Acessibilidade / Reportar erro

Editorial N° 04/2020 A emergência do coronavírus e os desafios socioambientais contemporâneos

Conexões, interdependências e incertezas são elementos cruciais no momento histórico em que vivemos. Lamentavelmente, essa constatação ainda se dá muito mais pelas dimensões e complexidade de problemas emergentes do que por cooperações à altura para a busca de um mundo melhor e sustentável. No momento em que foi escrito este editorial, começo de maio de 2020, a mais recente emergência internacional de saúde pública, a infecção de humanos e alastramento galopante do novo coronavírus a partir de Wuhan, China, atestavam quanto a isso.

Nesse sentido, cabe primeiramente uma especulação quanto à possível origem, como indicado, de que o vírus possa ter morcegos como hospedeiros originais. No campo das relações socioambientais que nos remetem ao diálogo, se constatada esta especulação, esta pode ser mais uma doença emergente associada a impactos ambientais, redução de habitats e exploração indiscriminada de recursos da fauna. Isto demanda claramente o entendimento da indissociabilidade entre a saúde humana, animal e ambiental, no que vem sendo chamado de One Health1 1 - One Health (adicionar em nota de rodapé: Lerner, Henrik; Berg, Charlotte. A Comparison of Three Holistic Approaches to Health: One Health, EcoHealth, and Planetary Health. Frontiers in Veterinary Science, v.4, 2017, article 163. URL=https://www.frontiersin.org/article/10.3389/fvets.2017.00163. DOI=10.3389/fvets.2017.00163 , na perspectiva de integrar programas como de segurança alimentar, controle de zoonoses, entre outros, e produzir respostas multisetoriais aos possíveis riscos. Em outras palavras, demanda um entendimento holístico sobre uma doença que pode ter-se originado a partir da saída de um vírus de seu ecossistema facilitado pelas intrínsecas interações sociais na busca por recursos e alimentos. A emergência ou epidemia de doenças, decorrente de algum desequilíbrio ecológico é algo já experimentado, de maneira e em contextos diferentes, em outros momentos, como na introdução do vírus ebola na população humana, no fim dos anos 1970; e nas ondas de surtos de febre amarela, que se deu em várias regiões do Brasil, desde 2017. Essa condição inicial nos convida a refletir, portanto, que um desequilíbrio em um ecossistema pode reverter em um problema de abrangência global, isso de maneira rápida e fortemente impactante.

A velocidade de espalhamento do coronavírus atesta as conexões entre vulnerabilidades e ganha terreno pela interdependência global entre comércio, turismo e outras formas que favorecem a disseminação das consequências que acompanham a transmissão do vírus entre populações humanas.

Isso caracteriza relações sistêmicas de vulnerabilidade, e os prejuízos não param por aí, pois antes mesmo de se considerar a doença como uma pandemia, seu impacto econômico já se fez valer, inclusive, pela dinâmica e conectividade dos mercados financeiros globais. Ou seja, as bolsas de valores do planeta já se impactaram notadamente em um efeito cascata a partir das situações e contingências fortemente constatadas desde a China. No início do mês de março de 2020 o impacto econômico, precedido pelo surpreendentemente número de casos confirmados, já se anunciava no norte da Itália, no caso, com marcante preocupação para as atividades associadas ao turismo.

Por sua vez, a paralisação de diversos setores na China, como o industrial, e a redução dos voos internos para conter a epidemia do coronavírus, dentre outros fatores sinérgicos, levaram também à redução da emissão de gases de efeito estufa em 25%, de acordo com estudo divulgado pela Carbon Brief2 2 - https://www.carbonbrief.org/analysis-coronavirus-has-temporarily-reduced-chinas-co2-emissions-by-a-quarter . Nas duas primeiras semanas de fevereiro, a queda nas emissões de CO2, por exemplo, se aproximou de 100 milhões de toneladas, o equivalente ao que Portugal emite no período de 1 ano.

Em uma entrevista para o Jornal da USP3 3 - https://jornal.usp.br/artigos/coronavirus-nao-existe-seguranca-sem-acesso-universal-a-saude , publicado no final de janeiro deste ano, a professora Deisy Ventura, da Faculdade de Saúde Pública da USP, ressaltou a importância de sistemas públicos de saúde e do fortalecimento da produção científica para que seja possível fazer frente a uma emergência internacional como esta. A propósito, cabe ressaltar que a declaração do coronavírus como uma emergência internacional de saúde pública, por parte da Organização Mundial da Saúde, remete a conjugar esforços, compartilhar informações, agregar centros e competências de pesquisa, desenvolver estratégias conjuntas e, tudo isso, dentro de um processo de cooperação internacional envolvendo sistemas públicos de saúde em 196 países signatários. No caso, mostrando uma oportunidade de usar conexões e interdependências para o bem comum, num contexto global. Este processo de sofisticada cooperação internacional denota fundamental avanço, todavia, relativamente recente por ser um mecanismo de vigência desde 2007. Porém, apesar de sua notável importância a emergência internacional de saúde pública é um aparato de governança voltado a consequências e não a causas, distante, ainda, da governança antecipatória que as questões globais demandam, considerando as conexões, interdependências e incertezas.

Retomando a argumentação socioambiental, talvez devêssemos observar que os riscos atuais de profundos impactos provenientes do desmatamento da Amazônia, dos incêndios na Austrália e das mudanças climáticas globais também deveriam ser tratados como emergências internacionais, em categoria que dialogue também com incertezas, riscos à saúde humana e ampla gama de consequências sistêmicas. Mas, notadamente, há sérios problemas em agregar esforços para as questões ambientais de abrangência ou risco de consequências globais. Também, certamente, há uma diferença profunda entre a organização e capacidade de resposta para com prevenção ou emergência, sendo a primeira bastante deficitária. Isso resulta em algo preocupante, uma vez que, muitas vezes, as emergências decorrem justamente da falta de prevenção.

A produção científica classicamente lança as bases das posturas preventivas, estudando por meio de métodos e objetividade as relações causais e trazendo o esclarecimento quanto a mecanismos que podem, por exemplo, conduzir a profundas rupturas nos sistemas socioambientais. Assim é a ampla produção científica associada às mudanças climáticas globais. Assim também é quanto ao contundente e fundamentado conhecimento científico atestando a importância planetária da Amazônia. Mas em tempos de exacerbação de dúvidas, de falsos profetas e de desengano com novas e viciosas formas de comunicação, a ciência bem estabelecida e de qualidade também vem sendo seriamente desacreditada, ainda que sua utilidade seja comprovada rotineiramente, como aconteceu em parceria entre profissionais da saúde e cientistas brasileiros, que propiciou rápida resposta no auge da epidemia do Vírus Zika, entre os anos 2015 e 2016. É preciso fortalecer a produção e o discurso científico! Mas também é fundamental promover diálogo entre a academia e a sociedade, dentro do contexto das atuais formas de comunicação digital.

Em adição, para fazer frente aos desafios de se prevenir catástrofes e de se agir sobre emergências, é necessário fortalecer a ciência e ampliar sua interação com a sociedade, preferencialmente por meio de mecanismos reflexivos e participativos. Fundamentalmente, esta ciência que demandamos deve ser mantida por financiamento público, garantindo assim o vínculo com demandas legítimas da sociedade, sem risco de conflito de interesse, atenuando ameaças e dirimindo possibilidades de viés. O conhecimento científico, legitimado dessa forma, em associação à divulgação de informações verdadeiras e de forma transparente, deve ser a base para sistemas de prevenção e de atendimento de emergências, e suas potencialidades devem alçar um diálogo global dentro dessa fenomenologia de similar escala.

Após esta breve reflexão sobre os impactos e os desafios que representa a disseminação da COVID-19 ao redor do mundo para os sistemas de saúde em todas suas escalas, especialmente no nível global, convidamos a todos para a leitura dos novos artigos publicados correspondentes ao Volume Anual 2020. Como sempre, agradecemos a toda a equipe editorial da Revista Ambiente & Sociedade pela sua fundamental contribuição para garantir a continuidade da publicação.

Abrindo este novo grupo, como artigos originais, os autores Celso Barbiéri e Tiago Mauricio Francoy, no trabalho Modelo teórico para análise interdisciplinar de atividades humanas: A meliponicultura como atividade promotora da sustentabilidade, propõem um modelo teórico para analisar a meliponicultura tratando dos Domínios ambiental, cultural, social e econômico. Concluem que tal atividade deve ser incentivada por meio de políticas públicas participativas e interdisciplinares, integrando os diversos atores envolvidos.

No artigo: Serviços Ecossistêmicos Urbanos: Fixação de carbono nas Áreas de Preservação Permanente de Campinas-SP, os autores Rodrigo Semeria Ruschel e Antônio Carlos Demanboro, por meio de uma metodologia baseada no uso de equações alométricas para calcular a biomassa seca acima do solo, concluíram que além da fixação de carbono, a recuperação das APPs dos cursos d’água proporciona serviços ecossistêmicos adicionais, que, ao serem contemplados na análise custo-benefício dos projetos, representam a maioria dos benefícios totais.

Por meio de um estudo de caso sobre a Bacia do Rio Colúmbia (BRC), compartilhada por Estados Unidos e Canadá, cujas águas drenam para o Oceano Pacífico, o autor Armando Gallo Yahn Filho demonstrada a impossibilidade de implementar a Gestão Integrada de Recursos Hídricos na BRC, ainda que haja uma governança multinível que permite a cooperação entre os Estados Unidos e o Canadá; no artigo: Governança hídrica multinível sem gestão integrada de recursos hídricos (GIRH): cooperação na Bacia do Rio Colúmbia.

Os autores Natália Anseloni Nista, Celeste Aída Sirotheau Corrêa Jannuzzi, Orandi Mina Falsarella e Samuel Carvalho de Benedicto, abordando diferentes linhas filosóficas relacionadas aos animais, seus direitos e sobre como eles se inserem na discussão do desenvolvimento sustentável, concluem que é possível observar uma preocupação progressiva com o habitat dos animais com uma ampliação do olhar sobre eles em geral e em diferentes contextos; no artigo Sociedade e desenvolvimento sustentável: o direito dos animais no discurso da sustentabilidade.

No artigo: Biologia sintética e manipulação genética: riscos, promessas e responsabilidades, os autores Roberto Rohregger, Anor Sganzerla e Daiane Priscila Simão-Silva investigam, sob uma perspectiva bioética, sobre os benefícios, riscos e ameaças à vida, decorrentes da produção, manipulação e criação de DNA’s sintetizados. Concluem que as conquistas da biologia sintética têm se demonstrado ambivalentes, porque as esperanças se misturam com as ameaças, com resultados imprevisíveis à diversidade da vida da biosfera, o que torna a prudência a virtude por excelência.

Por meio de uma avaliação do funcionamento de Estações de Tratamento de Esgotos e sua influência na qualidade de vida da população de Parelhas e Pedro Velho, os autores Douglisnilson de Morais Ferreira, Julio Alejandro Navoni, André Luis Calado Araújo e Viviane Souza do Amaral, no artigo Percepção de risco no tratamento e reúso de esgotos domésticos em populações do Nordeste, constataram grande rejeição no funcionamento das estações associada ao odor e proliferação de mosquitos, que redundam em problemas econômicos, sociais e de saúde pública.

Os autores Érico L. Pagotto e Sylmara Lopes Francelino Gonçalves-Dias, a partir da teoria dos campos, analisam o processo de construção de políticas públicas de produção e consumo sustentáveis no Brasil após o ingresso do país no Processo de Marraquexe, em 2003. Constatam que uma série de obstáculos vêm ocasionando atrasos aos avanços da política de produção e consumo sustentável em função de disputas entre atores incumbentes e desafiantes; no artigo: Produção e consumo sustentável: um estudo à luz da Teoria de Campos de Ação Estratégica.

No artigo: Avaliação da sustentabilidade do Vale do Jari - Amapá, Amazônia: Laranjal e Vitória do Jari, os autores José Francisco de Carvalho Ferreira, Jacklinne Corrêa Matta e Jodival Maurício Costa, utilizando indicadores recolhidos de fontes oficiais, tratados e normalizados por metodologia própria, buscaram aferir os níveis de sustentabilidade de Laranjal e Vitória do Jari. Os resultados assinalam que os dois municípios têm fracos desempenhos que comprometem a sua sustentabilidade municipal em direção à Agenda 2030.

Levantando uma amostra de professores de quatro escolas rurais de Bogotá, os autores Carlos Julio Galvis-Riaño, Francisco Javier Perales-Palacios e Yolanda Ladino-Ospina, caracterizaram as concepções de Ambiente e Educação Ambiental (EA) e constataram que os educadores têm diferentes formas de abordar a questão ambiental, observando uma forte tendência em assumir o ambiente e a EA como uma questão biológica e conservacionista. No artigo: Conceitos sobre meio ambiente e educação ambiental de professores de centros educacionais rurais de Bogotá - Colômbia.

No artigo: Adaptação Baseada em Ecossistemas no Equador: boas práticas para o Co-Manejo Adaptativo, os autores Pere Ariza-Montobbio e Nicolás Cuvi desenharam e aplicaram uma metodologia multicritério em cinco fases, para identificar, caracterizar, selecionar e avaliar o Co-Manejo Adaptativo e as condições que o limitam ou potenciam nas ações da Adaptação Baseada em Ecossistemas. Constataram que o planejamento e a governança sob uma abordagem de paisagem, e o reconhecimento da diversidade de contextos, promovem o diálogo, a cooperação e a inovação institucional.

Com o objetivo de avaliar a qualidade da água de poços e os cenários de risco à saúde, os autores Ana Celia Goes Melo Soares, Rômulo André Santos Silva, Carla Viviane Freitas de Jesus, Roneval Felix Santana, Álvaro Silva Lima, Sonia Oliveira Lima e Maria Nogueira Marques, no artigo: Avaliação da água e o risco à saúde na Zona de Expansão de Aracaju-SE, realizaram coletas de acordo com a metodologia estabelecida pelo Standard Methods for the Examination of Water & Wastewater e concluíram que o período chuvoso apresentou contaminação por bactérias, enquanto que, no período de seca a maioria das amostras não apresentou contagem bacteriológica.

Finalmente, as autoras Mariana Gutierres Arteiro da Paz e Ana Paula Fracalanza, no artigo: Controle social no saneamento básico em Guarulhos (SP): o Conselho Municipal de Política Urbana, avaliam a incorporação do tema do saneamento básico no Conselho Municipal de Política Urbana do Município de Guarulhos, SP, assim como a participação na área segundo os preceitos da justiça ambiental e da governança da água. Concluem que a forma como foi atribuída ao Conselho a competência de lidar com as questões de saneamento básico não favoreceu a construção social do processo.

Desejamos a todos uma boa leitura!

  • 1
    - One Health (adicionar em nota de rodapé: Lerner, Henrik; Berg, Charlotte. A Comparison of Three Holistic Approaches to Health: One Health, EcoHealth, and Planetary Health. Frontiers in Veterinary Science, v.4, 2017, article 163. URL=https://www.frontiersin.org/article/10.3389/fvets.2017.00163. DOI=10.3389/fvets.2017.00163
  • 2
    - https://www.carbonbrief.org/analysis-coronavirus-has-temporarily-reduced-chinas-co2-emissions-by-a-quarter
  • 3
    - https://jornal.usp.br/artigos/coronavirus-nao-existe-seguranca-sem-acesso-universal-a-saude

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020
ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistaambienteesociedade@gmail.com