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Comparação socioambiental em sistemas produtivos agrícolas indígenas: Tontotuna, Totoró-Colômbia e Tsotsil, Chamula-México

Resumo

Apresenta-se uma comparação das práticas de conservação associadas ao manejo do sistema de produção agrícola familiar conhecido por quintal Trau Misak e quintal Patchocona; nos povos indígenas da Reserva Tontotuna, Município de Totoró-Cauca-Colômbia e no povo Tsotsil, Município de Chamula-Chiapas-México, respectivamente. A metodologia foi enquadrada na hermenêutica e fundamentou-se na etnobotânica, inter-relacionando os eixos de tempo, espaço e cultura. Dada a natureza holística e complexidade desta pesquisa, utilizou-se a etnografia e a pesquisa-ação participativa como técnicas descritivas para a dinâmica de uso e manejo dos recursos vegetais nos quintais Trau Misak e Patchocona’. Os resultados apresentam as estratégias comparativas de transformação que são geradas e utilizadas no Trau Misak e Patchocona’, fortalecendo a identidade de cada povo indígena, enfrentando os problemas de sobrevivência e contribuindo para a redução da fome ao estabelecer as bases para a segurança alimentar.

Palavras-chave:
Quintal familiar; Totoró; Chiapas; Trau Misak; Patchocona‘

Abstract

A comparison of the conservation practices associated with the management of the family agricultural production system called the Trau Misak garden and the Patchocona garden is presented. in the indigenous peoples of the Tontotuna Reservation, Municipality of Totoró-Cauca-Colombia and the Tsotsil people, Municipality of Chamula-Chiapas-México, respectively. The methodology was framed in hermeneutics and was based on ethnobotany, interrelating the axes of time, space and culture. Given the holistic and complex nature of this research, ethnography and participatory action research were used with descriptive techniques for the dynamics of use and management of plant resources in Trau Misak and Patchocona’. The results present the comparative transformation strategies that are generated and used in Trau Misak and Patchocona ‘, strengthening the identity of each indigenous people, facing the problems of survival and contributing to the reduction of hunger, by laying the foundations for food security.

Keywords:
Family garden; Totoró; Chiapas; Trau Misak; Patchocona’

Resumen

Se presenta una comparación de las prácticas de conservación asociadas al manejo del sistema de producción agrícola familiar denominado huerta Trau Misak y huerto Patchocona’; en los pueblos indígenas del Resguardo Tontotuna, Municipio de Totoró-Cauca-Colombia y el pueblo Tsotsil, Municipio de Chamula-Chiapas-México, respectivamente. La metodología se enmarcó en la hermenéutica y se fundamentó en la etnobotánica interrelacionando los ejes de tiempo, espacio y cultura. Dada la naturaleza holística y de complejidad de esta investigación, se empleó la etnografía y la investigación acción participativa con técnicas descriptivas para las dinámicas de uso y manejo de los recursos vegetales en el Trau Misak y Patchocona’. Los resultados presentan las estrategias de transformación comparativas que se generan y utilizan en el Trau Misak y Patchocona’, fortaleciendo la identidad de cada pueblo indígena, enfrentando los problemas de pervivencia

Palabras-clave:
Huerta familiar; Totoró; Chiapas; Trau Misak; Patchocona’

INTRODUÇÃO

Os sistemas sociais não são independentes dos sistemas ambientais, dependem, em grande medida, de biodiversidade e dos serviços fornecidos pelos ecossistemas (TOLEDO, 1991TOLEDO, V. The game of survival: a manual for ethnoecological research in Latin America. California, USA: Latin American Consortium on Agroecology and Development, 1991.). Nesse sentido, nos contextos atuais, ainda é de grande importância continuar desenvolvendo estudos socioambientais com objetivos bem definidos que permitam uma compreensão mais clara dos processos participativos de reflexão e tomada de decisões pelas comunidades locais na dinâmica de transformação de seus territórios, a partir dos conhecimentos e práticas culturais tradicionais, como neste caso, construídos nos espaços Trau Misak e Patchocona´, em seus diferentes contextos.

A relação de respeito com a natureza e a qualidade de vida de seus habitantes está diretamente ligada ao meio ambiente e às práticas dos recursos naturais associadas, por meio das quais as comunidades locais funcionam como um todo, além de ser um dos fundamentos das dinâmicas dos sistemas agrícolas tradicionais (RINCÓN et al., 2014RINCÓN, A. Comprehensive assessment of biodiversity and ecosystem services: Conceptual and methodological aspects. Bogota, D. c. Colombia: Alexander Von Humboldt Biological Resources Research Institute (IAVH), 2014.). A unidade de produção individual, conhecida por quintal familiar Trau Misak na língua nativa “Nam Trik” pela comunidade indígena da Reserva Tontotuna de Totoró, Colômbia e quintal familiar ou milpa ou quintal o Patchocona’, para o povo Tsotsil de Chamula, México, é a principal estratégia tradicional de sobrevivência familiar em ambas as regiões, onde ocorrem diferentes manifestações culturais (ZARAGOZA et al., 2006ZARAGOZA L.; PEREZ, G.; RODRIGUEZ, MR.; LANARI, R.; PEREZGROVAS Comparative analysis of traditional animal production systems in Los Altos de Chiapas (Mexico) and in Patagonia (Argentina). On. VII IBERO-AMERICAN SYMPOSIUM ON THE USE AND CONSERVATION OF LOCAL ANIMAL GENETIC RESOURCES. Cochabamba, Bolivia, 2006. p. 284-286.), estruturando-se como contribuições de cunho ambiental para o núcleo indígena e para outros grupos sociais vizinhos.

Nos espaços de vida dos territórios indígenas que incluem os quintais Trau Misak e Patchocona’, vêm ocorrendo situações de perda e deterioração sobre a conservação dos recursos vegetais e práticas associadas, devido à variabilidade climática, ao aumento das atividades extrativistas que influenciam na disponibilidade de recursos vegetais, no fornecimento de serviços ambientais que sustentam os sistemas tradicionais de produção e nos meios de subsistência das comunidades locais, influenciando sistemas de valores, significados, conhecimentos e práticas tradicionais; o uso inadequado do solo também causa seu empobrecimento devido ao encurtamento dos ciclos de rotação de culturas em consequência da incorporação da monocultura da batata para os Tontotuna e o aumento do uso de agrotóxicos na dinâmica produtiva para os Tsotsiles.

Hernández-X, (1981HERNÁNDEZ, X. Agricultural practices. In: VARGUEZ, P. (comp.). The milpa among the Maya of Yucatan. Mexico: UADY/DECR. Monographic Issues Series. Mexico, 1981.), define o sistema agrícola tradicional como aquele que se nutre a partir da herança cultural de uma população agrícola, que incorpora o uso dos recursos naturais com base em uma longa experiência empírica; (MARIACA, 2012MARIACA, R. The family garden of southeastern Mexico. Secretary of Natural Resources and Environmental Protection of the State of Tabasco. The College of the South Border. Mexico: Mariaca, 2012.), reconhece o quintal familiar ou quintal tradicional como o conceito utilizado para referir-se a um dos mais diversos e ricos sistemas agrícolas tradicionais que existem nos trópicos; a (FAO, 2005), define o quintal familiar como um local onde são cultivadas hortaliças, verduras, frutas, plantas medicinais, ervas comestíveis, árvores madeireiras e criação de aves domesticadas; (ARANGUREN; MONCADA, 2018), identificam os espaços agrícolas familiares multifuncionais como Chacras, que permitem a segurança e soberania alimentares, a conservação da diversidade biológica e genética e a materialização dos conhecimentos indígenas tradicionais próprios da comunidade indígena andina de Fakcha Llakta Otavalo-Equador; por sua vez, (SANABRIA, 2001SANABRIA, O. Plant management in traditional agroecosystems of Tierradentro, Cauca, Colombia. Popayan: Editorial University of Cauca, 2001.), identifica o quintal ou Tul, para os indígenas Nasa de Tierradentro como um espaço permanente de cuidado familiar, onde se cultivam várias espécies de plantas úteis, geralmente herbáceas e arbustivas, que aos arredores da casa podem formar uma área entre 1/2 e 1 ha.

O quintal familiar, em qualquer uma das definições de cada povo indígena, é um sistema de produção diversificado e complexo que vai além da esfera agrícola ou ecológica, pois engloba aspectos florestais, econômicos, sociais, culturais, educacionais, de saúde, e inclusive, psicológicos e espirituais; aspectos que devem ser abordados para compreender a dinâmica existente e as cosmovisões que se desenvolvem nesses espaços, que de uma forma ou de outra passam despercebidas ou às vezes são complexas ou difíceis ​​de entender.

Hernández-X, (1981HERNÁNDEZ, X. Agricultural practices. In: VARGUEZ, P. (comp.). The milpa among the Maya of Yucatan. Mexico: UADY/DECR. Monographic Issues Series. Mexico, 1981.) e Mariaca, R, (2012MARIACA, R. The family garden of southeastern Mexico. Secretary of Natural Resources and Environmental Protection of the State of Tabasco. The College of the South Border. Mexico: Mariaca, 2012.), indicam que as práticas e o uso da agricultura familiar tradicional fortalecem os sistemas culturais a partir dos quais articulam-se as formas de determinada organização social, cujas bases são as necessidades comuns da população. Os conhecimentos ancestrais permitem às comunidades locais conhecer a diversidade, a variabilidade do clima e do solo do território que habitam e saber o que e quando plantar nas diferentes zonas termais e, sobretudo, fazer cruzamentos de variedades e associações de culturas para obter uma safra diversificada; que atualmente continua a ser, em algumas comunidades locais, a base da sobrevivência.

Os processos de continuidade na resistência e luta pelo território, refletidos nas práticas comunitárias e culturais que os povos indígenas realizam dia a dia, protegendo, conservando e fortalecendo a identidade, os conhecimentos tradicionais e cosmovisões, entre outros, são alguns dos aspectos associados a uma permanência e pertinência nos territórios; características que ao final compõem e garantem a sobrevivência. O conflito armado, a usurpação dos territórios por colonos, latifundiários e outros grupos sociais, além das políticas estatais que os afligem, são aspectos contra os quais esses povos indígenas lutam dia a dia e pelos quais sofreram violações em seu direito ancestral à terra, as suas tradições, cultura e até ao desejo de retornar aos seus territórios.

Para os Tsotsiles, a milpa ou quintal, e para os Tontotuna, o quintal ao lado da casa ou quintal familiar, são lugares onde as mudanças se refletem nos diferentes processos sociais, políticos e econômicos das comunidades locais; por exemplo, evidencia o grau de incidência de instituições governamentais em recomendar o plantio de certas espécies trazidas de fora do território, consideradas por ambos os grupos indígenas como plantas exóticas ou introduzidas, como Fragaria sp. (fresa) e Physalis sp. (uchuva) e o não apoio ao cultivo de espécies cultivadas desde épocas ancestrais e denominadas por eles, plantas próprias, como Oxalis sp. (oca) e Tropaeolum sp. (majua); na comunidade Tsotsil as plantações de Lycopersicon esculentum (jitomate costilludo), Lycopersicon esculentum var. cerasiforme (tomatillo) foram substituídas devido às mudanças nos padrões de consumo, que também afetam a diminuição do plantio de cítricos como Citrus sp. (lima e toronja) decorrente do aumento do comércio de bebidas engarrafadas, do aumento do uso de agroquímicos e maquinário industrializado caro, que, apoiados por programas governamentais, modifica técnicas de cultivo e gera endividamento.

Nesses sistemas agrícolas tradicionais, fortalece-se o trabalho comunitário compartilhado desde os esforços para atribuir ações de cuidado e tempo familiar investido nesses espaços; estratégias que fazem parte da transmissão de conhecimentos tradicionais, as quais levam à sobrevivência e conservação da biodiversidade de seus territórios e recursos vegetais associados.

Contexto Geográfico

Visão geral de Totoró-Cauca-Colômbia

Totoró é uma região geográfica dos Andes no sudoeste colombiano, está localizada no núcleo do Maciço colombiano; compreende 42.198 hectares distribuídas entre pisos bioclimáticos desde que se encontram desde o subandino até o ecossistema de páramo, com temperatura média de 14°C e precipitação média anual de 2.000 mm. Localizado a 2°38’ de latitude Norte e 2°15’ de longitude Oeste e 2.750 msnm (CRC, 2009) (Figura 1).

Desde antes da Conquista, o território que inclui a reserva de Totoró era habitado pela etnia Páez, formada pelas famílias Totoró, Novirao, Paniquita, Polindara e Jebalá, que mantinham relações culturais e trabalhistas com os grupos vizinhos das cidades: Coconuco, Guambiano (Misak) e Yanaconas. Durante o período colonial, os Totoró conseguiram que a coroa espanhola na Audiência Real de Quito lhes outorgasse o título colonial do ano de 1630, por meio do qual foi reconhecido o território que hoje é chamado de reserva indígena de Totoró (CRIC, 2010).

No período da Independência (1810-1819), os Totoró, juntamente com as comunidades indígenas do sul do Cauca, Coconucos, Guambianos e Yanaconas, enfrentaram os espanhóis para proteger seus territórios e culturas, mas sua resistência foi vencida e se viram obrigados a se retirar para as áreas altas do páramo. Os territórios foram utilizados para a construção de grandes fazendas agropecuárias, característica da época do PDT (2008).

No final de 1819, Totoró adquiriu o status de município e as atuais reservas indígenas foram consolidadas em Totoró, Paniquita, Polindara, Jebalá e Novirao.

Figura 1
Localização de Totoró-Cauca-Colômbia

De acordo com o Plano de Salvaguarda Étnica e Cultural do Povo Indígena Tontotuna (2011), a terra é a mãe natural deste povo, aquela que mantém viva a cultura, a que contém as grandes riquezas que são protegidas, valorizadas e cuidadas por toda a comunidade, como a água, os animais, as plantas e as árvores.

Generalidades da região de Chamula-San Cristóbal de Las Casas-Chiapas-México

San Cristóbal de Las Casas está localizada no planalto central do estado de Chiapas, a 2.100 msnm, sendo dois terços de sua superfície montanhosa, o resto são bacias endorreicas, o relevo é heterogêneo, ao norte distingue-se uma área conhecida como Sierra de San Cristóbal, ao sul está o planalto de San Cristóbal entre a Sierra de San Cristóbal e a Sierra Madre de Chiapas; o clima é classificado como temperado e úmido com chuvas que no verão proporcionam uma temperatura média anual de 15°C, localiza-se na formação geográfica de vale intermontanhoso, com altitude de 1.940 msnm, localiza-se a 16°44’0” de latitude Norte e 92°38′0″ longitude Oeste, (INEGI, 2010) (Figura 2).

O município de Chamula está localizado na região geográfica denominada Los Altos de Chiapas, com predominância de florestas de pinheiros-carvalhos, no sudeste do México, região que concentra o maior percentual de população indígena de todo o Estado (87%), onde 65% são Tsotsiles, (CUADRIELLO et al, 2008CUADRIELLO et al. The regions of Chiapas. In: The indigenous peoples of Chiapas. Ethnographic Atlas. Government of the State of Chiapas: National Institute of Anthropology and History, 2008.). O município está localizado entre as coordenadas geográficas 16°50’ e 16°45’ de latitude Norte e 92°35’ de longitude Oeste, com sede municipal a 8 km de distância de San Cristóbal de Las Casas, (INEGI,2010).

A paisagem é composta por formações vegetais que incluem florestas de pinheiros e pinheiros-carvalhos, alcahuales arbustivos e pastagens (GONZÁLEZ et al., 1996GONZÁLEZ, M. Vegetal and floristic context of agriculture. In: Los Altos de Chiapas: agriculture and rural crisis. Volume 1. Natural resources. Mexico: Semarnat, 1996.). Nas últimas décadas, as florestas foram desmatadas em decorrência da agricultura, pecuária e extração de produtos florestais madeireiros, tanto para autoabastecimento quanto para sua comercialização (PARRA et al., 1993PARRA, M. et al. Agricultural and forestry production in the highlands of Chiapas: analysis of a complex system. In: Agricultural Production and Development Systems. Chapingo, Mexico: ORSTROM/CONACYT/CP, 1993.).

Figura 2
Localização de San Cristobal de Las casas-Chiapas-México

METODOLOGIA

A complementaridade entre a fase organizativa e de preparação da presente pesquisa, indicou como a integração desses dois processos contribuíram à fase exploratória no Resguardo indígena do povo Tontotuna, Cauca-Colômbia em ecossistema de páramo entre os anos 2015-2016 e para o povo Tsotsil, Chamula, Chiapas-México, em ecossistemas de pinheiros e pinheiros-carvalhos durante o segundo semestre de 2018. Na fase exploratória, foram reconhecidos os diferentes territórios, interagindo e pactuando com os diretores e representantes das autoridades que compõem o Cabildo do povo indígena Tontotuna e com os núcleos familiares, no caso de um povo Tsotsil.

A abordagem metodológica foi enquadrada na hermenêutica “Toda vez que o interpretativo busca a essência dos fenômenos sociais e humanos e gera novos campos de significados, permitindo a identificação de um cenário de categorização simbólica como objeto de estudo relevante a partir dos processos de compreensão” (GADAMER, 1977GADAMER, H. Truth and method: foundations of a philosophical hermeneutics. Spain: Follow me, 1977.) e se baseou nos fatores que inter-relacionam os eixos de tempo, espaço e cultura, e que segundo (HERNÁNDEZ-X, 1981HERNÁNDEZ, X. Agricultural practices. In: VARGUEZ, P. (comp.). The milpa among the Maya of Yucatan. Mexico: UADY/DECR. Monographic Issues Series. Mexico, 1981.) inclui: a) Processos dialécticos que são gerados a partir da inter-relação entre ambiente e cultura através da dimensão tempo, b) Um campo interdisciplinar que inclui o estudo e a interpretação do conhecimento, significado cultural e usos tradicionais dos elementos da flora.

Dada a natureza holística e complexidade da pesquisa, houve a necessidade de aplicar uma abordagem interdisciplinar, onde foram utilizadas algumas técnicas específicas da realidade da etnografia, uma vez que as apreciações das pessoas sobre o território determinam seu comportamento nele. A pesquisa-ação participativa, como abordagem metodológica, contribuiu na compreensão e categorização da realidade social e cultural a partir das próprias experiências da primeira autora. Técnicas descritivas e de reconhecimento, cartografia social e fundamentos epistemológicos, metodológicos e teóricos facilitaram o processo de sustentação do modelo de pesquisa qualitativa.

A reflexão metodológica foi complementada com a análise discursiva e a indagação, pois as intenções constituem importantes traços que orientam e ajudam a definir os métodos nos processos de pesquisa, fundamentados teoricamente no fato de o sujeito se constituir como uma entidade autônoma que não só compreende a si mesmo, mas também explica o mundo do texto segundo o seu “estar no mundo”, segundo (RICOEUR, 1981RICOEUR, P. Hermeneutics and the human sciences. Cambridge: Cambridge University Press, 1981., 2003). Nesse sentido, toda narração é uma construção de significados, uma elaboração de sentidos, onde o sujeito pode diferenciar os acontecimentos e a interpretação que deles se pode fazer.

Segundo (GHENO-HEREDIA, 2010GHENO, Y. Ethnobotany and agrodiversity as tools for the conservation and management of natural resources: a case study in the organization of traditional indigenous midwives and doctors ‘Nahuatlxihuitl’ of Ixhuatlancillo, Veracruz, Mexico. 2010. Thesis (Doctorate in Agricultural Sciences and Natural Resources)-Institute of Agricultural and Rural Sciences of the Autonomous University of the State of Mexico. Mexico, 2010.), a história oral e de vida, descritiva-interpretativa-reflexiva, é uma ferramenta fundamental para trabalhar o itinerário dos atores sociais e coletivos, necessitando do ponto de vista do pesquisador para dar vida às informações obtidas e recriar contextos passados ​​de suas experiências próprias e sobre a complexidade desses processos.

A articulação com o processo de conservação das espécies vegetais presentes nos quintais familiares, em ambos os territórios, permitiu compreender as racionalidades, práticas e estratégias dos grupos indígenas em seu ambiente; visto que, as transformações ambientais nos territórios de Totoró e Chamula, têm se apresentado fundamentalmente não apenas por processos e ações ancestrais, mas por uma dinâmica populacional que se alterna entre o contínuo e descontínuo, e que segundo (MARTÍNEZ, 1989MARTÍNEZ, M. The hermeneutical-dialectical method in the behavioral sciences. Caracas, Venezuela: Anthropos Editions, 1989.), fazem parte das relações socioambientais, econômicas, culturais, políticas e simbólicas dos povos indígenas.

Como unidade de análise, identificou-se o quintal Trau Misak, nos povos indígenas Tontotuna, e o quintal Patchocona’, no povo Tsotsil, agroecossistemas tradicionais próprios, que estão intimamente relacionados ao meio ambiente e são parte importante das cosmovisões desses povos indígenas, integram os processos de conservação e recuperação de seus recursos vegetais e sementes próprias; alguns de seus produtos estão integrados ao autoconsumo e economia familiar, outros estão relacionados à demanda dos mercados regionais e nacionais; várias de suas sementes são conservadas nesses agroecossistemas para a recuperação de cultivos tradicionais, próprios e para cerimônias culturais.

1. Sequência metodológica:

1.1 Caracterização sociocultural

Fase exploratória, onde as ferramentas etnográficas permitiram fazer um diagnóstico preliminar do contexto em que se enquadra esta investigação. Atividades realizadas com o prévio consentimento informado dos povos indígenas Tontotuna e Tsotsil. Procedeu-se a entrevistas com diferentes membros das famílias dedicadas à manutenção dos quintais Trau Misak e dos quintais Patchocona’, guiadas por membros dos respectivos povos indígenas. Investigou-se, desde uma perspectiva histórica, a partir da memória biocultural, dos saberes e imaginários sobre o território, levando em consideração as tradições e relações socioambientais, culturais, econômicas e políticas.

1.2 Avaliação Socioambiental

Constituiu a busca por uma compreensão ampla das dinâmicas relacionadas aos territórios Tontotuna e Tsotsil, desde a perspectiva socioecológica, como base para identificar a tomada de decisões das comunidades locais. Através da narrativa, como método etnográfico, foram definidos os atributos-chave do sistema que dão identidade ao território e que se tornam a base para o diálogo e a integralidade de valores.

2. Coletas botânicas e etnobotânicas. Os cultivos registrados, além de serem a base da alimentação das famílias, integram elementos de uso, manejo e identidade; os agroecossistemas foram reconhecidos e dentro destes considerou-se os habitats considerados localmente como os quintais Trau Misak e os quintais Patchocona’. Trabalhou-se com 100 famílias Tontotuna e 40 Tsotsiles; as entrevistas foram posteriormente analisadas em sala de trabalho, algumas nos idiomas Nam Trik, Espanhol e Tsotsil.

Foram coletadas 45 espécies botânicas com suas variedades nos quintais Trau Misak, cujo trabalho de identificação botânica e taxonômica foi realizado pelo professor Bernardo Ramírez, taxonomista da Universidade del Cauca, exemplares revisados ​​e identificados foram depositados no acervo do Herbário CAUP da Universidade del Cauca. Nos quintais Patchocona’, foram coletadas informações sobre 50 espécies botânicas, identificação botânica feita por meio de registros fotográficos pelo pesquisador Ramón Mariaca Méndez.

As informações etnobotânicas foram documentadas por meio de entrevistas informais não estruturadas em locais como no quintal, na cozinha, lavanderias, espaços de trabalho agrícola, salões comunitários e salas de reunião, tanto da Reserva Tontotuna quanto do povo Tsotsil. Com as diferentes famílias Tontotuna e Tsotsil, discutiu-se sobre a origem, formas de uso, manejo, comercialização dos recursos vegetais, seleção e localização do local a ser cultivado, plantas escolhidas para plantio, método de plantio, fertilizantes utilizados, atividades realizadas principalmente pelas mulheres, já que os homens saíam cedo para realizar diversos negócios em mercados locais e regionais.

3. Oficinas com grupos focais e autoridades locais. Tornou possível identificar pessoas-chave, anciãos, integrantes dos cabildos, líderes os chefes ou as chefes de família com disponibilidade/interesse em compartilhar seus conhecimentos. Essa etapa permitiu entender quais os papéis desses indivíduos em relação aos serviços ambientais, como se relacionam com outros atores no território e em que escalas se estabelecem essas relações, levando em consideração que os papéis, visões e motivações dos diferentes atores mudam com o tempo. Foram realizadas 20 e 5 oficinas comunitárias para a Reserva Tontotuna e o povo Tsotsil, respectivamente.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

1. Aproximações às dinâmicas territoriais indígenas presentes nos quintais tradicionais de Totoró-Cauca e San Juan Chamula-Chiapas.

A posse da terra tem desempenhado um papel determinante na configuração das relações sociais na América Latina e Mesoamérica, a pesquisa etnográfica realizada nas comunidades da Terra Indígena Tontotuna e do povo Tsotsil, como no caso do sistema de produção tradicional denominado quintal e quintal tradicional, reconhecido como Trau Misak e Patchocona’, permitiu identificar essa estratégia adotada por esses povos, como um dos propósitos de oferecer alternativas socioambientais e econômicas frente ao sistema capitalista ocidental que historicamente dominou o poder.

O quintal Trau Misak e o quintal Patchocoana’ são espaços cultivados e conservados como estratégia de sobrevivência e conservação dos recursos a eles associados, localizam-se próximo ou ao lado da casa da família, principalmente no auxílio a salvaguardar as necessidades nutricionais familiares através dos diferentes cultivos de plantas em pequena escala que ali são plantados.

Nos quintais Trau Misak, foram registradas 37 espécies de plantas, incluindo suas variedades, pertencentes a 12 famílias botânicas e 16 gêneros, que incluem principalmente recursos alimentares. Em relação ao manejo da espécie, foram reconhecidas sete (7) categorias de uso: alimentícia (37), medicinal (9), forrageira (15), ritualística (12), fixadora de nitrogênio (10), cerca viva (9) e condimento (6).

Na tabela 1 são apresentados dados como a frequência de cultivo, os usos e o estado de conservação de plantas cultivadas nos quintais Trau Misak na área alta do território Tontotuna, os quais têm sido manejados e conservados ao longo de gerações através do tempo.

A maioria dos recursos vegetais se encontra em estado de conservação (C): Oxalis tuberosum (oca blanca, roja e morada), Solanum andigenum (papa caluncha), Ullucus tuberosus (ulluco rosado, rojo e blanco), Zea mays (maíz capio, amarillo, capio blanco, maíz de seis meses, de año e yucatán), Phaseolus vulgaris (frijol vara), entre outros; da mesma forma, o conjunto dos recursos vegetais estão sendo manejados (M): Oxalis tuberosum (oca blanca, roja e morada), Solanum andigenum (papa caluncha), Tropaeolum tuberosum (majua), Zea mays (maíz capio, amarillo, año, de seis meses y yucatán), Pisum sativum (arveja piquinegra), Phaseolus vulgaris (frijol vara), Brassica sp. (col, repollo morado e blanco) e Raphanus sativus (rábano), entre outros.

Alguns recursos vegetais estão em processo de recuperação (R) e, embora esforços estejam buscando sua conservação, seu manejo não tem sido permanente, razão pela qual estão desaparecendo, principalmente devido à escassa comercialização nos mercados de Totoró e Popayán; Oxalis tuberosum (oca morada), Solanum andigenum (papa caluncha), Ullucus tuberosus (ulluco rojo e blanco), Triticum aestivum (trigo), Zea mays (maíz yucatán), Arracacia sp. (arracacha morada e blanca), pertencem a essa categoria.

As dinâmicas de manejo dos recursos vegetais tanto nos quintais Trau Misak quanto nos quintais Patchocona’ vêm mudando ao longo do tempo, mas sempre fizeram parte das unidades familiares; esse patrimônio genético não é atribuído a um indivíduo, mas é fruto de uma comunidade que é representada por suas relações culturais, solidariedade, reciprocidade e sobrevivência.

Na tabela 1, registram-se dados em que muitas espécies se encontram compartilhando três categorias estabelecidas, como é o caso de Oxalis tuberosum (oca morada), Zea mays (maíz yucatán), Ullucus tuberosus (ulluco rojo, ulluco blanco) e Solanum andigenum (papa caluncha), entre outras. A frequência de cada cultivo por quintal está relacionada com o estado de conservação dos recursos alimentares associados aos quintais Trau Misak, sendo os recursos que apresentaram maior frequência de cultivo foram: Ullucus tuberosus (ulluco rosado, ulluco rojo) e Zea mays (maíz de seis meses) com 60%, seguido por Zea mays (maíz capio e amarillo) com 53%, Zea mays (maíz de año) com 43%, Oxalis tuberosum (oca blanca, roja e morada) com 34%, Tropaeolum tuberosum (majua) com 24%, Zea mays (maíz yucatán), Pisum sativum (arveja piqui negra), Cucurbita ficifolia (mejicano) e Vicia faba (haba) com 20% (cada), Ullucus tuberosus (ulluco blanco) e Arracacia sp. (arracacha morada) com 15% (cada), Arracacia sp. (arracacha amarilla, blanca), Brassica sp. (col), Brassica sp (repollo morado, blanco) e Raphanus sativus (rábano) com 10% (cada), Solanum andigenum (papa caluncha) com 8%, Pachyrrhizus tuberosus (jíquima) com 7%, Triticum aestivum (trigo) com 5% e Vicia faba (haba morada) com 4%; o que indica que os recursos alimentares vegetais que se encontram com uma frequência inferior a 20%, correm o risco de desaparecer.

Os quintais Trau Misak e os quintais Patchocona’ não têm uma superfície de extensão exata, nem há plantas definidas para cultivar, sua forma geralmente segue uma distribuição retangular e estão relativamente distantes da floresta, da área de pastagem e de outros quintais e parcelas com monoculturas comerciais, entre as quais estão para os Tontotuna, Solanum sp. (papa), Ullucus tuberosus (ulluco), Allium cepa (cebolla) e para o povo indígena Tsotsil, Zea mays (maíz), Allium cepa (cebolla) e Phaseolus sp. (frijol). Chamaemelum nobile (manzanilla), Mentha spicata (hierbabuena), Salvia rosmarinus (romero) e Mentha sp (menta) são plantas medicinais de cultivo comum em ambas as unidades familiares (Tabela 2). Além de serem espaços de trabalho, são também locais onde os restos de alimento da cozinha são reaproveitados como adubo orgânico.

As necessidades familiares, refletidas em problemas econômicos, nutricionais, ambientais, sociais e culturais, são as principais causas que levam os povos-

Tontotuna e Tsotsil a fortalecer seus quintais tradicionais ou familiares, mediante a geração de renda, apoio às atividades no âmbito do desenvolvimento agrícola, aquisição de determinados insumos agrícolas, reprodução de mudas, fabricação e reparação de implementos agrícolas e domésticos e teste de novas culturas para cultivo.

Tabela 1
Espécies vegetais presentes nos quintais Trau Misak - Zona Alta, Município de Totoró-Cauca
Tabela 2
Plantas medicinais presentes nos quintais Trau-Misak-Zona Alta. Município de Totoró-Cauca

Nos quintais Trau Misak e nos quintais Patchocona’, todos os elementos que os compõem estão ordenados: o espaço físico e o tempo para cultivar, os limites da área, o local e a quantidade de sementes a cultivar. É decisivo que o espaço seja ao lado da casa, as condições ambientais é que determinam quando semear (períodos secos e chuvosos), árvores como a Brugmansia sp. (borrachero) constituem uma cerca viva que protege as culturas e permite o isolamento de outras casas familiares, plantas aromáticas como Ruta graveolens (ruda), Salvia officinalis (salvia) e Chamaemelum nobile (manzanilla), funcionam como controle biológico. Devido à importância que as plantas medicinais representam para as comunidades indígenas Tontotuna e Tsotsil, esses dados são apresentados na Tabela 2.

Os quintais familiares constituem verdadeiros campos experimentais para o desenvolvimento de novos produtos e práticas agrícolas visando modificar as condições ambientais de produção, incluindo sempre a conservação de seus territórios; que vão desde a seleção de especies adaptadas à produção em pequena escala até a melhoria da produtividade e a ampliação das possibilidades de escolha com base nas mudanças nas necessidades da família e nas possibilidades oferecidas pelo mercado, segundo a FAO, (2000).

O quintal tradicional Trau Misak e o quintal Patchocona’ nos pueblos indígenas Tontotuna e Tsotsil.

Os quintais familiares tradicionais nos territórios Tontotuna e Tsotsil possuem certas características regionais que os identificam. São os locais de conservação de espécies vegetais - de plantas domésticadas e comestíveis - que refletem suas diferenças culturais e que se relacionam de alguma forma com os motivos que as comunidades locais lhes atribuem, estruturando estratégias que lhes tem permitido sobreviver ao longo do tempo.

Na atual conjuntura econômica, os quintais familiares representam um importante capital para os grupos locais com recursos econômicos limitados e para as populações mais vulneráveis ​​à insegurança alimentar. Os espaços de sobrevivência Trau Misak e Patchocona’ contribuem para as comunidades locais de diferentes maneiras, as quais incluem:

  1. A preservação de valores estéticos e culturais;

  2. Os produtos que garantem a alimentação da família, com um rendimento energético em kcal/ha superior ao rendimento obtido mediante comida rápida proveniente do comércio, (MARIACA, 2012MARIACA, R. The family garden of southeastern Mexico. Secretary of Natural Resources and Environmental Protection of the State of Tabasco. The College of the South Border. Mexico: Mariaca, 2012.);

  3. A transmissão oral e prática dos conhecimentos tradicionais;

  4. A maior fonte de renda familiar das famílias indígenas e um meio onde esses povos possam garantir uma autossuficiência mínima ao longo do ano, uma renda nos períodos sem colheita, quando os quintais funcionam como banco dinâmico de germoplasma vegetal no caso Tontotuna e também como reserva animal no caso do povo Tsotsil;

  5. Um laboratório vivo de domesticação vegetal (Tontotuna) e de domesticação animal (Tsotsil).

  6. Um espaço de transmissão dos conhecimentos tradicionais e união familiar.

Entre as plantas cultivadas nos quintais de Trau Misak (tabela 1), identificam-se aquelas que estiveram nas mãos dos membros da comunidade da região, sendo conservadas (C), manejadas (M) e algumas em processo de recuperação (R). Aproximadamente 50% das famílias conservam as sementes em seus lotes, 15% as obtêm por meio de doações e o percentual restante por meio de trocas (INCODER, 2013); a partir de 2015 com a chegada do Ministério da Proteção Social - Departamento Administrativo para a Prosperidade Social - DPS -, com o projeto IRACA, os quintais Trau Misak foram fortalecidos, uma vez que a segurança alimentar continua a ser promovida nas famílias Tontotuna, promove a recuperação de alimentos da região para autoconsumo e promove iniciativas produtivas, fortalecendo a liderança e o empoderamento das comunidades.

Até 2019, 70% das famílias conseguiram conservar suas sementes, 30% as recuperaram através de seus próprios bancos de sementes com grupos de idosos e membros da comunidade da região; além do fortalecimento dos quintais tradicionais, os membros da comunidade Tontotuna também dedicam seu tempo principalmente a cultivos tecnificados, envolvendo, principalmente, espécies como Solanum tuberosum (papa) e Fragaria sp (fresa).

Em 95% dos quintais Trau Misak na zona alta, o trabalho é partilhado entre os membros da família e em várias ocasiões entre os membros da comunidade pertencentes ao Resguardo, nas tarefas atribuídas à limpeza, fertilização, plantação, manutenção dos limites, capina, controle de pragas, troca de sementes próprias entre amigos e parentes muito próximos, mas não entre comunidades vizinhas, pois os Tontotuna são muito cuidadosos com suas sementes, estratégias que levam ao caminho da sobrevivência e conservação da biodiversidade tanto de seus territórios quanto dos recursos fitogenéticos associados.

Nos quintais Trau Misak, a sobrevivência e a relação harmoniosa da comunidade indígena Tontotuna com o território que habitam fica evidente nas práticas cotidianas que os indígenas, guiados pela “Lei do Trau” (lei do quintal) realizam, que consiste em plantar e colher, não só alimentos, mas também tradições orais.

A denominação “Trau Misak”, em sua língua nativa “Nam Trik”; Trau: quintal e Misak: próprio, pessoas, ao lado da casa: “quintal ao lado da casa”; é um lugar considerado pela comunidade local como um espaço de vida em construção, recuperação e fortalecimento.

Os lugares habitados pelas comunidades indígenas Tontotuna e Tsotsiles são caracterizados pela presença de diferentes espaços para a família, que incluem a casa-habitação, que em ambos os casos está associada a esta área, composta por um ou dois cômodos onde está localizada a cozinha e quartos, o banheiro seco ou latrina, e particularmente para os Tsotsiles, “el pus” ou “temazcal” (espaço artesanal onde se realizam rituais à vapor com o uso de ervas). Um espaço próximo à casa que inclui a unidade doméstica familiar, o quintal Trau Misak, para os Tontotuna e quintal ou Patchocona´, para os Tsotsiles, onde cultivam plantas alimentícias, medicinais e condimentares (tabela 3), e especialmente, para os Tsotsiles, árvores frutíferas e dentro dos quintais pode haver áreas/chiqueiros para a criação de animais domésticos, como galinhas, perus e ovelhas, há também a casa do milho, onde se armazenam as sementes de milho que serão plantas na estação seguinte e, às vezes, um lugar dedicado à milpa. O termo Patchocona’ para os Tsotsiles define em sua língua nativa ao quintal familiar próprio.

Mariaca, (2012MARIACA, R. The family garden of southeastern Mexico. Secretary of Natural Resources and Environmental Protection of the State of Tabasco. The College of the South Border. Mexico: Mariaca, 2012.), considera para o caso Mesoamericano, a formação de quintais diversificados no período de 6.000 a 200 a.C; em relação à área maia, existem alguns vestígios arqueológicos que datam dos séculos IV a IX a.C, e que podem assemelhar-se ao padrão da área maia da época clássica, que consistia quase sempre na presença de um quintal central, o que torna possível pensar na representação dos quintais familiares. No caso de Chiapas, a partir dos anos 1990-2000, a introdução de veículos motorizados alterou a estrutura dos quintais familiares, introduzindo algumas práticas agroecológicas realizadas por instituições e associações civis para melhorar o estado nutricional e de saúde das famílias do campo.

A história dos quintais Trau Misak não apresenta datas que identifiquem sua ancestralidade ou origem, embora constate no Plano de Desenvolvimento de Totoró, PDT, (2008), que os abundantes, marcantes e férteis quintais Trau Misak já mantinham cultivos e espécies silvestres desde períodos pré-hispânicos; no entanto, o valor familiar, ambiental, histórico e paisagístico, entre outros, desses quintais, encontra-se seriamente ameaçado, pela falta de interesse dos mais jovens pelos trabalhos no campo, e pelos novos usos da terra e da água, produzindo o declínio de um ambiente privilegiado. Existe a preocupação de que alguns membros da comunidade não queiram dedicar tempo aos quintais, pois acredita-se que elas não oferecem benefício econômico e preferem trabalhar por diárias.

Embora nos quintais Patchocona’, a planta básica seja o milho; cujo cultivo pode ser uma extensão própria ou pertencer a esse agroecossistema; próximo dessa planta existem diferentes espécies associadas, o que seria uma das estratégias equivalentes e próximas aos quintais Trau Misak em Totoró, com a diferença de que no agroecossistema Tontotuna não há planta dominante básica para cultivo, mas sim uma diversidade de espécies predominantes; no entanto, é o cultivo da batata (Solanum sp.) que prevalece no território em geral, sem estar incluída no quintal familiar. Para o povo Tsotsil não existe a palavra quintal, eles usam a palavra “traspatio” ou sítio, que equivale ao quintal Trau Misak no povo Tontotuna.

A presença de plantas arbustivas, árvores e alguns animais nos quintais Patchocona´ é diferente dos quintais Trau Misak, onde há principalmente plantas herbáceas e raramente arbustos; árvores quase nunca são encontradas no quintal familiar, embora, quando presentes, se existem, não são cortadas e cumprem suas funções, principalmente como demarcação e proteção de cultivos; a presença de animais não está incluída, embora permaneça importante.

Os quintais Patchocona’ geralmente têm uma área de aproximadamente 600 m2 onde se encontram várias plantas, incluindo árvores para cerca viva, uso madeireiro, proteção para as plantações e a casa de habitação, (tabela 3), ao contrário dos quintais Trau Misak que não têm uma delimitação exata e são demarcados de acordo com a extensão da terra que a família possui ou em alguns casos que o Cabildo lhe outorga se for habitante do território e tiver demonstrado trabalho comunitário contínuo, a pedido do interessado.

Entre os cultivos em associação nos quintais Trau Misak se encontram Solanum andigenum (papa própria ou papa caluncha), Ullucus tuberosus (ulluco), Oxalis tuberosa (oca), Vicia faba (haba), Pisum sativum (arveja), Triticum sp. (trigo) e Zea mays (maíz), identificado pela comunidade local “de ano e seis meses”, porque a colheita de cada um tem seu tempo certo (tabela 1).

Nos quintais Tontotuna e quintais Tsotsil, onde existe a presença de vegetação secundária arbustiva e arbórea e plantas infestantes são raras; plantas que a população local identifica como aquelas que afetam os cultivos e que não foram plantadas por alguém. O processo de corte e queima não é mais realizado e os espaços que a vegetação conservou após longos períodos de pecuária são mantidos; deixando assim a terra descansar para que recupere sua fertilidade através da biomassa vegetal incorporada, enriquecendo-as por sua vez com suas próprias sementes, sejam elas de plantas alimentícias, condimentares e/ou medicinais, que as mulheres geralmente escolhem de acordo com suas necessidades e o conhecimento dos mais velhos. Dessa forma, os sistemas de produção doméstica são permanentemente fortalecidos como estratégia de conservação e sobrevivência dos povos locais.

Nos quintais de Chamula, foram registradas 68 espécies vegetais, pertencentes a 30 famílias botânicas e 57 gêneros, que incluem plantas herbáceas, arbustivas e arbóreas. Quanto ao uso das espécies, foram reconhecidas oito categorias de uso: alimentícia (29), medicinal (21), forrageira (18), ritualística (15), cerca viva (11), fixadora de nitrogênio (5), madeireira (5), lenha (3), condimento (3) e fibra (1 espécie). A identificação taxonômica foi realizada no Herbário do Colegio de la Frontera Sur-ECOSUR. Tabela 3.

Os trabalhos nos quintais, seleção e preservação das sementes, plantio e cuidado das plantas medicinais, manutenção e propagação das hortas, são atividades que as mulheres compartilham e transmitem às suas filhas e filhos, porque, por sua vez, foram suas mães ou avós que transmitiram esses conhecimentos; isso permitiu que o conhecimento tradicional dos povos indígenas Tontotuna e Tsotsil tenha reconhecimento em sua cultura indígena nas condições atuais, protegendo e propagando espécies que respondem a condições ecológicas específicas. É nesse sentido que as mulheres estão intimamente ligadas à conservação dos seus próprios recursos vegetais. Paralelamente, contribuem também com a preparação de alimentos, limpeza da casa, cuidados e alimentação de espécies menores (galinhas, coelhos, porquinhos-da-índia, porcos, etc.), cuidados e educação das crianças.

Os povos ancestrais ao longo do tempo foram se adaptando às mudanças relacionadas à posse da terra, clima, inserção de técnicas agrícolas, conflitos políticos, prevenção comunitária, relações trabalhistas; criando, modificando e ajustando estratégias que lhes permitam sobreviver ao longo do tempo; assim se dá o sistema de produção familiar denominado quintal familiar ou quintal tradicional; espaço social, espiritual, familiar, ambiental, entre outros, onde a produção de recursos alimentares para a família, serviços ambientais e culturais de valor de uso, entre outros, são fundamentais e desempenham um papel preponderante como locais de transmissão de cultura, de conservação ambiental , unidade e sustento familiar; cada vez mais forte, a partir do trabalho coletivo de ajuda recíproca com a articulação da comunidade local.

Tabela 3
Espécies vegetais encontradas nas milpas do município de Chamula, Chiapas, México

CONCLUSÕES

Para os Tontotuna e Tsotsiles

No manejo e conservação das unidades familiares Trau Misak e Patchocona´, parte-se do reconhecimento e da relação respeitosa entre comunidade-natureza, onde as populações locais funcionam como um todo e a qualidade de vida de seus habitantes está diretamente ligada ao meio ambiente e práticas de manejo e uso de seus recursos, não apenas vegetais, mas também naturais. É o caso do quintal familiar, como principal estratégia para transmitir de geração em geração os saberes, técnicas e práticas tradicionais sobre os recursos vegetais associados, seu modo de vida, seus componentes, relações, produtos, benefícios e manejo constante e conservação dos recursos vegetais, eventos culturais que acontecem naquele espaço físico com contribuições ambientais para o núcleo indígena, bem como para outros grupos sociais vizinhos.

Os sistemas tradicionais Trau Misak e Patchocona’ são considerados sistemas de interação permanente tanto de aspectos ambientais quanto de ações sociais e culturais, e que se baseiam em conhecimentos tradicionais que são transmitidos oralmente de geração em geração.

Nos territórios indígenas dos povos Tontotuna e Tsotsil sobrevivem práticas culturais e sistemas agrícolas tradicionais, caracterizados por formas de apropriação e uso da terra praticadas há milênios, expressão viva das culturas indígenas que habitam esses territórios colombianos e mexicanos e através de formas particulares de inter-relações com o entorno local, entre ecossistemas locais e ações culturais de intervenção, aproveitamento e relação com o meio ambiente.

O quintal familiar, em qualquer de suas denominações e formas locais, é um sistema de produção diversificado e complexo que vai muito além do campo agrícola ou ecológico, pois engloba aspectos econômicos, sociais, culturais, educacionais, de saúde e até religiosos, (MARIACA, 2012MARIACA, R. The family garden of southeastern Mexico. Secretary of Natural Resources and Environmental Protection of the State of Tabasco. The College of the South Border. Mexico: Mariaca, 2012.). É assim que os Tontotuna e os Tsotsiles constroem estratégias voltadas para a sobrevivência de suas comunidades locais e a conservação dos recursos naturais.

O maior benefício que as unidades familiares proporcionam como base para o abastecimento da alimentação familiar e o fortalecimento dos processos culturais para a sobrevivência dos povos indígenas, está ocorrendo não só nos povos indígenas, mas na maioria dos povos ancestrais no âmbito local, regional, nacional e até global; segundo (MARIACA; CONTRERAS, 2016CONTRERAS, U; MARIACA, R. Management of natural resources among the Lacandon Maya of Nahá. Mexico: The College of the South Border. ECOSUR, 2016.) esses espaços dinâmicos se manifestam de acordo com a necessidade de adaptação às novas circunstâncias sociais e familiares, que por vezes inclui a falta de mão de obra.

Os espaços dos quintais familiares estão em constante construção, nessas áreas, ocorrem diversos processos socioambientais, políticos, econômicos, que são essenciais para a cultura dos que os estabelecem, principalmente nas comunidades indígenas locais de tradição agrária como os Tontotuna e os Tsotsiles, com fortes relações de identidade e construção de território. Fundamento que é compartilhado no plano de salvaguarda étnica e cultural do povo indígena Tontotuna PDT, (2008) e pelo pesquisador Mariaca, (2012MARIACA, R. The family garden of southeastern Mexico. Secretary of Natural Resources and Environmental Protection of the State of Tabasco. The College of the South Border. Mexico: Mariaca, 2012.), onde é importante não só a posse do território, mas também os elementos simbólicos que são criados e que fazem desta a estratégia primordial de defesa e sobrevivência dos povos indígenas.

As dinâmicas territoriais que ocorrem nos sistemas tradicionais Trau Misak e Patchocoana’ sob uma visão holística geram respostas que permitem alternativas de representação, conservação, fortalecimento e controle territorial, como espaços de resistência para posicionar os territórios indígenas em contextos locais, nacionais e globais; o que (ESCOBAR, 2010ESCOBAR, A. Territories of difference. Place movements life networks. Popayan: Envion Editions, 2010.), evidencia como uma construção social e, mais do que isso, cultural. A forma como os seres humanos ocupam o espaço, o representam, o significam, o utilizam e o conservam define quem somos, o que pensamos e como nos relacionamos.

Nessa estratégia adaptativa denominada quintal familiar, a cultura é cada vez mais considerada como fator promotor da identidade: do tipo social, ambiental, política e econômica; por exemplo, para um grupo social ser reconhecido como indígena, ele deve ter um quintal ou “traspatio” em sua casa. No caso dos povos indígenas Tsotsil e Tontotuna, o quintal faz parte de sua identidade e cultura, perdê-lo significa perder a cultura. Essa identidade indígena sustenta o conceito de prestígio, desenvolvido pelo professor Hernández-X, (1981HERNÁNDEZ, X. Agricultural practices. In: VARGUEZ, P. (comp.). The milpa among the Maya of Yucatan. Mexico: UADY/DECR. Monographic Issues Series. Mexico, 1981.), como razão que move a realização de ações de fortalecimento da cultura na comunidade.

As unidades familiares são consideradas espaços apropriados, delimitados e marcados pela identidade das comunidades locais que as ocupam e, portanto, indissociáveis ​​das categorias de domínio e poder. Ramírez (2016RAMÍREZ, S. Indigenous peoples, identity and territory - Without territory there is no identity as a People-. Buenos Aires: University of Buenos Aires, 2016.), identifica os quintais tradicionais como espaços representados, com uma apropriação política e cultural, que tem relação com sua administração e, portanto, com sua delimitação, uso, distribuição, defesa e, principalmente, identidade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    23 Jul 2020
  • Aceito
    18 Set 2021
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