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Conselho de Gestão do Patrimônio Genético e a coordenação da política de acesso e repartição de benefícios no Brasil

Resumo

O objetivo do artigo é discutir o funcionamento do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen) desde a promulgação da Lei n° 13.123/ 2015 até dezembro de 2019, com vistas a compreender seu papel de coordenador da política de repartição de benefícios. Foi apresentado o contexto de funcionamento do CGen e discutido a coordenação de políticas públicas como referencial teórico. A pesquisa foi empreendida a partir da análise das atas das 24 reuniões realizadas pelo Conselho, buscando identificar a frequência dos membros titulares, a participação dos ouvintes e os temas mais discutidos nas reuniões. Foi verificado que o CGen é uma liderança na aplicação da lei, que busca utilizar comunicação e padronização como mecanismos para a sua coordenação. Contudo, a baixa participação dos beneficiários da política e dos representantes dos estados e municípios colocam a efetividade da política em xeque.

Palavras-chave:
Acesso e Repartição de benefícios; Conselho de Políticas Públicas; Patrimônio Genético; Conhecimento Tradicional; Coordenação de políticas públicas

Abstract

The purpose of the article is to discuss the functioning of the Genetic Heritage Management Council (CGen, acronym in Portuguese) from the enactment of Law No. 13,123 / 2015 until December 2019, to understand its role as coordinator of the benefit-sharing policy. CGen’s work context was presented and the theoretical framework of public policy coordination was discussed. The research was carried out based on the analysis of the minutes of the 24 meetings held by the Board, seeking to identify the frequency of full members, the participation of listeners, and the most discussed topics at the meetings. The CGen was found to be a leader in law enforcement, which seeks to use communication and standardization as mechanisms for its coordination. However, the low participation of beneficiaries of the policy and representatives of states and municipalities calls into question the effectiveness of the policy.

Keywords:
Access and Benefit sharing; Public Policy Council; Genetic Heritage; Traditional Knowledge; Coordination of public policies

Resumen

El objetivo del artículo es discutir el funcionamiento del Consejo de Gestión del Patrimonio Genético (CGen, acrónimo en portugués) desde la promulgación de la Ley N ° 13.123 / 2015 hasta diciembre de 2019, con miras a entender su rol como coordinador de la política de distribución de beneficios. Se presentó el contexto de trabajo de CGen y se discutió la articulación de políticas públicas como referencia teórica. La encuesta se realizó a partir del análisis de las actas de las 24 reuniones realizadas por la Junta Directiva, buscando identificar la frecuencia de miembros plenos, la participación de los oyentes y los temas más discutidos en las reuniones. Se encontró que el CGen es un líder en la aplicación de la ley, que busca utilizar la comunicación y la estandarización como mecanismos para su coordinación. Sin embargo, la baja participación de los beneficiarios de la política y los representantes de los estados y municipios socava la efectividad de la política.

Palabras-clave:
Acceso y Distribución de beneficios; Consejo de Políticas Públicas; Herencia genética; Conocimiento tradicional; Coordinación de políticas públicas

Introdução

A primeira normativa sobre repartição de benefícios no Brasil foi estabelecida pela Medida Provisória (MP) nº 2.186-16/ 2001. No entanto, a sua consolidação foi realizada pela Lei n° 13.123/ 2015, que dispõe sobre a proteção do patrimônio genético nacional e dos conhecimentos associados de comunidades tradicionais e indígenas, buscando promover a divisão dos benefícios obtidos pela sua comercialização. Essa legislação foi criada a partir da perspectiva de que seria injusto agentes privados acessarem e explorarem economicamente esses recursos sem um retorno para o país ou para os provedores desse material.

Para coordenar os agentes e interesses, bem como para tomar decisões a respeito da implementação da política de repartição de benefícios no país, foi criado o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen), em funcionamento desde 2002, ligado ao Ministério do Meio Ambiente (MMA). O objetivo deste artigo é analisar a atuação do CGen desde a promulgação da Lei n° 13.123/ 2015 até dezembro de 2019, com vistas a compreender seu funcionamento e papel de coordenador da política de repartição de benefícios. A importância dessa análise se encontra na escassez de estudos que tratem dessa política a partir da atuação do CGen.

Para a realização deste artigo foi empreendida uma pesquisa bibliográfica sobre repartição de benefícios no Brasil (apresentado na segunda seção) e coordenação de políticas públicas (apresentada na terceira seção). Foram também levantados documentos, como leis, decretos, medidas provisórias que pudessem trazer informações sobre os assuntos.

Os relatórios de gestão do CGen, disponíveis apenas entre os anos de 2003 e 2015, foram consultados para compor o contexto histórico do seu funcionamento. No entanto, para cumprir o objetivo da presente pesquisa, foram examinadas as atas de todas as suas reuniões (ordinárias e extraordinárias) realizadas entre 2016 e 2019, já que a primeira reunião sob a Lei n° 13.123/ 2015 ocorreu em julho de 2016. As atas foram lidas, as informações sistematizadas e analisadas, sendo identificados os principais interessados na política e as principais atividades do Conselho (apresentados na seção quatro do artigo). A última seção traz as considerações finais do estudo apontando que apesar do CGen se utilizar de diferentes mecanismos de coordenação para contribuir com o bom funcionamento da política, a baixa participação dos beneficiários da política e dos representantes dos estados e municípios colocam a sua efetividade em xeque.

A política de Repartição de Benefícios

A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) foi o primeiro tratado mundial sobre biodiversidade, entrou em vigor em 1993, sendo ratificada por 187 países (FRANÇA, 2007FRANÇA, K. R. Uma Discussão sobre a Ampliação da Comunidade Política: as Negociações Internacionais sobre Acesso a Recursos Genéticos, Conhecimentos Tradicionais e Repartição de Benefícios. PUCRio. Rio de Janeiro, 2007.). Também ratificada pelo Brasil, em 1994, dispõe sobre a necessidade de um mecanismo de repartição de benefícios e controle do acesso ao patrimônio genético. A CDB garante às Nações autonomia para lidar com o acesso ao seu patrimônio genético, mas aponta para o fato de que seria injusto para os detentores desse patrimônio não terem algum tipo de retorno sobre a sua exploração comercial (RÊGO, 2008RÊGO, P. A. A Conservação da Biodiversidade, a Proteção do Conhecimento Tradicional Associado e a Formação de um Regime de Repartição de Benefícios no Âmbito da Convenção da Diversidade Biológica (CDB). UFSC-UFAC. Florianópolis. 2008.).

A MP n° 2.186-16/2001 foi a primeira regulamentação sobre o tema no Brasil. Ela tinha o objetivo de impedir que empresas e indivíduos se apropriassem privadamente de recursos genéticos da fauna e da flora através dos conhecimentos tradicionais associados para transformá-los em produtos lucrativos, sem qualquer retorno para o país (SOUZA et al., 2017SOUZA, A. L. G.; JUNIOR, A. A. S.; SILVA, G. F. Os “Royalties” das Aplicações Tecnológicas do Patrimônio Genético Nacional e dos Conhecimentos Tradicionais Associados: o Estado Brasileiro em Questão. Revista GEINTEC. Aracajú. v. 7, N. 4, p.4149-4158, out/nov/dez. 2017.).

Para o MMA (s/d), a MP foi um importante marco no combate à biopirataria, mas precisava de reformulação, devido às críticas empreendidas por parte dos seus usuários. Por um lado, aqueles que buscavam acesso ao patrimônio genético e aos CTAs afirmavam que os procedimentos eram rígidos e burocráticos, gerando altos custos (SACARRO Jr., 2011). Por outro lado, os provedores de patrimônio genético e dos CTAs (indígenas, comunidades ou agricultores tradicionais) criticavam o fato de não terem participação suficiente na tomada de decisões.

Assim, a MP foi revogada com a publicação da Lei n° 13.123/ 2015, conhecida como Lei da Biodiversidade, que estabeleceu as novas normas para o acesso ao patrimônio genético e aos CTAs, além de conter diretrizes para a realização da repartição de benefícios.

Estudiosos apontam alguns avanços e críticas relacionadas com a nova legislação. Silva (2017SILVA, M. A Lei da Biodiversidade: sua Origem e seu Impacto na Pesquisa e no Desenvolvimento Tecnológico com Patrimônio Genético e Conhecimento Tradicional Associado. In: NADER, H. B.; OLIVEIRA, F.; MOSSRI, B. B. (Org.). A ciência e o poder legislativo. São Paulo: SBPC, 2017.), por exemplo, afirma que há melhoras nos trâmites burocráticos para os pesquisadores, na elucidação de conceitos e nas regras prefixadas para a repartição de benefícios. Há também o argumento de que a nova legislação permitiu a inclusão de representantes do setor empresarial e das comunidades tradicionais na plenária do CGen. Sobre as críticas, Brandão (2018BRANDÃO, P. A. D. M. Colonialidade do Poder e Direito: uma análise da construção do novo marco legal de acesso à biodiversidade. Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação da Faculdade de Direito. Brasília, 2018.) denuncia a predominância dos interesses do mercado aos interesses das comunidades tradicionais. Moreira (2017MOREIRA, E. C. P.; PORRO, N. M.; SILVA, L. A. L. (Org.) A “Nova” Lei nº 13.123/2015 no Velho Marco Legal da Biodiversidade: Entre Retrocessos e Violações de Direitos Socioambientais. São Paulo: Inst. O direito por um Planeta Verde, 2017.) aponta que a lei criou uma separação entre patrimônio genético e conhecimento tradicional e critica a modalidade “conhecimentos tradicionais de origem não identificável” de difícil estabelecimento. Essas críticas foram corroboradas por diferentes representantes de comunidades tradicionais e povos indígenas (MOREIRA et al., 2017MOREIRA, E. C. P.; PORRO, N. M.; SILVA, L. A. L. (Org.) A “Nova” Lei nº 13.123/2015 no Velho Marco Legal da Biodiversidade: Entre Retrocessos e Violações de Direitos Socioambientais. São Paulo: Inst. O direito por um Planeta Verde, 2017.).

Mesmo com as críticas, a Lei n° 13.123 passou a estabelecer o veículo pelo qual a repartição se dá, que pode ser monetário ou não monetário. Se monetário, aquele que usufruiu de patrimônio genético ou conhecimento tradicional “de origem não identificável” para a fabricação de produtos deve repassar até 1% da sua receita anual líquida para o Fundo Nacional de Repartição de Benefícios (FNRB). Esse percentual pode ser reduzido para 0,1%, conforme o acordo definido para garantir a competitividade do setor produtivo. Se a modalidade for não monetária, a repartição se dá através de transferência de tecnologia, projetos para o uso sustentável da biodiversidade, distribuição gratuita de produtos em programas de interesse social, etc. Já no caso da utilização de conhecimento tradicional “de origem identificável”, o provedor de conhecimento tem o direito de receber benefícios mediante acordo negociado diretamente com os usuários. Em adição, na nova legislação foi prevista a criação do Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado (SisGen), tema que será retomado à frente.

Durante a vigência da MP n° 2.186-16/ 2001, o CGen realizou 130 reuniões (ordinárias e extraordinárias), em que foram aprovados 295 Contratos de Utilização do Patrimônio Genético e Projetos de Repartição de Benefícios (CGen, 2015 e 2016). Foram realizadas ainda ações de prevenção ao acesso ilegal ao Patrimônio Genético e CTA, de qualificação das comunidades tradicionais, e discussões sobre os regulamentos da política.

Com a publicação da Lei n° 13.123/ 2015 ocorreram mudanças no CGen: enquanto o texto da MP estabelecia que o Conselho deveria coordenar apenas a implementação das políticas relacionadas ao patrimônio genético e ao CTA, a lei estabeleceu também a sua responsabilidade na elaboração dessas políticas. Foi definido que o Conselho possui caráter deliberativo, normativo, consultivo e recursal, e é composto por um percentual máximo de 60% de representantes da administração pública federal e o mínimo de 40% de representantes da sociedade civil, os quais são divididos entre indústria, academia e comunidades tradicionais (BRASIL, 2015).

Coordenação de políticas públicas

Não há uma definição única do termo coordenação. Para Boston (1992BOSTON, J. ‘The Problems of Policy Coordination: The New Zealand Experience’, 1992, Governance, 5 (1), 88-103.) coordenação é um valor processual e engloba uma gama de metas e preocupações. Lindblom (1965LINDBLOM, C. E. The Intelligence of Democracy: Decision Making Through Mutual Adjustment. New York: Free Press, 1965.) define coordenação como uma adequação mútua entre atores ou uma interação deliberada para produzir resultados positivos para os participantes. Para Metcalfe (1996METCALFE, L. Building Capacities for Integration: The Future Role of the Commission. Lecture given at the Schuman-Seminar, Maastricht (NL) on 13 May 1996.) e Peters (1998PETERS, G. B. ‘Managing Horizontal Government: The Politics of Coordination’, Public Administration, 1998, 76 (2), 295-311.), trata-se dos instrumentos que buscam alcançar (de forma forçada ou voluntária) o alinhamento das tarefas e esforços das organizações dentro do setor público.

Souza (2018SOUZA, C. Coordenação de Políticas Públicas. Brasília: Enap, 2018., p.16) entende a coordenação como “a organização de todas as atividades, com o objetivo de alcançar consenso entre indivíduos e organizações para o atingimento dos objetivos de um grupo”. Ao se tratar de atividades, fica em destaque a necessidade de coordenação no âmbito burocrático e administrativo do governo. Mas a autora também apresenta a coordenação como “um mecanismo para a resolução de conflitos” o que evidencia sua importância na dimensão política.

Malone e Crowston (1994MALONE, T. W. The Interdisciplinary Study of Coordination. ACM Computing Surveys, Vol. 26, No. 1, March 1994.) parecem resumir essas diferentes definições de coordenação ao interpretá-la como o “gerenciamento de interdependências entre atividades”, sendo a interdependência um termo chave, uma vez que ele que torna a coordenação necessária. Assim, estudar coordenação de políticas públicas é perguntar quais são os tipos de interdependência existentes entre as atividades (de uma única política ou várias) e como podem ser gerenciados. Essa definição é interessante pois não oculta a cooperação, o conflito e a concorrência que podem existir em processos desta natureza. Também não limita o número de participantes envolvidos para que se necessite de coordenação. Em outras palavras, um único ator pode realizar distintas atividades interdependentes e por essa razão precisa coordená-las (CASTRO; YOUNG, 2017CASTRO, B. S.; YOUNG, C. E. F. Problemas de Coordenação de Políticas Públicas: desafios para a gestão ambiental no Brasil. Síntese: Revista do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, v. 12, p. 32-53, 2017.).

Estudar coordenação de políticas públicas é relevante por sua capacidade de evitar a sobreposição e inconsistências dentro das atividades governamentais (PELKONEN et al., 2009PELKONEN, A.; TERÄVÄINEN, T.; WALTARI, S.T. Assessing Policy coordination capacity. Education in Finland. Taipei: National Institute of educational Resources and Research (NIOERAR) 2009.). Além disso, Peters (2015PETERS, G. B. Advanced Introduction to Public Policy. Published by Edward Elgar Publishing Limited. 2015.) argumenta que a coordenação representa uma questão fundamental do campo das políticas públicas, principalmente porque a maioria das políticas possui algum grau de dependência de outras para funcionar.

No caso da repartição de benefícios diferentes atores e instituições precisam gerenciar suas atividades interdependentes para que a política funcione. Os provedores de conhecimento tradicional detêm e fornecem a informação sobre o patrimônio genético. Eles devem receber os benefícios financeiros provenientes das empresas que exploram economicamente tais recursos. Os recursos financeiros são distribuídos a partir do FNRB, que é gerenciado pelo MMA e BNDES (instituição financeira).

Os pesquisadores realizam atividades experimentais ou teóricas, que não necessariamente gerarão produtos comerciais a partir do patrimônio genético ou CTA. Contudo, esses interessados devem solicitar autorização para a realização de tais pesquisas. O governo, em seus diferentes órgãos federais, é responsável por estabelecer as regras gerais do funcionamento da política e fiscalizá-la. Já o CGen é responsável por coordenar a elaboração e a implementação da política de acesso ao patrimônio genético e ao CTA. Em adição, há a necessidade de integração da política de repartição de benefícios com outras, associadas à biodiversidade, à proteção intelectual, etc.

Alguns autores têm discutido os mecanismos capazes de promover a coordenação. Malone (1994MALONE, T. W. The Interdisciplinary Study of Coordination. ACM Computing Surveys, Vol. 26, No. 1, March 1994.) discute o papel da cooperação, da competição e do conflito para o seu alcance. Metcalfe (1996METCALFE, L. Building Capacities for Integration: The Future Role of the Commission. Lecture given at the Schuman-Seminar, Maastricht (NL) on 13 May 1996.) aponta a possibilidade de que diferentes atores, em rede, alcancem a coordenação sem a necessidade do estabelecimento de uma liderança.

Mintzberg (2008MINTZBERG, H. Criando Organizações Eficazes: Estruturas em cinco Configurações. São Paulo: Atlas. 2. ed. 2008.), ao tratar das organizações, estabelece cinco mecanismos, que podem ser usados isoladamente ou em conjunto, capazes de promover a coordenação. Os mecanismos apontados pelo autor são: ajuste mútuo, supervisão direta, padronização dos processos de trabalho, padronização dos resultados do trabalho e padronização das habilidades dos trabalhadores.

O “ajuste mútuo” se refere à capacidade de comunicação entre os membros de uma organização. Trata-se da comunicação frequente e informal, realizada em todos os tipos de organizações, com considerável descentralização. Nesses casos, a coordenação depende da colaboração entre os membros da organização e pode ser realizada independentemente da existência de uma chefia ou gerência (MINTZBERG, 2008MINTZBERG, H. Criando Organizações Eficazes: Estruturas em cinco Configurações. São Paulo: Atlas. 2. ed. 2008.).

A “supervisão direta” também é um mecanismo de coordenação e trata da existência de um líder, capaz de definir as diretrizes do trabalho e monitorar as ações dos demais agentes da organização. Na “supervisão direta” a tomada de decisão é centralizada e o controle exercido pela figura de autoridade.

A coordenação igualmente poderia ser alcançada através da padronização. Com essa proposta espera-se que exista um planejamento, baseado no conhecimento científico, antes da realização de cada atividade. No caso da padronização do processo de trabalho, há uma uniformização da maneira que as atividades são realizadas. Já a padronização dos resultados prevê que os produtos gerados sejam iguais, tratem-se de bens ou serviços. A padronização das habilidades dos trabalhadores se relaciona ao conhecimento que esses detêm. Eles devem ter determinado treinamento de forma a saber exatamente o que fazer e o que esperar dos demais colaboradores da organização (MINTZBERG, 2008MINTZBERG, H. Criando Organizações Eficazes: Estruturas em cinco Configurações. São Paulo: Atlas. 2. ed. 2008.).

Os mecanismos mencionados para o alcance da coordenação não tratam especificamente do setor público ou das políticas públicas, mas Mintzberg (2008MINTZBERG, H. Criando Organizações Eficazes: Estruturas em cinco Configurações. São Paulo: Atlas. 2. ed. 2008.) defende que podem ser empregados em diferentes organizações. Desta forma, será verificada sua utilização no âmbito do CGen, com vistas a compreender sua capacidade de contribuir para o gerenciamento das interdependências das atividades e o pleno funcionamento da política.

Resultados e discussões

Entre a criação da Lei n° 13.123/ 2015 e dezembro de 2019, foram realizadas 24 reuniões do CGen, sendo 21 ordinárias e três extraordinárias, todas em Brasília. Essas reuniões contaram em média com 51 participantes (entre titulares e ouvintes), representantes de, em média, 34 órgãos diferentes - o que evidencia a quantidade de interessados na política. Do total das reuniões, 15 foram realizadas em dois dias, devido à quantidade de processos ou complexidade dos temas colocados em pauta.

O CGen é presidido pelo MMA, com a Secretaria-Executiva a cargo da Secretaria de Biodiversidade. A partir da Lei n° 13.123/ 2015, o Conselho foi constituído por 20 órgãos, cada um tendo direito a um representante titular e dois suplentes, sendo sua composição alterada pelo Decreto n° 8.772/ 2016 (Tabela 1).

Tabela 1
Alteração dos órgãos que compõem o CGen, 2001-2015 e 2016-2019

É possível notar que as mudanças na composição do CGen ocorreram principalmente com os representantes da academia, indústria e comunidades tradicionais. Importantes instituições de pesquisa na área de ciências biológicas, agricultura, meio ambiente e medicina, como a EMBRAPA, o Instituto Evandro Chagas e o INPA, entre outros, foram substituídos pela ABC e SBPC. O INPI deixou de fazer parte do CGen, mesmo sendo no Brasil o órgão responsável pela concessão de pedidos de patentes obtidos a partir do acesso ao Patrimônio Genético Nacional ou ao CTA. Já os representantes do IBAMA, da FUNAI e da FIOCRUZ, apesar de estarem fora do novo Conselho, ainda mantiveram certa frequência nas reuniões, porém, apenas como ouvintes.

Outro destaque é que enquanto as instituições científicas perderam espaço, diferentes Conselhos ganharam assentos. Esses Conselhos são órgãos colegiados e paritários entre governo e sociedade, que permitem a discussões sobre o planejamento e gestão das políticas públicas em diferentes áreas: saúde, assistência social, educação, trabalho, etc. (MARTINS et al., 2008MARTINS, M. F.; MARTINS, S.; OLIVEIRA, A. R.; SOARES, J. B. Conselhos municipais de políticas públicas: uma análise exploratória. Revista do Serviço Público. Brasília, 59. abr./jun. 2008.). Por exemplo, o Condraf e o CNPI são entidades que congregam atores governamentais e não governamentais, permitindo que as discussões do CGen sejam difundidas e ampliadas. Inclusive, representantes de comunidades tradicionais, entrevistados por Moreira, Porro e Silva (2017SILVA, M. A Lei da Biodiversidade: sua Origem e seu Impacto na Pesquisa e no Desenvolvimento Tecnológico com Patrimônio Genético e Conhecimento Tradicional Associado. In: NADER, H. B.; OLIVEIRA, F.; MOSSRI, B. B. (Org.). A ciência e o poder legislativo. São Paulo: SBPC, 2017.), apontaram a importância desses órgãos para informá-los sobre a repartição de benefícios. Nesse sentido, após a promulgação da Lei n° 13.123/ 2015, foram construídos no CGen novos espaços de participação para a sociedade civil e para o setor produtivo, representado por entidades como CNI e CNA.

No entanto, já em 2016, ocorreram alterações na estrutura administrativa do governo federal que afetaram a composição do CGen. De acordo com a Lei n° 13.341/ 2016, o MDS e o MDA foram transformados em Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA). Em 2019, com a mudança de governo, foram promovidas novas alterações no executivo federal: o MinC e o MDSA passaram a compor o Ministério da Cidadania (MC) e o MDIC passou a fazer parte do Ministério da Economia (ME) (BRASIL, 2019).

Com essas mudanças, os representantes dos órgãos extintos deixaram de comparecer às reuniões do CGen e, a partir de 2019, foi inaugurada a participação do ME. Já o MC ainda não havia cumprido os trâmites internos do MMA para a indicação dos seus representantes, como consta nas justificativas de ausências das atas das reuniões n° 20 e 21. Assim, a plenária do conselho passou a ser composta por 17 órgãos. A Figura 1 apresenta a frequência de participação dos conselheiros (titulares e suplentes) nas plenárias do CGen, entre 2016 e 2019.

Figura 1
Frequência de participação dos membros do CGen em suas reuniões, 2016-2019.

Representantes de três órgãos participaram em todas as reuniões do CGen: MMA, MAPA e CNI. Possuindo a cadeira de presidente do Conselho, o MMA precisa participar de todas as reuniões. Já a plena assiduidade dos representantes do MAPA e da CNI aponta para a importância comercial das decisões tomadas em seu fórum. De uma maneira geral, a frequência nas reuniões dos representantes dos demais órgãos é alta, ficando entre 70% e 90% de assiduidade. Abaixo dessa média encontram-se dois órgãos (ME e MC) que só começaram a fazer parte do Conselho recentemente, em razão da incorporação de outros Ministérios. A SBPC, apesar de ser bastante ativa em momentos importantes da política de repartição de benefícios, como no processo de aprovação de sua regulamentação1 1 - A SBPC participou de diferentes audiências públicas e elaborou (em maio de 2016) um documento para o MMA propondo uma série de alterações ao Projeto de Decreto que Regulamenta a Lei nº 13.123/2015 (SBPC, 2016). Algumas das sugestões da organização foram acatadas. , só participou de aproximadamente 50% das reuniões.

A alteração de representantes titulares e suplentes de cada um dos órgãos que compõem a plenária do CGen também foi analisada. Dentre os 20 órgãos que participaram da plenária, sete (MS, CNPI, MJ, CNA, CNPCT, MD e ME) não realizaram nenhuma mudança e 10 (MMA, MAPA, ABC, CONDRAF, MINC, MDSA, ABA, SBPC e CNI - esse último com dois assentos) modificaram apenas uma vez os membros titulares ou suplentes ao longo do tempo. No MCTI e MDIC foram realizadas duas alterações de titulares e suplentes, enquanto que apenas no MRE ocorreram mais de duas alterações.

Verificou-se que em algumas ocasiões a mesma pessoa mudou de status (de titular para suplente e vice-versa) ou de órgão que representava. Isto ocorre, provavelmente, pela complexidade da política em questão, que exige familiaridade com temas como engenharia genética, direitos de propriedade, valoração da biodiversidade, etc. Esse resultado não é trivial quando comparado com a rotatividade dos conselhos analisados em outras pesquisas (PORTES et al., 2017PORTES, L. H.; MACHADO, C. V.; TUNCI, S. R. B. Coordenação Governamental da Política de Controle do Tabaco no Brasil. Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fiocruz. Rio de Janeiro. Set. de 2017.).

Dado que as assembleias do CGen são públicas, os ouvintes também foram considerados relevantes para a análise. Esses agentes não possuem poder de voto sobre os assuntos discutidos nas reuniões. No entanto, podem pressionar e influenciar as decisões da Plenária. A Tabela 2 apresenta o número total de ouvintes nas 24 reuniões realizadas, classificados a partir dos órgãos que representavam.

Tabela 2
Ouvintes das reuniões realizadas pelo CGen, entre 2016-2019.

Os representantes de órgãos governamentais federais são maioria nas reuniões analisadas. Funcionários de ministérios estiveram presentes não apenas nas cadeiras de titulares, mas também como ouvintes. Contudo, o ministério que mais encaminhou representantes para as reuniões foi o MMA, que permitiu a participação de servidores ligados a secretarias e departamentos, como a Secretaria de Biodiversidade e o Departamento de Patrimônio Genético, além de representantes de autarquias, como o IBAMA.

Ainda ao tratar dos ouvintes ligados aos órgãos governamentais, servidores da FUNAI estiveram presentes em três reuniões. Esse é considerado um número baixo, dado que a política trata também da proteção do CTA. Igualmente se destaca a inexistência de representantes de outras esferas federativas, o que parece uma contradição, pois apesar da lei ser federal, o patrimônio genético e o CTA estão ligados ao território. Acredita-se que a ausência de participação de atores ligados a essas outras esferas federativas, seja na plenária ou como ouvintes do CGen, pode dificultar a coordenação para que a Lei n° 13.123/ 2015 seja efetivamente implementada.

De acordo com Milanezi e Barbosa (2013MILANEZI, N. V. G.; BARBOSA, B. O Exemplo brasileiro no Combate à Biopirataria. In: FERREIRA, S. N. e SAMPAIO, M. J. A. M. (org.) Biodiversidade e Conhecimentos Tradicionais Associados. Brasília, DF: SBPC, 2013.), as operações de fiscalização do IBAMA, em 2010 e 2012, foram fundamentais para ampliar o número de Contratos de Utilização e Repartição de Benefícios (CURBs) no Brasil. Essas operações estão de acordo com a Lei Complementar n° 140/ 2011 que estabeleceu que a União é responsável por gerir o patrimônio genético e o acesso ao CTA. No entanto, a mesma lei define que cada ente federativo é responsável pela proteção ambiental e pela fiscalização de seu território e que ações de cooperação entre União, estados e municípios são desejadas para que o meio ambiente, o patrimônio genético e CTA sejam protegidos. Para que ações integradas ocorram é necessária maior difusão dos conhecimentos sobre a lei de repartição de benefícios.

Acredita-se que o CGen, responsável por coordenar a política, exerça o papel de uma liderança, nos moldes apontados por Mintzberg (2008MINTZBERG, H. Criando Organizações Eficazes: Estruturas em cinco Configurações. São Paulo: Atlas. 2. ed. 2008.). Ele é capaz de tomar decisões de forma centralizada e controlar a atuação dos demais envolvidos na política. Nesse sentido, dado o papel dos órgãos de fiscalização dos demais entes federativos, seria adequado que instituições como a Associação Brasileira de Entidades Estaduais de Meio Ambiente e/ ou a Associação Nacional de Órgãos Municipais de Meio Ambiente fizessem parte da plenária do CGen.

Os escritórios de advocacia e consultoria aparecem em segundo lugar como aqueles que mais encaminharam ouvintes para participar das reuniões do CGen. Essas organizações possuem clientes interessados nos pedidos de autorização de acesso ao patrimônio genético e ao CTA, além de representação para o fechamento dos CURBs. Isso mostra a relevância econômica e jurídica da discussão a respeito da repartição dos benefícios.

Em terceiro lugar estão as empresas industriais, que contaram com 173 ouvintes de 33 companhias diferentes nas 24 reuniões do CGen. A Figura 2 apresenta as empresas industriais que participaram em ao menos duas reuniões.

Figura 2
Frequência como ouvintes dos representantes das empresas industriais que participaram em ao menos duas reuniões do CGen, 2016-2019.

Souza et al. (2017SOUZA, A. L. G.; JUNIOR, A. A. S.; SILVA, G. F. Os “Royalties” das Aplicações Tecnológicas do Patrimônio Genético Nacional e dos Conhecimentos Tradicionais Associados: o Estado Brasileiro em Questão. Revista GEINTEC. Aracajú. v. 7, N. 4, p.4149-4158, out/nov/dez. 2017.) destacam que as empresas do setor cosméticos e perfumaria têm uma participação mais ativa na política de repartição de benefícios. O mesmo é verificado na presente pesquisa, que mostra que empresas desse ramo (Natura, L’Oréal, Boticário) enviaram representantes em mais de 40% das reuniões. Também se nota a presença de empresas que trabalham com ingredientes naturais (como Beraca), farmacêutica, química e biotecnologia (Dupont - Pioneer, Monsanto, etc.). A identificação dos principais setores interessados na utilização do patrimônio genético nacional e CTA é importante para a priorização de políticas públicas específicas, com vistas a fomentar parcerias e a bioeconomia.

Vale destacar a participação no CGen de Associações, como AgroBio (Associação das Empresas de Biotecnologia na Agricultura e Agroindústria) e ABIFRA (Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Essenciais, Produtos Químicos Aromáticos, Fragrâncias, Aromas e Afins). Essas associações representam empresas com interesse comuns, que buscam reivindicar direitos e desenvolver o setor em que estão inseridas, visando o benefício mútuo.

Já as ICTs que mais participaram foram Fiocruz e Universidade de Brasília (UnB). A Fiocruz foi membro permanente do CGen até 2015 e a UnB possui proximidade com o local de realização das reuniões, facilitando o seu acesso. Igualmente foi identificada a participação de pesquisadores de outras universidades do Brasil e exterior, devido ao seu interesse sobre patrimônio genético e CTA.

Os conselhos governamentais que encaminharam representantes para acompanhar as reuniões do CGen foram a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e a CNPCT, que também possui cadeira como titular. Em adição, participaram como ouvintes membros do Conselho Federal Notarial e representantes de cartórios.

Os grupos que menos participaram como ouvintes nas reuniões do CGen foram membros do legislativo, organizações não governamentais e representantes de comunidades tradicionais. Em relação a esses últimos, estiveram presentes em 5 reuniões representantes da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneiras, Povo Indígena Ashaninka e o Instituto Socioambiental. Deve-se considerar que essa baixa participação pode estar relacionada à maior dificuldade de deslocamento para grupos localizados em áreas remotas. A maioria desses grupos não tem recursos para o deslocamento de ouvintes, em contraste com empresas e associações patronais (já o custo de deslocamento dos titulares é pago pelo governo federal)2 2 -Reuniões com transmissões online ou permitindo a participação online poderiam facilitar o acesso dos beneficiários da política. Porém, sabe-se que o acesso à internet e equipamentos é desigual no país, prejudicando principalmente os grupos mais vulneráveis (caso dos beneficiários da política). .

A baixa frequência dos detentores do conhecimento tradicional nas reuniões do CGen contribui para que haja pouca efetividade da política de repartição de benefícios, considerando seu objetivo de distribuir os ganhos da comercialização de produtos provenientes do patrimônio genético e do CTA. Isso porque, quanto menor a representatividade dos beneficiários da política no Conselho, menor as chances de uma partilha efetiva de poder de negociação com o estado e demais interessados na política (DAGNINO, 2002).

Esse resultado já foi evidenciado por Dias e Marinho (2015DIAS, L. L. C. C.; MARINHO, M. E. P. Concretização da Repartição de Benefícios em Conhecimentos Tradicionais Associados à Biodiversidade no Brasil. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v. 12, N. 23, p. 285-312 jan./jun. de 2015.), que analisaram seis processos administrativos examinados pelo CGen até 2013, relacionados apenas ao CTA. Os autores estabeleceram quatro requisitos (anuência prévia, repartição justa de benefícios, transferência de tecnologia e direitos de propriedade) para determinar se os objetivos da política foram atingidos. Como resultado apontaram que quatro processos analisados não cumpriam nenhum dos requisitos, enquanto dois cumpriam apenas um requisito cada. Assim, Dias e Marinho (2015) concluem que os objetivos da política de repartição de benefícios nos processos analisados não foram alcançados.

O último ponto observado na presente pesquisa foram os temas tratados com maior frequência no plenário do CGen (Figura 3). Esses temas se relacionam com as principais competências legais do Conselho.

Figura 3
Temas tratados nas reuniões da plenária do CGen, 2016-2020.

Os assuntos mais abordados no CGen se referem às Câmaras Temáticas e Setoriais, chegando a ser mencionados em 70% das atas analisadas. Dentre as discussões sobre essas Câmaras estão incluídas suas criações, indicações de representantes, deliberações e relatos sobre os trabalhos de cada uma.

As Câmaras servem como uma instância para os conselheiros consultarem especialistas, outros representantes do governo e da sociedade civil sobre temas específicos, antes de serem submetidos ao Plenário. Dado que são espaços de comunicação entre diferentes agentes, considera-se que contribuem para a coordenação da política, consolidando entendimentos e explicitando conflitos sobre determinados pontos a serem tratados pelo CGen.

O segundo tema mais discutido nas reuniões do Conselho são os autos de infração, que dizem respeito às irregularidades cometidas pelos requerentes do acesso ao patrimônio genético e/ou CTA. Nestes casos, o CGen atua deliberando sobre os autos e estabelecendo multas. Mesmo com o marco legal já estabelecido, muitas empresas que comercializam produtos desenvolvidos a partir da biodiversidade ainda não se regularizaram e não estão pagando os valores referentes à repartição de benefícios. De acordo com a regulação, as empresas que estavam explorando patrimônio genético e/ou CTA após junho de 2000, deveriam apresentar ao CGen um termo de compromisso para se adequar, mas até o final de 2018 apenas 60 empresas haviam apresentado seus termos (MACHADO, 2019MACHADO, M. Revisão do Marco Institucional, Político e Financeiro da Biodiversidade (versão preliminar) - PIR. PNUD - PROJETO BIOFIN, 2019.).

A tentativa de estabelecer procedimentos padronizados para que a legislação seja efetivamente implementada, como a assinatura dos termos de compromisso, se aproxima dos mecanismos para o alcance da coordenação, mencionados por Mintzberg (2008MINTZBERG, H. Criando Organizações Eficazes: Estruturas em cinco Configurações. São Paulo: Atlas. 2. ed. 2008.). A padronização de procedimentos é usada para minimizar dúvidas e contribuir para o gerenciamento das atividades interdependentes, no entanto, precisa de controle e fiscalização para ocorrer.

As “resoluções” e o “regimento interno”, tratados em 41% e 36% das reuniões, também se referem à padronização de processos de trabalho e dos resultados. No tema “resoluções” encontram-se deliberações e propostas de alteração de normas sobre repartição de benefícios. Já o “regimento interno” define as regras para o funcionamento do próprio CGen. A definição de diretrizes busca racionalizar e uniformizar as práticas para que ocorram adequadamente, mesmo sem a comunicação entre os membros. Com elas, os envolvidos na política sabem o que esperar dos demais agentes, buscando garantir que seus direitos e deveres sejam respeitados.

O SisGen, abordado em 41% das reuniões, é um sistema eletrônico, implantado em 2017, que serve de instrumento para auxiliar o CGen na gestão do patrimônio genético e do CTA. É por meio do SisGen que são feitos os controles de acesso, as permissões e registros de envios e remessas, as notificações de produtos acabados ou material reprodutivo, entre outras funções, que facilitam a comunicação entre os interessados na política e o Conselho. Após o início de seu funcionamento, as discussões sobre o SisGen giraram em torno de critérios para o cadastramento dos usuários e dos provedores, além de uma proposta sobre o desenvolvimento de uma nova plataforma. A criação e consolidação desse sistema também podem ser relacionadas às ferramentas de Mintzberg (2008MINTZBERG, H. Criando Organizações Eficazes: Estruturas em cinco Configurações. São Paulo: Atlas. 2. ed. 2008.) para alcançar a coordenação. A comunicação facilita o gerenciamento das atividades interdependentes e o SisGen torna menos complexa a tarefa de obter e controlar informações para a realização da repartição de benefícios.

Os CURBs, os relatórios de grupos de trabalhos e o FNRB foram os temas menos abordados nas reuniões, com uma frequência abaixo de 30%.

O primeiro (CURBs), chamados pela Lei n° 13.123 de “acordo de repartição de benefícios”, são “instrumentos jurídicos que qualificam as partes, o objeto e as condições para repartição de benefícios”. Ou seja, são os contratos realizados entre explorador e fornecedor do patrimônio genético nacional e do CTA, que precisam do registro e aprovação no CGen para garantir a utilização adequada dos recursos e a repartição dos benefícios.

Souza et al. (2017SOUZA, A. L. G.; JUNIOR, A. A. S.; SILVA, G. F. Os “Royalties” das Aplicações Tecnológicas do Patrimônio Genético Nacional e dos Conhecimentos Tradicionais Associados: o Estado Brasileiro em Questão. Revista GEINTEC. Aracajú. v. 7, N. 4, p.4149-4158, out/nov/dez. 2017., p. 4155) analisaram 103 CURBs registrados oficialmente no Brasil, entre 2004 e 2013. A maioria se referia ao uso exclusivo do Patrimônio Genético Nacional (86,4%) e foram firmados com associações ou cooperativas (61), pessoas físicas ou jurídicas privadas (52) e apenas um com comunidade indígena. Os autores ainda identificam que o valor global da repartição de benefícios provenientes desses acordos chegou a R$ 8,3 milhões, em valores de 2015.

Ao tratar dos recursos monetários gerados pela política, deve-se apontar que a discussão sobre o FNRB ocorreu em apenas uma reunião do CGen, em dezembro de 2019. O objetivo do FNRB é receber os recursos monetários obtidos pela exploração econômica dos produtos resultantes do acesso ao patrimônio genético e CTA e destiná-los para projetos no âmbito do Programa Nacional de Repartição de Benefícios (PNRB). Esse Fundo foi regulamentado em 2016, mas apenas em novembro de 2019 o BNDES foi escolhido como instituição financeira para geri-lo juntamente com o MMA. De acordo com Luna (2020LUNA, T. I. Fundo Nacional de Repartição de Benefícios: instrumento eficaz e eficiente da política de acesso e proteção ao patrimônio genético e conhecimento tradicional associado? Dissertação em Economia Gestão Econômica do Meio Ambiente. Brasília-DF, 2020), várias empresas já estavam habilitadas a depositar cerca de R$ 19 milhões nesse Fundo, referentes aos recursos arrecadados em 2019. No entanto, até maio de 2020, o FNRB não estava funcionando e seu Manual Operacional não tinha sido concluído e aprovado.

A análise acima mostra que o CGen é um órgão criado para estabelecer a coordenação da política de repartição de benefícios, sendo uma liderança no processo, capaz de centralizar a tomada de decisões e controlar as ações de diferentes atores interessados na política. Através do CGen foram criados mecanismos de padronização dos procedimentos e resultados, como os regulamentos, bem como de comunicação formal e informal, como o SisGen e as reuniões ordinárias e extraordinárias do Conselho e suas Câmaras. Em outras palavras, o CGen utiliza os mecanismos para o alcance da coordenação mencionados por Mintzberg (2008MINTZBERG, H. Criando Organizações Eficazes: Estruturas em cinco Configurações. São Paulo: Atlas. 2. ed. 2008.) para o funcionamento da política em questão.

No entanto, os resultados mostram que mesmo com tais mecanismos de coordenação em funcionamento, a política não tem sido bem-sucedida em atingir plenamente seu objetivo de repartição justa de benefícios. Isso porque se observou uma baixa participação no CGen dos beneficiários da política, o que pode ter influenciado para o pequeno número de contratos firmados com os detentores de CTA que gerassem retorno financeiro para os mesmos.

Acredita-se que essa situação ocorre em razão dos mecanismos apontados por Mintzberg (2008MINTZBERG, H. Criando Organizações Eficazes: Estruturas em cinco Configurações. São Paulo: Atlas. 2. ed. 2008.) para o alcance da coordenação prescindirem da discussão sobre poder. Ao tratar de uma política pública a discussão sobre poder é fundamental já que os recursos políticos e econômicos dos envolvidos têm impacto na sua implementação (HOWLETT et al., 2013HOWLETT, M.; RAMESH, M; PERL, A. Política Pública: seus ciclos e subsistemas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.). Isso significa que para além dos mecanismos de coordenação, são também necessários caminhos para equilibrar as diferenças de poder entre os interessados, favorecendo os que têm menor capacidade de atuação, como é o caso dos beneficiários da política de repartição de benefícios. A ausência de empoderamento dos grupos tradicionais para influenciar a política leva a resultados desiguais de repartição de benefícios. Dado que a política não é efetiva para distribuir recursos para os detentores do conhecimento tradicional, é gerado um ciclo vicioso de rejeição da legitimidade tanto da própria política quanto do CGen para as comunidades tradicionais, que deixam de participar do mesmo e acabam não pressionando para o pagamento da repartição dos benefícios.

Considerações Finais

O presente artigo teve como objetivo apresentar e discutir o funcionamento do CGen entre 2016 e 2019, com vistas a compreender seu papel de agente coordenador da política de repartição de benefícios.

Verificou-se que o CGen cumpre o papel de liderança na política, inclusive tendo como responsabilidade, definida por lei, coordenar sua elaboração e implementação. Parte importante de suas atividades é definir diretrizes e editar regras, que também são consideradas mecanismos para o alcance da coordenação, pois padronizam os processos e os resultados da política. Além disso, considera-se que o CGen proporciona o fórum adequado para que o “mecanismo de ajuste mútuo” ocorra, seja através da comunicação formal ou informal.

Mesmo com os mecanismos de coordenação propostos por Mintzberg (2008MINTZBERG, H. Criando Organizações Eficazes: Estruturas em cinco Configurações. São Paulo: Atlas. 2. ed. 2008.) em funcionamento, o CGen ainda enfrenta desafios para o alcance da efetividade da política. Acredita-se que esses desafios estejam ligados principalmente às dimensões de poder mobilizadas em processos que exijam coordenação, não considerados pelo modelo.

O primeiro desafio para o funcionamento da política é a falta de envolvimento de representantes estaduais ou municipais nas reuniões do Conselho. Essa situação é problemática, pois apesar da política ser de alcance nacional, é no espaço local que o patrimônio genético e o CTA se encontram. Desta maneira, é necessário incluir os órgãos ambientais das demais unidades da federação no CGen para a difusão do conhecimento sobre a política, bem como para o auxílio de sua fiscalização.

O segundo desafio se refere ao desequilíbrio da participação no Conselho, onde, por um lado, há considerável atuação de empresas, escritórios de advocacia e consultoria, e por outro, há baixa participação de movimentos sociais, organizações da sociedade civil e representantes das comunidades detentoras dos conhecimentos tradicionais. Essa situação faz com que esses últimos tenham menor capacidade de controle e pressão sobre as decisões da plenária do CGen, favorecendo os usuários em detrimento dos principais beneficiários da política, impactando sua efetividade. Essa característica pode ter contribuído para o pequeno número de contratos fechados até então, bem como para o reduzido volume de recursos repassados para essas comunidades.

Como recomendação para o melhor funcionamento da política sugere-se: a maior difusão do tema repartição de benefícios na sociedade; ampliação da participação e pressão no CGen dos beneficiários da mesma; envolvimento das demais esferas federativas com a política, principalmente com o objetivo de ampliar a fiscalização do seu cumprimento; celeridade no funcionamento do FNRB de forma que essa legislação de fato possa ampliar a captação de recursos. Tais recursos são provenientes do setor privado para projetos que contribuam para a conservação da biodiversidade e para as comunidades tradicionais, em função de seu papel de guardiã dos recursos genéticos.

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  • 1
    - A SBPC participou de diferentes audiências públicas e elaborou (em maio de 2016) um documento para o MMA propondo uma série de alterações ao Projeto de Decreto que Regulamenta a Lei nº 13.123/2015 (SBPC, 2016). Algumas das sugestões da organização foram acatadas.
  • 2
    -Reuniões com transmissões online ou permitindo a participação online poderiam facilitar o acesso dos beneficiários da política. Porém, sabe-se que o acesso à internet e equipamentos é desigual no país, prejudicando principalmente os grupos mais vulneráveis (caso dos beneficiários da política).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    13 Abr 2020
  • Aceito
    13 Nov 2021
ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
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