atende, na sua maioria, aos parâmetros de qualidade da água estabelecidos pela legislação. Entretanto, ao contrário do observado por Fujiwara (2005FUJIWARA, T. A privatização beneficia os pobres? Os efeitos da desestatização do saneamento básico na mortalidade infantil. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA, 33, 2005, Natal. Anais. Natal: ANPEC, 2005.), isso não significa que os usuários mais pobres estejam totalmente satisfeitos: "Eles trabalham rigorosamente dentro do padrão estabelecido. (...) E isso encarece muito serviço. (...) É um preço fechado, muito oneroso. Nem sempre a população está disposta a pagar por isso" [FJP-01].

De modo geral, observou-se que "a Empresa repassa seus custos para a sociedade; quem paga são os usuários" [CMBH]. A título de comparação, as Tabelas 9 e 10 mostram que os índices de inflação acumulada nos anos imediatamente anteriores aos reajustes eram quase sempre inferiores aos valores estabelecidos unilateralmente pela Companhia. Esta situação foi modificada apenas a partir de 2009, após a criação da Agência Reguladora.

Tabela 9:
Reajuste Tarifário Médio Anual
Tabela 10:
Variação Acumulada dos Índices Oficiais de Inflação

Mas as críticas não se resumem à majoração desproporcional dos valores praticados pela Companhia. Para os especialistas consultados, "a melhoria gerencial proporcionada pela abertura de capital não chegou à prestação de serviço, que ainda deixa muito a desejar" [COPASA-01]. A adoção de novas ferramentas de controle não foi totalmente refletida na elevação do bem-estar da população, como esperado por Clark, Menard e Zuluaga (2002)CLARKE, G. R. G.; MENARD, C.; ZULUAGA, A. M. Measuring the welfare effects of reform: urban water supply in Guinea. World Developmentv. 30, p. 1517-37. 2002..

O crescimento do descontentamento está implícito nos dados disponibilizados pela Empresa sobre o aumento do número de queixas registradas pelos usuários junto aos canais de ouvidoria e aos órgãos de proteção ao consumidor (ainda que tenha havido também uma elevação da população atendida). Os casos levados à justiça foram os mais problemáticos, na medida em que houve uma queda na proporção de ações solucionadas, como pode ser observado nas Tabelas 11 e 12.

Tabela 11:
Total de Reclamações de Usuários
Tabela 12:
Proporção de Reclamações Atendidas ou Solucionadas

Além da questão dos custos, o aumento da insatisfação também pode estar relacionado à "terceirização das atividades da Empresa e à alta rotatividade de funcionários" em postos-chave. Segundo apurado junto aos trabalhadores da própria Companhia, "a baixa qualificação dos técnicos, a falta de equipamentos adequados e o menor compromisso das empreiteiras contratadas" implicam "prazos maiores" [SENGE] para o atendimento aos usuários e a necessidade de reparos em serviços recém-executados.

Conclusões

A pesquisa comprovou que, de forma geral, o caso da Companhia de Saneamento de Minas Gerais assemelha-se bastante às experiências de gestão privada dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário reportadas pela literatura nacional e estrangeira, pois, a despeito das estratégias diferentes, a maior parte dos resultados conquistados desde a consolidação do processo não confirmou as expectativas dos tomadores de decisão.

Mais do que isso, a evolução detectada em alguns indicadores da Empresa foi significativamente inferior àquela experimentada pelas operadoras com outros modelos de gestão, devido às condições precárias em que estas últimas atuavam anteriormente e aos programas específicos direcionados a elas, sobretudo para a liberação de recursos públicos não onerosos.

Os avanços pontuais alcançados pela COPASA no período considerado foram reproduzidos em municípios de todos os estados brasileiros, inclusive naqueles atendidos por entidades públicas. Este fato sugere que o progresso observado não pode ser diretamente creditado à mudança no modelo de gestão, mas a outros elementos importantes, como a consolidação de uma política nacional para o setor.

Depois de 2006, as práticas adotadas pela Companhia se mostraram invariavelmente alinhadas às leis e diretrizes do mercado. Embora ainda seja controlada pelo Governo, a Empresa passou a ignorar o seu caráter público e o seu papel fundamental como instrumento do Estado na viabilização e na efetivação das políticas de saneamento, com vistas à universalização e à melhoria da qualidade dos serviços prestados.

A despeito dos resultados alcançados em Minas Gerais, a reflexão sobre a privatização dos serviços de saneamento e, mais particularmente, a abertura de capital das companhias estaduais, não foi esgotada. Pelo contrário, ela precisa ser ampliada por novas frentes de trabalho. A análise das experiências de Paraná, Santa Catarina e São Paulo, por exemplo, pode trazer novos elementos importantes para essa discussão.

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  • Os autores agradecem à FAPEMIG pelo apoio financeiro à pesquisa que resultou neste artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    July-Sep 2015

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2014
  • Aceito
    17 Nov 2014
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