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O Impacto das Áreas Protegidas Bem-estar das Comunidades Ribeirinhas Pantaneiras

Resumo

A criação de áreas protegidas é um dos principais pilares de ações focadas na conservação da natureza. Estudos buscando uma compreensão mais abrangente da relação entre “bem-estar humano” e áreas protegidas são chave para um equilíbrio socioambiental dessas ações. O presente trabalho buscou avaliar, através de entrevistas baseadas nos conceitos de liberdade, segurança, saúde e relações sociais, o impacto da criação de áreas protegidas no Pantanal em duas comunidades ribeirinhas da região. Mostramos que ambas as comunidades sofreram impactos negativos no seu bem-estar. No entanto, as experiências sobre o impacto são expressas de forma diversa, compatível com o histórico, tipo de gestão e categoria de cada área protegida. Também mostramos falas positivas sobre as áreas protegidas, referentes à questão social, econômica e ambiental. Mecanismos mais abrangentes de avaliação da relação homem/ natureza permitem entendermos os principais gargalos e potencialidades de uma conservação com efetiva participação das comunidades tradicionais.

Palavras-chave:
Pantanal; comunidades tradicionais; áreas protegidas; bem-estar

Abstract

The set aside of protected areas is one of the pillars of initiatives focused on nature conservation. Studies seeking a broader understanding of the relation between human well-being and protected areas are key to support a social-ecological balance these initiatives. In this paper, we sought to understand, through interviewers structured around the concepts of freedom, security, heath, and social relations, the extent to which protected areas in the Pantanal have impacted the lives of two riverine communities in the region. We show that both communities were negatively impacted in all axes of well-being evaluated. However, each group experienced the impacts differently, depending on the process of creation, category and management strategy of each protected area. We also show that people see economic, social, and ecological positive aspects of the protected areas. Broader understanding about well-being, as applied in this study, allow us to better uncover the relation between human / nature and the potential for effective participation of traditional communities.

Keywords:
Pantanal; traditional communities; Protected Areas; well-being

Resumen

La creación de áreas protegidas es uno de los principales pilares de la conservación de la naturaleza. Los estudios que buscan una comprensión más completa de la relación entre el “bienestar humano” y las áreas protegidas son clave para estas acciones. El trabajo, a través de entrevistas semiestructuradas basadas en los conceptos de libertad, seguridad, salud y relaciones sociales, buscó comprender cómo áreas protegidas en el Pantanal impactó la vida de dos comunidades ribereñas. Mostramos que ambas comunidades sufrieron impactos negativos en su bienestar. Sin embargo, las experiencias sobre el impacto se expresan de diferentes formas, compatibles con la historia, tipo de manejo y categoría de cada área protegida. Mostramos discursos positivos sobre áreas protegidas, referidos a temas sociales, económicos y ambientales. Mecanismos más completos sobre la relación hombre / naturaleza nos permiten comprender los principales obstaculos y el potencial para una conservación efectiva participación de las comunidades tradicionales.

Palabras-clave:
Pantanal; comunidades tradicionales; áreas protegidas; bienestar

Introdução

A criação de áreas protegidas é um dos principais pilares de ações focadas na conservação da natureza (BRITO, 2000). O marco do surgimento dessa ferramenta aconteceu entre as décadas de 1860 e 1870, com a criação dos Parques Nacionais de Yellowstone e Yosemite nos Estados Unidos da América (PÁDUA, 2010PÁDUA, José Augusto. As bases teóricas da história ambiental. Estudos avançados, v. 24, n. 68, p. 81-101, 2010.). Em ambos os casos, o objetivo foi preservar a natureza supostamente “intocada” (wilderness), desacelerando o processo de urbanização e expansão agrícola no interior e entorno dessas áreas (DIEGUES, 1996DIEGUES, Carlos Antonio. As populações humanas em áreas naturais protegidas da Mata Atlântica. Centro de Culturas Marítimas, Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas e Areas Umidas Brasileiras, Universidade de São Paulo, 1996.). No entanto, as restrições impostas pela criação Yellowstone e Yosemite também se estenderam à povos e comunidades que viviam nessas áreas, sendo registrados os primeiros casos de desapropriação involuntária já nessa época (NEUMANN, 2004NEUMANN, R. P. Nature-State-Territory: Towards a critical theorization of conservation enclosures. in Peet, R., Watts, M. Liberation Ecologies: Environment, Development, Social Movements. Routledge, 2004.p 195-217.). A partir do início do século XX, a criação de Parques Nacionais, como os estadunidenses, tornou-se um importante modelo de conservação da natureza. Áreas Protegidas que seguiam as mesmas diretrizes de gestão de Yellowstone e Yosemite foram criadas em dezenas de países do mundo. No entanto, com a internacionalização dessa ferramenta, comunidades do mundo todo também tiveram seus modos de vida impactados (ADAMS; HUTTON, 2007ADAMS, William M.; HUTTON, Jon. People, parks and poverty: political ecology and biodiversity conservation. Conservation and society, v. 5, n. 2, p. 147-183, 2007.).

Em 1933, na Convenção de Londres para a preservação da Flora e da Fauna, foi dado um primeiro passo na tentativa de reduzir os possíveis impactos sociais negativos das áreas protegidas. Ali foram estabelecidos conceitos e estratégias claras para implementação desse modelo de gestão da paisagem (MORSELLO, 2001). Nesse mesmo caminho, foi criada, em 1948, a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), que estabeleceu a Comissão de Parques Nacionais e áreas protegidas com o intuito de promover orientações sobre criação e manejo dessas áreas. Em 1972, tivemos, talvez, o marco mais importante sobre a importância das questões sociais na gestão de áreas protegidas: a Conferência sobre Meio Ambiente Humano em Estocolmo (SCHERL, et al. 2006). Ali iniciou-se a propagação da ideia de que a natureza também é um recurso com valor monetário, e que o crescimento econômico e a conservação são metas inseparáveis (HOLDGATE, 1999). A partir dessa conferência, diferentes visões que desafiavam o modelo vigente de natureza intocada começaram a ser propagadas (DIEGUES, 1996DIEGUES, Carlos Antonio. As populações humanas em áreas naturais protegidas da Mata Atlântica. Centro de Culturas Marítimas, Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas e Areas Umidas Brasileiras, Universidade de São Paulo, 1996.).

Com a melhor compreensão de que desenvolvimento local e proteção da natureza são questões fundamentalmente ligadas, diversas ferramentas foram desenvolvidas no intuito de compreender a relação entre comunidades e natureza (WOODHOUSE et al., 2015WOODHOUSE, Emily; DE LANGE, E.; MILNER-GULLAND, E. J. Evaluating the impacts of conservation interventions on human wellbeing. Guidance for practitioners. IIED, London, 2015.). Entre elas destaca-se o conceito de “bem-estar humano”, disseminado principalmente pelo relatório “Millennium Ecosystem Assessment” (2005). Nesse documento foi definido que o bem-estar humano seria composto de cinco dimensões: material necessário para uma vida estável ou boa, saúde, boas relações sociais, segurança, liberdade e possibilidade de escolha (MEA, 2005). Vale ressaltar que existem diferentes padrões de avaliação sobre bem-estar humano, sendo que esses cinco eixos apresentados no Millennium Ecosystem Assessment são apenas uma das possíveis estruturas desenvolvidas (COLLOMB, 2012COLLOMB, Jean-Gaël E.; ALAVALAPATI, Janaki R.; FIK, Tim. Building a multidimensional wellbeing index for rural populations in northeastern Namibia. Journal of Human Development and Capabilities, v. 13, n. 2, p. 227-246, 2012.).

Áreas Protegidas e Comunidades Tradicionais no Pantanal

Dentro desse contexto entre criação de áreas protegidas e bem-estar das comunidades locais, destacamos o Pantanal brasileiro, especificamente a Borda Oeste dessa região. O Pantanal é considerado a maior área contínua alagável do mundo, cobrindo uma região de mais de 179,000 Km2 e adentrando três países (Brasil, Bolívia e Paraguai) (JUNK et al. 2006JUNK, Wolfgang J. et al. Biodiversity and its conservation in the Pantanal of Mato Grosso, Brazil. Aquatic Sciences, v. 68, n. 3, p. 278-309, 2006.). A principal característica dessa região é o pulso de inundação que, dependendo do ano, pode chegar a cobrir até 110,000 Km2 (JUNK et al. 2006). Diferentemente de grande parte dos outros ecossistemas do Brasil, o Pantanal ainda é relativamente preservado, com cerca de 80% da sua vegetação nativa ainda conservada (TOMAS et al. 2019TOMAS, W. M. et al. Sustainability agenda for the Pantanal wetland: perspectives on a collaborative Interface for science, policy, and decision-making. Tropical Conservation Science, v. 12, p. 1940082919872634, 2019).

Dentre as diferentes regiões do Pantanal destaca-se a Borda Oeste. Considerada uma região de extrema importância para a conservação da biodiversidade do Brasil. Devido à grande variação de altitude e como consequência a presença de uma grande diversidade de fitofisionomias vegetais e o alto grau de preservação, estão presentes nessa área espécies ameaçadas de extinção (e.g. onças pintadas (Panthera onca)), endêmicas (e.g. arbusto do amolar (Aspilia grazielae)) e espécies que utilizam a região como um importante conector de populações Amazônicas e da Mata Atlântica (e.g. Muçuâ (Kinosternon scorpioides)) (TOMAS et al., 2015; TOMAS et al., 2010).

Desde o começo da agenda de conservação no Brasil na década de 1960 e 1970, a Borda Oeste do Pantanal sempre foi vista como prioritária para possíveis ações de conservação da natureza (SCHALLER; VASCONSELOS 1978SCHALLER, G.B., VASCONCELOS, J.M.C., Jaguar predation on capybara. Z. Saeugetierk v. 43, p. 296-301. 1978). Ali, ainda na década de 1970, foram iniciados os primeiros estudos com onça pintada (P. onca) no Brasil e, em 1971, foi criada a Reserva Biológica (REBIO) do Caracará com 80.000 hectares, no centro da Borda Oeste do Pantanal (CHIARAVALLOTI, 2019CHIARAVALLOTI, Rafael Morais. The Displacement of Insufficiently ‘Traditional’Communities. Conservation & Society, v. 17, n. 2, p. 173-183, 2019.; TOCANTINS, 2006TOCANTINS, Nelly. Áreas Protegidas e Turismo, Estudo de Caso: Parque Nacional do Pantanal Matogrossense/ Mt E Seu Entorno. Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, Brasil 2006. 170p). Devido a uma pressão de fazendeiros na região que tiveram suas terras inundadas pelas cheias de 1974, em 1981, a REBIO foi substituída pelo Parque Nacional do Pantanal Mato-Grossense, aumentando a área protegida para 135.000 hectares (COUTO et al. 1975COUTO, E. A.; DIETZ, J.M.; MUNFORD, R. WTTWERBERG, G.B. Sugestões para a Florestal (IBDF)/UFViçosa, 1975.; PARMA, 2003).

Em 1992 foram criadas outras três Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN) no entorno do Parque Nacional, e em 2005, mais uma RPPN foi criada mais ao sul do Parque, todas estabelecidas por uma parceria entre a ONG The Nature Conservancy (TNC) e ONG brasileira Ecotrópica (TOCANTINS, 2006TOCANTINS, Nelly. Áreas Protegidas e Turismo, Estudo de Caso: Parque Nacional do Pantanal Matogrossense/ Mt E Seu Entorno. Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, Brasil 2006. 170p). Em 2006, uma quinta RPPN foi criada na região por uma empresa mineradora, sendo a gestão dada a uma ONG local (CHIARAVALLOTI, 2017CHIARAVALLOTI, R. M. Overfishing or Over Reacting? Management of Fisheries in the Pantanal wetland, Brazil. Conservation and Society. 15, 111- 122, 2017.). Tanto o Parque Nacional como as RPPNs são Unidades de Conservação formalmente criadas e cadastradas no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (LEI No 9.985, DE 18 DE JULHO DE 2000). Em 2006 e 2008 duas outras áreas foram compradas por proprietários privados, mas também com interesse de conservar a região (FRANCO et al., 2013FRANCO, J. L. A.; DRUMMOND, J. A. ; GENTILE, C. ; AZEVEDO, A. I. . Biodiversidade e ocupação humana do Pantanal mato-grossense: conflitos e oportunidades. 1. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2013. 260p). No entanto, estas áreas não são regularizadas pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação, mas são geridas como áreas protegidas, reconhecidas como “reservas” pela população do entorno (SIQUEIRA, 2018). Atualmente as áreas protegidas formam um corredor de proteção de cerca de 268.744.000 hectares, sendo 209.278.000 dentro de Unidades de Conservação e 59,475 hectares sem status legal de proteção, mas manejados de forma protegida (Figura 1).

Figura 1
Localização das duas comunidades estudadas no Pantanal

No entorno das áreas protegidas na Borda Oeste do Pantanal vivem cerca de 700 ribeirinhos em dois principais núcleos, com outros assentamentos familiares menores distribuídos ao longo do rio Paraguai e Cuiabá (também chamado de São Lourenço) (SIQUEIRA, 2018). A principal atividade econômica dessas comunidades é a pesca. Os ribeirinhos pantaneiros desta região vivem da venda de pescado na cidade de Corumbá, da coleta de isca (principalmente caranguejo e tuvira) e/ou como piloteiros para o turismo de pesca (CHIARAVALLOTI, 2019CHIARAVALLOTI, Rafael Morais. The Displacement of Insufficiently ‘Traditional’Communities. Conservation & Society, v. 17, n. 2, p. 173-183, 2019.). O pescado é também uma das principais fontes de alimentos para as comunidades locais (MANFROI, 2019MANFROI, Miraíra Noal; MARINHO, Alcyane. Narrativas: caminhos do lazer que acontece nas tessituras de contar sobre o vivido. Revista Brasileira de Estudos do Lazer, v. 6, n. 3, p. 37-56, 2019.).

Essa população tem sua origem, principalmente, relacionada ao grupo indígena Guató (EREMITES DE OLIVEIRA, 2003), que, durante o final do século XIX, começaram a receber migrantes como paraguaios fugindo do pós Guerra da Tríplice Aliança, e escravos alforriados das minas na região de Cuiabá-MT (SIQUEIRA, 2018). Hoje, as famílias são fruto dessa miscigenação entre Guatós, afro-descentes, paraguaios e possíveis outros forasteiros.

A criação das áreas protegidas na Borda Oeste do Pantanal, tanto unidades de conservação como áreas protegidas sem reconhecimento formal, muitas vezes, não considerou o possível impacto sobre as comunidades locais (CHIARAVALLOTI et al., 2017CHIARAVALLOTI, R. M. Overfishing or Over Reacting? Management of Fisheries in the Pantanal wetland, Brazil. Conservation and Society. 15, 111- 122, 2017.; SIQUEIRA, 2018; CHIARAVALLOTI, 2019). Existem diferentes relatos de possíveis disputas entre a agenda das áreas protegidas e o desenvolvimento de comunidades na região (CHIARAVALLOTI, 2019). Nesse sentido, o presente trabalho teve por objetivo, dentro de uma perspectiva de bem-estar, melhor compreender esses conflitos, avaliando como a criação de áreas protegidas nessa região da Borda Oeste do Pantanal impactou tanto negativamente como positivamente duas comunidades ribeirinhas da região que moram no entorno dessas áreas.

Materiais e Métodos

Coleta e análise dos dados

Para avaliarmos o bem-estar das comunidades no entorno das áreas protegidas da Borda Oeste do Pantanal, o estudo se baseou em Woodhouse et al. (2015WOODHOUSE, Emily; DE LANGE, E.; MILNER-GULLAND, E. J. Evaluating the impacts of conservation interventions on human wellbeing. Guidance for practitioners. IIED, London, 2015.) levando em consideração a estrutura teórica para avaliação do bem-estar, que vincula os domínios do bem-estar - “Vozes dos Pobres” e às perspectivas do “Bem-estar em Países em Desenvolvimento”. Essas questões foram capturadas através de entrevistas semiestruturadas (ISC). ISC são organizadas de forma em que o entrevistador conduz o processo de coleta através de algumas perguntas focais pré-determinadas e que a entrevista se assemelha a uma conversa (BONI; QUARESMA, 2005BONI, Valdete; QUARESMA, Sílvia Jurema. Aprendendo a entrevistar: como fazer entrevistas em Ciências Sociais. Em Tese, v. 2, n. 1, p. 68-80, 2005.).

Para analisar os resultados foi utilizada a análise qualitativa em que se pretendeu captar as informações de forma ampla, levando em conta a trajetória particular de cada família para depois compreender o bem-estar do grupo. Fizemos o uso do método análise temática (AT). A AT permite identificar e analisar padrões em dados qualitativos (BRAUM; CLARKE, 2006). Também foram incluídas análises quantitativas simples como proporção e diferenças, para melhor ilustrar o padrão dos resultados obtidos.

Os resultados das entrevistas foram divididos em quatro grandes temas, a fim de avaliar o impacto das áreas protegidas no bem-estar das comunidades, sendo eles: (1) Território e Modificações na Área de Uso - Liberdade, (2) Mudanças Residenciais - Segurança, (3) Receio/Medo em Praticar Atividades - Saúde e Segurança e (4) Relação Comunidades e Atores do conflito - Relações Sociais.

Também contabilizamos o número de entrevistados que identificaram algum impacto em cada um dos eixos de bem-estar, e testamos se essas respostas tinham alguma diferença significativa entre as duas comunidades. Utilizamos regressões logísticas para essas análises. Também avaliamos quais dos eixos de bem-estar foram mais citados nas entrevistas através de análises descritivas. Todas as análises foram feitas no R studio.

Para melhor avaliar o impacto no “Território e Modificações na Área de Uso - Liberdade”, foram coletados dados espaciais dos territórios tradicionais de cada uma das comunidades. O conceito de território tradicional aqui utilizado foi baseado na literatura apresentado pelo pesquisador Paul Little, que define território tradicional como “um esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu “território” ou “homeland”” (LITTLE, 2002LITTLE, Paul E. Territórios Sociais e Povos Tradicionais no Brasil: Por uma territorialidade antropológica. Série Antropológica. Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Brasília. Brasília, 2002., p. 253). O espaço físico do território de um grupo pode também ser entendido como sua cosmogeografia, o que corresponde aos possíveis regimes de propriedade, os vínculos afetivos, a história da sua ocupação e o uso social daquele território (LITTLE, 2006). Nesse sentido, para coletarmos a camada física dos territórios tradicionais das comunidades, apresentamos para cada uma das famílias ribeirinhas entrevistadas um mapa com uma imagem de satélite de alta resolução (5 metros) da região e pedimos para que eles riscassem com uma caneta ou mesmo apontassem com o dedo os locais de pesca mais frequentes, áreas de coleta de mel, áreas de lazer ou descanso, áreas de rituais religiosos (como cemitérios), entre outros pontos de importância para os próprios moradores. Esse mapeamento participativo buscou visualizar os territórios tradicionais permitindo compreender se havia sobreposição dos territórios com as áreas protegidas da região (CHIARAVALLOTI, 2019CHIARAVALLOTI, Rafael Morais. The Displacement of Insufficiently ‘Traditional’Communities. Conservation & Society, v. 17, n. 2, p. 173-183, 2019.).

Participantes

No total foram realizadas 54 entrevistas, sendo que 35 famílias foram entrevistadas na comunidade 1 e 17 famílias na comunidade 2 (Figura 1). Para a coleta, foi dada prioridade para os membros mais velhos (normalmente responsáveis pela família). Ao longo do texto os participantes são referenciados por números (ex. entrevistado 1) seguidos da identificação da comunidade de que fazem parte (ex. comunidade 1 e comunidade 2). Todos os entrevistados no estudo foram informados sobre os objetivos do projeto e perguntados sobre a disponibilidade em participar. As entrevistas foram gravadas ou escritas, de acordo com a preferência do entrevistado. Foram feitas duas campanhas de coleta de dados, entre o mês de outubro e dezembro de 2019, com duração de uma semana, cada uma. O estudo foi aprovado pelo comitê de ética CAE 31233814.2.0000.0021.

Resultados

4.1. Território e Modificações na Área de Uso - Liberdade

4.1.1. Comunidade 1:

Dentro da área protegida mais ao sul da Borda Oeste, aqui denominada reserva uma vez que, embora seja protegida não foi transformada em RPPN, está localizada a Baía Vermelha. Ela foi citada em todas as entrevistas como área importante para a pesca e a coleta de isca na comunidade 1. Foi afirmado que essa baía é o melhor local para trabalhar, pois o recurso pesqueiro é garantido, ou seja, o investimento de tempo e combustível é recompensado, como ilustrado na fala a seguir:

“A minha região que eu pego mais é Baía Vermelha, tem outros lugares que a gente vai, mas não é bom como lá” (entrevistada 01, comunidade 1).

Considerando o território tradicional identificado (o qual incorpora áreas de pesca, lazer, religião entre outros locais importantes), identificamos uma área de 57,995.13 hectares, sendo que 18,594.36 hectares (32.06%) estão dentro de áreas protegidas (Figura 2).

4.1.2. Comunidade 2:

Na comunidade 2, a área mais utilizada para pesca é a Boca do Moquém. Os moradores citam na entrevista que esta área é de extrema importância para a sobrevivência das famílias, pois assim como a Baía vermelha é para a comunidade 1, na Boca do Moquém, o pescado é “garantido”, como ilustrado “A gente pesca no moquém ali, que é em frente à casa ali. Ali sempre foi garantido ali.” (entrevistado 9, comunidade 2). No entanto, essa área está inteiramente localizada dentro de áreas protegidas (parte dentro do Parque Nacional e parte dentro de duas RPPNs). Nesse âmbito, considerando todas as áreas de pesca, lazer, religião entre outros locais importantes (considerados aqui como território tradicional), identificamos uma área de 35,652.29 hectares, sendo que 30,662.85 hectares (86%) estão dentro de áreas protegidas (Figura 2).

Figura 2:
Regiões que foram declaradas pelas comunidades 1 e 2 como parte do seu território tradicional

Em termos comparativos a comunidade 2 teve impactos significativamente maiores na sua liberdade que a comunidade 1 (p=0,00, intercept = 0.58). A análise também mostrou que um morador da comunidade 2 tem 78% mais chance de ter restrições das suas áreas de uso (liberdade) do que um morador da comunidade 1.

4.2. Mudanças Residenciais - Segurança

4.2.1. Comunidade 1:

Na comunidade 1, duas famílias (11%) contaram que tiveram que se mudar devido a criação das áreas protegidas (nesse caso reserva sem status de unidade de conservação). A mudança é contada por duas gerações. Ambas as famílias foram compensadas financeiramente. Uma das famílias, no entanto, ainda sente que a mudança impactou negativamente suas vidas: “Lá era bem melhor, porque nós plantávamos, tinha mandioca, milho e aqui não dá pra plantar, a gente só usou este pedacinho que a senhora está vendo. É bem pequena esta ilha”. (entrevistado 18, comunidade 1). No outro exemplo, o conflito sobre a mudança foi maior, pois por alguns anos a chefe de família trabalhou na área protegida. Após algumas discordâncias sobre vender isca no porto da área, a proprietária não concordou com a atividade e não quis mais que eles morassem nos limites da propriedade. A família entrou com um processo contra a proprietária, que através de um acordo judicial pagou pela propriedade em que moravam. Vale o destaque que, em ambos os casos, os conflitos relacionados à segurança envolveram entes privados não regidos pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC).

4.2.2. Comunidade 2:

Na comunidade 2, os moradores relataram que, tanto na criação do Parque Nacional quanto das RPPNs, ocorreram expulsões de forma violenta. 15 famílias entrevistadas (86%) contaram que foram expulsas, e que não tiveram seus direitos preservados.

“Logo que criaram ali a reserva eles mandaram o povo sair de lá. Ai pra turma não voltar lá, eles queimaram as casas...meu pai e minha mãe colocou nós em um barquinho pequenininho e viemos a remo, até ai que nós começamos limpar, pra fazer nossa casa, em uma época de chuvarada e mosquito, fevereiro, foi mês de janeiro, março, abril que nós terminamos de limpar. Quando chegamos lá não tinha mais nada, tudo queimado, acabou.” (entrevistado 3, comunidade 2)

Tiraram tudo, nós tivemos que vir em uma canoinha. Então, eu e meu irmão e minha tia que nós estávamos em uma canoinha, nós afundamos menina. No meio da Baía. Não deu para socorrer as galinhas, os cachorros, nada. (entrevistada 12, comunidade 2)

Em termos comparativos a comunidade 1 e comunidade 2 sofreram impactos significativamente diferentes no eixo de segurança do seu bem-estar (p = 0,00, intercept = 0.72). A análise mostrou que um morador da comunidade 2 tem 205% a mais de chance de ter tido mudanças de locais de moradias (segura) do que um morador da comunidade 1.

4.3. Receio/Medo em Praticar Atividades - Saúde e Segurança

4.3.1. Comunidade 1:

Na comunidade 1, embora algumas famílias apontam que seria permitido pescar dentro das áreas protegidas no entorno da comunidade (tanto áreas não formalmente protegidas como RPPN), 15 famílias (45%) disseram que tiveram que mudar as áreas de pesca devido a medo ou insegurança, ocasionados fiscalização feita principalmente pelos funcionários que cuidam dessas áreas, como apontado

Na Baía Vermelha dá medo, nós ficamos em grupo e um fica de alerta.

O cuidador aparece para mandar embora, e a gente fala que não vamos fazer nada” (entrevistado 25, comunidade 1).

Também existe insegurança em relação à criação de novas áreas protegidas. Oito dos entrevistados dessa comunidade (24%), relataram que um fazendeiro da região pretende transformar parte da sua área em reserva, embora não tenha sido detalhado se estaria se referindo à uma RPPN ou à uma fazenda privada tratada como reserva. O medo dos moradores é exatamente sobre a limitação do local de pesca de uma área que é usada na região por algumas famílias.

4.3.2. Comunidade 2:

Na comunidade 2, 50% das famílias apontaram impactos relacionados à saúde e segurança. Entre aquelas que sentiram algum tipo de impacto há falas relacionadas a se sentirem “prensadas” e “trancadas” como apontado

a reserva foi prensando muito a gente... ai como eu ouvia, meu pai e minha mãe, sempre falava que quando a reserva chegou, prensou muito eles lá, num tinha como trabalhar muito, entendeu? (entrevistado 9, comunidade 2)”.

Nessa comunidade não houve falas que apontassem um medo de criação de novas reservas na região.

Em termos comparativos, moradores da comunidade 2 têm 11% mais chance de terem sofrido algum tipo de impacto relacionado ao medo e receio de praticar atividades (saúde / segurança) do que os moradores da comunidade 1, no entanto, essa diferença não foi significativa (p=0.51, intercept = 0.11).

4.4. Relação Comunidades e Atores do conflito - Relações Sociais

4.4.1. Comunidade 1:

Após a criação da reserva (fazenda protegida sem caráter de RPPN) no entorno da comunidade 1, a dona da área fundou uma escola, a qual também oferece oficinas de capacitação de artesanatos focada na geração de renda. A escola é gerida através de uma parceria pública-privada e não tem custo para as crianças das comunidades. O fato de as crianças, mesmo morando perto, ficarem alojadas na escola durante a semana, fizeram com que muitas famílias de ribeirinhos optassem por matricular seus filhos em uma escola pública também localizada na região, por ter transporte diário. Com o tempo, as famílias foram se adaptando a ideia de alojamento, e com diálogo, algumas crianças acabaram indo para a escola vinculada à RPPN. Nesse sentido, por mais que essas ações da escola não estejam diretamente ligadas com a segurança de pescar nas áreas protegidas, a presença destes projetos sociais interfere no modo como alguns moradores se sentem ao usar o espaço que é a reserva. Vendo a escola como uma caridade da proprietária.

4.4.2. Comunidade 2:

Na comunidade 2, as áreas protegidas são vistas de duas formas (RPPNs e Parque Nacional). O Parque Nacional é visto como capaz de apoiar as famílias em situação de emergência, como iremos discutir no tópico 4.6.2. No entanto, sobre as reservas privadas (RPPNs), embora também sejam Unidades de Conservação, eles tendem a serem vistas personificadas pela figura do gestor e com um outro olhar, como apontado:

A pessoa 3 nunca conversou com nós lá. Passa reto, nunca foi na nossa área conversar com nós. Ele nunca procura a comunidade pra conversar (entrevistado 2, comunidade 2).

Um fato importante em relação a essa comunidade aconteceu em novembro de 2019. Os autores desse artigo foram convidados para participar de uma audiência pública sobre o conflito entre o Parque Nacional e as famílias que moram na comunidade 2. Essa audiência foi resultado de um processo que uma ONG local encaminhou para o Ministério Público Federal em 2014 para que o Parque revisse o seu modelo de gestão devido a proibição da pesca na zona de amortecimento da área protegida.

Após dois anos de avaliação, o juiz decretou que o Parque deveria refazer o seu plano de manejo considerando as questões sociais locais. Seguidos mais três anos de elaboração, os gestores do Parque publicaram um novo plano de manejo no começo de 2019, que permitiu que as famílias da comunidade 2 pudessem utilizar algumas áreas da zona de amortecimento. Embora a área conquistada seja menor que o território estimado para a comunidade, o plano de manejo reconheceu as comunidades como tradicionais e permitiu a pesca e coleta de isca em diversas áreas antes proibidas, como apontado:

Agora que tá bom pra gente em? Poder trabalhar tranquilo sem ficar correndo de ninguém, porque assim é difícil, né...” (entrevistado 1, comunidade 2).

Em termos comparativos entre as duas comunidades, moradores da comunidade 2 tem 36% mais chance de terem tido mudanças nas questões relacionadas às redes sociais do que moradores da comunidade 1, no entanto, essa diferença é apenas marginalmente significativa (p=0.055, intercept = 0.31).

4.5. Análise integrada

A análise integrada mostra que o impacto das áreas protegidas em todos os quatro quesitos de bem-estar avaliados foi maior na comunidade 2 do que na comunidade 1. No entanto, apenas os eixos de liberdade e segurança tiveram uma diferença significativa. Na comunidade 2, os principais impactos foram relacionados à liberdade e segurança, sendo que 92% e 100% dos entrevistados respectivamente relataram terem sido afetados nessas questões. Na comunidade 1, o principal eixo de impacto foi relacionado às relações sociais, liberdade e saúde, com 45%, 41% e 38% dos entrevistados apontando que a criação das áreas protegidas os afetou nessas questões (Figure 3).

Figura 3:
Diagrama mostrando o peso de cada um dos eixos na avaliação do impacto negativo no bem-estar das comunidades 1 e 2

4.6. Falas Positivas em Relação às Reservas

4.6.1. Comunidade 1:

Na comunidade 1 encontramos diversas falas positivas sobre a presença das reservas. Ao todo 32,2% das famílias destacaram que as reservas trouxeram benefícios para o seu bem-estar, que variam em três aspectos. Em relação a questões sociais e econômicas alguns ribeirinhos foram contratados para trabalhar nas reservas e outros participaram de oficinas promovidas pela área protegida na região. Como comentado, vale o destaque para a escola que foi criada pela proprietária da área protegida, e a importância que foi dada por alguns comunitários:

Hoje eu mesmo falo que se eles (os netos) tivessem como estudar lá eles estariam até agora. Foi bom, eles foram muito bem tratados, tinham tudo, nunca tiveram uma queixa, quando ficava doente levava pra cidade. Tratam bem até hoje (entrevistado 27, comunidade 1).

Um outro aspecto importante é a questão ambiental, como apresentado

“Foi bom [a criação da reserva] ...porque hoje você vê mato para todo lado, não esbarranca [desbarranca] mais. Porque antes dela vir pra cá o pessoal roçava, tacava fogo. Acabava com tudo. Daqui você andava em todo lugar montado você via só grama, não tinha uma árvore pra você descansar.” - (entrevistada 27, comunidade 1). Outro exemplo, “Ela [a dona da reserva] não gosta que taca fogo, joga lixo, isso é certo. Porque prejudica a natureza… porque do jeito que está mudando o clima, hoje em dia, tá demais de quente e as árvores estão acabando... por causa que acaba as árvores, acabam as sombras para refrescar.” (entrevistada 36, comunidade 1).

4.6.2. Comunidade 2:

Também identificamos falas positivas dentro da comunidade 2. Similar à comunidade 1, 33,3% das pessoas apontaram aspectos positivos relacionados à presença das áreas protegidas na região. As falas também podem ser divididas em três aspectos. Em termos sociais, vale o destaque sobre a importância da presença dos gestores do Parque Nacional no suporte em situações de emergência, como apontado:

Ai cheguei falei, puxa, essa menina tinha caído. Então, por duas vez eles me socorreu na hora que precisei, me socorreu, ajudou” (entrevistada 16, comunidade 2), e “É legal, o pessoal do parque são legais com nós. Nunca desfizeram de nós, sempre tá junto de nós, quando nós precisa eles estão ajudando” (entrevistados 11, comunidade 2).

Assim como na comunidade 1, os moradores da comunidade 2 também enxergam um importante componente ambiental sobre a presença das reservas, como apontado

“Para mim essa reserva para preservar a Baía, pra preservar estes peixes, é bom. Sabe por quê? Porque se deixar entrar nessa baía o número de bote ai acaba o peixe. E se ele [o gestor do Parque] segurar esta baía para ninguém pode pescar nesta baía, seria bom, porque os peixe cria também. Porque se não daqui a pouco as crianças não tem nem peixe pra comer.” (entrevistado 11, comunidade 2). Um segundo exemplo “[...] tem gente que não concorda de ter a reserva, eu concordo, sabe por quê? Porque eu acredito que se não tivesse essa reserva pro fundo aí, já não existiria peixe. Num sei como é a linguagem da turma fala, né? Mas é um berçário aí dentro, né? E se fosse liberado pra todo mundo, ... Nós passaria fome, com certeza né.” (entrevistado 15, comunidade 2).

A comparação entre a presença de falas positivas entre as comunidades não mostrou diferenças significativas (p = 0,94, intercept = 0,01).

Discussão

Atualmente há um maior entendimento sobre a importância da participação social nas áreas protegidas. Muitas comunidades locais saíram da invisibilidade e se tornaram gestores dessas áreas (SILVA, 2007SILVA, Marina Osmarina. Saindo da invisibilidade-a política nacional de povos e comunidades tradicionais. Inclusão social, v. 2, n. 2, 2007.). Em termos absolutos, o Brasil apresenta uma extensão quase três vezes maior de áreas protegidas de uso sustentável (p. ex. Reserva Extrativista, Reserva de Desenvolvimento Sustentável, etc.) do que de proteção integral1 1 - https://antigo.mma.gov.br/areas-protegidas/cadastro-nacional-de-ucs/dados-consolidados.html . No entanto, em alguns lugares, ainda há um distanciamento entre a gestão das áreas protegidas e comunidades locais. O início da criação das áreas protegidas na Borda Oeste do Pantanal é um destaque nesse sentido. As primeiras áreas protegidas na região foram criadas ainda na década de 1970, e hoje cobrem mais de 250.000 hectares. No entanto, pouco se sabia sobre como as comunidades têm interagido com esses diferentes modelos de gestão da paisagem, como eles enxergam as áreas protegidas e quais mudanças ocorreram nas suas vidas com a criação destas áreas. Nesse artigo através de uma avaliação que envolveu questões tanto qualitativas focadas em narrativas, saberes, culturas e histórias (MANFROI, 2019MANFROI, Miraíra Noal; MARINHO, Alcyane. Narrativas: caminhos do lazer que acontece nas tessituras de contar sobre o vivido. Revista Brasileira de Estudos do Lazer, v. 6, n. 3, p. 37-56, 2019.), quanto quantitativas, buscou-se entender como o bem-estar dos moradores da Borda Oeste do Pantanal foi e é afetado pela criação de um Parque Nacional, 5 RPPNs e uma fazenda protegida na região. Também apontamos os possíveis aspectos positivos que os moradores enxergam sobre essas áreas.

Tanto os moradores da comunidade 1 como da comunidade 2 apontaram os impactos negativos da criação das áreas protegidas na região. Eles estão principalmente relacionados à liberdade (referentes às expulsões físicas) e à segurança (referentes às restrições de áreas de pesca). Na comunidade 2 esses impactos foram significativamente mais presentes, com quase todos os moradores confirmando que tiveram que mudar suas áreas de uso ou moradia após a criação das áreas protegidas. Vale o destaque para a forma violenta de como essas restrições foram implementadas, principalmente, na comunidade 2. Destruição de casas, expulsões forçadas, ausência de diálogo e violência física e emocional estiveram presentes nas falas.

Muitas dessas expulsões foram realizadas utilizando como justificativa uma possível falta de tradicionalidade por parte das comunidades locais (CHIARAVALLOTI, 2016CHIARAVALLOTI, R. M. Is the Pantanal a Pristine Place? Conflicts Related To the Conservation of the Pantanal. Ambiente e Sociedade. 19, 305-310, 2016.). Isso se deve ao fato de que estudos etnográficos têm mostrado que para lidar com a incerteza ambiental do Pantanal, membros da mesma comunidade defendem a ideia de que o território em que eles vivem é um bem de todos os membros da comunidade, e apenas ajudando uns aos outros eles conseguem sobreviver. É um sistema sem limites sobre o manejo de recursos, focado na reciprocidade, chamado de “cooperative open access” (CHIARAVALLOTI; HOMEWOOD; DYBLE 2021). Ou seja, a complexidade das relações de governança do Pantanal distancia essas comunidades de categorias pré-concebidas sobre povos tradicionais, o que facilita o caminho de narrativas que buscam descaracterizá-las como tradicionais (LITTLE, 2002LITTLE, Paul E. Territórios Sociais e Povos Tradicionais no Brasil: Por uma territorialidade antropológica. Série Antropológica. Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Brasília. Brasília, 2002.). No entanto, independente das adaptações socioecológicas para garantir a sustentabilidade da pesca na região, as comunidades ribeirinhas da Borda Oeste do Pantanal se auto identificam como um grupo culturalmente diferenciado e com um território tradicional definido, e, portanto, estão sob a tutela da Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (decreto 6.040 de 7 de Fevereiro de 2007) com direito a permanência nos seus territórios (CHIARAVALLOTI, 2019; PIMENTEL, 2020).

Um segundo ponto importante do estudo se refere às diferentes experiências em relação ao impacto das áreas protegidas sofrido pelas comunidades. Ambas as comunidades compartilham características de organização social e governança (CHIARAVALLOTI; DYBLE, 2019CHIARAVALLOTI, Rafael Morais. The Displacement of Insufficiently ‘Traditional’Communities. Conservation & Society, v. 17, n. 2, p. 173-183, 2019.), um mesmo bioma, um mesmo modo de vida e a mesma bacia. No entanto, na comunidade 2, os principais impactos foram relacionados à liberdade e segurança, e na comunidade 1, às relações sociais e à liberdade. Um ponto importante de diferença entre as duas comunidades é o status das áreas protegidas que estão no seu entorno. A comunidade 1 está no entorno de uma área privada que não está regularizada pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação (mesmo que a área seja cuidada como uma área protegida), e a comunidade 2 de quatro Unidades de Conservação (três RPPNs e um Parque Nacional).

Essa diversidade de situações (em que se pode chamar de histórico) interfere na forma que são estabelecidos os relacionamentos destas comunidades com os gestores e com a área. Tanto nas RPPNs como na fazenda preservada (reserva), a personificação do gestor/proprietária da área é bastante presente (REZENDE, 2017). Devido ambas as áreas serem privadas, o gestor carrega a ideia de “dona(o) das terras” e “de quem faz as regras” dentro da sua propriedade. Mesmo que, no primeiro caso a pessoa que é proprietária não esteja presente fisicamente na região, e no segundo ela é gerida por uma ONG. Esta visão do gestor como “dono” mostra que não ocorreu uma estratégia de incluir as comunidades de forma participativa nas tomadas de decisão. Reforçando a separação entre sociedade e natureza (IRVING, 2006IRVING, Marta de Azevedo; MATOS, Karla. Gestão de parques nacionais no Brasil: projetando desafios para a implementação do Plano Nacional Estratégico de Áreas protegidas. Floresta e Ambiente, v. 13, n. 2, p. 89-96, 2006.). Na prática, no entanto, a forma como cada “dono” gere a sua área é bastante distinta. Na comunidade 1 a gestão da área particular (reserva) estabeleceu contato por meio de trabalhos beneficentes (como contratações e construção de projetos comunitários na região). Na comunidade 2 a RPPN é gerida por uma organização governamental que, segundo os moradores, por muitos anos, evitou o contato. Em ambas, a população local não é vista como um ator que pode potencializar a conservação das áreas, e a sua participação ocorre de forma passiva (PÁDUA; CHIARAVALLOTI, 2017CHIARAVALLOTI, R. M. Overfishing or Over Reacting? Management of Fisheries in the Pantanal wetland, Brazil. Conservation and Society. 15, 111- 122, 2017.). Por outro lado, a comunidade 2, conseguiu através do Ministério Público e uma ONG local, rediscutir os mecanismos de gestão do Parque Nacional - uma vez que se trata de um bem público com espaço para diálogo e negociações.

Esses resultados enfatizam a necessidade da criação de espaços de fala e ações para que a gestão seja participativa, satisfazendo de forma equilibrada os interesses das comunidades (bem-estar) e da biodiversidade independente da categoria ou modelo de gestão das áreas protegidas (KOTSAKIS, 2010KOTSAKIS, Andreas. Community participation in biodiversity conservation: emerging localities of tension. In: PERRY-KESSARIS, Amanda (Ed.). Law in the pursuit of developement: principles into practice? Routledge: Oxon, 2010. p. 131-145). Quando colocamos a discussão sobre a reivindicação de identidades étnicas dentro da discussão sobre áreas protegidas, é fundamental abordarmos sobre deveres e direitos de cada um dos atores envolvidos, do ponto de vista das leis e políticas públicas nacionais, aumentando a interdisciplinaridade da pauta ambiental (CREADO et al., 2008CREADO, Eliana Santos Junqueira et al. Entre” tradicionais” e” modernos”: negociações de direitos em duas unidades de conservação da Amazônia brasileira. Ambiente & Sociedade, v. 11, n. 2, p. 255-271, 2008.). Por exemplo, mesmo que comunidades ocupem ou utilizem áreas dentro de Unidades de Conservação de proteção integral, existem mecanismos para solucionar tais questões, como Termos de Compromissos que permitem arranjos inovadores de uso de recursos (PINHA et al. 2015PINHA, P. R, Noce, E. M. , CROSSA, M., AMORAS, A.S. Acordos Para Conservação Da Reserva Biológica Do Lago Piratuba. Biodiversidade Brasileira, v.5, n.1, p. 32-58. 2015). O exemplo da Borda Oeste do Pantanal mostra que, por muitos anos, a falta de diálogo e de ferramentas participativas, levou à conflitos na região que, até o momento da coleta de dados desse estudo, tinham sido apenas parcialmente resolvidos.

Mesmo diante de impactos no bem estar das comunidades, muitos moradores ainda enxergam a importância social, econômica e ambiental das áreas protegidas na Borda Oeste do Pantanal. O gestor do Parque Nacional é visto por alguns como um agente do estado que ajuda em momentos de dificuldade, e as ações de desenvolvimento local promovidas por um dos donos das áreas privadas permitem que os filhos de alguns consigam acessar educação. Muitas também enxergam a importância das áreas protegidas para a garantia do pescado e de um ambiente equilibrado. Ou seja, há um grande espaço para o diálogo entre gestores e comunidades locais. Nesse sentido, uma gestão mais participativa permitiria uma maior proporção dos aspectos positivos, e o entendimento de que tanto povos culturalmente diferenciados como áreas de grande importância biológica devem ser motores de um desenvolvimento sustentável.

Conclusões

A avaliação sobre o bem-estar nas comunidades da Borda Oeste do Pantanal traz importantes conclusões sobre a gestão de áreas protegidas no Brasil. Primeiramente apontamos a importância do reconhecimento de comunidades como tradicionais, independente das particularidades de uso e gestão de recursos naturais. Esse reconhecimento é fundamental para garantir os direitos e evitar impactos no bem-estar das pessoas. Um segundo ponto importante é a necessidade de os gestores seguirem as regras de gestão estabelecidas pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Como mostramos, o Parque Nacional do Pantanal, sob constante escrutínio público, mudou sua gestão através de uma movimentação de atores locais. Embora de caráter privado, isso também deveria ocorrer com as RPPNs. Por fim, há um importante reconhecimento das comunidades sobre a importância dessas áreas do ponto de vista ambiental, social e econômico, o que torna o caminho de cogestão, ou apenas decisões mais participativas, ainda aberto na Borda Oeste do Pantanal.

Agradecimentos

O estudo fez parte do programa de Mestrado Profissional do IPÊ - Instituto de Pesquisas Ecológicas. A autora agradece pela revisão-crítica do Tiago Pavan Beltrame, e também ao piloteiro Jocemir Antunes (Jaburu) presença de suma importância para a coleta de dados em campo. A autora também é grata a comunidade local e a Organização Ecoa que receberam nossa equipe cordialmente.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    21 Mar 2021
  • Aceito
    14 Maio 2022
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