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POVOS TRADICIONAIS E TURISMO: O TAUS COMO INSTRUMENTO PARA GESTÃO DE CONFLITOS?

Resumo

A reprodução do capital imobiliário, estabelecido por meio de equipamentos turísticos e residências secundárias, é um dos principais fatores de produção do espaço litorâneo, gerando, por vezes, conflitos com os interesses das populações tradicionais remanescentes. Este artigo tem como objetivo analisar a outorga do Termo de Autorização do Uso Sustentável (TAUS), um instrumento de regularização fundiária baseado no reconhecimento do direito a moradia e na gestão de práticas socioeconômicas, às Comunidades Tradicionais Caiçaras, situadas na Praia de Castelhanos, em Ilhabela (SP). O trabalho foi desenvolvido por meio de um estudo descritivo e exploratório, complementado por dados secundários e pela observação participante. Entende-se que a emissão do TAUS proporciona ao caiçara o poder de decisão e a possibilidade de participação, contudo, devido ao seu ineditismo em territórios de interesse turístico configura-se falho, especialmente no que tange aos aspectos práticos de gestão territorial e dos conflitos destas comunidades com agentes externos.

Palavras-chaves:
Comunidades Tradicionais Caiçaras; turismo; Ilhabela; território

Abstract

The reproduction of real estate capital, generated through tourist facilities and secondary residences, is one of the main modes of production in the coastal region, causing, at times, conflicts with the interests of remnant traditional populations. This article aims to analyse the concession of the Term of Authorization for Sustainable Use (TAUS) - a land policy instrument for ownership regularization developed based on the recognition of the traditional populations’ right to housing and the management of their socioeconomic practices - to Caicara Traditional Communities, situated along Praia de Castelhanos, in Ilhabela (SP). The work was carried out by a descriptive and exploratory study, complemented by secondary data and by participant observation. It is understood that issuing the TAUS offers the caicara the power of decision and the possibility of participation; however, by its uniqueness on tourist desired territories, it appears inconsistent especially regarding the practical aspects of territorial management and disputes of these communities with external stakeholders.

Keywords:
Caiçara Traditional Community; tourism; Ilhabela; territory.

Resumen

La reproducción del capital inmobiliario, establecido por medio de equipamientos turísticos y residencias secundarias, es uno de los principales factores de producción del espacio litoral, generando, algunas veces, conflictos con los intereses de las poblaciones tradicionales remanentes. Este artículo tiene como objeto analizar el otorgamiento del Término de Autorización del Uso Sustentable (TAUS), un instrumento de regularización agrario basado en el reconocimiento del derecho a vivienda y en la gestión de prácticas socioeconómicas, a las Comunidades Tradicionales Caiçaras, situadas en la Playa de Castellanos, en Ilhabela (SP). El trabajo fue desarrollado por medio de un estudio descriptivo y exploratorio, complementado por datos secundarios y por la observación participante. Se entiende que la emisión del TAUS proporciona al caiçara el poder de decisión y la posibilidad de participación, no obstante, por ser inédito en territorios de interés turístico se configura defectuoso, especialmente en lo que atañe a los aspectos prácticos de gestión territorial y de los conflictos de estas comunidades con agentes externos.

Palabras-claves:
Comunidades Tradicionales Caiçaras; turismo; Ilhabela; territorio.

1. Introdução

Similar a todo litoral norte paulista, um dos principais fatores que contribuíram para a formação das comunidades tradicionais de Ilhabela foi a decadência da produção monocultora para exportação e a consequente baixa integração da região aos fluxos e centros mais dinâmicos do território nacional. A cultura caiçara, construída e reproduzida nos períodos de estagnação da economia, estava representada nas canoas de voga, nas roças, na caça, na pesca artesanal e na comercialização do excedente.

Na segunda década do século XX, Ilhabela, município do litoral norte do Estado de São Paulo, já havia presenciado, ao longo da sua história, momentos de estagnação da produção voltada à exportação, marcada pela cultura da cana-de-açúcar e do café. Neste contexto, Noffs (2007NOFFS, Paulo da Silva. A disputa pela hegemonia do espaço na Baia dos Castelhanos. (Tese de Doutorado) Depto de Geografia. FFLCH - USP, 2007.) relata que, logo após a decadência da produção do café, no início do século XX, os antigos engenhos e fazendas se voltaram para a produção de aguardente para atender ao mercado regional, contudo, tal atividade foi muito reduzida nas formas de ocupação do espaço e nos fluxos econômicos.

Concomitantemente à produção de aguardente e o desenvolvimento da pesca comercial, iniciada com a introdução do cerco flutuante pelos japoneses na década de 1930 (BEGOSSI, 2011BEGOSSI, Alpina. O cerco flutuante e os caiçaras do litoral norte de São Paulo, com ênfase à pesca de trindade, RJ. Interciencia, vol. 36, núm. 11, noviembre, 2011, pp. 803807, Asociación Interciencia Venezuela.), o cultivo agrícola para subsistência, baseado no sistema de coivara3 3 . Este sistema recebe várias denominações, como técnicas de coivara, agricultura itinerante, agricultura de corte/queima, agricultura de subsistência. Nesse tipo de agricultura, o fogo desempenha um grande papel, pois as cinzas da floresta queimada fornecem nutrientes aos primeiros anos de cultura (RAIMUNDO, 2007). , esteve presente em todas as planícies costeiras de Ilhabela, inclusive permitindo aos caiçaras a comercialização do excedente de produção. O cultivo da banana ganhou destaque com a decadência da produção de aguardente, entre as décadas de 1950 e 1960, tornando-se de suma importância tanto como base alimentar ou como atividade comercial (NOFFS, 2007NOFFS, Paulo da Silva. A disputa pela hegemonia do espaço na Baia dos Castelhanos. (Tese de Doutorado) Depto de Geografia. FFLCH - USP, 2007.). Contudo, ao longo da primeira metade do século XX, como nenhuma dessas produções se destacou como elemento de maior integração regional, o que dominou o local foi uma acomodação das técnicas de produção aos ciclos naturais, gerando uma paisagem com baixa interferência humana.

Com isso, o modo de vida tradicional Caiçara era a marca da paisagem, com sua resistência de sobrevivência e permanência no território. Este modo de vida, baseado numa relação com os ciclos naturais do ambiente, se desenvolveu quando da estagnação de todos os ciclos econômicos mais dinâmicos. Ao voltar-se para a economia local com base na agricultura familiar, as comunidades promoveram o fortalecimento da cultura caiçara, tanto no trabalho como nas manifestações simbólicas (LUCHIARI, 1999LUCHIARI, Maria Teresa Duarte Paes. O lugar no mundo contemporâneo: turismo e urbanização em Ubatuba/SP. (Tese de Doutorado) IFCH - UNICAMP, 1999.).

É importante destacar que o caiçara nunca se isolou de outros lugares sobrevivendo apenas de atividades de subsistência. Ao contrário, promoveu uma integração aos centros urbanos litorâneos, fornecendo-lhes algum produto. Nesse momento, as comunidades vendiam seus pescados e compravam gêneros alimentícios e vestuários que não podiam produzir. Por exemplo, o distrito de Picinguaba, em Ubatuba, era interligado à cidade de Paraty (RJ) pela trilha do Corisco. Por ela, os moradores de Picinguaba e arredores chegavam àquela cidade e comercializavam a farinha de mandioca (RAIMUNDO, 2001RAIMUNDO, Sidnei. Nos bananais de Ubatuba (SP): dilemas e desafios para a gestão das unidades de conservação de proteção integral com comunidades tradicionais residentes. (Dissertação de Mestrado) Depto de Geografia. FFLCH-USP, p.161, 2001.). Contudo, para o caiçara, tais produtos comercializados apresentavam um valor de uso e não de troca (CALVENTE, 1993), lógica que só mudaria a partir da segunda metade do século XX, quando os processos de urbanização no litoral se intensificaram e as questões fundiárias, através da venda de lotes, passaram a ser uma importante fonte de renda para as comunidades litorâneas (VIANNA, 1996VIANNA, Lucilia P. Considerações críticas sobre a construção da idéia de “População tradicional” no contexto das unidades de conservação. (Dissertação de mestrado) Depto de Antropologia, FFLCH-USP, 232 p. 1996.; CALVENTE, 1997).

Desta forma, os processos de urbanização turística vão se configurar numa nova fase de reprodução do capital no litoral norte paulista, quebrando aquelas relações sociais nas vilas caiçaras que estiveram atreladas à presença dos lugares de trabalho e lazer, assim como dos pilares que consistiam na identidade caiçara. Estas relações são explícitas no uso dos territórios do sertão e da praia4 4 . No litoral norte paulista a expressão “areia” é sinônimo de praia e “sertão” refere-se à área de espessa floresta (SETTI, 1985). Trata-se, no caso do “Sertão”, das comunidades localizadas nos anfiteatros da Serra do Mar ou nas áreas montanhosas de Ilhabela. . A praia representava o espaço de convivência e relações sociais, enquanto o sertão era o lugar de trabalho, de produção da alimentação e do excedente. No centro urbano da ilha e praias adjacentes, a rápida conversão do uso das terras, de domínio Caiçara, para usos turísticos e de veraneio geridos por forasteiros propiciou algumas ações para frear ou reduzir este avanço. O mais significativo na área foi a criação do Parque Estadual de Ilhabela (PEIb), em 1977. Com o objetivo primário de conservação da natureza, o PEIb reduziu a frente de ocupação imobiliária em Ilhabela, mas, ao mesmo tempo, gerou uma reorganização no modo de vida caiçara, pois, pela legislação ambiental, muitas práticas tiveram que ser alteradas. Segundo o Regulamento dos Parques Estaduais Paulistas, principal instrumento ordenador das unidades de conservação à época,

É expressamente proibida a coleta de frutos, sementes, raízes ou outros produtos dentro da área dos Parques Estaduais (artigo 10); É expressamente proibida a prática de qualquer ato de perseguição, apanha, coleta, aprisionamento e abate de exemplares da fauna dos Parques Estaduais, bem como quaisquer atividades que venham a afetar a vida animal em seu meio natural (Artigo 13). Os animais domésticos, domesticados, ou amansados, sejam aborígines ou alienígenas, não poderão ser admitidos nos Parques Estaduais (Artigo 16). Só serão admitidas residências nos Parques Estaduais, se destinadas aos que exerçam funções inerentes ao seu manejo (Artigo 27). (Decreto Estadual nº 25.341 de 1986).

Este regulamento se apoiava na visão de visitantes, ou forasteiros, procurando evitar que estes causassem danos aos ambientes protegidos pelos parques. O regulamento não levava em consideração as práticas de outros grupamentos humanos, como os caiçaras, cuja ocupação era anterior à criação destes parques e que dependiam de seus ambientes para reprodução de seus modos de vida. Tal fato gerou uma série de conflitos entre a legislação ambiental que perduram até os presentes dias. Raimundo e Honora (2017RAIMUNDO, S; HONORA, A. C. C. Território de direitos: abordagens interdisciplinares para a mediação de conflitos socioambientais entre comunidades tradicionais e unidades de conservação. In: PEREIRA, Diamantino (Org.). Estudos e ações transdisciplinares em mudança social e participação política. 1. ed. São Paulo (SP): Annablume, 2017, v. 1, p. 189-200.), analisando o Mapa de Conflitos Ambientais da Fundação Oswaldo Cruz (2013), indicam que, de um total de 133 conflitos cadastrados, 32 (ou 24%) se referem à implantação de áreas protegidas como principal responsável pelo conflito.

No caso do PEIb, conflitos entre o parque e as comunidades caiçaras só começaram a ser discutidos e manejados mais adequadamente na segunda metade da década de 1990, com a elaboração do primeiro Plano de Gestão Ambiental (PGA) para a Ilha (MARETTI et al., 1997MARETTI, Claudio C.; RAIMUNDO, Sidnei; SANCHES, R. et alii. A construção da metodologia dos planos de gestão ambiental para unidades de conservação em São Paulo. In: Anais do Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação. Vol. II. Curitiba: IAP/ Unilivre/RNPUC (Orgs.). O Boticário & Sema-IAP, 1997, pp. 206-217.). A partir do PGA, um processo de resistência à legislação punitiva às comunidades tradicionais e ao autorreconhecimento caiçara sobre seus territórios modificou a elaboração dos demais instrumentos subsequentes, como o Plano de Manejo de Ilhabela aprovado em 2015.

Os conflitos entre comunidades tradicionais e a legislação ambiental deu às primeiras suporte para seu reconhecimento acerca da importância dos territórios tradicionais para a manutenção dos modos de vida e cultura destes povos. E estes fatos, em Ilhabela, tiveram como desdobramentos os esforços das comunidades e de parte da sociedade local em manter o território caiçara, em virtude das ameaças da transformação em área urbana (turística) das comunidades do Bonete e da Baía dos Castelhanos, frente a revisão do Gerenciamento Costeiro do Litoral Norte (GERCO-LN), em 2013. O turismo e a especulação imobiliária se configuraram como os principais elementos de conflitos nas comunidades. Nesse bojo, desenhou-se um novo cenário de luta e resistência destas comunidades, fato que resultou em 2015 na outorga do Termo de Autorização de Uso Sustentável (TAUS), pela Superintendência do Patrimônio da União (SPU), que será discutido mais adiante.

O TAUS configura-se como um instrumento inédito de resolução de conflitos entre comunidades tradicionais e outros agentes, como o turismo em Ilhabela. O ineditismo refere-se a temas antes não tratados diretamente nas políticas públicas de regularização fundiária, que sempre privilegiaram a propriedade da terra (mesmo que forjada) como elemento de reconhecimento de títulos. O TAUS, ao contrário, reconhece a moradia e o uso dos recursos naturais voltados à manutenção dos modos de vida, como direitos de garantia da posse e o fim da exploração de comunidades tradicionais por pretensos proprietários de terras e privilegiando o fortalecimento da coletividade. Por outro lado, são muitos os desafios enfrentados como, por exemplo, as diferentes interpretações com relação ao desenvolvimento de atividades ligadas ao turismo (entre agentes externos e internos), desdobramentos para a obtenção da Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) e sobre a responsabilidade da gestão do território outorgado.

A partir dessas informações, o objetivo deste artigo foi analisar a outorga do TAUS às Comunidades Tradicionais da Praia de Castelhanos em Ilhabela (SP), avaliando alterações na dinâmica do uso do território pelo turismo e comunidades tradicionais.

2. Métodos

A pesquisa teve um caráter descritivo de viés exploratório (VEAL, 2011), pois buscou identificar as questões socioeconômicas e jurídicas da posse do território no Litoral Norte de São Paulo. O principal instrumento de análise foi a outorga do TAUS às Comunidades Tradicionais da Praia de Castelhanos, verificando como este instrumento pode alterar a dinâmica do uso do território pelo turismo. Para tal, foram efetuadas pesquisas em dados secundários com ênfase nos ciclos econômicos na região, questões de regularização fundiária e direitos das Comunidades Tradicionais e a jurisprudência que atende os direitos das comunidades locais. A avaliação baseou-se na análise dos seguintes documentos: Política Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais, a OIT 169 e, das políticas de ordenamento e gestão territorial como, o Gerenciamento Costeiro (2004 e 2017), o Plano de Manejo do PEIb (2015), o SNUC, com destaque para as categorias de uso sustentável, os TAUS outorgados às comunidades da Baía dos Castelhanos e, por fim, destaca-se a participação em reuniões dos conselhos municipais e grupos de trabalho seguido da posterior análise das atas e demais documentos produzidos, o papel do turismo na formação territorial no Litoral de Norte paulista e as transformações socioeconômicas das Comunidades Tradicionais de Ilhabela.

Como complementação ao levantamento de dados secundários dos instrumentos de planejamento da área, utilizou-se a técnica da observação participante. Esta permitiu verificar os conhecimentos dos moradores acerca dos temas da pesquisa, assim como pela própria experiência de uma das autoras deste artigo, que participou junto aos órgãos federais, estaduais, municipais e comunidades tradicionais na outorga do TAUS e vem acompanhando seus recentes desdobramentos.

Em Ilhabela, encontram-se 17 Comunidades Tradicionais Caiçaras, cinco localizadas no interior do PEIb. A maioria tem como fontes de renda a pesca e a agricultura familiar, mas, recentemente, o turismo começou a ocupar um lugar de destaque na economia local de algumas comunidades. Situada a leste da Ilha de São Sebastião, a Baía dos Castelhanos abriga as Comunidades Tradicionais nas praias de Castelhanos (Lagoa e Ribeirão), Mansa, Vermelha, Figueira e Saco do Sombrio. A Praia de Castelhanos é a única com acesso por uma Estrada-Parque, consistindo-se no principal negócio de 66 agências de turismo contando com 93 veículos cadastrados e autorizados5 5 . Dados do Parque Estadual de Ilhabela referentes ao cadastro de 2018. para operar na Estrada-Parque. Em 2015, foi outorgado o TAUS para a Baía dos Castelhanos redesenhando algumas relações nas comunidades envolvidas.

3. Disputas territoriais entre os agentes do turismo e as comunidades tradicionais

O espaço (a paisagem) é o principal objeto de consumo de práticas turísticas. No dizer de Palomeque (2001),

O turismo apresenta uma diferenciação em relação a outras atividades econômicas, já que o espaço de destino apresenta um papel fundamental para cada um dos agentes que intervêm nos processos de produção e consumo turísticos: os proprietários de solo, promotores de espaço, agentes do setor, os consumidores, os intermediários e finalmente a própria administração (Palomeque, 2001 apud PAIVA; VARGAS, 2013PAIVA, Ricardo; VARGAS Heliana C. Sobre a relação turismo e urbanização. Pós v. 20 n. 33, São Paulo, 2013., p. 134).

Desta forma, o espaço turístico tem origem na “(...) multiplicidade de funções, de situações e de diferentes processos” (SARTI; QUEIROZ, 2012SARTI, Antonio Carlos; QUEIROZ, O.T.M.M. Espaço, paisagem, lugar, território e região - a organização do espaço turístico. In: BENI, Mario Carlos (Org.). Turismo: planejamento estratégico e capacidade de gestão - desenvolvimento regional, rede de produção e cluster. Barueri: Manole, 2012. p. 3-27., p. 9). É formado pela apropriação dos diferentes elementos naturais e dos ambientes artificiais onde o espaço é o objeto central de consumo, transformando o turismo num novo colonizador e desfigurador de paisagens (KRIPPENDORF, 2009KRIPPENDORF, Jost. Sociologia do turismo: para uma nova compreensão do lazer e das viagens. 3. ed. rev. e ampli. São Paulo: Aleph, 2009. (Série Turismo).).

Nessa lógica, os agentes do turismo agem desterritorializando os lugares (CORIOLANO, 2006CORIOLANO, L. N. M. T. Turismo: prática social de apropriação e de dominação de territórios. In: LEMOS, A. I. G. de; ARROYO, M.; SILVEIRA, M. L. América Latina: cidade, campo e turismo. Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales - CLACSO. São Paulo, 2006.), gerando uma contra resistência, por parte das comunidades locais. No dizer desta autora, lutas diárias são travadas juntamente com as relações produtivas e sociais, assumindo um caráter de defesa territorial. As políticas públicas de turismo pouco fazem para alterar esse quadro. O Plano Nacional de Turismo 2013-20166 6 . Disponível em <http://www.turismo.gov.br/images/pdf/plano_nacional_2013.pdf>. acaba reproduzindo as contradições e conflitos entre investidores externos e comunidades locais, quando aponta o turismo como uma atividade para diminuir a pobreza entre as regiões e garantir a melhoria da renda. O foco deste plano está no oferecimento de emprego e renda para comunidades locais, sem definir quais são os tipos de emprego e as relações dos moradores locais. O resultado chega mais tarde com a perda dos territórios e os impactos ambientais.

No litoral norte paulista, observa-se uma lógica similar a este modelo hegemônico de uso e ocupação de espaços para o turismo. Trata-se de ocupação baseada na propriedade da terra, inicialmente com a venda de terrenos localizados na orla marítima (de domínio dos caiçaras nativos) para construção das casas de veraneio, como se verá mais adiante.

O caiçara, até a abertura das estradas e dinamização da economia regional para e pelo turismo, não reivindicou a regularização de suas terras em títulos de propriedade, devido ao alto custo e também por desconhecimento dos seus direitos legais. Isso permitiu o surgimento de grileiros e especuladores imobiliários que iniciam uma fase de expulsão e ameaças aos caiçaras de seus territórios e, por outro lado, sentindo-se pressionados, os caiçaras passam a vender as terras por valores muito baixos (LUCHIARI, 1999LUCHIARI, Maria Teresa Duarte Paes. O lugar no mundo contemporâneo: turismo e urbanização em Ubatuba/SP. (Tese de Doutorado) IFCH - UNICAMP, 1999.; NOFFS, 2007NOFFS, Paulo da Silva. A disputa pela hegemonia do espaço na Baia dos Castelhanos. (Tese de Doutorado) Depto de Geografia. FFLCH - USP, 2007.; MANÇANO, 2004).

Compondo esse cenário de transformações, no início da década de 1960, influenciado pela melhoria dos acessos rodoviários, o turismo começa a despontar no litoral norte do Estado de São Paulo. Em Ilhabela, tal momento também é marcado pela implantação dos serviços de travessia da balsa entre São Sebastião e Ilhabela. Verifica-se em toda região o aumento de turistas aventureiros, identificados na tipologia de viajantes de Cohen por turistas exploradores (COHEN, 1972 apud LOHMANN; PANOSSO, 2012LOHMANN, G., NETTO, A.P. Teoria do turismo: conceitos, modelos e sistemas. 2. ed. ampli. e atual. São Paulo: Aleph, 2012. p. 363-366. (Série Turismo)., p. 272).

Assim, com o serviço de balsas implantado, são construídas vias de acesso turístico na orla marítima de Ilhabela voltada para o canal, lançados loteamentos para instalação de casas de veraneio e é iniciada a abertura da estrada de rodagem Perequê - Castelhanos (concluída na década de 1970), ligando esta praia ao centro urbano da Ilha. França (1951FRANÇA, Ary. A ilha de São Sebastião. Ind. Gráfica José Magalhães, São Paulo. 1951.) registra um processo anterior, na década de 1930, de valorização das terras situadas na face do Canal de São Sebastião e identifica o início da especulação imobiliária. Contudo, nos anos 1930 a especulação ainda é um processo incipiente e sua reprodução marca uma lógica de concentração de terras. Na área rural de Ilhabela, onde as terras estão mais fracionadas, “(...) não há, em toda a Ilha, senão 9 propriedades com mais de 100 hectares, tendo a maior, 532 ha” (FRANÇA, 1951FRANÇA, Ary. A ilha de São Sebastião. Ind. Gráfica José Magalhães, São Paulo. 1951., p. 120), resultando, assim, na década de 1960, numa concentração de grandes lotes nas mãos de poucos investidores externos.

A abertura da estrada de rodagem Perequê - Castelhanos proporcionou maior mobilidade e o início das atividades de “turismo de um dia”. Na década de 1990, aqueles que possuíam veículos com tração 4x4 viram a oportunidade de prestar o serviço aos visitantes que buscavam aventura e, paulatinamente, uma estrutura de bares e restaurantes foi se criando para atender a demanda crescente.

O aumento do fluxo turístico promoveu a transformação do uso do território e da economia local, intensificando as mudanças nas relações sociais e, é a partir de então que:

A terra passou a se afigurar como mercadoria, acessível apenas mediante a compra. Grande parte da população caiçara e seus descendentes migrou, ou se ligou a atividades urbanas como caseiros, empregados da construção civil, de órgãos públicos e de serviços relacionados ao comércio. A única alternativa que se mostrou, no sentido de aliar o modo de vida caiçara a uma atividade produtiva, foi a sua transformação em pescador profissional (LUCHIARI, 1999LUCHIARI, Maria Teresa Duarte Paes. O lugar no mundo contemporâneo: turismo e urbanização em Ubatuba/SP. (Tese de Doutorado) IFCH - UNICAMP, 1999., p.96).

No entanto, a especulação imobiliária e a pressão do turismo nos remanescentes naturais e paisagísticos que o Parque Estadual oferece continuam ameaçando a existência das comunidades tradicionais. Segundo Capucci (2016CAPUCCI, Maria Rezende. Aspectos fundiários das comunidades caiçaras. In: STANICH NETO, Paulo (Org.). Direito das Comunidades Tradicionais Caiçaras. São Paulo: Café com Lei, 2016, p. 105-131.), ora pela impotência do legislador, ou devido

(...) à demora no cumprimento dos direitos dessas comunidades, em especial no que se refere à regularização de seus territórios, tem-se o acelerado avanço de situações que colocam em risco a própria existência desses espaços cultural, ambiental e cientificamente protegidos (CAPUCCI, 2016CAPUCCI, Maria Rezende. Aspectos fundiários das comunidades caiçaras. In: STANICH NETO, Paulo (Org.). Direito das Comunidades Tradicionais Caiçaras. São Paulo: Café com Lei, 2016, p. 105-131., p.116).

Embora o quadro geral de uso e ocupação do litoral norte paulista seja esse até aqui discutido, os muitos anos de luta, resistência e exclusão de comunidades locais, acompanhados das transformações sociais, econômicas e paisagísticas dos territórios em questão, fizeram aparecer, a partir de pressões de grupos contra hegemônicos da região, um aparato legal e institucional de reconhecimento das comunidades tradicionais que vem, aos poucos, promovendo o fortalecimento destas culturas, como discutido no próximo tópico.

4. O reconhecimento de comunidades tradicionais e a instituição do TAUS

Atualmente, as comunidades tradicionais são reconhecidas e respaldadas em leis, podendo citar-se a Constituição Federal, em 1988, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) em 2000, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 2003, o Plano Diretor de Ilhabela (PDI) em 2006, a Política Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) em 2007, Lei Federal 13.123 em 2015 e o Gerenciamento Costeiro do Litoral Norte (GERCO-LN) em 2017.

Dentre os direitos assegurados às comunidades tradicionais pela Convenção 169 da OIT, está a garantia dos territórios tradicionais e uso dos recursos naturais. Para isso, dispõe no capítulo II, intitulado TERRAS, no artigo 13 §2, que “(...) o uso do termo terras incluirá o conceito de territórios, que abrange todo o ambiente das áreas que esses povos ocupam e usam para outros fins”. Ainda no mesmo capítulo, no artigo 14 §1, aponta a obrigação do Estado de garantir “(...) os direitos de propriedade e posse de terras tradicionalmente ocupadas pelos povos interessados deverão ser reconhecidos”.

A PNPCT entende como territórios tradicionais, no artigo 3 §1, “(...) os espaços necessários à reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária (...)”. Nos anexos da mesma lei, a questão fundiária é abordada em vários dos objetivos específicos, com destaque para o artigo 3 §1, que explicita: “garantir aos povos e comunidades tradicionais seus territórios, e o acesso aos recursos naturais que tradicionalmente utilizam para sua reprodução física, cultural e econômica”.

Com relação à regularização fundiária propriamente dita e à inexistência de instrumentos e órgãos específicos, a Promotora Federal Maria Capucci menciona,

(...) quanto ao aspecto dominial, a mencionada falta de previsão de um procedimento e um órgão específico não impede a utilização de inúmeros instrumentos que têm se evidenciado como aptos a cumprir o constitucional direito ao território destas comunidades enquanto pendente, sob este ponto de vista, a regulamentação da PNPCT (CAPUCCI, 2016CAPUCCI, Maria Rezende. Aspectos fundiários das comunidades caiçaras. In: STANICH NETO, Paulo (Org.). Direito das Comunidades Tradicionais Caiçaras. São Paulo: Café com Lei, 2016, p. 105-131., p. 117).

Nesse sentido, dentre os instrumentos que vem sendo utilizados para a regularização dos territórios das comunidades tradicionais, destacam-se as modalidades de Unidades de Conservação de Uso Sustentável como as Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS) e as Reservas Extrativistas (RESEX) referendadas pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC, Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000). E, por conta das deficiências na jurisprudência, como mencionado anteriormente, essas categorias de áreas protegidas vêm sendo utilizadas em muitos casos como instrumentos de regularização fundiária que reconhecem e beneficiam as comunidades tradicionais.

Por outro lado, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) desenvolveu programas como o Projeto de Assentamento Agroextrativista - PAE7 7 . Portaria INCRA nº 268/96. e o Projeto de Desenvolvimento Sustentável - PDS8 8 . Portaria INCRA nº 477/99. , voltados especificamente à regularização fundiária e à promoção do desenvolvimento sustentável das comunidades tradicionais objetivando inicialmente a garantia dos direitos destes povos sem necessariamente considerar a proteção da natureza, subentendendo que estão intimamente relacionados.

Em 2003, visando compor o esforço do cumprimento da função social da terra, é iniciado pela Superintendência do Patrimônio da União (SPU) em parceria com o INCRA, Municípios, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), movimentos sociais, associações de bairro, entre outros, um trabalho voltado à identificação dos bens imóveis da União, focando na proteção dos direitos socioambientais com a “(...) destinação de áreas para a preservação do meio ambiente e dos recursos naturais, inclusive para a garantia do sustento das populações tradicionais (SPU; INSTITUTO POLIS, 2006, p. B:42).

E, em 2005, foi lançada uma iniciativa inédita buscando atender a função social nas terras da União com foco na promoção da regularização fundiária das populações ribeirinhas habitantes das várzeas e ilhas fluviais dos rios federais na Amazônia Legal. Denominado de “Nossa Várzea: cidadania e sustentabilidade na Amazônia brasileira”, o objetivo do projeto, normatizado pela Portaria nº 284/2005, foi identificar e cadastrar os territórios de moradia e sustento dos ribeirinhos, visando frear a ameaça da especulação imobiliária e econômica dos produtos locais.

A implementação do Projeto Nossa Várzea, no Pará, providenciou aos ribeirinhos a comprovação de posse das terras, acesso ao crédito e a outros benefícios do governo, tirando milhares de gerações de tradicionais da informalidade. Para a execução do projeto, foi elaborado um instrumento de regularização fundiária idealizado para atender as populações tradicionais cujos territórios estão sobrepostos às áreas da União, o Termo de Autorização de Uso Sustentável (TAUS). Por alguns anos, a principal aplicação do TAUS foi visando o atendimento das necessidades/características dos habitantes da região Norte do Brasil, por meio dos projetos Nossa Várzea, Nossa Floresta e Campos Naturais, desenvolvidos pela SPU e voltados à regularização fundiária.

Em 2010, é publicada a Portaria SPU 89/2010, com objetivo do reconhecimento e regularização fundiária das comunidades tradicionais habitantes das áreas da União por meio do TAUS9 9 . Este instrumento recentemente foi transformado em lei com a publicação da Lei 13.465/2017. . Assim, começa ser regularizada a situação das comunidades tradicionais que ocupam áreas indubitavelmente da União situadas nos perímetros dos terrenos de marinha e marginal a estes e, ainda de acordo com o Art. 1 - Parágrafo Único desta lei, “A autorização prevista no caput poderá compreender as áreas utilizadas tradicionalmente para fins de moradia e uso sustentável dos recursos naturais, contíguas ou não”. Importante mencionar que a outorga do TAUS pode ser realizada nas modalidades coletiva, por meio das associações representativas (CNPJ), ou por conjunto de CPF e individual, e tem como objetivo:

Disciplinar a utilização e o aproveitamento dos imóveis da União em favor das comunidades tradicionais, com o objetivo de possibilitar a ordenação do uso racional e sustentável dos recursos naturais disponíveis na orla marítima e fluvial, voltados à subsistência dessa população, mediante a outorga do TAUS, a ser conferida em caráter transitório e precário pelos Superintendentes do Patrimônio da União (Art. 1º, da Lei 13.465/2017).

Recentemente, o TAUS tem sido o instrumento utilizado para regularização fundiária de comunidades tradicionais da Zona Costeira do Brasil. Na região Sudeste, mais especificamente no Litoral Norte do Estado de São Paulo, as primeiras experiências foram aplicadas no âmbito do Programa de Ação Participativa para a Pesca (PAPP)10 10 . Exigência do IBAMA à Petrobras - Campo de Mexilhão (PMXL-1) - Bacia de Santos (2008-2016). para a regularização das áreas dos ranchos de pesca.

Tal iniciativa promoveu o fortalecimento das políticas públicas na região e, em 2012, a primeira comunidade caiçara a receber a outorga do TAUS foi a Ilha do Montão de Trigo, em São Sebastião, e, em 2015, outras seis comunidades na Baía dos Castelhanos e as ilhas de Búzios e Vitória, em Ilhabela.

Para Promotora da Procuradoria Federal de Caraguatatuba, comarca do litoral norte de São Paulo, o TAUS é apenas o início do processo de garantia de permanência nos territórios, por isso, embora o instrumento:

[...] inicialmente, sirva à efetivação do direito territorial das comunidades tradicionais, é importante destacar seu caráter precário e transitório, reconhecidos na própria norma que institui e que estabelece que este instrumento apenas inicia o processo de regularização fundiária, que poderá - entenda-se, deverá, ser convertido em Concessão de Direito Real de Uso - CDRU a fim de estabilizar a situação jurídica e garantir maior segurança a comunidade (CAPUCCI, 2016CAPUCCI, Maria Rezende. Aspectos fundiários das comunidades caiçaras. In: STANICH NETO, Paulo (Org.). Direito das Comunidades Tradicionais Caiçaras. São Paulo: Café com Lei, 2016, p. 105-131., p. 126).

Porém, além do cumprimento da função socioambiental dos bens da União e do reconhecimento dos direitos das populações tradicionais, o TAUS faz parte de um projeto maior que visa o desenvolvimento econômico e social baseado na inclusão socioterritorial. Para promoção da igualdade, é fundamental prezar pelos aspectos como as relações culturais com o território, a regularização da economia para subsistência, o manejo dos recursos naturais e o reconhecimento do direito a moradia.

Posto isso, por se tratar de um instrumento com poucas aplicações na região Sudeste do Brasil e em comunidades tradicionais caiçaras, onde os conflitos estão sedimentados no uso e ocupação das áreas de marinha voltadas ao turismo, além de envolver uma variedade de atores, apresentam-se uma série de desafios na interpretação da aplicação e gestão do instrumento que precisam ser geridas a fim de, de fato, promover o fortalecimento e a permanência das comunidades caiçaras no território tradicional.

Portanto, apresenta-se como legítima a resistência dos povos tradicionais em seus territórios, base da identidade cultural e lugar onde se travam as mais diversas atividades econômicas, contrapondo o turismo enquanto atividade única e principal. Contudo, é necessário ampliar o debate sobre a questão da propriedade da terra, do protagonismo nas atividades locais para busca do turismo mais humanizado, das possibilidades de promoção do fortalecimento dos arranjos locais, da manutenção das atividades tradicionais e, por fim, da permanência nos territórios.

Nesse sentido, o reconhecimento do território se apresenta como elemento fundamental para o fortalecimento das comunidades tradicionais que se encontram vulneráveis por habitarem historicamente áreas de interesse econômico para o exercício das atividades capitalistas. É o caso do turismo praticado na Praia de Castelhanos, que se transformou em um dos atrativos mais visitados em Ilhabela (SP), sendo o carro-chefe de venda das agências de receptivo local.

5. O TAUS e as perspectivas para o desenvolvimento do Turismo em comunidades tradicionais de Ilhabela (SP)

A Baía dos Castelhanos abriga 75 famílias e ocupa um território com uma área de 5.735,86 ha11 11 . Dado retirado do relatório do Instituto Socioambiental Guapuruvu, 2013, p. 42. , localizado entre a praia e as montanhas recobertas de Mata Atlântica, caracterizado por uma paisagem que atrai um número médio de 80 mil turistas/ano, vide figuras 1, 2 e 3.

Figura 1:
Praia de Castelhanos em um dia com baixa fequentação de turistas

Figura 2:
Praia de Castelhanos em um final de semana com sol

Figura 3:
Praia de Castelhanos fila de embarque para o retorno no final do dia

Em meados de 2013, a situação de exploração econômica nas comunidades tradicionais da ilha se deflagrou, por meio do posicionamento da Prefeitura Municipal de Ilhabela frente à revisão do Gerenciamento Costeiro (GERCO-LN), propondo avançar sobre os territórios tradicionais com o objetivo de promover o desenvolvimento econômico e, ao mesmo tempo, regularizar quem no passado havia “investido” no território tradicional. Fato este que desencadeou calorosas discussões e culminou na suspensão da revisão da lei do GERCO-LN, sendo retomada somente em 2015.

Superado o ocorrido, observa-se esta ação como uma importante vitória de resistência e permanência nos territórios caiçaras na história de Ilhabela. Do ponto de vista das comunidades tradicionais, tais ações promoveram a união, o resgate da autoestima, do orgulho de ser caiçara e, sobretudo, o nascimento da percepção que unidos teriam o direito de decidir sobre seus territórios. Do ponto de vista institucional, aproximou as comunidades das autoridades, principalmente do SPU e Ministérios Públicos Federal e Estadual, contribuindo para o avanço da efetivação dos direitos das comunidades tradicionais, tanto de permanência no território como de garantia dos modos de vida.

Em 2015, como resultado da articulação de muitos atores, inclusive das comunidades tradicionais, o SPU titulou as áreas da União, com a entrega do TAUS coletivo por conjunto de CPFs, vide figura 4, às famílias das comunidades tradicionais caiçaras da Baía dos Castelhanos e das Ilhas dos Búzios e da Vitória, reconhecendo o direito à moradia e ao uso sustentável dos recursos naturais da orla marítima em seus territórios.

Figura 4:
Demarcação da Linha de Terrenos de Marinha e da Linha Preamar Média para outorga do TAUS na Baía dos Castelhanos.

Com o TAUS, o espaço de exploração do turismo passa a ser reconhecido como território tradicional, colocando um fim às questões da especulação imobiliária; ao menos nas áreas mais valorizadas, aquelas lindeiras ao mar, compreendidas na demarcação dos 33 metros de preamar12 12 . Os terrenos de marinha são definidos somente nos locais sob a influência das marés. A definição destes terrenos leva em consideração a configuração do litoral no ano de 1831 e compreendem a faixa de 33 metros contados a partir da Linha da Preamar Médio (SPU; Instituto Polis, 2006). . Contudo, mesmo considerando a área reconhecida pelo TAUS reduzida - a praia e o entorno dos rios com influência de maré - é importante perceber que este espaço representa o lugar de convivência e das relações sociais dos caiçaras, ao mesmo tempo em que é o objeto de consumo do turismo. Esta diferença nas relações de uso do território em questão aumenta as situações de conflito e traz à tona a necessidade de repensar como as atividades econômicas da sociedade contemporânea mais desenvolvida podem ser inseridas no modo de vida tradicional, conforme apontado por Luchiari (1999LUCHIARI, Maria Teresa Duarte Paes. O lugar no mundo contemporâneo: turismo e urbanização em Ubatuba/SP. (Tese de Doutorado) IFCH - UNICAMP, 1999.), Xavier (2007XAVIER, Herbe. a percepção geográfica do turismo. São Paulo: Aleph, 2007. (Série Turismo).) e Coriolano (2006CORIOLANO, L. N. M. T. Turismo: prática social de apropriação e de dominação de territórios. In: LEMOS, A. I. G. de; ARROYO, M.; SILVEIRA, M. L. América Latina: cidade, campo e turismo. Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales - CLACSO. São Paulo, 2006.).

Com relação à discussão a respeito da permissividade do exercício das atividades econômicas nas áreas do TAUS, especialmente tratando-se do turismo em comunidades caiçaras, observa-se que, por se tratar de um instrumento para ordenamento do uso sustentável dos recursos naturais, de acordo com algumas interpretações, não haveria empecilho jurídico do exercício da atividade do turismo, desde que esta assuma o caráter familiar/comunitário, a exemplo do que preconiza a Portaria SPU 89/2010.

Art. 4 §1º É vedada a outorga da Autorização de Uso para atividades extensivas de agricultura, pecuária ou outras formas de exploração ou ocupação indireta de áreas da União, não caracterizadas como atividades tradicionais agroextrativistas ou agropastoris de organização familiar ou comunitária para fins de subsistência e geração de renda.

Nesse sentido, a atividade deve estar descrita no documento outorgado de modo a reconhecê-la como permitida no território em questão garantindo à comunidade local o caráter protagonista e favorecendo a diminuição dos conflitos de uso, ocupação e os impactos negativos causados pela exploração em massa e da exclusão da comunidade.

O recente arcabouço legal, constituído a partir da Constituição Federal, pela primeira vez atende as necessidades de valorização da cultura caiçara, relacionando as atividades tradicionais às atividades econômicas. Se, por um lado, é notável que a cultura caiçara sempre tenha se adaptado às adversidades, da mesma forma que os caiçaras se mostraram mais fortalecidos com os episódios de resistência; por outro, o turismo é uma realidade que deve ser relacionada com as atividades tradicionais e ter o caiçara como o protagonista a fim de assumir um carácter mais sustentável.

Desta forma, o TAUS se coloca como um instrumento precursor para promover a articulação entre as atividades econômicas tradicionais com o turismo, consumado nos territórios de uso da coletividade. Contudo, por se tratar de um instrumento relativamente recente, há dúvidas e desafios tanto do ponto de vista da comunidade tradicional como do institucional, sendo fácil identificar algumas fragilidades, como: a necessidade de organização comunitária e o maior conhecimento dos diretos tradicionais; a identificação das instituições responsáveis pela gestão e ordenamento das áreas em questão; os procedimentos necessários para a obtenção do CDRU; a resistência dos atuais operadores do turismo e proprietários de terras; a necessidade de maior profissionalização e do envolvimento no processo do turismo e, o mais importante, a continuidade da luta que garanta todo o território onde as atividades culturais se aplicam, tanto terrestre como marinho.

6. Considerações Finais

Este trabalho procurou discutir a relação do turismo com o território, apontando os interesses e disposição e uso dos espaços com o objetivo de destacar a importância do território e dos recursos naturais, como elementos de disputas e conflitos, mas também como elemento para a manutenção da cultura e identidade caiçara, assim como para o turismo.

A centralidade que o território representa em todos os ciclos econômicos continua atual e o turismo, na mesma lógica de desterritorialização e reterritorialização de comunidades locais, ameaça a presença do caiçara, que se vê excluído da atividade econômica e de seu espaço de vivência.

O TAUS, enquanto instrumento ordenador do território, garante a posse da terra ao caiçara e, consequentemente, seu poder de decisão e a possibilidade de participação nas atividades socioeconômicas locais. Tais fatores podem propiciar a alteração da dinâmica de ocupação e uso do território, redesenhando um cenário propício ao Turismo de Base Comunitária (TBC), ou seja, gerido pela comunidade, em suas relações com agentes externos, que se utiliza da paisagem (natural e cultural) para a inclusão social dessas comunidades.

Por outro lado, constata-se que o TAUS ainda é falho enquanto instrumento devido à pouca clareza com relação à gestão do território outorgado às comunidades e os desdobramentos necessários para o andamento do processo de obtenção do CDRU, ambos de extrema importância para garantia de permanência das comunidades locais e gestão dos conflitos destas com agentes externos.

O entendimento desta dinâmica territorial é complexo, pois a cultura caiçara, que não é estática como a de qualquer outro grupamento, tem agora sua produção cultural relacionada aos turistas, à medida que estes são os principais consumidores dos excedentes da produção de bens tradicionais caiçaras. O trade turístico (operadoras de turismo e jipeiros) são as empresas que majoritariamente trazem os turistas à localidade. Assim, não se trata de encerrar as atividades turísticas desenvolvidas por agentes externos à comunidade, mas colocar a comunidade num patamar de igualdade dos processos de tomada de decisão na localidade. E o TAUS tem se configurado como um elemento importante, propiciando uma redução nas desigualdades entre os envolvidos na gestão do turismo.

Nessa abordagem, a comunidade tradicional caiçara, com sua cultura material e imaterial expressa no território, deixa de ser apresentada aos turistas como uma externalidade positiva e se transforma em elemento principal, como protagonista das decisões e gestora dos arranjos produtivos. Para isso, o desafio apresentado refere-se ao fortalecimento da atividade turística de baixo impacto, que contraponha a lógica do setor imobiliário de uso e ocupação, e complemente as atividades tradicionais e que, por fim, seja gradativamente incorporada à dinâmica caiçara.

Porém, como se procurou demonstrar, as fragilidades e ameaças são ainda grandes e permeadas de questões como com relação aos comércios estabelecidos no território, pertencentes a forasteiros, o aumento das construções de casas de veraneio, a crescente invasão e posse de terrenos por forasteiros, a comercialização do atrativo consolidada pelas agências do centro urbano de Ilhabela, ao elevado número de visitantes no local, configurando um turismo de massa, e, por fim, com relação às propriedades que no passado foram adquiridas dos caiçaras e que hoje impedem o uso coletivo do território. O TAUS, enquanto elemento disciplinador, não poderá ficar centrado “apenas” na regularização fundiária, mas considerar esses impactos que estão intimamente associados aos processos de disputas territoriais na área.

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  • XAVIER, Herbe. a percepção geográfica do turismo. São Paulo: Aleph, 2007. (Série Turismo).
  • 3
    . Este sistema recebe várias denominações, como técnicas de coivara, agricultura itinerante, agricultura de corte/queima, agricultura de subsistência. Nesse tipo de agricultura, o fogo desempenha um grande papel, pois as cinzas da floresta queimada fornecem nutrientes aos primeiros anos de cultura (RAIMUNDO, 2007).
  • 4
    . No litoral norte paulista a expressão “areia” é sinônimo de praia e “sertão” refere-se à área de espessa floresta (SETTI, 1985). Trata-se, no caso do “Sertão”, das comunidades localizadas nos anfiteatros da Serra do Mar ou nas áreas montanhosas de Ilhabela.
  • 5
    . Dados do Parque Estadual de Ilhabela referentes ao cadastro de 2018.
  • 6
    . Disponível em <http://www.turismo.gov.br/images/pdf/plano_nacional_2013.pdf>.
  • 7
    . Portaria INCRA nº 268/96.
  • 8
    . Portaria INCRA nº 477/99.
  • 9
    . Este instrumento recentemente foi transformado em lei com a publicação da Lei 13.465/2017.
  • 10
    . Exigência do IBAMA à Petrobras - Campo de Mexilhão (PMXL-1) - Bacia de Santos (2008-2016).
  • 11
    . Dado retirado do relatório do Instituto Socioambiental Guapuruvu, 2013, p. 42.
  • 12
    . Os terrenos de marinha são definidos somente nos locais sob a influência das marés. A definição destes terrenos leva em consideração a configuração do litoral no ano de 1831 e compreendem a faixa de 33 metros contados a partir da Linha da Preamar Médio (SPU; Instituto Polis, 2006).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    08 Mar 2018
  • Aceito
    22 Maio 2019
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