Acessibilidade / Reportar erro

Descarte de medicamentos em desuso pela população de Itapetininga, São Paulo, Brasil

Resumo

O objetivo do artigo é avaliar as formas de descarte de medicamentos em desuso pela população da cidade de Itapetininga, São Paulo, Brasil. Trata-se de um estudo transversal com 182 sujeitos que frequentavam estabelecimentos de saúde, por meio de um questionário referente ao descarte dos medicamentos da “farmácia caseira”. Dos 182 indivíduos pesquisados, 2,7% descartavam os medicamentos corretamente (entrega para estabelecimentos de saúde). 5,5% descartavam corretamente, porém associado a alguma conduta inadequada. Em 14,8% das “farmácias caseiras” não havia sobra de medicamentos, provavelmente devido à entrega na quantidade correta e à aderência ao tratamento. 77% das condutas podiam causar dano ambiental. Dos 182 respondentes, 65% guardavam os medicamentos em desuso para uso posterior e 10% doavam para vizinhos, amigos e parentes, condutas consideradas inadequadas pelos possíveis problemas de automedicação e de armazenamento. Conclui-se pela necessidade de educação ambiental e de saúde para a população e profissionais de saúde.

Palavras-chave:
Logística reversa; resíduos de serviços de saúde; resíduos sólidos; descarte de medicamentos; Meio ambiente e educação

Abstract

The aim of the current article is to evaluate the ways of disposing medications in disuse adopted by the population in Itapetininga City, São Paulo State, Brazil. Cross-sectional study carried out with 182 subjects who attended health facilities. It was performed through a questionnaire about the disposal of medication kept in “home pharmacies”. In total, 2.7% of the 182 respondents properly disposed medication (delivery to health facilities) - 5.5% accounted for the correct discard of it, but, yet, it was associated with some inappropriate behavior. There was no leftover medication in 14.8% of “home pharmacies” likely because of delivery at correct medication amount and of adherence to treatment - 77% of the ducts could cause environmental damage. In total, 65% of the 182 respondents kept medication in disuse for further use and 10% of them used to donate medication to neighbors, friends and relatives - these behaviors are considered inappropriate due to likely self-medication and storage issues. In conclusion, there is the need of environmental and health education for both the population and health professionals.

Keywords:
Reverse logistics; health services waste; solid waste; drug disposal; environment and education

Resumen

El propósito del artículo es evaluar las formas en que los medicamentos obsoletos son desechados por la población de Itapetininga, São Paulo, Brasil. Es un estúdio transversal con 182 sujetos que acudieron a establecimientos de salud, a través de un cuestionario sobre disponibilidad de medicamentos en la “farmacia domiciliaria”. De los 182 encuestados, el 2,7% descartó correctamente el medicamento (entrega a los establecimientos de salud). El 5,5% descartó correctamente, pero se asoció a alguna conducta inapropiada. En el 14,8% de las “farmacias domiciliarias” no quedaron medicamentos, probablemente por entrega en la cantidad correcta y adherencia al tratamiento. El 77% de los ductos pueden causar daño ambiental. De los 182 encuestados, el 65% guardaba medicamentos obsoletos para su uso posterior y el 10% los donaba a vecinos y familiares, considerados inapropiados por posible automedicación y problemas de almacenamiento. La conclusión es la necesidad de educación ambiental y sanitaria para la población y los profesionales de la salud.

Palabras-clave:
Logística inversa; residuos de servicios sanitários; residuos sólidos; eliminación de medicamentos; medio ambiente y educación

Introdução

A preocupação com a administração correta de medicamentos para o tratamento e cura de doenças é tão relevante que os procedimentos para o descarte adequado de medicamentos inutilizados ficam em segundo plano, fato que contribui para sua eliminação principalmente no resíduo domiciliar e/ou na rede de esgoto por meio do vaso sanitário ou pia (PEREIRA et al., 2019PEREIRA, F. G. F. et al. Conhecimento e comportamento autorreferidos sobre descarte domiciliar de medicamentos. Journal of Research and Fundamental Care Online, v. 11, n. 1, p. 154-159, 2019.; PINTO et al., 2014PINTO, G. M. F. et al. Estudo do descarte residencial de medicamentos vencidos na região de Paulínia (SP), Brasil. Engenharia Sanitária e Ambiental, v. 19, n. 3, p. 219-224, 2014.).

A medicalização e o crescimento do mercado farmacêutico têm contribuído para o acúmulo de medicamentos domiciliares ou “farmácia caseira”. Podem-se considerar diversas possibilidades para tal acúmulo, seja intencional ou não, tais como: (1) dispensação acima do necessário para o tratamento; (2) troca de prescrição médica; (3) amostras grátis eventualmente recebidas pelos pacientes em consultórios médicos; (4) abandono do tratamento; (5) cura da doença; (6) falta de atenção no momento da dispensação; (7) impossibilidade de fracionar blisters; (8) compras desnecessárias pelo usuário e (9) óbito do paciente (DANTAS; SILVA; FONSECA, 2018DANTAS, A. M. S.; SILVA, P. L. N.; FONSECA, J. R. Visão de profissionais, acadêmicos e usuários da atenção primária à saúde sobre o descarte correto de medicamentos: revisão integrativa da literatura. Journal of Health & Biological Sciences, v. 6, n. 2, p. 197-205, 2018.; MEDEIROS; MOREIRA; LOPES, 2014MEDEIROS, M. S. G.; MOREIRA, L. M. F.; LOPES, C. C. G. O. Descarte de medicamentos: programas de recolhimento e novos desafios. Revista de Ciências Farmacêuticas Básica Aplicada, v. 35, n. 4, p. 651-662, 2014.). Essas sobras de medicamentos podem levar ao descarte incorreto, à perda do prazo de validade, automedicação etc., com riscos à saúde das pessoas e ao ambiente (MEDEIROS; MOREIRA; LOPES, 2014).

O desconhecimento quanto ao descarte correto envolve não somente a população em geral, mas também profissionais da área da saúde. Tal realidade é preocupante, uma vez que esses profissionais poderiam ser multiplicadores do conhecimento para a comunidade (BANDEIRA et al., 2019BANDEIRA, E. O. et al. Descarte de medicamentos: uma questão socioambiental e de saúde. Journal of Research and Fundamental Care Online, v. 11, n. 1, p. 1-10, 2019.).

Se o medicamento é eliminado no resíduo domiciliar, este poderá ter como destino os lixões, aterros controlados e/ou aterros sanitários, pois são unidades de processamento para resíduos sólidos existentes no Brasil, conforme o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) (BRASIL, 2019). O lixão e o aterro controlado são unidades de processamento em que os resíduos depositados ficam expostos ao ambiente, em contato direto com o solo, pois este não é impermeabilizado, bem como não há um sistema de drenagem do chorume e dos gases formados pelas substâncias depositadas, além de não conter a cobertura diária do resíduo (BRASIL, 2019; MEDEIROS; MOREIRA; LOPES, 2014MEDEIROS, M. S. G.; MOREIRA, L. M. F.; LOPES, C. C. G. O. Descarte de medicamentos: programas de recolhimento e novos desafios. Revista de Ciências Farmacêuticas Básica Aplicada, v. 35, n. 4, p. 651-662, 2014.; VAN ELK, 2007VAN ELK, A. G. H. P. Redução de emissões na disposição final. Rio de Janeiro: IBAM, 2007. 40 p.). Se o aterro sanitário não possuir boa estrutura de impermeabilização do solo, em nada difere dos riscos das demais unidades de processamento (MEDEIROS; MOREIRA; LOPES, 2014). Ao descartar o medicamento junto com o resíduo domiciliar, ele irá se misturar com o chorume dos demais resíduos, atingirá o solo e posteriormente os lençóis freáticos, poluindo o meio ambiente (MEDEIROS; MOREIRA; LOPES, 2014). Além disso, o medicamento eliminado no resíduo domiciliar pode apresentar ameaças para os catadores de reciclados e parar nas mãos de crianças, conforme como destacado pela Organização Mundial de Saúde (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 1999).

O descarte dos medicamentos na pia ou vaso sanitário é o meio pelo qual o fármaco chega até a rede de esgoto, também conhecida como água residual. Esta água passa por diversas etapas de purificação, porém o tratamento convencional não é eficiente para a eliminação dos medicamentos e seus metabólitos e pode causar a contaminação de humanos e animais (KINRYS et al., 2018KINRYS, G. et al. Medication disposal practices: increasing patient and clinician education on safe methods. The Journal of Internal Medical Research, v. 46, n. 3, p. 927-939, 2018.; PAÍGA et al., 2019PAÍGA, P. et al. Assessment of 83 pharmaceuticals in WWTP influent and effluent samples by UHPLC-MS/MS: hourly variation. The Science of Total Environment, v. 648, p. 582-600, 2019.; SANTOS et al., 2020SANTOS, A. V. et al. Occurrence and risk assessment of pharmaceutically active compounds in water supply systems in Brazil. The Science of Total Environment, v. 746, p. 141011, 2020.).

Para serem descartados de maneira correta, os medicamentos devem ser destinados a aterro sanitário classe I - produtos perigosos, ou coprocessados, ou ainda, serem incinerados (BRASIL, 2020). Para a incineração, a OMS sugere altas temperaturas (acima de 1.200ºC), para haver a destruição dos compostos farmacológicos, em instalações equipadas com adequado controle de emissão de gases (PEREIRA et al., 2019PEREIRA, F. G. F. et al. Conhecimento e comportamento autorreferidos sobre descarte domiciliar de medicamentos. Journal of Research and Fundamental Care Online, v. 11, n. 1, p. 154-159, 2019.; WORLD HEALTH ORGANIZATION, 1999). Nas águas residuais, é necessário adotar procedimentos que possibilitem a eliminação dos medicamentos e seus metabólitos, como a Ultrafiltração, Osmose Reversa e outros (MEDEIROS; MOREIRA; LOPES, 2014MEDEIROS, M. S. G.; MOREIRA, L. M. F.; LOPES, C. C. G. O. Descarte de medicamentos: programas de recolhimento e novos desafios. Revista de Ciências Farmacêuticas Básica Aplicada, v. 35, n. 4, p. 651-662, 2014.).

Para regulamentar o descarte de medicamentos da “farmácia caseira” no Brasil, em junho de 2020 foi aprovado o Decreto nº 10.388 (BRASIL, 2020) que institui o sistema de logística reversa de medicamentos domiciliares vencidos ou em desuso pelos consumidores. A implantação do sistema se dará de forma gradual, de um a dois anos para entrar em vigor nas capitais dos estados e nos municípios com população superior a 500 mil habitantes e, do terceiro ao quinto ano, nos municípios com população superior a 100 mil habitantes. Os pontos fixos de recolhimento serão as drogarias e farmácias, devendo ter um ponto de coleta para cada 10 mil habitantes, nos municípios com população superior a 100 mil habitantes. Os custos para a destinação ambiental adequada dos medicamentos descartados ficam, obrigatoriamente, para os fabricantes e importadores de medicamentos (BRASIL, 2020).

Até o momento, não houve a preocupação do poder público e privado quanto ao descarte dos medicamentos de uso domiciliar, gerando um acúmulo de medicamentos por falta de orientação à população e profissionais da saúde, bem como de locais disponíveis para realizar o descarte (DANTAS; SILVA; FONSECA, 2018DANTAS, A. M. S.; SILVA, P. L. N.; FONSECA, J. R. Visão de profissionais, acadêmicos e usuários da atenção primária à saúde sobre o descarte correto de medicamentos: revisão integrativa da literatura. Journal of Health & Biological Sciences, v. 6, n. 2, p. 197-205, 2018.).

As propagandas de medicamentos e a facilidade em adquiri-los contribuem para a automedicação (ARRAIS et al., 2016ARRAIS, P. S. D. et al. Prevalência da automedicação no Brasil e fatores associados. Rev Saúde Pública, v. 50, suppl 2, p. 1-11, 2016.), que é o uso de medicamentos sem prescrição médica ou orientação de profissional da saúde, sejam adquiridos pelo paciente para tratamento de sintomas e/ou doenças detectadas por ele próprio ou das sobras de prescrições anteriores. A automedicação pode ocorrer também por meio de doações de vizinhos ou familiares, incluindo os medicamentos que precisam de receituário médico, entre eles os antibióticos e os controlados (MORTAZAVI et al., 2017MORTAZAVI, S. S. et al. Self-medication among the elderly in Iran: a content analysis study. BMC Geriatrics, v. 17, n. 1, p. 198, 2017.; PONS et al., 2017PONS, E. S. et al. Predisposing factors to the practice of self-medication in Brazil: results from the National Survey on Access, Use and Promotion of Rational Use of Medicines (PNAUM). PLoS One, v. 12, n. 12, p. e0189098, 2017.).

A automedicação pode causar riscos à saúde humana como reações e/ou efeitos adversos; interação medicamentosa; resistência aos medicamentos e possíveis intoxicações (MORTAZAVI et al., 2017MORTAZAVI, S. S. et al. Self-medication among the elderly in Iran: a content analysis study. BMC Geriatrics, v. 17, n. 1, p. 198, 2017.; PONS et al., 2017PONS, E. S. et al. Predisposing factors to the practice of self-medication in Brazil: results from the National Survey on Access, Use and Promotion of Rational Use of Medicines (PNAUM). PLoS One, v. 12, n. 12, p. e0189098, 2017.). Entretanto, é uma conduta discutível, pois os Medicamentos Isentos de Prescrição (MIPs) podem ser considerados um ato de autocuidado (MORTAZAVI et al., 2017).

A prática da automedicação e a falta de orientação ao consumidor contribuem para o uso inadequado dos medicamentos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que aproximadamente 50% da população faz uso inadequado de medicamentos, que por sua vez são responsáveis por mais de 30% das intoxicações no país, conforme dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (BRASIL, 2022a; BRASIL, 2022b).

O objetivo deste artigo é avaliar o descarte de medicamentos em desuso pela população da cidade de Itapetininga, São Paulo, Brasil.

Método

Trata-se de um estudo quantitativo, transversal, exploratório, realizado na cidade de Itapetininga, São Paulo, Brasil no período de outubro de 2019 a janeiro de 2020 com 182 sujeitos que frequentavam os estabelecimentos de saúde privado e público. Optou-se por realizar a pesquisa com o esse perfil de respondentes, visto que são pessoas que adquirem ou retiram medicamentos nestes locais, ou seja, com maior probabilidade de saberem sobre o descarte de medicamentos da “farmácia caseira”.

Os critérios de inclusão foram: sujeitos maiores de 18 anos de idade; de ambos os sexos; que frequentavam os estabelecimentos de saúde, que aceitaram participar da pesquisa, preencher e assinar o Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE); e que sabiam informar como ocorria o descarte de medicamentos no seu domicílio.

O tamanho da amostra, do tipo aleatória simples, foi calculado em função do número de habitantes de Itapetininga acima de 18 anos de idade (aproximadamente 100 mil habitantes, amostra infinita) (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2021), da estimativa de descarte correto de 4,4% (BUENO; WEBER; OLIVEIRA, 2009BUENO, C. S.; WEBER, D.; OLIVEIRA, K. R. Farmácia caseira e descarte de medicamentos no bairro Luiz Fogliatto do município de Ijuí - RS. Revista de Ciências Farmacêuticas Básica Aplicada, v. 30, n. 2, p. 203-210, 2009.; PINTO et al., 2014PINTO, G. M. F. et al. Estudo do descarte residencial de medicamentos vencidos na região de Paulínia (SP), Brasil. Engenharia Sanitária e Ambiental, v. 19, n. 3, p. 219-224, 2014.; PONS et al., 2017PONS, E. S. et al. Predisposing factors to the practice of self-medication in Brazil: results from the National Survey on Access, Use and Promotion of Rational Use of Medicines (PNAUM). PLoS One, v. 12, n. 12, p. e0189098, 2017.) e erro amostral de 3%, para um nível de confiança de 95%, resultando em 180 respondentes.

O município conta com 18 Unidades Básicas de Saúde (UBS), dois Pronto Atendimentos (PA), um Posto de Atendimento à Saúde (PAS), um Hospital Regional, um Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF) e 53 drogarias/farmácias (PREFEITURA MUNICIPAL DE ITAPETININGA, 2017). Dentre esses estabelecimentos foram elencados o CEAF, os dois PA e o PAS, e escolhidas intencionalmente cinco UBS e quatro drogarias / farmácias, as de maior porte, em cada região e no centro da cidade, exceto na Zona Norte, na qual não havia drogarias ou farmácias disponíveis (PREFEITURA MUNICIPAL DE ITAPETININGA, 2017). Os estabelecimentos selecionados contribuíram apenas com o espaço físico e uma autorização para a pesquisa, uma vez que os questionários foram aplicados, por conveniência, somente para os usuários ou consumidores que frequentavam tais locais. Foi feito um sorteio do dia e faixa de horário para cada local de coleta de dados, análogo à técnica de work sampling, dentre as 42 faixas de horário disponibilizadas pela pesquisadora para as entrevistas. Durante a faixa de horário sorteada foram entrevistados em média os primeiros 12 sujeitos que atendiam os critérios de inclusão.

O questionário aplicado aos respondentes continha oito perguntas fechadas, duas delas também com opção para resposta em aberto, ou seja, “Outras opções” e “Outras maneiras”. Os itens abordavam os dados como idade, sexo, escolaridade, ocupação, perfil da família (constituição familiar, com o número de crianças, adolescentes, adultos e idosos), quantidade de medicamento da “farmácia caseira” (todas as classes farmacológicas, independente da forma farmacêutica do produto e via de administração), conduta quanto aos medicamentos que sobram e seu descarte quando necessário e, por fim, a opinião do respondente sobre a importância de orientações para o descarte de medicamentos.

Quanto ao descarte de medicamentos, as seguintes formas foram consideradas corretas: (1) Entregues para a unidade de saúde, (2) entregues para a farmácia ou drogaria e (3) entregues na Vigilância Sanitária, visto que são locais que poderiam dar o destino correto aos medicamentos, conforme preconizado no Decreto nº 10.388/2020 e Portaria nº 6 de 1999, em seu artigo 90.

Foram consideradas incorretas as condutas com possíveis danos ao meio ambiente: descarte no resíduo domiciliar, pia ou vaso sanitário e outras maneiras (questão aberta).

Foram também consideradas inadequadas as condutas de guardar medicamentos para uso posterior e a doação para vizinhos, amigos e parentes, pelo risco da automedicação e da perda da rastreabilidade relativa à qualidade de armazenamento e cuidados com o medicamento.

A coleta de dados ocorreu após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com o número CAAE 21900919.9.0000.5373.

As estatísticas foram efetuadas usando o software R 3.6.2, com nível de confiança de 95%. O teste Qui-quadrado (χ2) de Pearson foi utilizado para verificar a associação de variáveis categóricas sexo e ocupação na área da saúde/educação com o descarte prejudicial ao meio ambiente. O teste da associação da mediana das variáveis anos de estudo e quantidade de medicamentos na “farmácia caseira” com a variável de desfecho “descarte incorreto” foi feito usando o teste de Mann-Whitney, pois aquelas variáveis quantitativas não apresentaram distribuição normal (teste de Shapiro-Wilk).

Resultados e discussão

Foram abordadas 196 pessoas, sendo que 11 não quiseram responder e três não sabiam como eram descartados os medicamentos da “farmácia caseira”, o que resultou em 182 respondentes, compatível com o cálculo amostral. Os questionários foram aplicados nas quatro regiões e no centro da cidade, em um CEAF, um PAS, dois PA, quatro farmácias/drogarias e cinco UBS. Por falta de disponibilidade de farmácias ou drogarias na Zona Norte, foram feitas mais 9 entrevistas na zona Leste, por conveniência da pesquisadora (Tabela 1).

Tabela 1
Distribuição das entrevistas por região e local de aquisição de medicamentos pela população de Itapetininga, São Paulo, Brasil - outubro de 2019 a janeiro de 2020

Dos 182 respondentes, 64% eram do sexo feminino, sendo que as mulheres correspondem a aproximadamente 50% da população de Itapetininga (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2021). O predomínio do sexo feminino nos locais de aquisição de medicamentos também foi citado no estudo deBueno, Weber e Oliveira (2009BUENO, C. S.; WEBER, D.; OLIVEIRA, K. R. Farmácia caseira e descarte de medicamentos no bairro Luiz Fogliatto do município de Ijuí - RS. Revista de Ciências Farmacêuticas Básica Aplicada, v. 30, n. 2, p. 203-210, 2009.) (80,06%), Ramos et al. (2017RAMOS, H. M. P. et al. Descarte de medicamentos: uma reflexão sobre os possíveis riscos sanitários e ambientais. Ambiente e Sociedade, v.20, n. 4, p. 145-168, 2017.) (64,6%) e Tribess Júnior, Bellaver e Zancanaro (2018) (60%). As mulheres tendem a ser responsáveis pelos cuidados da própria saúde e pela saúde da família (TEZOQUIPA; MONREAL; SANTIAGO, 2001TEZOQUIPA, I. H.; MONREAL, M. de la L. A.; SANTIAGO, R. V. El cuidado a la salud en el ámbito doméstico: interacción social y vida cotidiana. Revista de Saúde Pública, v. 35, n. 5, p. 443-450, 2001.).

A composição das famílias dos entrevistados mostrou a predominância de adultos e idosos (77%) em relação a crianças e adolescentes, compatível com a composição etária do município de Itapetininga, dado que pode ser justificado pelo aumento da expectativa de vida e menor número de nascimentos a cada ano, o que corresponde à pirâmide etária brasileira (PERISSÉ; MARLI, 2019PERISSÉ, C.; MARLI, M. Caminhos para uma mehor idade. Retratos, n. 16, p. 18-25, 2019.).

Após a análise dos 182 entrevistados, somente cinco disseram fazer o descarte corretamente (2,7%). Estudo feito por Pereira e colaboradores relatou que apenas 2,0% da população descartava os medicamentos vencidos em UBS (PEREIRA et al., 2019PEREIRA, F. G. F. et al. Conhecimento e comportamento autorreferidos sobre descarte domiciliar de medicamentos. Journal of Research and Fundamental Care Online, v. 11, n. 1, p. 154-159, 2019.). Ramos et al. (2017RAMOS, H. M. P. et al. Descarte de medicamentos: uma reflexão sobre os possíveis riscos sanitários e ambientais. Ambiente e Sociedade, v.20, n. 4, p. 145-168, 2017.) destacaram que 2,6% dos entrevistados utilizaram a farmácia como ponto de descarte e 4,2% os postos de saúde. 5,5% descartavam corretamente, porém associado a alguma conduta inadequada.

A literatura mostra que a falta de conhecimento quanto ao descarte correto, bem como a falta de locais adequados para o descarte podem ter contribuído para tal resultado (RAMOS et al., 2017RAMOS, H. M. P. et al. Descarte de medicamentos: uma reflexão sobre os possíveis riscos sanitários e ambientais. Ambiente e Sociedade, v.20, n. 4, p. 145-168, 2017.). Dentre as 53 farmácias e drogarias na cidade de Itapetininga/SP, apenas 11 estabelecimentos recolhem os medicamentos para descarte, porém não sinalizam claramente o serviço oferecido. Os pontos de coleta são distribuídos na cidade de Itapetininga da seguinte forma: cinco estabelecimentos no Centro; um estabelecimento na Zona Norte; um na Zona Sul; dois na Zona Leste e dois na Zona Oeste. Essa quantidade é insuficiente para atender toda população de Itapetininga, com 165.526 habitantes, uma vez que o Decreto nº 10.388/2020 preconiza que municípios com população superior a 100 mil habitantes (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2021) devem ter, no mínimo, um ponto de recolhimento para dada 10 mil habitantes (BRASIL, 2020). Vale mencionar que até a aprovação do referido decreto, as farmácias e drogarias realizavam o procedimento de coleta de medicamentos vencidos ou em desuso de forma voluntária, ou seja, a baixa quantidade de pontos de coleta na cidade pode ser explicada pela falta de incentivo para que esses estabelecimentos realizem a logística reversa, uma vez que os custos com a eliminação dos medicamentos são arcados pelos próprios locais (MEDEIROS; MOREIRA; LOPES, 2014MEDEIROS, M. S. G.; MOREIRA, L. M. F.; LOPES, C. C. G. O. Descarte de medicamentos: programas de recolhimento e novos desafios. Revista de Ciências Farmacêuticas Básica Aplicada, v. 35, n. 4, p. 651-662, 2014.).

A Tabela 2 apresenta as condutas incorretas ou inadequadas face ao desuso de medicamentos e as justificativas para essa consideração.

Tabela 2
Condutas incorretas ou inadequadas face ao desuso de medicamentos pela população de Itapetininga, São Paulo, Brasil e respectivas justificativas - outubro de 2019 a janeiro de 2020

Quanto ao descarte, a forma mais citada foi o resíduo domiciliar, com 46%, dado condizente com outras pesquisas realizadas no Brasil (56,87% e 62%) (BUENO; WEBER; OLIVEIRA, 2009BUENO, C. S.; WEBER, D.; OLIVEIRA, K. R. Farmácia caseira e descarte de medicamentos no bairro Luiz Fogliatto do município de Ijuí - RS. Revista de Ciências Farmacêuticas Básica Aplicada, v. 30, n. 2, p. 203-210, 2009.; PINTO et al., 2014PINTO, G. M. F. et al. Estudo do descarte residencial de medicamentos vencidos na região de Paulínia (SP), Brasil. Engenharia Sanitária e Ambiental, v. 19, n. 3, p. 219-224, 2014.). Os medicamentos eliminados por esta via podem ter como destino o lixão, aterro controlado e o aterro sanitário. Conforme o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (BRASIL, 2019), o lixão ainda é a maior unidade de processamento existente no país, fato preocupante visto que os medicamentos podem levar aos riscos de contaminação ambiental, além de apresentar ameaças para os catadores de reciclados. (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 1999).

A segunda forma mais citada foi o descarte na pia e no vaso sanitário, com 23%, resultado este semelhante à pesquisa de Ramos et al. (2017RAMOS, H. M. P. et al. Descarte de medicamentos: uma reflexão sobre os possíveis riscos sanitários e ambientais. Ambiente e Sociedade, v.20, n. 4, p. 145-168, 2017.) (20,3%), bem como de Pinto et al. (2014PINTO, G. M. F. et al. Estudo do descarte residencial de medicamentos vencidos na região de Paulínia (SP), Brasil. Engenharia Sanitária e Ambiental, v. 19, n. 3, p. 219-224, 2014.) (19%). Estudos realizados nos últimos anos no Brasil e em diversos países como Portugal, Espanha, Arábia Saudita, Grécia, Estados Unidos da América e Itália relatam a detecção de medicamentos em águas residuais, que resultaram em níveis da ordem de ng/L a µg/L, como exemplo o paracetamol, diclofenaco, hidroxi-ibuprofeno, naproxeno, azitromicina, claritromicina, ciprofloxacino, sulfametoxazol / trimetoprima, propranolol, carbamazepina, sertralina, fluoxetina, atenolol, hidroclorotiazida, ácido salicílico, metformina, norfluoxetina, cefalexina, amoxicilina, ampicilina, eritromicina, ibuprofeno, furosemida, valsartana, citalopram, metoprolol, cetoprofeno, estradiol, doxiciclina, atorvastatina, prednisona, fluconazol, loratadina, ranitidina e norfloxacino (ARSAND et al., 2020ARSAND, J. B. et al. Presence of antibiotic resistance genes and its association with antibiotic occurrence in Dilúvio River in southern Brazil. The Science of Total Environment, v. 738, p. 139781, 2020.; ČELIĆ et al., 2019ČELIĆ, M. et al. Pharmaceuticals as chemical markers of wastewater contamination in the vulnerable area of the Ebro Delta (Spain). Science of Total Environment, v. 652, p. 952-63, 2019.; KOSTICH; BATT; LAZORCHAK, 2014KOSTICH, M. S.; BATT, A. L.; LAZORCHAK, J. M. Concentrations of prioritized pharmaceuticals in effluents from 50 large wastewater treatment plants in the US and implications for risk estimation. Environmental Pollution, v. 184, p. 354-359, 2014.; PAÍGA et al., 2019PAÍGA, P. et al. Assessment of 83 pharmaceuticals in WWTP influent and effluent samples by UHPLC-MS/MS: hourly variation. The Science of Total Environment, v. 648, p. 582-600, 2019.; PALLI et al., 2019PALLI, L. et al. Occurrence of selected pharmaceuticals in wastewater treatment plants of Tuscany: an effect-based approach to evaluate the potential environmental impact. International of Journal of Hygiene and Environmental Health, v. 222, n. 4, p. 717-725, 2019.; PAPAGEORGIOU et al., 2019PAPAGEORGIOU, M. et al. Comprehensive investigation of a wide range of pharmaceuticals and personal care products in urban and hospital wastewaters in Greece. The Science of Total Environment, v. 694, p. 952-963, 2019.; SANTOS et al., 2020SANTOS, A. V. et al. Occurrence and risk assessment of pharmaceutically active compounds in water supply systems in Brazil. The Science of Total Environment, v. 746, p. 141011, 2020.; SHRAIM et al., 2017SHRAIM, A. et al. Analysis of some pharmaceuticals in municipal wastewater of Almadinah Almunawarah. Arabian Journal of Chemistry, v. 10, p. S719-29, 2017. ).

Entre aqueles que descartavam incorretamente, 2% o faziam tanto no resíduo domiciliar como na pia/vaso sanitário.

Como última forma de descarte citada no estudo, 6% dos respondentes mencionaram “outras maneiras”. Achados parecidos foram citados na pesquisa de Bueno, Weber e Oliveira (2009BUENO, C. S.; WEBER, D.; OLIVEIRA, K. R. Farmácia caseira e descarte de medicamentos no bairro Luiz Fogliatto do município de Ijuí - RS. Revista de Ciências Farmacêuticas Básica Aplicada, v. 30, n. 2, p. 203-210, 2009.). Os sujeitos justificaram o descarte de “outras maneiras” como forma de proteção para os catadores de reciclados e para com o meio ambiente, visto que nas formas alternativas de descarte o medicamento não estaria exposto ao solo, tão pouco ao esgoto. Há uma preocupação por parte dos respondentes, sem contudo o conhecimento referente às consequências do descarte em locais indevidos.

Há uma crescente preocupação com o descarte dos produtos farmacêuticos no meio ambiente, pois podem causar diversos efeitos nocivos ao ecossistema, bem como o surgimento de bactérias resistentes a antibióticos (PAÍGA et al., 2019PAÍGA, P. et al. Assessment of 83 pharmaceuticals in WWTP influent and effluent samples by UHPLC-MS/MS: hourly variation. The Science of Total Environment, v. 648, p. 582-600, 2019.). Pode-se exemplificar com o estudo realizado em Porto Alegre, Brasil, que analisou amostras de água e constatou a presença de bactérias com gene de resistência aos antibióticos azitromicina, cefalexina, ciprofloxacino e sulfametoxazol/ trimetoprima (ARSAND et al., 2020ARSAND, J. B. et al. Presence of antibiotic resistance genes and its association with antibiotic occurrence in Dilúvio River in southern Brazil. The Science of Total Environment, v. 738, p. 139781, 2020.). Os fármacos para o tratamento da depressão humana, por exemplo a fluoxetina e sertralina, podem apresentar um potencial de afetar a biota aquática (RICHMOND et al., 2016RICHMOND, E. K. et al. Antidepressants in stream ecosystems: influence of selective serotonin reuptake inhibitors (SSRIs) on algal production and insect emergence. Freshwater Science, v. 35, n. 3, p. 845-855, 2016.. Conforme o estudo realizado no Texas, Estados Unidos da América, foi identificada a presença desses fármacos e seus metabólitos no fígado, cérebro e nos tecidos dos peixes (BROOKS et al., 2005BROOKS, B. W. et al. Determination of select antidepressants in fish from an effluent-dominated stream. Environmental Toxicology and Chemistry, v. 24, n. 2, p. 464, 2005.). Além disso, um estudo feito por Conners et al. (2009CONNERS, D. E. et al. Growth and development of tadpoles (Xenopus laevis) exposed to selective serotonin reuptake inhibitors, fluoxetine and sertraline, throughout metamorphosis. Environmental Toxicology and Chemistry, v. 28, p. 12, p. 2671-2676, 2009.) identificou que esses mesmos fármacos alteraram o desenvolvimento de girinos, causando-lhes a redução no crescimento e aceleração de sua metamorfose. Medicamentos como metoprolol, citalopram, venlafaxina, azitromicina e carbamazepina foram encontrados em mexilhões e peixes em um estudo realizado por Álvarez-Muñoz et al. (2015).

Os riscos à saúde pública podem ser causados pelo consumo direto dos medicamentos achados nos resíduos domiciliares, por meio de peixes contaminados ou ainda na água com resíduos de medicamentos. Entretanto, o impacto a longo prazo que esses produtos podem causar para o ambiente e para a saúde humana ainda precisam ser mais bem estudados (PAÍGA et al., 2019PAÍGA, P. et al. Assessment of 83 pharmaceuticals in WWTP influent and effluent samples by UHPLC-MS/MS: hourly variation. The Science of Total Environment, v. 648, p. 582-600, 2019.).

Com relação ao tratamento das águas residuais para a eliminação dos compostos medicamentosos, seria necessário adotar procedimentos adicionais, como a Ultrafiltração, Osmose Reversa, Carvão Ativado e outros, que são onerosos, mas podem ser eficazes (MEDEIROS; MOREIRA; LOPES, 2014MEDEIROS, M. S. G.; MOREIRA, L. M. F.; LOPES, C. C. G. O. Descarte de medicamentos: programas de recolhimento e novos desafios. Revista de Ciências Farmacêuticas Básica Aplicada, v. 35, n. 4, p. 651-662, 2014.). A Austrália, Singapura e Califórnia são exemplos da utilização da Ultrafiltração, Osmose Reversa e Desinfecção Ultravioleta para a purificação da água. As estações de tratamento de água desses locais seguem diretrizes e são monitoradas constantemente com indicadores farmacêuticos como a carbamazepina e diclofenaco. Os testes de padrão de qualidade indicam eficácia nos procedimentos quanto à eliminação dos compostos farmacêuticos (MIAROV; TAL; AVISAR, 2019MIAROV, O.; TAL, A.; AVISAR, D. A critical evaluation of comparative regulatory strategies for monitoring pharmaceuticals in recycled wastewater. Journal of Environmental Management, v. 254, p. 109794, 2019.).

Verificou-se que 65% das pessoas optavam por guardar o medicamento que sobrava para ser utilizado em um outro momento. Achado semelhante foi mencionado no estudo de Ramos et al. (2017RAMOS, H. M. P. et al. Descarte de medicamentos: uma reflexão sobre os possíveis riscos sanitários e ambientais. Ambiente e Sociedade, v.20, n. 4, p. 145-168, 2017.) (73,8%). Provavelmente, a opção de guardar os medicamentos pode estar atrelada à falta de fracionamento dos blisters no momento da dispensação nas farmácias e drogarias, à automedicação e/ou à dificuldade de uma nova prescrição.

A chamada “farmácia caseira” é um estoque de medicamentos domiciliar que, se mal administrada, pode levar a diversos fatores de risco, como perda por prazo de validade e, consequentemente, o risco à saúde dos moradores (MEDEIROS; MOREIRA; LOPES, 2014MEDEIROS, M. S. G.; MOREIRA, L. M. F.; LOPES, C. C. G. O. Descarte de medicamentos: programas de recolhimento e novos desafios. Revista de Ciências Farmacêuticas Básica Aplicada, v. 35, n. 4, p. 651-662, 2014.; RAMOS et al., 2017RAMOS, H. M. P. et al. Descarte de medicamentos: uma reflexão sobre os possíveis riscos sanitários e ambientais. Ambiente e Sociedade, v.20, n. 4, p. 145-168, 2017.) e à automedicação (PONS et al., 2017PONS, E. S. et al. Predisposing factors to the practice of self-medication in Brazil: results from the National Survey on Access, Use and Promotion of Rational Use of Medicines (PNAUM). PLoS One, v. 12, n. 12, p. e0189098, 2017.). A pesquisa também identificou que 10% dos respondentes doavam os medicamentos para vizinhos, amigos e parentes, prática registrada em outros estudos, e que pode levar ao risco de saúde para aquele que faz o uso indevido do medicamento recebido por doação (MORTAZAVI et al., 2017MORTAZAVI, S. S. et al. Self-medication among the elderly in Iran: a content analysis study. BMC Geriatrics, v. 17, n. 1, p. 198, 2017.; PONS et al., 2017). Além disso, deve ser considerada a perda da rastreabilidade relativa à qualidade de armazenamento e cuidados com produto, pois os medicamentos em domicílio são frequentemente acondicionados em locais impróprios, ou seja, locais com variação de temperatura e umidade, como a cozinha (BUENO; WEBER; OLIVEIRA, 2009BUENO, C. S.; WEBER, D.; OLIVEIRA, K. R. Farmácia caseira e descarte de medicamentos no bairro Luiz Fogliatto do município de Ijuí - RS. Revista de Ciências Farmacêuticas Básica Aplicada, v. 30, n. 2, p. 203-210, 2009.; RAMOS et al., 2017; TRIBESS JUNIOR; BELLAVER; ZANCANARO, 2018TRIBESS JUNIOR, A.; BELLAVER, E. H.; ZANCANARO, V. Uso racional e descarte de medicamentos no grupo Hiperdia no bairro Nossa Senhora Salete no município de Caçador/SC. Saúde e Meio Ambiente, v. 7, n. 1, p. 81-90, 2018.). Locais como estes podem gerar a degradação da fórmula farmacêutica, tornando-a inadequada para o consumo.

Dentre os respondentes, 27 (14,8%) relataram que não sobravam medicamentos, sendo 85% associados a locais públicos de aquisição (UBS, PA, PAS, CEAF). Tal resultado pode estar relacionado à entrega dos medicamentos na quantidade correta pelos locais de aquisição ou aderência ao tratamento.

A média de anos de estudo (escolaridade) da amostra é de 9,5 anos e de Itapetininga é de 9 anos (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2021). Observou-se que o modo de descarte dos medicamentos independe dos anos de estudo (p=0,59). Este achado é compatível com a literatura, na qual mesmo os alunos de cursos graduação e de cursos técnicos relataram descartar os medicamentos de forma ambientalmente inadequada, por não terem conhecimento sobre o assunto (PINTO et al., 2014PINTO, G. M. F. et al. Estudo do descarte residencial de medicamentos vencidos na região de Paulínia (SP), Brasil. Engenharia Sanitária e Ambiental, v. 19, n. 3, p. 219-224, 2014.).

Dentre as pessoas abordadas, 23 (13%) tinham uma ocupação na área da saúde ou da educação. Destes, 18 (78%) tinham condutas que causavam danos ambientais, aproximadamente a mesma proporção dos respondentes em geral. Pesquisas relatam que os profissionais de diferentes áreas da saúde descartam medicamentos de forma inadequada e, ao questionar-se sobre o conhecimento e os impactos que esta ação poderia causar, estes profissionais citavam que o fator agravante deste assunto era a falta de orientação e treinamento (AMARANTE; RECH; SIEGLOCH, 2017AMARANTE, J. A. S.; RECH, T. D.; SIEGLOCH, A. E. Avaliação do gerenciamento dos resíduos de medicamentos e demais resíduos de serviços de saúde na Região Serrana de Santa Catarina. Engenharia Sanitária e Ambiental, v. 22, n. 2, p. 317-326, 2017.; BANDEIRA et al., 2019BANDEIRA, E. O. et al. Descarte de medicamentos: uma questão socioambiental e de saúde. Journal of Research and Fundamental Care Online, v. 11, n. 1, p. 1-10, 2019.).

Os dados da pesquisa revelaram que não há diferença significativa na proporção de entre homens e mulheres quando se trata de condutas prejudiciais ao meio ambiente (p=0,93). Também não existe diferença significativa quando a variável é a quantidade de medicamentos existente na “farmácia caseira” (p=0,67).

Na questão sobre a importância da orientação quanto ao descarte dos medicamentos, 97% dos respondentes acham que sim e apenas 3% nunca pensaram sobre o assunto ou não acharam importante a orientação.

Face aos resultados, verifica-se a necessidade de uma ação educacional com a finalidade de conscientizar a população com relação à composição da farmácia caseira, ao descarte correto de medicamentos e outras condutas adequadas, por meio de uma campanha com os seguintes objetivos educacionais:

  • a) Descarte correto dos medicamentos vencidos ou em desuso (encaminhar para unidades de saúde, para a Vigilância Sanitária, para as farmácias ou drogarias);

  • b) Conscientização dos danos ambientais causados pelo descarte incorreto de medicamentos (resíduo domiciliar, pia ou vaso sanitário etc.);

  • c) Informar os riscos da automedicação (risco de intoxicações e efeitos medicamentosos adversos etc.);

  • d) Orientar quanto aos riscos da perda de rastreabilidade do produto quando da doação de medicamentos para vizinhos, amigos e parentes (acondicionamento em locais impróprios, podendo causar a degradação da fórmula farmacêutica, tornando-a inadequada para o consumo).

Além disso, é importante a inclusão ou reforço do assunto nas diretrizes curriculares dos cursos da área da saúde, por meio de metodologias ativas de ensino - aprendizagem e educação interprofissional. Para os profissionais já graduados, a proposta é a educação continuada.

As orientações deverão ser elaboradas de forma simples e criativa, por meio de revistas em quadrinhos, aplicativos, sites, mídias sociais, alertas de orientação do descarte no momento da compra de medicamentos etc., com a finalidade de atender a cada envolvido no processo.

O presente estudo apresenta como uma limitação o viés de memória, pois foram feitas perguntas que exigiram a recordação da quantidade de medicamentos, bem como a forma de descarte dos medicamentos em desuso. Entretanto, os participantes não demostraram dificuldades nas respostas.

Conclusões

O estudo mostrou as formas de descarte de medicamentos em desuso pela população de Itapetininga, São Paulo, Brasil, alertando que a gestão incorreta da “farmácia caseira” pode levar a diversos fatores de risco, como a perda por prazo de validade, automedicação, armazenamento inadequado, doações, além do descarte incorreto. É preciso que os estados e municípios adotem as diretrizes estabelecidas no Decreto nº 10.388/2020 para uma efetiva logística reversa dos medicamentos domiciliares vencidos ou em desuso. Traz como novidade a abordagem nas perspectivas ambiental (descarte incorreto e logística reversa), da saúde (riscos da automedicação e da falta de rastreabilidade) e da educação (necessidade de campanhas para a população, profissionais da saúde e melhorias nos currículos).

Agradecimentos

Somos gratos aos participantes da pesquisa e aos estabelecimentos de saúde (farmácias, drogarias, CEAF, PAS e UBS/PA) pela permissão de coleta dos dados nas suas dependências.

References

  • ÁLVAREZ-MUÑOZ, D. et al. Occurrence of pharmaceuticals and endocrine disrupting compounds in macroalgaes, bivalves, and fish from coastal areas in Europe. Environmental Research, v. 143, p. 56-64, 2015.
  • AMARANTE, J. A. S.; RECH, T. D.; SIEGLOCH, A. E. Avaliação do gerenciamento dos resíduos de medicamentos e demais resíduos de serviços de saúde na Região Serrana de Santa Catarina. Engenharia Sanitária e Ambiental, v. 22, n. 2, p. 317-326, 2017.
  • ARRAIS, P. S. D. et al. Prevalência da automedicação no Brasil e fatores associados. Rev Saúde Pública, v. 50, suppl 2, p. 1-11, 2016.
  • ARSAND, J. B. et al. Presence of antibiotic resistance genes and its association with antibiotic occurrence in Dilúvio River in southern Brazil. The Science of Total Environment, v. 738, p. 139781, 2020.
  • BANDEIRA, E. O. et al. Descarte de medicamentos: uma questão socioambiental e de saúde. Journal of Research and Fundamental Care Online, v. 11, n. 1, p. 1-10, 2019.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Consumo de medicamentos: um autocuidado perigoso. Disponível em: http://www.conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2005/medicamentos.htm#:~:text=De%20acordo%20com%20informa%C3%A7%C3%B5es%20da,sa%C3%BAde%20e%20at%C3%A9%20a%20morte Acesso em 24 jan. 2022a.
    » http://www.conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2005/medicamentos.htm#:~:text=De%20acordo%20com%20informa%C3%A7%C3%B5es%20da,sa%C3%BAde%20e%20at%C3%A9%20a%20morte
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Consumo de medicamentos: informação é o melhor remédio. Disponível em: http://antigo.anvisa.gov.br/resultado-de-busca?p_p_id=101&p_p_lifecycle=0&p_p_state=maximized&p_p_mode=view&p_p_col_id=column-1&p_p_col_count=1&_101_struts_action=%2Fasset_publisher%2Fview_content&_101_assetEntryId=396999&_101_type=content&_101_groupId=33856&_101_urlTitle=campanhas&inheritRedirect=true#:~:text=%E2%80%9CA%20informa%C3%A7%C3%A3o%20%C3%A9%20o%20melhor,publicit%C3%A1ria%20no%20consumo%20desses%20produtos Acesso em 24 jan. 2022b.
    » http://antigo.anvisa.gov.br/resultado-de-busca?p_p_id=101&p_p_lifecycle=0&p_p_state=maximized&p_p_mode=view&p_p_col_id=column-1&p_p_col_count=1&_101_struts_action=%2Fasset_publisher%2Fview_content&_101_assetEntryId=396999&_101_type=content&_101_groupId=33856&_101_urlTitle=campanhas&inheritRedirect=true#:~:text=%E2%80%9CA%20informa%C3%A7%C3%A3o%20%C3%A9%20o%20melhor,publicit%C3%A1ria%20no%20consumo%20desses%20produtos
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Observatório dos Lixões. 2020. Disponível em: http://www.lixoes.cnm.org.br/. Acesso em: 21 out. 2020.
    » http://www.lixoes.cnm.org.br
  • BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Regional. Secretaria Nacional de Saneamento. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento: diagnóstico do manejo de resíduos sólidos urbanos - 2017. Brasília (DF): MDR.SNS, 2019. p. 131-72.
  • BRASIL. Presidência da República. Decreto no 10.388, de 5 de junho de 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10388.htm Acesso em: 21 out. 2020.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10388.htm
  • BROOKS, B. W. et al. Determination of select antidepressants in fish from an effluent-dominated stream. Environmental Toxicology and Chemistry, v. 24, n. 2, p. 464, 2005.
  • BUENO, C. S.; WEBER, D.; OLIVEIRA, K. R. Farmácia caseira e descarte de medicamentos no bairro Luiz Fogliatto do município de Ijuí - RS. Revista de Ciências Farmacêuticas Básica Aplicada, v. 30, n. 2, p. 203-210, 2009.
  • ČELIĆ, M. et al. Pharmaceuticals as chemical markers of wastewater contamination in the vulnerable area of the Ebro Delta (Spain). Science of Total Environment, v. 652, p. 952-63, 2019.
  • CONNERS, D. E. et al. Growth and development of tadpoles (Xenopus laevis) exposed to selective serotonin reuptake inhibitors, fluoxetine and sertraline, throughout metamorphosis. Environmental Toxicology and Chemistry, v. 28, p. 12, p. 2671-2676, 2009.
  • DANTAS, A. M. S.; SILVA, P. L. N.; FONSECA, J. R. Visão de profissionais, acadêmicos e usuários da atenção primária à saúde sobre o descarte correto de medicamentos: revisão integrativa da literatura. Journal of Health & Biological Sciences, v. 6, n. 2, p. 197-205, 2018.
  • INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Itapetininga. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/itapetininga/pesquisa/23/22469 Acesso em: 26 jan. 2021.
    » https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/itapetininga/pesquisa/23/22469
  • KINRYS, G. et al. Medication disposal practices: increasing patient and clinician education on safe methods. The Journal of Internal Medical Research, v. 46, n. 3, p. 927-939, 2018.
  • KOSTICH, M. S.; BATT, A. L.; LAZORCHAK, J. M. Concentrations of prioritized pharmaceuticals in effluents from 50 large wastewater treatment plants in the US and implications for risk estimation. Environmental Pollution, v. 184, p. 354-359, 2014.
  • MEDEIROS, M. S. G.; MOREIRA, L. M. F.; LOPES, C. C. G. O. Descarte de medicamentos: programas de recolhimento e novos desafios. Revista de Ciências Farmacêuticas Básica Aplicada, v. 35, n. 4, p. 651-662, 2014.
  • MIAROV, O.; TAL, A.; AVISAR, D. A critical evaluation of comparative regulatory strategies for monitoring pharmaceuticals in recycled wastewater. Journal of Environmental Management, v. 254, p. 109794, 2019.
  • MORTAZAVI, S. S. et al. Self-medication among the elderly in Iran: a content analysis study. BMC Geriatrics, v. 17, n. 1, p. 198, 2017.
  • PAÍGA, P. et al. Assessment of 83 pharmaceuticals in WWTP influent and effluent samples by UHPLC-MS/MS: hourly variation. The Science of Total Environment, v. 648, p. 582-600, 2019.
  • PALLI, L. et al. Occurrence of selected pharmaceuticals in wastewater treatment plants of Tuscany: an effect-based approach to evaluate the potential environmental impact. International of Journal of Hygiene and Environmental Health, v. 222, n. 4, p. 717-725, 2019.
  • PAPAGEORGIOU, M. et al. Comprehensive investigation of a wide range of pharmaceuticals and personal care products in urban and hospital wastewaters in Greece. The Science of Total Environment, v. 694, p. 952-963, 2019.
  • PEREIRA, F. G. F. et al. Conhecimento e comportamento autorreferidos sobre descarte domiciliar de medicamentos. Journal of Research and Fundamental Care Online, v. 11, n. 1, p. 154-159, 2019.
  • PERISSÉ, C.; MARLI, M. Caminhos para uma mehor idade. Retratos, n. 16, p. 18-25, 2019.
  • PINTO, G. M. F. et al. Estudo do descarte residencial de medicamentos vencidos na região de Paulínia (SP), Brasil. Engenharia Sanitária e Ambiental, v. 19, n. 3, p. 219-224, 2014.
  • PONS, E. S. et al. Predisposing factors to the practice of self-medication in Brazil: results from the National Survey on Access, Use and Promotion of Rational Use of Medicines (PNAUM). PLoS One, v. 12, n. 12, p. e0189098, 2017.
  • PREFEITURA MUNICIPAL DE ITAPETININGA. Lista dos horários das unidades de saúde e outros documentos. Itapetininga: Prefeitura Municipal de Itapetininga, 2017. p. 1-5.
  • RAMOS, H. M. P. et al. Descarte de medicamentos: uma reflexão sobre os possíveis riscos sanitários e ambientais. Ambiente e Sociedade, v.20, n. 4, p. 145-168, 2017.
  • RICHMOND, E. K. et al. Antidepressants in stream ecosystems: influence of selective serotonin reuptake inhibitors (SSRIs) on algal production and insect emergence. Freshwater Science, v. 35, n. 3, p. 845-855, 2016.
  • SANTOS, A. V. et al. Occurrence and risk assessment of pharmaceutically active compounds in water supply systems in Brazil. The Science of Total Environment, v. 746, p. 141011, 2020.
  • SHRAIM, A. et al. Analysis of some pharmaceuticals in municipal wastewater of Almadinah Almunawarah. Arabian Journal of Chemistry, v. 10, p. S719-29, 2017.
  • TEZOQUIPA, I. H.; MONREAL, M. de la L. A.; SANTIAGO, R. V. El cuidado a la salud en el ámbito doméstico: interacción social y vida cotidiana. Revista de Saúde Pública, v. 35, n. 5, p. 443-450, 2001.
  • TRIBESS JUNIOR, A.; BELLAVER, E. H.; ZANCANARO, V. Uso racional e descarte de medicamentos no grupo Hiperdia no bairro Nossa Senhora Salete no município de Caçador/SC. Saúde e Meio Ambiente, v. 7, n. 1, p. 81-90, 2018.
  • VAN ELK, A. G. H. P. Redução de emissões na disposição final. Rio de Janeiro: IBAM, 2007. 40 p.
  • WORLD HEALTH ORGANIZATION. Guidelines for safe disposal of unwanted pharmaceuticals in and after emergencies. Geneva: WHO, 1999. 31 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2021
  • Aceito
    19 Maio 2022
ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistaambienteesociedade@gmail.com