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PANTANAL, UM LUGAR INTOCADO? CONFLITOS RELACIONADOS À CONSERVAÇÃO DO PANTANAL1 1 . "Este presente trabalho foi realizado com o apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Brasil".

FRANCO, Jose Luis Andrade; DRUMMOND, Jose Augusto; CHIARA, Gentile; AZEVEDO, Aldemir Inácio de. Biodiversidade e ocupação humana do Pantanal mato-grossense: conflitos e oportunidades. Rio de Janeiro: Garamond, 2013. 260

Abstract

O livro "Biodiversidade e ocupação humana do Pantanal mato-grossense: conflitos e oportunidades" traz uma discussão de um tema pouco debatido dentro das discussões acadêmicas: conservação do Pantanal. Um local apontado por alguns autores como intocável. O livro é dividido em três capítulos principais. O primeiro é sobre as características físicas / biológicas da região, e o segundo trata do processo histórico de ocupação. Importantes publicações sobre o Pantanal são sumarizadas em ambos os capítulos. O ultimo capítulo descreve um atual conflito entre moradores locais e Unidades de Conservação. No entanto os autores não utilizam diversos achados sobre os assentamentos locais, levando a conclusões imprecisas. A falta de acurácia científica na parte mais importante do livro minimiza o seu impacto acadêmico. Entretanto, esse livro inicia um importante debate sobre a conservação do Pantanal, mostrando que a região não é intocável e está livre de ameaças como muitos apontam.

Palavras-chave
Pantanal; comunidades tradicionais; Unidades de Conservação

Abstract

The book "Biodiversidade e ocupação humana do Pantanal mato-grossense: conflitos e oportunidades" brings to discussion a hardly citied issue in academic debates: the conservation of the Pantanal. A place pointed out by some authors as pristine. The book is divided into three main chapters. The first one is about the physical / biological feature of the region and the second covers the local historical occupation. Important publications about the Pantanal are sumerized well in both chapters. The last chapter describes current conflict between local people and Protected Areas over land use. However the authors misuse several findings about local settlements in the region, leading to imprecise conclusions. The lack of scientific accuracy in the main part of the book undermines its potential academic impact. Nonetheless this book triggers important debates about the conservation of the Pantanal, showing that it is not pristine and free of threats as is widely claimed.

Key words
The Pantanal; traditional communities; Protected Areas

Resumen

El libro "Biodiversidade e ocupação humana do Pantanal mato-grossense: conflitos e oportunidades" pone en discusión un tema que rara vez se debate en ámbitos académicos: la conservación del Pantanal. Un ecosistema considerado por algunos autores como intocable. El libro está dividido en tres capítulos principales. El primero es sobre la región física / biológica del Pantanal, el segundo trata el proceso histórico de su ocupación. Publicaciones importantes sobre el Pantanal son resumidas en ambos capítulos. En el último capítulo se describe un conflicto actual entre los residentes locales y áreas protegidas. Sin embargo, algunos de los autores que se mencionan en capítulos anteriores, utilizan de forma inexacta los hallazgos de investigaciones, generando conclusiones imprecisas. La falta de precisión científica en la parte más importante del libro minimiza su impacto académico. Sin embargo, este libro inicia un debate importante sobre la conservación del Pantanal, mostrando que la región no es intocable y está libre de amenazas como muchos afirman.

Palabras Chaves
Pantanal; las comunidades tradicionales; las áreas protegidas

O livro "Biodiversidade e ocupação humana do Pantanal mato-grossense: conflitos e oportunidades" traz para discussão um assunto pouco citado nos debates acadêmicos: a conservação do Pantanal. Em uma pesquisa simples na ferramenta de pesquisa Scopus utilizando o nome do bioma adicionado a palavra "conservação" encontramos 159 referências para o Pantanal, bastante diferente da Amazônia ou Mata Atlântica com 1319 e 1405, respectivamente. É possível refletir sobre algumas prováveis razões, como: o Pantanal é considerado um ambiente preservado, em que o desmatamento de áreas nativas é menos que 17% (IBAMA 2012), aproximadamente 95% dos 140 000 Km2 do bioma são de posse privada, com poucos conflitos relacionados à posse da terra (HARRIS et al., 2005); e existem poucos registros de espécies endêmicas na região (JUNK et al., 2006JUNK, W. J. et al. Biodiversity and its conservation in the Pantanal of Mato Grosso, Brazil. Aquatic Sciences, v. 68, n. 3, p. 278-309, 12 ago. 2006. ). Assim, não é surpresa que o Pantanal não seja incluído na maioria dos mapas de áreas prioritárias para conservação (JENKINS et al., 2013; MYERS et al., 2000MYERS, N. et al. Biodiversity hotspots for conservation priorities. Nature, v. 403, n. 6772, p. 853-8, 24 fev. 2000. ; OLSON and DINERSTEIN, 2002OLSON, D.; DINERSTEIN, E. The Global 200: Priority Ecoregions for Global Conservation. Annals of the Missouri Botanical garden, v. 89, n. 2, p. 199-224, 2002. ) sendo considerado, por alguns, um lugar intocado (DESBIEZ, 2009DESBIEZ, A. Wildlife habitat selection and sustainable resources management in a Neotropical wetland. International Journal of Biodiversity and Conservation, v. 1, n. 1, p. 11-20, 2009. ) livre de ameaças.

No entanto, o Pantanal, deveras, tem um papel fundamental na conservação da biodiversidade no mundo. Se por um lado existem poucos registros de espécies endêmicas na região, por outro o Pantanal preserva populações saudáveis de espécies ameaçadas como Onça Pintada (Phantera onca) (CAVALCANTI et al., 2012), Cervo do Pantanal (Blastocerus dichotomus) (MOURÃO et al., 2000MOURÃO, G. et al. Aerial surveys of caiman, marsh deer and pampas deer in the Pantanal Wetland of Brazil. Biological Conservation, v. 92, p. 175-183, 2000. ) e Tuiuiú (Jabiru mycteria) (MOURÃO et al., 2010). Dessa maneira, se a região deixar de ser preservada, tais espécies se encontrarão mais próximas da extinção. Além do mais, o Pantanal enfrenta ameaças que precisam ser levadas em conta.Nas recentes discussões do Novo Código Florestal sobre questões relacionadas ao Pantanal, pecuaristas lutam para aumentar para 60% o total permitido de desmatamento, enquanto que instituições de pesquisas apontam que tal quantidade não poderia ser, em média, mais que 35% para garantir a sustentabilidade ecológica do biomai i http://capitaldopantanal.com.br/?p=21870 . Portanto, é perigoso ver o Pantanal como um lugar livre de preocupações ambientais. Este livro é uma das poucas publicações que traz conflitos relacionados à conservação do Pantanal para a atenção de um público maior.

O livro é dividido em três capítulos. O primeiro e mais curto ("O Pantanal da Biodiversidade") descreve brevemente as características físicas e biológicas da região, explicando sua formação e as mudanças climáticas ao longo do tempo. Ele dá um bom sumário da descrição de Ab'Saber (2006) com alguns comentários relacionados às sub-regiões do bioma. O capítulo continua com uma descrição da biodiversidade da região de maneira igualmente acurada, habilmente sumarizando oito capítulos sobre a biodiversidade animal e vegetal do Pantanal presente em Junk et al. (2011).O segundo capítulo ("Ocupação do Pantanal Mato-grossense") cobre o histórico de ocupação da região desde a colonização Europeia nos séculos XVI (Espanhóis) e XVIII (Portugueses) até os dias de hoje. Os autores apontam o extermínio dos Ameríndios vivendo nessa região como consequência desse período, ilustrando com casos de doenças que causaram grande declínio populacional e guerras nas tentativas de colonização europeia na região. O processo histórico de colonização é bem referenciado. Por fim, no mesmo capítulo, os autores apontam os recentes incentivos do governo para instalação de fazendas de gado na região. O último capítulo ("Disputas socioambientais e conservação da natureza no Pantanal") é a parte mais importante do livro, dando uma extensa discussão do conflito na Borda Oeste do Pantanal entre ribeirinhos e Unidades de Conservação, também inclui resultados de um questionário aplicado pelos autores. Infelizmente, esse capítulo não sustenta a acurácia e o cuidado com referências utilizado nos anteriores. O conflito descrito entre atores locais e as Áreas Protegidas é real e tem, com certeza, levado, por um lado, à restrições de atividades fundamentais para a sobrevivência das comunidades e, por outro, trazido preocupações sobre possíveis impactos em hotspots de biodiversidade (em alguns casos afetando espécies sensíveis na região) (BERTASSONI et al., 2012BERTASSONI, A. et al. Paraguay River Environmental Monitoring by Rede de Proteção e Conservação da Serra do Amolar, Pantanal, Brazil. Pan-American Journal of Aquatic Sciences, v. 7, p. 77-84, 2012. ). No entanto, os autores não utilizam importantes informações sobre os assentamentos locais na região, minimizando o valor científico do livro.

A primeira interpretação equivocada é sobre o surgimento dos assentamentos. É argumentado que tais assentamentos apareceram depois de 1974 quando uma grande cheia cobriu parte da região, levando alguns trabalhadores de fazendas de gado mudarem para a beira do rio e trocarem seu modo de vida para pesca. No entanto, é sabido que quando a escravidão no Brasil acabou em 1888, ex-escravos que trabalhavam nas fazendas da região, sem suporte financeiro ou social, se assentaram em Aterros Indígenas, ao longo do rio, na mesma região que os remanescentes Guatós (SILVA and SILVA, 1995SILVA, C. J. DA; SILVA, J. A. F. No Ritmo das Águas do Pantanal. 1 ed. ed. São Paulo: NUPAUB/USP, 1995. p. 210). Também, paraguaios vieram morar nessa região em razão da onda de pobreza e doenças vividas pelo país em consequência da Guerra do Paraguai (ou Guerra da Tríplice Aliança - 1864-1870 - parte lutada sobre essa região) (SCHUCH, 1995SCHUCH, M. E. J. O índio enquanto etnia: etno-história dos Xaray e Chané alto-paraguaienses. Estudos Leopoldenses, v. 31, n. 143, p. 109-124, 1995. ). Assim, no começo do século XX diversas comunidades compostas por indígenas, ex-escravos e paraguaios já estavam estabelecidas. Isto é consistente com os estudos de Etnobotânica que mostram um aumento no número de pessoas vivendo ao longo do Rio Paraguai e São Lourenço e nas suas áreas inundáveis nesse período (BORTOLOTTO, 2006). Portanto, o argumento dos autores de que os assentamentos locais foram formados apenas depois da cheia de 1974 não é consistente com o atual conhecimento sobre a região.

Um segundo ponto é que os autores fazem certas afirmações que não são sustentadas e, de certa maneira, enviesadas, por exemplo "fraca capacidade organizativa [dos ribeirinhos]" (p. 91) e "Entre os impactos ambientais [...] podem ser contabilizados a sobrepesca" (p. 91). Ambas afirmações são demonstravelmente incorretas. Primeiramente, três assentamentos estabeleceram organizações reconhecidas legalmente (Associações da Comunidade da Barra do São Lourenço, Porto São Francisco e Paraguai Mirim), soma-se que um deles aplicou e recebeu um pequeno recurso da Fundação Socioambiental CASA para construir o escritório da associação (recurso número GGF 38/2014, R$ 12 000). Em segundo, a questão sobre se há ou não sobre pesca no Pantanal, e se sim quem é o culpado e em que grau, ainda é controversa. Revisando os poucos estudos para a região, Mateus et al. (2011) aponta que com exceção do Pacu (Piaractus mesopotamicus) não existem indícios de sobre pesca na região. No resto do capítulo os autores primeiro apresentam os resultados do questionário. São mostrados dados do perfil socioeconômico e da subsistência, o qual apresenta um bom cenário da região. O capítulo finaliza com uma discussão mais geral sobre o conceito de povos tradicionais, tentando argumentar que grande parte das chamadas "comunidades tracionais" deveriam ser nomeadas "pobres rurais", uma vez que em muitos casos eles não se diferenciam de povos não tradicionais. Os autores argumentam que eles não deveriam ser tratados como direitos especiais, lamentando certos benefícios públicos dados ao "povos tradicionais". Eles ilustram sua opinião com o exemplo da Borda Oeste do Pantanal, argumentando que a região sempre teve o seu foco na produção de gado e, portanto, não faz sentido apoiar meios de vida relacionado à pesca. No entanto, como já apontado, uma revisão da literatura sobre o estado da arte para essa região mostra uma perspectiva diferente, tendo claramente a pesca como parte fundamental da sobrevivência de atores locais não indígenas por mais de 100 anos.

A falta de acurácia científica na parte mais importante do livro minimiza o seu potencial impacto acadêmico. Suas afirmações são, em diversas partes, mais retóricas do que bem referenciadas, e precisam ser lidas com cautela. Por outro lado, esse livro é um importante ponto de partida para debates relacionados à conservação do Pantanal, uma vez que mostra que ele não é um lugar intocável livre de ameaças como normalmente é apontado.

References

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    http://capitaldopantanal.com.br/?p=21870
  • 1
    . "Este presente trabalho foi realizado com o apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Brasil".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    28 Dez 2014
  • Aceito
    20 Set 2015
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