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Ciência e crise ambiental em meio a incêndios e pandemia

Em nosso primeiro editorial de 2020 (JACOBI et al, 2020JACOBI, P. R. et al. O que indicam os incêndios na Austrália - Reflexões sobre seus alcances. Ambient. soc., São Paulo , v. 23, e0001, 2020. Available in: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-753X2020000100201&lng=en&nrm=iso>. Access on 05 Jan. 2021.
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) procuramos refletir sobre os incêndios devastadores que atingiam a Austrália desde 2019. Naquele momento a nossa reflexão sobre as variáveis ambientais, esteve pautada no papel ecológico e sua relação com a história natural dos ecossistemas, como os cerrados brasileiros, por exemplo. No entanto, ficavam muito evidentes os processos de mudança climática e o aumento significativo da temperatura média global. Esses dados eram fundamentados em métricas apontadas pelas agências mundiais de estudo e controle do clima, que por sua vez apontavam para um cenário climático futuro pouco otimista, com a previsão do aumento sem precedentes de mega incêndios no planeta.

Em nosso primeiro editorial de 2021 não conseguimos anunciar cenários mais otimistas. Isso porque 2020 provou ser ainda mais trágico em todos os sentidos. As questões ambientais relacionadas aos grandes fenômenos climáticos apresentaram índices ainda mais alarmantes. Os grandes incêndios continuaram o seu trágico caminho devastador, destruindo formações florestais no Brasil, Estados Unidos, Austrália, no Ártico Siberiano e em outras partes do globo. E, infelizmente, o Brasil continuou a apresentar grandes índices de queimadas na Amazônia e no Cerrado. No entanto, em 2020 o Pantanal figurou como o ecossistema mais afetado pelos grandes incêndios, tendo 1/3 do seu território consumido pelo fogo. Além da devastação das paisagens desse importante bioma brasileiro, a perda da biodiversidade foi sem precedentes. As imagens chocantes de animais abrasados e a luta desesperadora de pessoas bombeiras e voluntárias para conter a expansão do fogo marcaram de forma perturbadora o ano que passou.

De acordo com dados da National Aeronautics and Space Administration (NASA), a agência espacial dos Estados Unidos, e do Sistema Copernicus, da União Europeia, os grandes incêndios globais de 2020 foram os mais devastadores, considerados os 18 anos de pesquisas e de geração de dados globais sobre incêndios florestais. Segundo o historiador ambiental Stephen Pyne a sociedade contemporânea está experimentando a era do Pyrocene, um período histórico em que os mega incêndios são mais frequentes, mais perigosos e mais perturbadores. Para ele o Pyrocene seria equivalente, em termos ambientais, aos efeitos globais da grande glaciação (PYNE, 2020PYNE, S. The Australian fires are a harbinger of things to come. Don’t ignore their warning. The Guardian, Tue 7 Jan 2020.). E os efeitos dos grandes incêndios ocorridos na Austrália, Califórnia, Ártico, África tropical, Indonésia e Brasil continuarão afetando todo o clima global, de forma persistente, ainda por muito tempo.

Vale destacar que o ano de 2020 foi o mais quente já registrado no mundo, juntamente com 2016, finalizando uma década de temperaturas recorde que evidenciam a urgência de uma atuação contra o aquecimento global, conforme apresentado pelo Sistema Copernicus, no início de janeiro de 2021. O aumento médio da temperatura global foi de 1,25 ºC em relação à era pré-industrial, sendo que os anos de 2014 a 2020 foram os mais quentes já registrados. As(os) cientistas têm apelado para que governos e empresas diminuam drasticamente suas emissões, a fim de que haja uma chance de se alcançarem as metas do Acordo de Paris de 2015 e de evitar uma catastrófica crise climática.

Em 2020 a Organização das Nações Unidas havia alertado a comunidade mundial sobre o fracasso no cumprimento das metas de proteção da biodiversidade estabelecidas para esta década. E nesse mesmo contexto um relatório publicado pela Intergovernmental Platform on Biodiversity and Ecosystem Services (IPBES) apresentava indícios significativos para a extinção de espécies a partir de 20201 1 - Intergovernmental Platform on Biodiversity and Ecosystem Services. IPBES Workshop on Biodiversity and Pandemics, Platform workshops, 27-31 July 2020. . No entanto, essa mesma instituição passou a indicar em seu relatório outro grave problema global, igualmente ameaçador, que atingiu a sociedade mundial em 2020, que foi a pandemia do COVID-19. A partir do que chamou de Plataform Workshop, a IPBES procurou correlacionar variáveis de biodiversidade e pandemias, apontando essas questões como parte da pauta central da sua agenda para aquele trágico ano. E assim, entre incêndios e pandemias, o ano de 2020 se mostrou estranho, inacabado, complexo e cheio de indagações sobre os dilemas socioambientais para o nosso futuro próximo.

Em um artigo publicado na Nature, em 08 de dezembro de 2020, cujo tema central tratava dos grandes incêndios que atingiram o Pantanal, os autores procuraram conjeturar a tragédia ambiental aos números críticos de mortos e infectados pelo COVID-19 no Brasil (LIBONATI, 2020LIBONATI, R et al. Rescue Brazil’s burning Pantanal wetlands. Nature, v. 588, 10 December, 2020, p. 217-219.). E assim como as questões sociais, o Pantanal expunha as ameaças decorrentes da falta de gestão e ineficiência jurídica, intensificando ainda mais as suscetíveis ameaças socioambientais desse patrimônio natural.

Mas, se o cenário parecia não ter mais espaço para agravamentos, 2020 provou que sempre existe um lugar para a estupidez persistente. Aliada aos discursos absurdos do governo brasileiro sobre o negacionismo da pandemia, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sugeriu a aprovação de desregulamentações ambientais aproveitando o foco no COVID-19. E como apontado pelo artigo publicado na Nature, o governo brasileiro ainda procurou dar justificativas frágeis e infundadas, ignorando as reais causas dos incêndios: como uma combinação de gestão inadequada do fogo, extremos climáticos, comportamento humano e regulamentações ambientais fracas (LIBONATI, 2020LIBONATI, R et al. Rescue Brazil’s burning Pantanal wetlands. Nature, v. 588, 10 December, 2020, p. 217-219.). E ainda, para piorar a situação, o ministério do Meio Ambiente reduziu o financiamento para a prevenção de incêndios, e ao ser questionado pelo avanço do fogo no território brasileiro lançou dúvidas sobre a confiabilidade das pesquisas e dados geoespaciais. A proposta dos autores é que os pesquisadores e o governo precisam estreitar o diálogo e desenvolver estratégias abrangentes de prevenção e gerenciamento de incêndios florestais no Brasil, algo que parece não ser viável em tempos de negacionistas, sobretudo nas instâncias mais influentes da gestão ambiental no Brasil.

Pode-se afirmar que a crise ambiental e a crise pandêmica estão fortemente interligadas, uma vez que a pressão humana sobre o ambiente, com atitudes como o desmatamento, a expansão da agricultura e da pecuária, as pressões da exploração da mineração, assim como vários processos de degradação ambiental, e a exploração de espécies da fauna selvagem, têm facilitado a transmissão de doenças entre animais e seres humanos. Contudo, embora a resolução da crise aguda resultante da Covid-19 possa vir através da vacinação, novas pandemias virão se uma das suas principais causas, a crise ambiental resultante da lógica de produção, não for resolvida. Cabe enfatizar a importância do diálogo entre o debate ambiental e social na saúde, principalmente quanto ao fundamental papel do Estado na redução dos riscos para a população mais vulnerável.

Concluímos, observando que as crises revelam as incertezas e riscos das sociedades - as suas melhores e piores características. Contudo, simultaneamente, as crises também abrem a possibilidade de refletir sobre as suas contradições e a sua capacidade de propor respostas às incertezas. Os momentos de crise são também momentos para construir alternativas, na direção de confrontar fenômenos sistêmicos mais vastos, fortalecendo a importância da ciência e das decisões baseadas em seus pressupostos, bem como as instituições de governança de riscos, a fim de reduzir as vulnerabilidades e garantir a proteção da sociedade e dos recursos naturais.

Após esta reflexão, convidamos a todos para desfrutar das leituras durante o ano de 2021, não sem antes agradecer a toda a equipe editorial da Revista Ambiente & Sociedade que, com rigor acadêmico e qualidade, faz possível a continuidade da publicação de artigos com discussão interdisciplinar.

Abrimos este novo volume anual com dois artigos que correspondem ao Dossiê especial: Territórios de Energia. O artigo: Ciência, Tecnologia e Sociedade: integrando as ciências sociais no debate sobre energia, da autora Simone Abram, apresenta as principais questões que as ciências sociais atuais visam frente ao estudo da energia. Por meio de uma abordagem sociológica e antropológica aplicada às próprias indústrias de energia, as ciências sociais podem oferecer novas perspectivas teóricas, revelar as relações políticas que acompanham os fluxos de energia e oferecer novas maneiras de pensar sobre as potencialidades dos sistemas energéticos atuais e futuros.

O autor Bruno Fornillo, no artigo: Transição energética no Uruguai: domínio comercial ou poder público-social?, caracteriza as causas que levaram à incorporação recente da energia renovável no Uruguai, com o objetivo de discutir como se pensa a transição energética no país. O Uruguai tem encarado uma renovação da sua matriz energética, mas possui condições para terminar por se dirigir em direção a uma transição energética justa assentada na potência público-social do país.

Na seção de Artigos Originais, o trabalho: Percepções sociopolítico-ambientais dos participantes das audiências públicas da Câmara dos Deputados sobre Meio Ambiente, do autor Antonio Teixeira de Barros, analisa as percepções dos cidadãos que participaram das audiências públicas promovidas pela Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da referida Câmara durante o ano de 2018. Conclui que existe uma diversidade de percepções em relação à agenda da Comissão, assim como críticas à atuação dos parlamentares e dos representantes governamentais.

Com o objetivo de refletir sobre o direito de participação dos Povos e Comunidades Tradicionais na proteção ambiental dos seus territórios tradicionais em Reservas Extrativistas (RESEX), os autores Marcelo Lopes, Pedro Henrique Dias Marques e Priscilla Correa de Moura Estevão, analisam os aspectos legais, positivos e conceituais presentes no ordenamento jurídico nacional e internacional que delineiam o alcance da participação social. No artigo: Monitoramento Ambiental Comunitário: a gestão dos bens comuns na Reserva Extrativista de Cassurubá.

Os autores Ana Gabriela Godinho Lima e Rodrigo Mindlin Loeb, no artigo: Cidade, Gênero e Mudanças Climáticas: Parelheiros como estudo de caso na capital paulista, analisam o contexto das populações em situação de urbanização incompleta e as reconhecem como as mais expostas aos riscos dos efeitos das mudanças climáticas. Por essa razão, estas populações devem receber atenção de iniciativas que as fortaleçam social e economicamente para enfrentar estes efeitos. Neste cenário, as mulheres e as crianças são os grupos mais vulneráveis.

Com o objetivo de trabalhar diretrizes para subsidiar uma abordagem metodológica que explicite as relações entre desmatamento e urbanização, o artigo: A Interface entre Desmatamento e Urbanização na Amazônia Brasileira, de Julia Corrêa Côrtes e Roberto Donato da Silva Júnior, realiza uma revisão das abordagens da teoria social das mobilidades e do risco, refletindo sobre a concepção de uma teoria crítica condizente com a multidimensionalidade e transescalaridade das configurações sociopaisagísticas do tecido urbano.

Os autores Maritza Marín-Herrera, Heidy Correa-Correa e Gustavo Blanco-Wells analisam os discursos e hermenêutica coletiva em relação à REDD+, e concluem que sua implementação possibilita i) mercantilizar a natureza e as formas de governança tradicional; ii) consolidar una eco-governamentalidade pautada na fragmentação da natureza; e iii) construir representações sobre indígenas empobrecidos, para justificar a intervenção em seus territórios. No artigo: Territorialização da estratégia REDD+ no povo indígena bribri, Talamanca, Costa Rica.

No artigo: Planejamento da paisagem e mudanças climáticas: uma abordagem multidisciplinar em São Carlos (SP), as autoras Renata Bovo Peres e Luciana Bongiovanni Martins Schenk discutem a experiência do Grupo de Trabalho dos Parques Urbanos na cidade de São Carlos (SP), como um exemplo da interação entre ciência e a prática de planejamento. Concluem que a adaptabilidade depende da compreensão das vulnerabilidades de cada contexto, da valorização da dimensão pública, assim como da integração científica e política.

Com o objetivo de analisar a vulnerabilidade socioambiental na Macrometrópole Paulista, o autor Humberto Prates da Fonseca Alves associa dois conceitos da literatura sobre vulnerabilidade e revela que 1,8 milhões de pessoas vivem em áreas com alta vulnerabilidade socioambiental, com destaque para as diferenças na cobertura de esgoto nas residências em aglomerados subnormais. No artigo: Vulnerabilidade socioambiental nas três principais regiões metropolitanas da Macrometrópole Paulista: uma análise de indicadores socioambientais.

Os autores Natalia de Miranda Grilli, Mariana Martins de Andrade, Luciana Yokoyama Xavier, Cláudia Regina Santos, Fernanda Terra Stori, Cauê Dias Carrilho, Felipe Otavio Nunes, Melissa Vivacqua, Thiago Zagonel Serafini, Paulo Antonio de Almeida Sinisgalli, Cristiana Simão Seixas, Pedro Roberto Jacobi e Alexander Turra, no artigo Passo-a-passo: uma estrutura de pesquisa-ação participativa para aumentar a participação social em sistemas costeiros, evidenciam e discutem mudanças na participação social de uma comunidade costeira no sudeste do Brasil (Baía do Araçá), resultante de uma pesquisa-ação participativa que durou três anos.

No artigo: A Agenda Internacional de Biodiversidade no Nível Local: O Caso das Capivaras em Curitiba, Brasil, os autores Tatiana Maria Cecy Gadda, Jana Magaly Tesserolli de Souza, Gabriel Antônio Rezende de Paula, Tamara Simone van Kaick e João Henrique Diniz Brandão Gervásio demonstram as relações socioecológicas entre a espécie estudada e o ambiente urbano, as quais sugerem que a cidade apenas parcialmente considera as Metas de Aichi. As autoridades locais enfrentam grandes desafios para adotar a agenda global de biodiversidade.

Finalizamos esta primeira entrega com a Resenha do livro: The King is naked! (O Rei está nu!) de autoria de Dr. Bjørn Lomborg, feita por Carlos Germán Meza. Na visão do resenhista, o livro critica a abordagem que alguns setores da sociedade têm dado às mudanças climáticas e propõe políticas para enfrentar o problema. Ele reconhece totalmente a existência de mudanças climáticas de origem antropogênica, mas suas análises e propostas para lidar com o problema levantam acirrados debates entre acadêmicos e analistas.

Desejamos a todas e todos uma boa leitura!

References

  • JACOBI, P. R. et al. O que indicam os incêndios na Austrália - Reflexões sobre seus alcances. Ambient. soc., São Paulo , v. 23, e0001, 2020. Available in: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-753X2020000100201&lng=en&nrm=iso>. Access on 05 Jan. 2021.
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-753X2020000100201&lng=en&nrm=iso
  • LIBONATI, R et al. Rescue Brazil’s burning Pantanal wetlands. Nature, v. 588, 10 December, 2020, p. 217-219.
  • PYNE, S. The Australian fires are a harbinger of things to come. Don’t ignore their warning. The Guardian, Tue 7 Jan 2020.
  • 1
    - Intergovernmental Platform on Biodiversity and Ecosystem Services. IPBES Workshop on Biodiversity and Pandemics, Platform workshops, 27-31 July 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2021
ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
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