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ESPAÇOS MARÍTIMOS E SUA GEOGRAFIA1 1 . Agradeço aos revisores ad hoc as críticas, e ao apoio do CNPq.

Resumo

O presente artigo apresenta um conjunto de temas considerados relevantes na elaboração de uma agenda de pesquisa sobre espaços marítimos. Parte de um campo de conhecimento específico - geografia - a fim de suscitar diálogo com outros campos de conhecimento. O espaço marítimo é definido como superfície de extensão imprecisa, onde são realizadas atividades, atribuídos usos específicos, e demarcados territórios; envolve, portanto, vias de comunicação e circulação como rotas de navegação, canais transoceânicos, águas abrigadas e margeadas por istmos, prolongamento do relevo terrestre na plataforma continental e zonas de interface flúvio-marinha e terra-mar. Foram definidos quatro temas: a) circulação; b) fronteiras e limites; c) recursos; e d) meio ambiente, vinculados a questões mais amplas como redes e fluxos internacionais, regulação espacial, conflitos e tensões, vulnerabilidade de zonas de interface terra-mar. Conceitos como espaço marítimo, e superfícies de regulação são enfatizados para a construção de um diálogo no campo interdisciplinar.

Palavras-chave:
Espaços marítimos; pesquisa; fronteiras; regulação espacial; meio ambiente

Abstract

The purpose of this paper is to introduce a set of themes deemed as significant in the preparation of an agenda of research about maritime spaces. It starts from a specific knowledge field - geography - in order to raise a connection with other knowledge fields. Maritime space is defined as a surface of inaccurate extension where activities are carried out, specific uses are assigned, and territories are delimitated; therefore, it involves communication and circulation routes such as navigation routes, transoceanic canals, waters sheltered and bordered by isthmuses, prolongation of the topography in the continental shelf and zones of fluvio-marine and land-sea relations. Four points were defined: a) circulation; b) frontiers and borders; c) resources; and d) the environment, associated with broader issues such as international flows and networks, spatial regulation, conflicts and tensions, vulnerability of zones of land-sea relation. Concepts as maritime space and regulation surfaces are reinforced in order to build a connection in the interdisciplinary field.

Keywords:
maritime spaces; research; frontiers; spatial regulation; environment

Resumen

El presente artículo presenta un conjunto de temas tomados como relevantes en la elaboración de uma agenda de investigación sobre los espacios marítimos. El espacio marítimo se define como superficie de extensión imprecisa donde se realizan actividades, atribuidos usos específicos, y demarcados territorios; se refiere, por lo tanto, a vías de comunicación y circulación como rutas de navegación, canales transoceánicos, aguas abrigadas y margenadas por istmos, prolongación del relieve terrestre en la plataforma continental y zonas de interfaz fluvio-marina y tierra-mar. Parte de um campo de conocimiento especifico para suscitar dialogo com otros campos de conocimiento. Se definieron cuatro temas: circulaciòn, fronteras y limites, recursos naturales y médio ambiente que son vinculados a cuestiones más amplias como redes y flujos internacionales, regulación espacial; conflictos y tensiones;vulnerabilidad en zonas de interfaz tierra-mar. Conceptos como espacio marítimo y superfícies de regulación se enfatizan para la construcción de um dialogo en el campo interdisciplinario.

Palabras clave:
espacio marítimo; investigación; fronteras y limites; regulación espacial; médio ambiente

Introdução

Quais seriam os aspectos que integrariam uma estratégia de pesquisa sobre espaços marítimos? Esta pergunta me acompanha de modo intermitente há um certo tempo por dois motivos. O primeiro decorreu do contato com autores clássicos e do reconhecimento da importância que a temática “mares e oceanos” ocupava nessas obras, sobretudo no início da década de 1950. O segundo motivo deveu-se à constatação de que esta importância é recorrente em determinados períodos da história científica em sua relação com: a expansão e queda de Estados hegemônicos; a exploração de recursos marinhos; o controle de rotas de navegação, apesar de reinteradas manifestações do direito de livre circulação que há muito governa as relações internacionais (SCHIMITT, [1950] 2001); e com a compreensão do papel dos indivíduos e grupos sociais na transformação da superfície da terra (THOMAS, 1950). Voltou aos meus pensamentos quando, no início de 2018, defrontei-me com a chamada para o dossiê da Revista Ambiente e Sociedade, lembrando-me que, em sua evolução, o conhecimento, as ideias e preocupações sobre os diferentes assuntos avançam em espiral a partir do exame sistemático e contínuo dos diferentes temas e objetos, e do avanço da tecnologia. O estado de emergência e de vulnerabilidade que caracterizavam algumas regiões da Terra naquele momento, os métodos de adaptação aos limites conhecidos e aos que eventualmente surgiriam (THOMAS, 1950) não são exatamente os mesmos, mas confrontam-se, na atualidade, com os limites do ecúmeno, disputas por limites e fronteiras marítimas, avanços da polderização, abertura de novas fronteiras, mudanças no nível do mar, etc.

Elaborado a partir de um campo preciso de conhecimento - geografia - e sem grandes ambições em abarcar um leque amplo e definitivo de questões, compreende-se, a partir de obras clássicas neste campo, quatro pontos que problematizariam, no nosso entender, uma estratégia de pesquisa sobre mares e oceanos tendo em vista o diálogo interdisciplinar. São eles: a) circulação, b) fronteiras e limites, c) recursos marinhos, e d) meio ambiente. Cada um desses pontos permite inúmeros desdobramentos, associações e articulações em vários campos de conhecimento de modo a aprofundar questões relativas aos diferentes tipos de fluxos, à regulação de atividades econômicas, aos usos dos diferentes espaços e suas expressões de territorialidade, e à vulnerabilidade dos espaços marítimos. Fundamenta a seleção destes pontos o entendimento de um espaço marítimo tensionado por dois processos intrinsecamente relacionados à evolução da globalização: maritimização e litoralização (DANTAS, 2009DANTAS, E W C A maritimidade nos trópicos: por uma geografia do litoral. Fortaleza: UFC, 2009.; PERON; RIEUCAU, 1996), e sulcado pelas demandas urgentes e necessárias de conservação e preservação.

Por fim, um esclarecimento sobre o título deste artigo que remete ao livro de Jean Gottmann, publicado em 1950, que dedica uma parte considerável ao papel do território na política e os problemas de fronteiras e águas territoriais nas relações internacionais. Muitas milhas distantes da densidade dessa obra, o que se delineou como resultado de sua leitura e do acompanhamento da evolução do tratamento de mares e oceanos em autores contemporâneos foi a diversidade de temas passíveis de serem explorados. Há, neste sentido, um amplo leque de questões e aos problemas que podem permitir interpretações para além do que alguns autores (MAZE et al., 2015MAZE, C et Al Pour une antopologie politique de la mer. Revue Internationale d´Ethnographie, 5, 2015 pp 189-202. http://riethno.org/wp-content/uploads/2015/11/14-MAZE.
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) consideram os aportes específicos do conhecimento geográfico, sobre a tradição geográfica nos estudos costeiros, e a abordagem social do litoral já enfatizados por Lins de Barros e Muehe (2009MUEHE, D A zona costeira e sua vulnerabilidade frente à ocupação e às mudanças climáticas. Conferência ANPEGE. 2009 Disponível em https://www.researchgate.net/publication/276069385
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).

O que dizem os clássicos

Mares e oceanos constituem um meio geográfico por excelência, isto é, um sistema de relações que se inscreve no espaço diferenciado e organizado, acessível aos indivíduos de distintas sociedades (GOTTMANN, [1950] 2007). Esta concepção é particularmente cara à geografia e dominante nos trabalhos que se dedicaram à compreensão das transformações impulsionadas pelas sociedades no espaço terrestre, e às questões sobre o rompimento das conexões com o meio e o ambiente nas sociedades modernas (THOMAS, 1956) no início da segunda metade da década de 1950. Bem antes dos estudos mais aprofundados sobre o fundo dos oceanos e sua cartografia, vários autores escreveram importantes obras a respeito de mares e oceanos como objeto científico. Interesses científicos, econômicos e políticos, presentes desde o final do século XIX, estavam voltados principalmente para mares interiores, como o mar da China ou o Mediterrâneo. Sobre este último, tratava-se, naquele momento, de compreender o movimento no tempo do conjunto de rotas que o transformou em espaço de circulação, como bem descreveu e analisou Braudel. Ideia persistente, uma vez que já havia sido constatada por Elisee Reclus na Encyclopedie Universelle, quando caracterizou o Mediterrâneo como “mar de junção de três massas continentais...agente mediador que modela o clima das ocupações em suas margens, que facilita o acesso aos diferentes lugares, permite a relação entre os povos e que sem sua presença os Ocidentais teriam permanecido na barbárie”..

Valer-se de autores como Reclus, Gottmann, Thomas, Schmitt dentre outros, remete a contribuições, descrições e análises que podemos considerar clássicas nos diversos sentidos empregados por Ítalo Calvino no artigo “Porque ler os Clássicos”: contém riqueza, exercem influencia particular, marcam determinado período de confrontação nos diferentes campos da ciência e da literatura, apresentam reflexão aprofundada, provocam permanente e incessante discussão sobre si, que, de algum modo, é atemporal, impõe-se à atualidade e persiste, ainda que submergido por esta.

Recorrer aos clássicos seria, assim, um dos caminhos possíveis para pensar uma estratégia de pesquisa sobre mares e oceanos a partir de uma fundamentação geográfica que inclui compreender a evolução do conhecimento científico e seus desdobramentos disciplinares (MUEHE, 2016MUEHE, D Geografia Marinha, a retomada do espaço perdido. Revista ANPEGE 12 (18): 185-210, 2016), bem como pela possibilidade de diálogo com outras disciplinas. Tal estratégia pressupõe igualmente um mergulho em diferentes situações que tornam mares e oceanos espaços cobiçados pelo potencial de grande circulação, comunicação, ou de fontes de recursos minerais, energéticos e de alimento. Os caminhos do e para o mar foram, há muito, traçados na relação terra-água: os primeiros impérios marítimos, fenícios e gregos, vikings, genoveses e venezianos, egípcios e somalis, assim como exploradores e navegadores abriram rotas, mudaram a perspectiva e compreensão do mundo, modificaram o dado natural e impuseram à esta grandeza o dimensionamento humano (LACOSTE, 1988LACOSTE, Y Questions de Géopolitique. Paris : La Découverte, 1988.), transformando-o cada vez mais em espaço de prospecção, exploração, cortado por rotas as mais diversas, e objeto de regulação internacional.

De fato, desde os anos de 1950 e, principalmente, a partir da década de 1960, mares e oceanos estão sujeitos a forte regulação por parte dos respectivos Estados, das agencias e organismos internacionais, seja pelo controle de rotas transoceânicas, seja pela mobilidade dos recursos vivos, ou ainda pelo potencial de exploração de recursos minerais e energéticos, de tal modo que os Tratados e Convenções projetam linhas e malhas sobre os espaços marítimos, delimitando extensas superfícies no espelho d’água, em colunas d’água e no fundo dos oceanos (PIRES DO RIO, 2018PIRES DO RIO, G A “Mares e Oceanos: novas fronteiras da regulação territorial?” Rev, Bras. Geogr. V 63 n. 1 pp.61-72, jan/jun 2018.), caracterizando um processo continuo de novas institucionalidades como áreas de interesse especial, unidades de conservação, mar territorial, zona econômica exclusiva, plataforma continental, zonas internacionais, etc. (PIRES DO RIO, 2017). A regulação desses espaços exige cada vez mais atenção na medida em que muitos deles são vulneráveis à escala de utilização dos elementos que, contemporaneamente, são considerados recursos e matérias-primas e requerem infraestrutura para sua exploração e transporte.

Circulação

Muitas são as possibilidades para dar visibilidade à circulação. Como extensão marítima, o Mediterrâneo, assim como o Báltico (MEYER, 2013MEYER, Ph Baltiques : histoires d´une mer d’ambre. Paris : Perrin, 2013.), ou os oceanos foram definidos como espaço de interação, aproximação e de trocas. Apoiado em uma rede marítima de alcance mundial, esse espaço vem se reestruturando, nos últimos 15 anos, com fluxos marítimos convergindo para portos de grande porte, e pela emergência de complexos portuários e logísticos multifuncionais (WOESSER, 2014) para atender às demandas de fluidez impostas pela globalização.

De modo semelhante ao que acontece em terra, a circulação marítima requer rotas precisas que dependem dos fluxos do comercio internacional e regional. Essas rotas envolvem, para além das vias traçadas em alto mar, pontos específicos de passagem como estreitos e canais. Estes últimos encurtam as distâncias. O canal do Panamá e o canal de Suez são os exemplos desta redução das distâncias e reforçam o padrão de circulação em escala mundial em torno da tríade global. Estreitos como Gilbraltar, Calais, Ormuz, ou Malaca ganham importância neste padrão concentrado da circulação de mercadorias, pessoas e informação, na medida em que asseguram a conexão entre Ásia e Europa.

Uma mudança decorre, entretanto, do atual período histórico da globalização e diz respeito ao aumento dos transportes marítimos, ou, como salienta Giblan (2016GIBLAN, B Editorial Revista Hérodote N 163, 2016): com a maritimização dos transportes, mares e oceanos tornaram-se espaços de um tipo de terrorismo e pirataria. Não podemos esquecer, portanto, que houve, ao longo dos três últimos séculos, uma alteração significativa na escala da circulação por via marítima que requalificou lugares como estreitos, estuários e ilhas, conferindo importância estratégica e geopolítica a esses locais.

A importância e gigantismo da circulação implicam em transformação das paisagens, sobretudo nas áreas de interface terra-mar (WOESSNER, 2014), nas instalações portuárias, na organização de plataformas logísticas e na articulação com outros modais que abastecem mercados interiores. Muitos exemplos podem ser mencionados, considerando os principais hubs, lugares que refletem as economias de escala do transporte transoceânico de mercadorias. Neste sentido, as cidades portuárias assumem papel importante na circulação (MONIÉ et al., 2006) como espaços nodais de conexão transoceânica e transcontinental.

Há, contudo, outra infraestrutura que desafia os dispositivos de regulação e confere uma posição estratégica a determinados lugares, principalmente ilhas, arquipélagos e cidades litorâneas (PIRES DO RIO, 2018PIRES DO RIO, G A “Mares e Oceanos: novas fronteiras da regulação territorial?” Rev, Bras. Geogr. V 63 n. 1 pp.61-72, jan/jun 2018.): os cabos submarinos, que ganharam maior importância com as novas tecnologias de informação e comunicação e de transmissão de energia elétrica. Quase 90% da comunicação intercontinental depende de cabos de fibra ótica instalados sobre o assoalho marinho. São 9000 km de cabos submarinos que interligam 366 sistemas de cabos e 1006 estações de aterrissagem em operação e em construção até 2020, de acordo com o Submarine Cable Map.

As dimensões e o padrão espacial do sistema de comunicação por cabos submarinos reforçam a necessidade de criar formas de regulação para disciplinar os agentes que operam em escala global (PIRES DO RIO, 2018PIRES DO RIO, G A “Mares e Oceanos: novas fronteiras da regulação territorial?” Rev, Bras. Geogr. V 63 n. 1 pp.61-72, jan/jun 2018.). Estes agentes são principalmente consórcios entre empresas. Trata-se de uma malha fixa que se desdobra em redes de distribuição com extensão variável. Ao lado de empresas e consórcios mais antigos, como Alcatel Lucent Submarine Networks (ASN), NEC e TE Conectivity, empresas como Google e Microsoft investem na abertura de novas conexões e na implantação de redes próprias. Exemplo que ganhou grande visibilidade em função da transmissão de 60 terabites e na extensão dos cabos de 9000 km foi o cabo Faster, instalado pelo consórcio liderado pela empresa japonesa NEC, associada à Google, e a um conjunto de empresas asiáticas de telefonia (China Mobile International, China Telecom Global, KDD, Global Transist e Sintel), que liga a costa leste dos Estados Unidos ao Japão e a Taiwan. A importância desta conexão reside na tecnologia de transmissão de dados e na possibilidade de ramificações para ampliar a conectividade de vários lugares na costa oeste americana. No que diz respeito ao Brasil (RNP, s/d), parte da ciberinfraestrutura foi fabricada e instalada pela associação de Seaborn Networks e Alcatel-Lucent Submarine Networks, com co-financiamento da Google, ligando Praia Grande (SP) a Miami e, da Microsoft, na extensão dos cabos até Nova York.

O que nos parece crucial é indicar como esta infraestrutura presente, conhecida e implantada desde o século XIX assume o protagonismo das comunicações, da geopolítica e da geoeconomia no século XXI, tornando-se cobiçada e objeto de intensa disputa por seu controle (BOULLIER, 2014BOULLIER, D Internet est maritime : les enjeux des cables sous-marins. Revue Internationale et Stratégique 3 (95), 149-158, 2014. Disponível em : https://www.cairn.info/revue-internationale-et-strategique-2014-3-page-149.htm
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), articula dispositivos e sistemas de natureza fixa e fluxos de informação, impõe condições específicas de acesso, ao mesmo tempo que amplia a vulnerabilidade a ataques cibernéticos e permite empresas como Google e Facebook determinar prioridade de acesso nos investimentos em estações de aterrissagem. Essas infovias constituem em si uma superfície de regulação na qual é possível capturar tensões e conflitos provocados por condições diferenciadas de conectividade e de concentração urbana. Nova York, Los Angeles, Singapura, Tóquio, Shangai e Bombaim, por exemplo, são os principais nós deste sistema. O confronto entre regulação nacional e autoridade internacional de regulação reforça a hipótese sobre a força das fronteiras na organização do espaço econômico como rebatimento do território de Estados-Nação. Neste sentido, contestação e negociação amplificam a tensão entre agentes extraterritoriais e instâncias de regulação. Esta ciberinfraestrutura é, portanto, objeto de política de segurança e imperativo de circulação de informação.

Em outro registro, os fluxos migratórios utilizam rotas marítimas mais ou menos conhecidas, convergentes para dois destinos principais: Europa e Estados Unidos. Mediterrâneo e Golfo do México são os espaços privilegiados deste fluxo clandestino que revela extremos de desigualdade e vulnerabilidade social, no sentido de ausência total e parcial de acesso às condições objetivas de vida como segurança alimentar, meios de vida, saneamento básico, educação, e de constrangimentos institucionais. Para além dos fluxos de mercadorias e passageiros, há, portanto, fluxos ilegais vinculados ao tráfico de pessoas e drogas.

Fronteiras e Limites

A importância das fronteiras e limites, seja em terra ou em mar, tem relação direta com o desenho das redes de transporte e de comunicação, isto é, rotas comerciais, cabos e dutos submarinos. Em outros termos, são redes de infraestrutura que permitem e aceleram a exploração de determinados recursos marinhos, ou garantem a instantaneidade e simultaneidade da comunicação em escala global.

Se os litígios territoriais são cada vez mais frequentes nos mares, nem sempre esta foi a tônica na elaboração de Tratados e Convenções. O mar livre constituiu importante herança e condição para a navegação e relação entre os diferentes países, permanecendo como espaço de livre circulação. De modo distinto da “ordem espacial” (SCHIMITT, [1950] 2001) própria aos Estados nas relações internacionais, o mar não poderia ser nem território de um Estado, nem espaço colonial suscetível de ocupação. É sempre bom lembrar que, nesta primeira metade do século XXI, aproximadamente 80% dos Estados no mundo estão em contato por fronteiras marítimas, isto é, têm os limites internacionais de sua soberania determinados em espaços marítimos. Esta concepção não impediu, entretanto, disputas sobre limites, demarcações e acesso e apropriação dos espaços marinhos em diferentes regiões. Desde a segunda metade do século XX, a criação de um direito marítimo internacional tornou-se a referência para regular disputas, tentativas de dominação, controle ou exploração dos recursos minerais, energéticos e marinhos. A regulação de tais conflitos e disputas foi consubstanciada na Convenção de Montenegro, assinada em 1982 e na qual foram estabelecidos critérios para demarcação de fronteiras e criação de zonas específicas de soberania, de exploração e de acesso aos recursos.

As grandes mudanças de natureza geopolítica no pós-guerra ocorreram no mar (LACOSTE, 1988LACOSTE, Y Questions de Géopolitique. Paris : La Découverte, 1988.): disputas por grandes extensões do espaço marítimo, deslocando a atenção das terras emersas para os mares e oceanos; crescimento do número de Estados insulares; crescimento do número de submarinos à propulsão nuclear; o controle de rotas e pontos de passagem entre Atlântico e Pacífico e pontos de passagem entre mares e entre esses e os oceanos. Assim, os estreitos que readquirem importância estratégica para a circulação no mundo contemporâneo: localização de bases nas bordas continentais, proteção de navios mercantis, pontos de apoio para escalas técnicas, lugar de refúgio eventual (DELAVAUD, 1988DELAVAUD, Cl C Terrioires à prendre. Paris : PUF, 1988.) ou os canais de interligação oceânica como os canais de Suez e do Panamá.

Decorre, pois, da ampliação da escala da circulação marítima, o sucessivo processo de demarcação em zonas passíveis de controle e apropriação. Do mar territorial, cujas bases jurídicas foram estabelecidas no século XIX, considerando a proximidade da costa para navegação e defesa do território de determinado país, à Convenção das Nações Unidas sobre o direito do Mar (1982), houve importante alteração no modo como os espaços marítimos foram regulados, definindo categorias como águas interiores, mar territorial, zona contigua, zona econômica exclusiva, plataforma continental, alto-mar e fundos marinhos, de um lado, e órgãos de arbitragem de conflitos como a Autoridade Internacional para Fundos Marinhos (AIFM, ou ISA, da sigla em inglês), Tribunal internacional sobre o direito do mar e comissão para definir os limites da plataforma continental.

O mar territorial compreende a faixa de 12 milhas náuticas (22,2 quilômetros), contados a partir da costa. Como o próprio nome sugere, trata-se de porção do território na qual todos os dispositivos e instrumentos próprios ao exercício da soberania são empregados pelos Estados. À esta faixa acrescenta-se uma segunda de igual extensão. A zona contigua exerce a função de segurança e de controle sobre ameaças ou infrações ao corpo legal do Estado litorâneo. A zona econômica exclusiva constitui, por fim, a faixa de até 200 milhas (370,4 quilômetros) sobre a qual o Estado tem assegurado o direito de explorar os recursos que aí se encontram.

O direito de exploração dos recursos naturais assegurado ao país costeiro pela Convenção é exercido até uma distância de 200 milhas náuticas. No entanto, a plataforma continental jurídica se estende para além da plataforma continental. Esta discordância depende de características geomorfológicas como espessura da camada sedimentar ou posição do pé do talude continental. Há, pois, diferentes critérios para delimitação da plataforma continental jurídica a partir da borda exterior da margem continental, o que pode alterar o limite de 200 milhas (SOUZA, 1999SOUZA, J. M. de. Mar territorial, zona econômica exclusiva ou plataforma continental?.Rev. Bras. Geof., São Paulo , v. 17, n. 1, p. 79-82, Mar. 1999. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-261X1999000100007&lng=en&nrm=iso
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). Ou seja, dependendo dessas características geomorfológicas, os limites projetam-se até 350 milhas náuticas. Por fim, as zonas abissais e alto mar, considerados águas internacionais e de gestão internacional dos recursos minerais que aí se encontrem. Nestas zonas circulam os submarinos.

Deste conjunto de mudanças resulta que o espaço marítimo está no centro do jogo de forças em vários locais: no mar da China (GIBLAN, 2016GIBLAN, B Editorial Revista Hérodote N 163, 2016), no Báltico, no mar Negro, no mar Cáspio, no Oceano Atlântico, no Ártico (LASSERRE; PELLETIER, 2010; LASERRE, 2013LASERRE, F Enjeux géopolitiques et géoecomoques contemporains en Arctique. Géoeconomie 65, 135-152, 2013.; HOHMANN, 2016HOHMANN, S L’Arctique russe, reconquete d’um front pionnier? Hérodote 166/167 (3) : 261-276, 2016.; FOUCHER, 2010), no Oceano Índico, no oceano Pacífico ou no mar da Coréia. Em resumo, em todos os mares e oceanos, é possível observar confrontos, tensões, conflitos, disputas territoriais, geoeconômicas e estratégicas. Além de publicações acadêmicas como Hérodote, Études Marines, revistas de divulgação científica e jornais de grande circulação preparam dossiês ou reportagens sobre os diferentes conflitos nesses espaços, ressaltando a importância desse espaço no jogo político.

É assim que, no mar Cáspio, o desmantelamento da ex-União Soviética fez emergir disputas entre os países situados no seu entorno (Azerbaijão, Irã, Cazaquistão, Rússia e Turcomenistão) sobre a demarcação do mar territorial que confere acesso aos campos de petróleo e gás natural. No “mar da China”, espaço marítimo entre Filipinas e Vietnã de um lado, Malásia e Indonésia, de outro, um dos espaços mais tensos em termos de litígios territoriais, como acesso a campos de petróleo e gás, vigilância de rota de supergraneleiros, petroleiros, e navios cargueiros - porta-contêineres -, e controle de ilhas e arquipélagos são os principais elementos das disputas (COLIN, 2016COLIN, S Les mers lointaines, nouvelles frontieres de la puissance halieutique chinoise ? Hérodote 166/167 (3) 87-100, 2016.).

Sem o mesmo nível de tensão no que tange à demarcação de fronteiras marítimas, o mar Báltico constitui outro espaço marítimo no qual disputas regionais e redes energéticas desempenham um papel estruturante na escala intra-européia. Ao tráfego hierarquizado de navios, barcos e ferries em função da reduzida profundidade média a partir da Dinamarca e da presença de ilhas, interpõem-se a exploração de petróleo em águas rasas pela Noruega e Rússia, cabos elétricos e gasodutos, completando o quadro para disputas regionais e confrontos entre Rússia e União Europeia, de um lado, entre Noruega e Rússia, de outro. Este mar constitui o nó de uma rede regional energética que abastece a Alemanha, mas igualmente para uma rede transcontinental, pois também oferece conexões ferroviárias, a partir do porto de Riga, com o mar Negro. São essas conexões que viabilizam rotas comerciais para atender o mercado chinês. O mar Negro, circundado pela Ucrânia, Rússia, Geórgia, Turquia, Bulgária e Romênia constitui outro nó de rede energética pela importância dos dutos de petróleo e gás, como também rota de escoamento de energia primária da Rússia.

Conflitos, disputas e contestações de fronteiras podem ser igualmente observados na porção oriental do Mediterrâneo onde os limites entre Chipre e Israel são contestados pela Turquia, e a demarcação de águas territoriais de Israel é contestada pelo Líbano. Assim, em superfície, o mar territorial, e no subsolo marinho, os campos de petróleo e gás alimentam conflitos entre Israel e Líbano e entre Chipre e Turquia. Não podemos perder de vista que as fronteiras marítimas são definidas a partir do litoral, ou seja, a partir de limites terrestres para os Estados que confrontam com mares e oceanos.

Distanciando-se das disputas mais acirradas nos espaços marítimos pelo controle das rotas, dos recursos dos fundos dos oceanos, ou pelo acesso às redes de comunicação de cabos submarinos, foi aprovada, em 1986, a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul. Distante, mas não ausente. Na atualidade, suas águas são objeto de exploração crescente dos campos de petróleo e gás, e de recursos pesqueiros tanto do lado das costas africanas, como do lado sul americano.

Na América do Sul, nas costas do Pacífico, os conflitos e litígios entre países sobre a demarcação de fronteiras marítimas obtiveram recentemente o aval da Corte Internacional de Justiça para resolver contestações herdadas do século XIX. A corte Internacional estabeleceu nova fronteira marítima entre Peru e Chile. As razões do litígio envolviam a delimitação de área pesqueira, portanto, acesso a um tipo específico de recurso marinho. Nestes casos, prevalece a figura do direito da pesca tradicional, definida pelas Nações Unidas como direitos de pesca para determinados grupos de pescadores de um Estado que tenham habitualmente pescado em certas áreas durante um longo período, e cujo exercício contínuo no tempo configura um território próprio àquele grupo, ainda que submetido à autoridade de determinado Estado. Trata-se de direito herdado por gerações e mantido pela geração atual, incorporada ao direito internacional consuetudinário.

Ao norte, no litoral do Atlântico, as tensões entre Venezuela e Guiana sobre a porção oeste da bacia do rio Esequibo recrudesceram após a descoberta de petróleo pela Exxon Mobil na plataforma continental sob domínio da Guiana, mais precisamente a exploração do bloco de Straboek. A confirmação dos limites entre os dois países data do início do século XX, demarcação denominada Linha de Schomburgk (SILVA, 2017SILVA, G de V Litiges transfrontaliers sur le plateau des Guyanes, enjeux géopolitique à l´interface des mondes amazoniens er caribéens. L Espace Politique 31, 2017. Disponível em http://journals.openedition.org/espacepolitique/4242.
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), o que não impediu contestações em diferentes momentos por parte da Venezuela. Em 1966, após contestações deste último país, o Acordo de Genebra estabeleceu que a área de Esequibo era oficialmente controlada pela Guiana, mas sua soberania era demandada pela Venezuela. Este recrudescimento envolve, pois, a relação sobre a posse de terras que permite projetar controle e soberania sobre o espaço marítimo e assegurar o controle sobre importantes reservas de petróleo.

Recursos Naturais Marinhos

Novas áreas tornaram-se acessíveis com o desenvolvimento de tecnologias de mapeamento em águas ultraprofundas. As zonas abissais constituem um dos espaços marítimos recém considerados como fronteira no sentido de espaço livre, passível de exploração, que também envolve o avanço de fronteiras tecnológicas e múltiplas incertezas quanto aos impactos das atividades de exploração e explotação da biodiversidade que essas zonas abrigam. Ou seja, o conjunto de técnicas, instrumentos e dispositivos experimentais utilizados em ambientes extremos vem permitindo, desde meados dos anos de 1970, cartografar os fundos marinhos e as colunas d’água, sem que se disponha de elementos consistentes sobre os efeitos dessas atividades no meio marinho e as consequências das mudanças globais.

Há, para além da prospecção e exploração de petróleo e gás em águas profundas e ultraprofundas, a exploração de nódulos polimetálicos que se distribuem de modo bastante desigual. As maiores concentrações estão localizadas no Oceano Pacífico, na zona de fratura Clarion-Clipperton sobre a qual há vasta literatura que cobre diferentes assuntos: geopolítica, biodiversidade, mineração, geoquímica, tecnologias, etc. Esta área, situada entre as fraturas de Clarion e Clipperton, entre as latitudes 5N e 15 N, e longitudes 115 O e 155 O, forma um retângulo de aproximadamente 6 milhões de km2. É uma área que se localiza além dos limites das respectivas jurisdições nacionais e, portanto, está sob controle da Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos. Conhecida desde o final da década de 1970, esta área já é objeto de arrendamento e concessões distribuídas para empresas e consórcios de países como França, Alemanha, Inglaterra, Bélgica, Eslováquia, Rússia, Coreia do Sul China, Japão, Singapura, Estados Unidos. Compreende-se com mais clareza as tensões entre China, Rússia e Estados Unidos e os novos atores que reivindicam tomar parte na exploração desses nódulos como Índia.

Ao parcelamento para a exploração mineral desta área, confronta-se a descoberta de enorme biodiversidade, caracterizada pela presença de organismos que habitam em condições extremas de pressão, temperatura e escuridão. Rebate-se, no fundo dos oceanos, a disputa entre mineração e áreas de interesse da biodiversidade. Novamente, aqui as fronteiras de recursos minerais e biológicos se enfrentam. Inicialmente imaginada como grande “deserto submarino”, a possibilidade de cartografar e explorar esta zona mostrou, ao contrário, o potencial da diversidade genética nos organismos que a habitam. A relevância de zonas abissais para o equilíbrio do sistema terrestre parece apontar para a elevada vulnerabilidade às mudanças de estado em intervalos de tempo associados à evolução social e tecnológica e com reduzida resiliência.

Meio Ambiente

A complementaridade terra-mar tem efeitos importantes em termos de meio ambiente. As águas territoriais constituem a ligação com o alto mar e também com o litoral e zona costeira. Muitas das atividades localizadas no mar territorial, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva exigem ligação com o litoral. De modo similar, a circulação transoceânica, como foi apontado anteriormente, requer terminais portuários especializados em grande escala e ampliação da hinterlândia portuária.

Além desses aspectos, as elevadas densidades populacionais nas zonas costeiras, associadas às deficiências de saneamento e ao volume expressivo de sedimentos oriundos das áreas situadas no interior que são transportados pelos rios, representam fontes importantes de poluição dos mares. Em sentido inverso, processos erosivos associados à elevação do nível do mar aumentam os riscos das áreas urbanizadas localizadas nas zonas costeiras em várias regiões. No Brasil, o litoral do Rio de Janeiro é particularmente vulnerável à erosão, conforme já analisado por Muehe et al. (2011MUEHE, D et al Avaliação da vulnerabilidade física da orla costeira em nível local, tomando como exemplo o arco praial entre Rio das Ostras e o Cabo Búzios/ RJ. Rev. Bras de Geomorfologia. 12 (2), 2011.), entre outros. Esta interdependência acentua a vulnerabilidade dos espaços costeiros aos processos de degradação, amplia os riscos tecnológicos, econômicos, sociais, de contaminação, e pressiona pela demarcação de espaços protegidos.

As superfícies marítimas oferecem também potencial para a geração de energia eólica. Neste sentido, representam espaços a serem mobilizados para as diferentes trajetórias de transição energética, uma questão de atualidade que envolve inovação tecnológica e igualmente necessidade de regulação em superfície (PIRES DO RIO, 2017PIRES DO RIO, G A Gestão de Águas: um desafio geoinstitucional. Rev. Tamoios ano 13 n 1 pp. 3-23, jan-jun, 2017.; 2018), na medida em que pode competir com a atividade pesqueira próxima ao litoral.

O oceano Ártico consiste em um dos espaços cuja vulnerabilidade vem aumentando. O monitoramento de mudanças climáticas tem indicado a redução das geleiras, o que pode implicar na abertura de rotas comerciais e acesso à exploração de recursos minerais pela extensão da zona econômica exclusiva para além das 200 milhas. Nos planos geoeconômico e geopolítico, são duas questões diferentes, quer pelas alianças, quer pelas tensões que suscitam (LASERRE, 2013LASERRE, F Enjeux géopolitiques et géoecomoques contemporains en Arctique. Géoeconomie 65, 135-152, 2013.).

Os oceanos desempenham um papel fundamental na regulação do clima, como é amplamente conhecido. O degelo em grande escala no Ártico alteraria as condições climáticas, como também a velocidade e intensidade de correntes marítimas. Junto a este mecanismo que sofre ajustes em escalas de tempo muito longas, vem ocorrendo mudanças mais rápidas que interferem na capacidade de reprodução de determinadas espécies com consequências significativas na cadeia alimentar.

No imediato e na escala cotidiana, um estudo internacional publicado em 2014 (ERIKSEN et al., 2014) mostrou a concentração nos vórtices do Pacífico de grande volume de rejeitos, principalmente plásticos, formando o que os autores denominaram Great Pacific Garbage Path, isto é, um enorme lixão no mar, com 3,4 milhões de km2 não detectável por satélites, e volume estimado em 269.000 toneladas com mais de 5 trilhões de partículas de todos os tamanhos, dos quais 80% são provenientes do carreamento de material sólido de precários sistemas de esgoto localizados na zona costeira. Cinco núcleos de vórtice que concentram rejeitos foram identificados: Pacífico norte e sul, Atlântico norte e sul e oceano Índico. O maior deles é o Great Pacific Garbage Patch, entre Havaí e Califórnia.

A este tipo de poluição, soma-se a contaminação química proveniente do uso de agrotóxicos no interior, acidentes e vazamentos, muitas vezes associados à poluição química, na medida em que as técnicas disponíveis para redução de marés negras, por exemplo, utilizam produtos químicos com elevado grau de toxidade.

Frente a estes movimentos e grande circulação de poluentes, a demarcação de espaços protegidos no mar é objeto de convenções e de interesse de organizações internacionais que atuam neste sentido. Um espaço marítimo protegido é definido pela União Internacional para a Conservação da natureza como área em alto mar ou próxima à costa compreendendo águas de superfície e de profundidade, flora e fauna, enfatizando, nesta definição, uma preocupação com o meio.

As categorias de espaços marinhos protegidos: reserva natural, parque nacional, monumento natural, área de gestão de espécies ou habitats, reservas extrativas, paisagem protegida, área protegida de uso sustentável de recursos naturais indicam a similitude com as categorias de áreas protegidas em terra. Constituem respostas à vulnerabilidade de determinadas áreas face aos efeitos da sobrepesca e da diminuição dos estoques pesqueiros, principalmente no mar territorial de países asiáticos e europeus, que empurram a indústria pesqueira para águas internacionais, ou respostas a acordos bilaterais ou multilaterais que acabam pressionando os estoques de outras regiões, como por exemplo, os acordos de pesca entre União Europeia e países africanos da fachada atlântica.

Assim, os diferentes espaços marítimos estão expostos às incertezas dos efeitos na elevação da temperatura das águas e ao aumento no nível do mar, vulneráveis, portanto, às mudanças climáticas, aos processos de degradação lenta e prolongada, assim como aos acidentes e situações de conflitos. Se tomarmos o sentido original da palavra vulnerável - do latim vulnerare, ferir -, a vulnerabilidade é a capacidade de ser ferido, de estar na condição permanente de sofrer ataques sem que a capacidade de recuperação intrínseca ao meio possa ser mobilizada, ou seja, é a propensão de um sistema em sofrer significativa transformação ou mudança relativamente permanente e profunda (GALOPPIN, 2006). As situações de tensão, a ampliação da circulação mundial, a pressão sobre os recursos, a precariedade no tratamento de esgoto e a poluição crônica atuam como vórtice desta condição permanente de degradação dos espaços marítimos.

Conclusão

Ao final deste trabalho, salientamos três pontos que nos parecem importantes no desenvolvimento de estudos e linhas de pesquisa que tenham por objeto a investigação de mares e oceanos em perspectiva interdisciplinar.

O primeiro ponto diz respeito à extensão desses espaços. Considerar mares e oceanos como espaços finitos significa, como possibilidade para os estudos interdisciplinares e abordagens integradoras, o ponto de partida possível para ampliar o conhecimento e a fundamentação de conceitos na construção de um diálogo que se impõe. Não é possível expandir seus limites para entender sua estrutura, composição e transformações no longo prazo. Trata-se de realidade concreta, espaço contínuo com limites claros para o uso substancial dos recursos.

O segundo refere-se às complementaridades terra-mar. Adensamento urbano-industrial, instalações portuárias, sobrepesca, coleta de frutos do mar, equipamentos de turismo em grande escala constituem forte pressão sobre mangues, estuários, restingas e lagoas localizados no litoral, espaços de grande vulnerabilidade, donde a relevância e necessidade de áreas marinhas protegidas.

O terceiro ponto toca às desigualdades de acesso aos recursos, de exposição aos riscos e catástrofes, às diferenças de prioridades, de capacidade de investimentos e de domínio tecnológico que reorganizam as formas de cooperação, mas também alimentam novos conflitos que irão requerer a intermediação de organismos internacionais, a definição e convergência de formas de regulação. Em síntese: estaríamos mais uma vez questionando os limites materiais do ecúmeno?

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    . Agradeço aos revisores ad hoc as críticas, e ao apoio do CNPq.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    12 Jun 2018
  • Aceito
    07 Mar 2019
ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
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