Mortalidade das grandes araras por eletrocussão em área urbana, Campo Grande, Mato Grosso do Sul

Resumo

A eletrocussão é tema pouco relatado para as grandes araras. O objetivo deste trabalho foi analisar a mortalidade das araras por eletrocussão na área urbana de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Entre 2011 e 2020 foram registradas 59 araras mortas por eletrocussão, tendo como vítimas duas espécies: Ara ararauna (Linnaeus, 1758) e a Ara chloropterus (Gray, 1859). A. ararauna foi a espécie com maior incidência, com 48 aves mortas, seguida da A. chloropterus, com 11 indivíduos. A eletrocussão foi um importante fator de perda das grandes araras no ecossistema urbano. O tamanho corporal, a envergadura das asas e o comportamento das araras, bem como a localização e proximidade das estruturas elétricas com os recursos alimentares e de nidificação favoreceram as chances de eletrocussão. Logo, é necessário desenvolver medidas de mitigação para conciliar o desenvolvimento sustentável de uma cidade de porte médio como Campo Grande com a conservação da biodiversidade.

Palavras-chave:
Psittacidae; Ecologia Urbana; Rede Elétrica; Conservação

Abstract

Electrocution is a theme that has been rarely reported for large macaws. The objective of this study was to analyze mortality of macaws due to electrocution in an urban area of Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Between 2011 and 2020, 59 macaws were registered as having died through electrocution, and these were from two species: Ara ararauna (Linnaeus, 1758) and Ara chloropterus (Gray, 1859). A. ararauna had the largest number of deaths registered (48), and A. chloropterus had 11 individuals. Electrocution was shown to be an important factor for the loss of large macaws in this urban environment. Body size, wingspan, and behavior of the macaws, as well as location and proximity of food resources and nests to electrical structures, were shown to increase the probability of electrocution. These results demonstrate the need to develop mitigation measures to reconcile the sustainable development of a medium-sized city such as Campo Grande with biodiversity conservation.

Keywords:
Psittacidae; Urban Ecology; Electrical Networks; Conservation

Resumen

La electrocución es tema poco reportada en los guacamayos. El objetivo de este trabajo fue analizar la mortalidad de guacamayos en el área urbana de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Entre 2011 y 2020 fueron registrados 598 guacamayos muertos por electrocución teniendo como víctimas, dos espécies: Ara ararauna (Linnaeus, 1758) yAra chloropterus (Gray, 1859). A. ararauna fue la especie con más incidencia, con 48 aves muertas, seguida de A. chloropterus , con 11 individuos. La electrocución es la causa importante de pérdida para los guacamayos en el ecosistema urbano. El tamaño corporal, la envergadura de las alas y el comportamiento urbano de los guacamayos, bien como la localización y la proximidad de los tendidos eléctricos con los recursos alimenticios y de nidificación favorecido las posibilidades de electrocución. Por lo tanto, es necesario desarrollar medidas de mitigación conciliar el desarrollo sustentable de una ciudad mediana como Campo Grande com la conservación de la biodiversidad.

Palabras-clave:
Psittacidae; Ecologia Urbana; Tendido Eléctrico; Conservación

Introdução

A urbanização é considerada um dos principais fatores da alteração dos hábitats e perda da biodiversidade. Porém, algumas cidades possuem considerável diversidade de habitat, composta por ambientes construídos e áreas verdes que possibilitam manter uma comunidade de aves, as quais diminuem os impactos negativos provocados pela urbanização e mantém os importantes serviços ambientais nesse ambiente, como polinização e dispersão de sementes, inclusive proporcionando uma melhor qualidade de vida para a população humana (BRUN et al., 2007; EVANS et al., 2009; GUEDES, 2012; SCDB, 2012; ANGEOLETTO et al., 2015; TRYJANOWSKI et al., 2015; PENA et al., 2017).

Atualmente, há estudos sobre como o atropelamento, o ataque por animais domésticos, as colisões com edificações e acidentes com linhas de pipa com material cortante, entre outros fatores, causam impactos negativos na fauna presente em ambientes como área urbana, ambiente agrícola e floresta degradada (BÁGER et al., 2016; BRISQUE et al., 2017; FERREIRA; GENARO, 2017; HOLDERNESS-RODDAM; MCQUILLAN, 2014; ROY; SHASTRI, 2013). Dentre estes, destacam-se a eletrocussão por choque com redes de distribuição de energia elétrica (CHEVALLIER et al., 2015; GODINO et al., 2016).

As linhas de distribuição de energia elétrica causam diversos impactos sobre a biodiversidade, como a fragmentação e a descaracterização do habitat durante a sua implantação. Estas linhas também provocam a poluição sonora e elevam a probabilidade de ocorrência de incêndios florestais, além da interação direta com a fauna, quando há o contato dos indivíduos com as estruturas das redes de distribuição elétrica (LEHMAN et al., 2007; APLIC, 2006, 2012; FERRER, 2012; PEREZ-GÁRCIA et al., 2011).

Acidentes com estruturas das redes de distribuição de energia elétrica têm provocado a mortalidade de várias espécies de animais silvestres. A maioria dos indivíduos vêm à óbito, mas aqueles que sobrevivem geralmente ficam com lesões irreversíveis, o que os impossibilitam de retornar à natureza (SCHAUB et al., 2010; APLIC, 2012; BUSS et al., 2015; CHEVALLIER et al., 2015; SOUZA et al., 2017).

O grupo das aves é um dos mais afetados em se tratando de acidentes com redes elétricas, pois muitas espécies utilizam as estruturas, como por exemplo, os condutores elétricos e os postes para descanso, como pontos de caça e nidificação. A maioria dos indivíduos colidem com essas estruturas ao transitarem na área de vida (GUIL et al., 2011; FERRER, 2012; PEREZ-GÁRCIA et al., 2011; BURGIO et al., 2014; RED et al., 2014). A mortalidade por eletrocussão de aves jovens e adultas pode diminuir o sucesso reprodutivo e assim, prejudicar o crescimento e viabilidade populacional. Por isso, é importante entender a dinâmica dos acidentes para minimizar os impactos sobre as espécies de aves que habitam nos ambientes urbanos (HUNT, 2002; HUNT; HUNT, 2006; DREWITT; LANGSTON, 2008; SCHAUB et al., 2010; CHEVALLIER et al., 2015; GODINO et al., 2016).

A eletrocussão ocorre principalmente pelo contato dos indivíduos nas estruturas que compõe o sistema de distribuição de energia elétrica (SCHAUB et al., 2010; CHEVALLIER et al., 2015). Geralmente, as aves entram em contato com essas estruturas quando voam entre locais de descanso, durante o forrageio ou pontos de nidificação (LEHMAN et al., 2007; BURGIO et al., 2014; RED et al., 2014; CHEVALLIER et al., 2015; GODINO et al., 2016). Somado à isso, estudos anteriores relatam que tanto os fatores do ambiente quanto aqueles que estão relacionados ao comportamento das espécies podem aumentar o risco de eletrocussão tais como: localização da rede elétrica, condições climáticas, hábito alimentar, tamanho das asas, comprimento e peso dos indivíduos (JANSS, 2000; BURGIO et al., 2014; CHEVALLIER et al., 2015; SOUZA et al., 2017).

Estudos sobre o impacto da eletrocussão nas populações de espécies da família Psittacidae não foram encontrados, mas há relatos da ocorrência desse tipo de acidente. Golmes et al. (2018) estudando as taxas de eletrocussão de aves na Argentina, relataram que a morte de pequenos psitacídeos (Cyanoliseus pataganus e Myopsitta monachus), representou 50% do total dos indivíduos encontrados mortos por eletrocussão. Os autores consideraram a eletrocussão um fator importante de perda de indivíduos dessas duas espécies de psitacídeos que ocorrem na área estudada e sugerem que a mortalidade por eletrocussão seja avaliada em outras regiões que ocorram psitacídeos, principalmente os ameaçados de extinção. No entanto, não foram encontrados na literatura pesquisas que analisassem a eletrocussão como fator de mortalidade para as populações de grandes araras. Há apenas um relato de que espécimes de araras-canindé (Ara ararauna Linnaeus, 1758 - Psittacidae) foram recebidas no Centro de Reabilitação de Animais Silvestres de Mato Grosso do Sul (CRAS/MS) entre 2004 e 2009, vítimas de eletrocussão (GUEDES, 2012).

Desta forma, este trabalho tem como objetivo analisar e quantificar a mortalidade por eletrocussão das grandes araras na área urbana de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, no período de 2011 a 2020.

Material e Métodos

Área de estudo

O município de Campo Grande está localizado nas coordenadas 20º26’37” latitude Sul e 54º38’52” longitude Oeste, com seis municípios limítrofes. A área total do município é de 8.092,95 km², em que 359,03 km² correspondem a área urbana (Figura 1) (PLANURB, 2016).

De acordo com a classificação de Köppen, o clima de Campo Grande está entre o subtipo mesotérmico úmido sem estiagem (Cfa) e o subtipo tropical úmido (Aw). O período mais seco do ano é entre junho e agosto e a estação chuvosa entre outubro e abril (PLANURB, 2016).

Figura 1
Mapa de localização do município de Campo Grande, Estado de Mato Grosso do Sul, Brasil. Em destaque o perímetro que delimita a área urbana de Campo Grande.

Coleta de dados

Esta pesquisa faz parte do Projeto Aves Urbanas - Araras na Cidade, que é executado pelo Instituto Arara Azul (ITA). O Projeto realiza o monitoramento das grandes araras (A. ararauna e Ara chloropterus - Gray, 1859) que ocorrem na área urbana de Campo Grande. No caso da A. ararauna que nidifica na área urbana é realizado o monitoramento de ninhos e juvenis. Todos os juvenis de A. ararauna monitorados pelo Projeto, recebem uma anilha de aço inoxidável (anel de identificação individual), antes de abandonarem os ninhos, o que permite identificar os jovens após saírem dos ninhos.

No caso da A. chloropterus, que não se reproduz na cidade, está presente apenas no primeiro semestre do ano em busca de alimento, período que é monitorada pelo Projeto.

A. ararauna possui ampla distribuição geográfica, ocorrendo desde o Sul da América Central até a região Central do Brasil, como os estados de Rondônia, Roraima, Amazonas, Pará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Minas Gerais, Bahia, Piauí, São Paulo e Paraná (GWYNNE et al., 2010; GUEDES, 2012). Esta espécie, quando adulta, mede de 81 a 86 cm e pode pesar de 900 a 1200 gramas (GWYNNE et al., 2010; GUEDES, 2012).

Nos últimos anos A. ararauna vem sendo registrada na área urbana de algumas cidades do Brasil (FRANCHIN; MARÇAL-JÚNIOR, 2009; FRANCO; PRADO, 2012). Na área urbana de Campo Grande essa espécie chegou no final do século passado e tornou-se residente, facilmente observada alimentando-se nas árvores frutíferas e fazendo ninhos em diferentes regiões e locais da cidade (GUEDES, 2012).

Ara chloropterus, também ocorre na América Central e na América do Sul, como Panamá, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia e Paraguai (GUEDES, 2012). No Brasil, ocorre na Amazônia, Piauí, Bahia, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Paraná (GWYNNE et al., 2010; GUEDES, 2012). Esta espécie é observada na cidade de Campo Grande entre os meses de janeiro a junho, em locais de alimentação e a partir de julho, retorna para a área rural, para reprodução (GUEDES, 2012). Também são aves grandes, que medem de 89 a 96 cm de comprimento e pesam entre 1050 e 1400 gramas (GWYNNE et al., 2010; GUEDES, 2012).

Registros de mortalidade de indivíduos jovens e adultos das duas espécies de araras: A. ararauna e A. chloropterus foram realizados durante 10 anos (2011 a 2020) na área urbana de Campo Grande, Mato Grosso do Sul.

Neste período, o Projeto foi amplamente divulgado na imprensa e nas mídias sociais, o que possibilitou o conhecimento e apoio dos moradores em relação aos trabalhos desenvolvidos pela Instituição. Portanto, os registros foram obtidos não só pelos pesquisadores como também por meio das informações fornecidas pelos cidadãos que entravam em contato com o ITA por telefone ou pelas redes sociais, os quais eram prontamente atendidos.

Quando possível os moradores coletavam e entregavam os exemplares para os técnicos do ITA, que posteriormente realizavam necropsia para identificação do sexo e causa mortis. Apenas dois registros foram acrescentados às informações de eletrocussão envolvendo as araras, através de matérias em jornais da cidade.

De cada arara eletrocutada foram registrados a data, o local, a atividade do animal (se deslocando na área de uso, defendendo o ninho, forrageando), a espécie de arara, a idade (jovem ou adulto) e se estava anilhada. A atividade do animal foi determinada após análise técnica da área e pelas informações fornecidas pelos moradores que observaram o acidente. As coordenadas geográficas foram anotadas e os pontos foram plotados e espacializados utilizando o software Quantum Gis, versão 2.14, visando detectar a região com maior frequência de acidentes (Figura 2).

Análise dos dados

Os resultados das contagens foram apresentados em valores absolutos e proporções (%). Foi utilizado teste t para comparar se houve diferença no número de A. ararauna e A. chloropterus eletrocutadas ao longo do período estudado. O teste Qui-quadrado (χ²), com análise dos resíduos, foi usado na identificação de diferenças significativas quanto ao número de araras segundo as estações do ano e as atividades dos indivíduos no momento das eletrocussões, a idade e o sexo influenciaram nas eletrocussões. Todas as análises foram realizadas utilizando o BIOESTAT 5.0 (AYRES et al., 2007) com nível de significância de p<0.05.

Resultados e Discussão

No período de maio de 2011 a agosto de 2020 foram registradas 59 araras mortas por eletrocussão na área urbana de Campo Grande (Figura 2). Quarenta e oito indivíduos eram araras-canindé (A. ararauna) e onze eram araras-vermelhas (A. chloropterus), o que representou 81,4% e 18,6% dos casos registrados, respectivamente (t= 2,82; p= 0,03). Esta diferença no número de indivíduos eletrocutados entre as espécies está relacionada ao tamanho populacional, que da A. ararauna é estimado em mais de 700 indivíduos e A. chloropterus não tem a estimativa do tamanho populacional, mas em um período de seis meses 27 espécimes foram avistadas. Além do tamanho populacional, a diferença de comportamento e o uso do ambiente pelas duas espécies contribui para o maior registro de indivíduos de A. ararauna mortos por eletrocussão, visto que essa espécie é residente e a A. chloropterus está presente durante apenas parte do ano.

As aves de rapina são as espécies que mais se assemelham com as araras grandes e as mais estudadas quando se trata de acidentes em rede de distribuição de energia elétrica (LEHMAN et al., 2007; SCHAUB et al., 2010; GUEDES, 2012; CHEVALLIER et al., 2015). Entre as semelhanças estão tamanho corporal e envergadura das asas o que permite algumas comparações. Dessa forma, para ambos os grupos a probabilidade de eletrocussão são o tamanho corporal e envergadura das asas maiores, somados as densas populações. Entretanto, no caso dos psitacídeos, a morte por eletrocussão é pouco relatada e os registros existentes na literatura tratam de espécies menores, como papagaios e periquitos (APLIC, 2006; GOLMES et al., 2018).

Figura 2
Imagem de satélite com a delimitação (linha sólida) da área urbana de Campo Grande. Os pontos amarelos são locais em que foram registrados os acidentes por eletrocussão, envolvendo as grandes araras (A. ararauna e A. chloropterus) entre 2011 e 2020

As variações sazonais entre as duas espécies foram significativas (χ²= 8,07; p= 0,04) e a análise dos resíduos revelou que apenas no inverno os valores para ambas as espécies foram significativos. A. ararauna obteve o maior número de registros de morte por eletrocussão no inverno (n=20) que corresponde ao início da estação reprodutiva da espécie. O segundo maior número de registros para A. ararauna foi no verão (n=13), período em que os juvenis estão abandonando o ninho. Já no outono (n=8) e primavera (n=7), o registros foram semelhantes, períodos em que os casais estão explorando e reformando as cavidades e, quando os filhotes estão nascendo e se desenvolvendo. A. chloropterus teve maior número de registros no outono e verão (n=10) período em que estão na cidade em busca de alimento (Figura 3).

Figura 3
Registro de mortes por eletrocussão de A. ararauna e A. chloropterus nas quatro estações do ano (verão, outono, inverno e prima¬vera) na área urbana de Campo Grande, Mato Grosso do Sul

A presença das araras na área estudada começou a ser acompanhada desde o final da década de 1990, após queimadas e desmatamentos ao redor da área urbana (GUEDES, 2012). Campo Grande é bastante arborizada, com árvores frutíferas e palmeiras empregadas em seu paisagismo, o que gera oferta de alimento e locais de nidificação para a A. ararauna, que se tornou residente na cidade. Já A. chloropterus ocorre na cidade de forma sazonal, sendo a oferta de alimento determinante para sua ocorrência entre o verão e início do inverno. Portanto, a oferta de alimento juntamente com a disponibilidade de ninhos são fatores que influenciam na ocorrência dessas duas espécies (GUEDES, 2012).

De acordo com alguns autores, as ocorrências dos acidentes por eletrocussão aumentam em algumas estações do ano devido período das chuvas, reprodução, migração e dispersão de juvenis (GARRIDO et al., 2009; VALVERDE et al., 2010; SOUZA et al., 2017). A sazonalidade também foi relatada em estudo realizado por Golmes et al. (2018) com aves de rapina na Argentina, aonde constataram que as eletrocussões foram maiores no período outono-inverno do que na primavera-verão. Neste caso, as eletrocussões foram relacionadas com a migração e comportamento de algumas espécies que aumenta as chances de eletrocussão.

Houve diferença significativa entre as espécies quanto ao número de indivíduos eletrocutados segundo o tipo de atividades (χ²=39,66; p= 0,000). No caso da A. ararauna a eletrocussão variou de acordo com a atividade do animal, sendo: deslocamento entre as áreas de uso (41,7%), empoleirando nos condutores elétricos ou estrutura de distribuição de energia elétrica (Cruzetas) (20,8%), durante alimentação (8,3%), durante a defesa do ninho (4,2%) e na primeira tentativa de voo de juvenis (2,1%). Em 22,9% dos registros não foi identificada a atividade da ave no momento do acidente. Para A. chloropterus os acidentes com rede elétrica foi a única causa de morte de adultos da espécie (n=11). Cem por cento dos acidentes ocorreu durante alimentação (Figura 4B). Em Campo Grande, no período em que os indivíduos de A. chloropterus estão na cidade, é comum observá-los se alimentando de espécies nativas e exóticas presentes, mas em especial das sementes de Terminalia catappa L. e Inga laurina (Sw). Foi observado que a arborização nas vias urbanas constantemente está em conflito com os condutores elétricos. Os galhos das árvores se desenvolvem alcançando essa rede que fica escondida em meio a vegetação. Assim, durante o forrageio ou pouso para descanso, os indivíduos encostam seus membros nos condutores elétricos desprotegidos, recebendo a descarga elétrica (Figura 4B). Em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, grande parte da estrutura da rede de distribuição de energia elétrica não é isolante. Isto, associado ao comportamento das grandes araras em área urbana aumentam as chances de eletrocussão.

Dos 48 indivíduos de A. ararauna que morreram, 56,2% (n=27) eram adultos, 35,4% (n=17) eram jovens e 8,3% (n=4) não tiveram a idade determinada (χ²= 7,47; p= 0,023). Dos indivíduos jovens, 88,2% eram anilhados e dos adultos 25,9%. A maioria (89,6%) morreu ao tocar as asas nos condutores elétricos ou pousando nas estruturas (cruzetas) desprotegidas da rede elétrica, 8,3% morreram ao se acidentar com o transformador de energia e 2,1% não foi possível determinar qual estrutura o animal teve contato. Foi possível identificar o sexo de 22 indivíduos de A. ararauna, sendo 14 fêmeas e oito machos (χ²= 1,23; p= 0,59). É importante salientar que os indivíduos adultos estavam em período reprodutivo e as suas mortes resultaram na perda de ovos e filhotes. As lesões provocadas por este acidente variaram entre lesões externas leves, sem queimaduras ou com queimaduras severas (Figura 4A) e hemorragia.

Os ninhos de A. ararauna por estarem localizados em diferentes locais da área urbana como quintais de residências, calçadas, canteiro de avenidas, imóveis comerciais entre outros, cuja a proximidade com a rede elétrica é constante, eleva o risco de acidentes por eletrocussão (Figura 5A). O fato de os ninhos ficarem próximos aos postes, facilita o pouso das aves nos mesmos e, consequentemente, aumenta as chances de eletrocussão (Figura 5B).

Figura 4
Imagens de araras eletrocutadas, sendo: (A) macho jovem de A. ararauna (anilhado/AA1032) morto em rede elétrica em 2014. Queimaduras na face e pé do indivíduo; (B) indivíduo de A. chloropterus preso na eletrofiação de uma rede de distribuição de energia, envolvida pela folhagem da copa Terminalia catappa.

Figura 5
Imagens evidenciando a proximidade dos ninhos na rede elétrica urbana, sendo: (A) ninho natural (n.86) de A. ararauna e (B) fêmea de A. ararauna (ninho n.16), pousada em poste de distribuição de rede elétrica.

A correlação entre o comportamento migratório das aves com o aumento de eletrocussão é relatada por Golmes et al. (2018), Garrido et al. (2009), Valverde et al. (2010), Souza et al., (2017) que agregaram outros fatores ao aumento da suscetibilidade a eletrocussão, como o comportamento alimentar e defesa de território tanto intra quanto interespecífico. Golmes et al. (2018) observaram que a maior taxa de eletrocussão em sua área de estudo foi do papagaio-da-patagônia (Cyanoliseus patagonus) com 12 mortes ao ano. Estas aves migram para a região da Patagônia no inverno, quando foram registradas as mortes por eletrocussão e explica a sazonalidade das eletrocussões.

Segundo Aplic (2006), a eletrocussão de aves é o resultado da interação entre a biologia, o ambiente e a engenharia. Os fatores de risco de eletrocussão correspondem também ao hábitat, ao número de presas, ao comportamento da espécie, a idade, a estação e o clima. No caso das alterações do ambiente, como por exemplo, a redução de árvores em áreas urbanas, fazem com que as aves substituam os galhos pelos condutores elétricos para realizar atividades como pouso para descanso, defesa de território, pontos de caça, dormitórios e locais de nidificação o que aumenta o risco de eletrocussão (SERGIO et al., 2004; GUIL et al., 2011; FERRER, 2012; PEREZ-GÁRCIA et al., 2011). Golmes et al. (2018) reforçam esta ideia, quando relatam aves mortas por eletrocussão apenas em áreas de pastagens e de matagais onde há quilômetros de estruturas e condutores de distribuição de energia elétrica.

Neste estudo, a mortalidade de adultos tanto de A. ararauna quanto de A. chloropterus foi predominante. Em relação à faixa etária, deve-se considerar que a maior taxa de mortalidade de adultos de uma espécie de ave, diminui a população fértil e consequentemente o sucesso reprodutivo (PEREZ-GÁRCIA et al., 2011). A maior perda de indivíduos adultos observada por Perez-Gárcia et al. (2011) diferem de Godino et al. (2016) que relatam a mortalidade em rapinantes por eletrocussão atingindo principalmente os jovens. Segundo os autores, esse fator é influenciado pela área de ocupação dos indivíduos, pois foi realizado em uma área de dispersão de juvenis e com elevada quantidade de presas, favorável para caça. O mesmo foi observado por Sérgio et al. (2004) que estudaram uma espécie de coruja (Bubo bubo) nos Alpes italianos e estimaram que cerca de 17% dos jovens que sobreviveram foram perdidos por eletrocussão pós-ninhada. Para os autores, esse fato a longo prazo, não afetaria o sucesso reprodutivo da espécie. Porém, é necessário considerar que esta perda não é natural. Logo, a população da espécie pode ser afetada, pois este fator reduz o crescimento populacional que considera o número da prole que chega a atingir a reprodução.

No caso de A. ararauna, a taxa de mortalidade de jovens e adultos em área urbana em Campo Grande indica estar relacionada principalmente à localização dos ninhos e dos pontos de alimentação que estão próximos da rede de distribuição elétrica. Mas ainda, a ausência de árvores para pouso aumenta as chances de ocorrência de acidente. Em Campo Grande, pode-se afirmar que a eletrocussão é um fator que afetou o sucesso reprodutivo da espécie, uma vez que ocasionou a morte principalmente de adultos reprodutores, responsável por inserir os jovens na população. Por outro lado, a perda de jovens também tem seu impacto negativo, pois reduz a manutenção do número de adultos no futuro da população. A perda de jovens e adultos também foi relatada por outros autores que estudaram os impactos da eletrocussão sobre a dinâmica populacional de diversas espécies de aves, em outras partes do mundo (SÉRGIO et al., 2004; HUNT; HUNT, 2006; SCHAUB et al., 2010; GUIL et al., 2011; PEREZ-GÁRCIA et al., 2011; CHEVALLIER et al., 2015; GODINO et al., 2016; SOUZA et al., 2017). Porém, se medidas para diminuição, prevenção e eliminação desses acidentes forem criadas, essas populações podem ser conservadas e/ou recuperadas (SCHAUB et al., 2010; GUIL et al., 2011; PEREZ-GÁRCIA et al., 2011; CHEVALLIER et al., 2015; GODINO et al., 2016; SOUZA et al., 2017).

Trabalho desenvolvido com a Águia de Bonelli (Aquila fasciata), demonstrou que após o isolamento de linhas de energia, a taxa de sobrevivência de todas as faixas de idade aumentou devido à diminuição da mortalidade por eletrocussão (CHEVALLIER et al., 2015). Além disso, os autores concluem que a sobrevivência dos adultos foi um parâmetro chave para esta espécie de águia manter o número de jovens da população. Por isso, o isolamento das linhas é uma forma eficaz de manejo para a conservação de grandes espécies de aves e de suas populações.

Além da perda de indivíduos que leva à redução da população, a eletrocussão ocasiona um grande prejuízo financeiro para as concessionárias de energia elétrica, uma vez que danificam equipamentos e aumentam as chances de incêndios e interrupções no fornecimento de energia elétrica (APLIC, 2006; BURGIO et al., 2014; GUIL et al., 2018; SOUZA et al., 2017). Um exemplo, é o caso do periquito-monge (Myopsitta monachus), uma espécie da América do Sul que foi introduzida nos Estados Unidos e por nidificarem em estruturas da distribuição de energia elétrica, gera alto custo financeiro para as concessionárias americanas (AVERY et al., 2014; RED et al., 2014).

Desta forma, ações de mitigação para esse tipo de acidente são viáveis e vantajosas para as concessionárias de energia, e por consequência extremamente importantes para a conservação das grandes araras que vivem na cidade. Para realizar mitigação, uma série de fatores devem ser considerados, como: a espécie foco, o comportamento e ecologia da espécie, o tamanho corporal, a sazonalidade, condições climáticas e os fatores que aumentam a suscetibilidade de eletrocussão, assim como o custo e viabilidade de manejo das estruturas (BEVANGER, 1994; AVERY et al., 2014; BURGIO et al., 2014; RED et al., 2014; CHEVALLIER et al., 2017).

Em Campo Grande, a concessionária local realiza a poda de árvores que estão em conflito com a rede de distribuição elétrica. Além disso, substitui estruturas desprotegidas por condutores elétricos e aparelhos protegidos. Porém, não há nenhum documento técnico disponível à consulta pública que informe como essas substituições na rede são realizadas. Apesar disso, a prioridade para a realização dos manejos na rede elétrica adotada pela concessionária de energia é orientada pelo Instituto Arara Azul. Esse tipo de articulação entre entidades de conservação e empresas privadas é exemplo de um manejo bem sucedido para a conservação não só das grandes araras.

Após articulações interinstitucionais, as substituições começaram a ser realizadas em locais de alta probabilidade de acidentes envolvendo as araras. Ações que tem como objetivo unir esforços entre organizações não governamentais são excelentes exemplos para que novas parcerias busquem soluções para a conservação da biodiversidade.

Conclusões

• - A eletrocussão é um acidente que ocorre com frequência envolvendo as grandes araras em área urbana de Campo Grande. Com os dados obtidos pode-se afirmar que é um importante fator de mortalidade que não pode ser negligenciado, pois afeta a sobrevivência e a dinâmica populacional das grandes araras na área estudada;

• - A eletrocussão das araras está relacionada com o tamanho corporal e envergadura das asas de ambas as espécies; e a proximidade das estruturas elétricas com os recursos alimentares e de nidificação para A. ararauna e A. chloropterus;

• - Os resultados obtidos nesta pesquisa podem nortear novos estudos na área da Ecologia Urbana em Campo Grande e outras localidades, visando a elaboração de medidas de mitigação para a conservação da biodiversidade, pois a eletrocussão é um problema que atinge várias espécies da fauna nos centros urbanos.

References

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  15 Abr 2022
• Data do Fascículo
  2022

Histórico

• Recebido
  10 Fev 2019
• Aceito
  08 Nov 2021