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Sofrimento humano e cuidado de enfermagem: múltiplas visões

El sufrimiento humano y los cuidados de enfermería: múltiples puntos de vista

Resumos

O objetivo deste estudo foi refletir sobre o sofrimento no contexto filosófico.

Métodos:

Nessa discussão teórica, o sofrimento é apresentado de formas diferentes: sofrimento no plano filosófico; interfaces do sofrer; antropologia e sofrimento e Enfermagem: uma visão holística do sofrimento humano.

Resultados:

O enfermeiro em sua prática profissional compreende que a vulnerabilidade, muitas vezes, está vinculada com a dor, nos aspectos biológico, psicológico e social, entre outros. Um dos objetivos do cuidado em Enfermagem é minorar o sofrimento humano causado pelas doenças, considerando que o progresso tecnológico atual ajuda, algumas vezes, a solucionar a gestão técnica da dor.

Conclusão:

Independente de serem um problema de ordem técnica, a dor e o sofrimento situam-se na esfera da ética/humana e devem ser considerados nas suas várias interfaces.

Enfermagem; Dor; Antropologia; Filosofia


Objetivo:

Comprender el sufrimiento en el contexto filosófico.

Métodos:

En esta discusión teórica, el sufrimiento se presenta de diferentes maneras: sufrimiento en el plan filosófico; interfaces del sufrir; antropología y sufrimiento; y Enfermería - una visión holística del sufrimiento humano.

Resultados:

El enfermero en su práctica entiende que la vulnerabilidad se relaciona a menudo con el dolor en los aspectos biológico, psicológico y social, entre otros. Uno de los objetivos del cuidado de enfermería es aliviar el sufrimiento humano causado por las enfermedades donde el progreso tecnológico actual a veces ayuda a resolver la gestión técnica del dolor.

Conclusión:

Independiente de ser un problema de orden técnica, el dolor y el sufrimiento se sitúan en la esfera de la ética/humana y deben ser considerados en sus diferentes interfaces.

Enfermería; Dolor; Antropología; Filosofía


Objective:

To reflect on suffering in the philosophical context.

Methods:

In this theoretical discussion suffering is presented in different forms: suffering in the philosophical plane; suffering interfaces; anthropology and suffering; Nursing: a holistic view of human suffering and nursing care.

Results:

The nurse in their professionalpractice understands that vulnerability often is linked with pain in the biological, psychological and social aspects, among others. One of the objectives of nursing care is alleviating human suffering caused by diseases where current technological progress sometimes helps to solve the technical management of pain.

Conclusion:

Regardless of this being a technical problem, the pain and suffering are in the ethic/human sphere and should be considered in its various interfaces.

Nursing; Pain; Anthropology; Philosophy


INTRODUÇÃO

O sofrimento está na origem da condição humana, quando o ser se confronta com a angústia de sua finitude. Buscar uma definição adequada para descrevê-lo não é uma tarefa sutil. É necessário utilizar diversas visões para refletir sobre este fenômeno complexo.

O sofrimento é um tema intrínseco à humanidade e inerente ao cuidar. O enfermeiro precisa analisar sua prática também com base em uma visão antropológica e filosófica, e não somente técnica, para que possa ter condições de compreender as inúmeras situações vivenciadas durante sua atividade laboral e no cuidado do ser humano que sofre11. Martins JT, Robazzi MLCC. Nurses' work in intensive care units: feelings of suffering. Rev. latino-am. enfermagem. 2009 jan/fev;17(1):52-8..

Nessa reflexão teórica, o sofrimento passa a ser apresentado de formas diferentes, a saber: sofrimento no plano filosófico; interfaces do sofrer; antropologia e sofrimento; Enfermagem: uma visão holística do sofrimento; e sofrimento humano e o cuidado de Enfermagem.

Sofrimento no plano filosófico

A palavra sofrimento representa um ato ou efeito de sofrer, dor física, angústia, aflição, amargura, paciência e resignação22. Houaiss da língua portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Objetiva; 2007.. O ser humano tem como característica inerente o sofrer. O sofrimento apresenta-se como uma motivação fundamental e também um refúgio da singularidade33. Ricoeur P. O justo 2: Justiça e verdade e outros estudos. São Paulo (SP): Martins Fontes; 2008..

É preciso considerar, porém, diferentes dimensões que se articulam com o indivíduo, como os aspectos culturais, sociais, educacionais, econômicos e de natureza interpessoal que, muitas vezes, o predispõem a vulnerabilidades, ou seja, a situação de risco indevido ou desconhecido44. Stepke FL. Bioética e medicina aspectos de uma relação. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2006..

O profissional deve refletir sobre as vulnerabilidades humanas, pois, no reconhecimento desse fenômeno e das suas relações com o sofrimento, é que será possível cuidar do ser em sofrimento de maneira integral.

Nesse âmbito, a vulnerabilidade humana pode ser um dos possíveis caminhos para a ampliação da sensibilidade dos profissionais para com a susceptibilidade do paciente, possibilitando estabelecer uma relação mais simétrica, empática e solidária entre estes55. Almeida CH, Marques RC, Reis DC, Melo JMC, Diemert D, Gazzinelli MF. A pesquisa científica na saúde: uma análise sobre a participação de populações vulneráveis. Texto & contexto enferm. 2010 jan/mar;19(1):104-11..

O enfermeiro, então, precisa compreender que a vulnerabilidade, muitas vezes, se articula com a dor, podendo ser biológica, psicológica, espiritual e social. Esta última é produzida na conjunção da precariedade do trabalho com a fragilidade do vínculo social, sendo uma categoria capaz de descrever a situação de uma grande parcela da população brasileira. Para fazer frente a esta dicotomia que está dada socialmente, e que se faz mais aguda no caso de sujeitos que estão em relações que os tornam mais vulneráveis, parece-nos que uma das formas possíveis para abrir campo para a criação de uma maior simetria e equidade seria por meio da educação para a cidadania66. Lopes LR, Adorno RCF, Malfitano APS, Takeiti BA, Silva CR, Borba PLO. Juventude pobre, violência e cidadania. Saúde soc. 2008 jul/set;17(3):63-76..

Na realidade, a educação e a cidadania estão articuladas com a cultura social de cada região e o esclarecimento que a população estabelece a esse respeito. Atualmente, para garantir uma boa cidadania é necessário que a haja direitos, mas esses precisam estar vinculados ao cumprimento de seus deveres. A partir de então, com essa via de mão dupla funcionante, pode-se conseguir chegar à diminuição da vulnerabilidade.

Interfaces do sofrer

O sofrer biológico se trata de uma dimensão física; a dor funciona como um indicador de que algo precisa ser revisto; observa-se também o sofrer na dimensão psíquica, que, muitas vezes, se relaciona com o biológico. Outro sofrer é o espiritual, agregado ao questionamento de sua identidade e à busca de respostas.

Nesse diagrama, observa-se a relação intrínseca que o homem tem com a vulnerabilidade e o sofrimento. A vulnerabilidade, por sua vez, supera o caráter individualizante e probabilístico do clássico conceito de "risco", ao apontar esta palavra como um conjunto de aspectos que vão além do individual, abrangendo aspectos coletivos, contextuais, que levam à suscetibilidade a doenças ou agravos, considerando aqueles que dizem respeito à disponibilidade ou à carência de recursos destinados à proteção das pessoas.

Na complexidade do ser humano, diversos componentes podem relacionar-se com esse ser vulnerável, a saber: aspecto biológico, social, cultural, espiritual e socioeconômico, contudo não são itens limitados, pode haver outros. Ainda na Figura 1, o diagrama também referencia o homem com a palavra sofrimento, vocábulo este por vezes tão temido por todos, pois quando se fala de sofrimento, logo vêm à memória uma experiência aversiva e uma emoção negativa correspondente que, muitas vezes, se associa à dor em suas diversas interfaces apresentada em quaisquer condições.

Figura 1
Diagrama relação homem - vulnerabilidade - sofrimento

O sofrimento faz parte do amadurecimento humano. Todos, em alguma das etapas de vida, sofrem por amor, por saudade, por solidão ou até mesmo por uma decisão. Dar novos passos, essa é a forma que, mesmo sem perceber, conduz o ser humano a reagir às adversidades da vida cotidiana.

Vivenciar o sofrimento o faz aproximar-se dos outros, aumenta o autoconhecimento, favorecendo aceitação de novos fatos, bem como possibilita o amadurecimento pessoal, que pode ser visto como oportunidade de aprendizado. Assim, o homem pode contemplar os diferentes vértices do sofrimento que não necessariamente são ruins. Quando se fala a palavra sofrimento, vem à mente algo que é marcado por um estado de experiência negativa, mas, a depender do ponto de vista, esse sofrimento pode se tornar positivo.

Não é tarefa simples compreender a existência do sofrimento, mas é necessário que se consiga compreender a dinâmica de se viver com ele, pois, caso contrário, pode se tornar um castigo ou uma punição e, como comumente não é uma manifestação permanente, é preciso saber lidar com este sentimento, tão particular para cada ser que sofre.

O sofrimento faz parte da natureza humana, e surge de algo novo, podendo representar uma mesclagem de prazer e dor. Possui três fontes: o próprio corpo, o mundo externo e o relacionamento interpessoal77. Brant LC, Gomes CM. A transformação do sofrimento em adoecimento: do nascimento da clínica à psicodinâmica do trabalho. Cienc. saude colet. 2004;9(1):213-23..

A experiência do sofrimento está relacionada diretamente com a experiência do mistério e do inexplicável. Muitos se perguntam: por que sofrer? Que sentido tem o sofrimento? O ser humano deve revoltar-se contra o sofrimento? Essas indagações convivem diariamente com o ser da pessoa, de maneira ativa no dia a dia, pois o ser humano se torna incapaz de administrá-lo e submetê-lo a uma lógica de sentimentos concretizadores da realidade.

A evolução humana faz parte da vida; entretanto, existem muitas pessoas que têm resistência em evoluir, pois em alguns momentos da sua existência sofreram frustrações enquanto estavam no caminho da evolução. A partir de então, seguem a vida com medo, ansiedade, preocupação, raiva, entre tantos outros sentimentos e emoções desagradáveis que bloqueiam o fluir natural da vida. As oportunidades passam e não são percebidas, ou, quando se percebem as oportunidades, o medo é muito grande, paralisando as ações e limitando as escolhas.

O sofrimento humano é algo que adquire alta complexidade, pois o homem pode sofrer de muitas maneiras e não sofrer de tantas outras, dependendo da visão de cada um. Portanto, sofrer obriga a vida sensível a se subordinar à vida das atividades que repudiam o fatalismo, de maneira que o sofrimento eleva os sentimentos pelas intenções de reparação.

Antropologia e sofrimento

Para a Antropologia Filosófica, existem pelo menos cinco formas de sofrimento intimamente enraizados na estrutura pluridimensional e plurirrelacional do ser humano: sofrimento intrapessoal (sofrimento exterior e interior); sofrimento interpessoal; sofrimento natural; sofrimento tecnológico e sofrimento transcendental88. Torralba RF. Antropologia do cuidar. Petropoles(RJ): vozes; 2009..

Nas diversas fases da vida humana, desde o nascimento até a morte, pode-se observar o não sofrimento e o sofrimento-prazer, separados distintivamente; mas, em comum, o sofrimento torna-se modalidade imprecisa e vaga, que se superpõe em camadas indiscerníveis, muitas vezes inefáveis77. Brant LC, Gomes CM. A transformação do sofrimento em adoecimento: do nascimento da clínica à psicodinâmica do trabalho. Cienc. saude colet. 2004;9(1):213-23..

Na vida cotidiana, a realidade aparece sem disfarces ou máscaras. Muitas pessoas podem ter dificuldades de aceitar as situações adversas, contudo a aceitação permitirá a diminuição desse sofrimento, até mesmo a reflexão que tudo passa permitirá a esperança em superar.

Durante a evolução da vida, o amadurecimento humano vem com a experiência. O caminhar da vida nos faz adquirir consciência de quem se é e o que se deseja ser, e, ao progredir, sente-se a necessidade de criar e gerar algo. Existe uma tendência maior em desenvolver os aspectos profissionais, projetos, casamento, aprimoramento da intelectualidade e procriação, pois se percebe a vida como um grande desafio, na busca pela estabilidade emocional e financeira. Nesta fase, o corpo já se encontra totalmente desenvolvido e pronto para atividades diversas.

O final da vida corresponde a um período em que, geralmente, o sofrimento se torna mais transcendente, e essa forma de sofrimento é exclusiva da espécie humana, sendo a origem de outros males, de ordem interior e de ordem interpessoal88. Torralba RF. Antropologia do cuidar. Petropoles(RJ): vozes; 2009.. Neste período, os anseios e os desejos mundanos vão perdendo a motivação. Sente-se uma imensa necessidade de descanso.

Vivenciar o sofrimento faz o ser humano se aproximar de si, levando-o até o autoconhecimento, para que se possa viver em maior plenitude. É tarefa difícil compreender que o sofrimento existencial é um componente de nossa dinâmica do viver, e, ao contrário, enxerga-se como um castigo, ou uma punição, apenas. Por outro lado, é justo almejar a alegria e o contentamento, entretanto, é a eles que se pretende apegar, procurando desconsiderar o seu oposto - as aflições.

Assim, pelo fato de o homem, em sua natureza virtual, estar propenso a um futuro cada vez mais elevado, torna-se compreensível a ideia de atos sucessivos, de solidariedade indestrutível no engrandecimento pela verdade e pelo bem, e que não podem recuar diante do desgosto estimulante e salvador das faltas do passado.

O sofrimento tem um sentido amplo e se refere a um modo de padecer que não se relaciona necessariamente com o físico ou somático do ser humano, mas com o âmbito de sua interioridade e todos os níveis de experiência que implicam88. Torralba RF. Antropologia do cuidar. Petropoles(RJ): vozes; 2009..

O ser humano padece sofrimento sob diversas perspectivas. Por um lado, encontra-se o sofrimento exterior, que tem o corpo como uma dimensão física99. Pessini L. Humanização e cuidados paliativos. 3ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2004.. Este tipo de sofrimento se torna visível aos nossos olhos, portanto a sintonia do ser humano com o conjunto da natureza é total, pois, neste nível, surge o sentimento de que algo está errado com o funcionamento do corpo.

Por outro lado, existe o sofrimento interior do ser humano, o psíquico, o social e o espiritual. A angústia, o desespero, o temor, o medo, a culpa, a dor, o prazer e a satisfação constituem modos habituais de sofrimento interior. Essas formas de padecer tem seu centro de gravidade na interioridade do ser humano, mas se expressa no rosto, na voz, no olhar e no conjunto da corporeidade88. Torralba RF. Antropologia do cuidar. Petropoles(RJ): vozes; 2009..

Atualmente, percebe-se a incapacidade de compreender o sentido real do sofrimento. Hoje se vive em um mundo "medicalizado"; a gerência da dor pressupõe a medicação do sofrimento com o uso indiscriminado de ansiolíticos, para ajuda no alívio dos incômodos impostos pelo sofrimento, ao mesmo tempo, diminui o desfrute de prazeres simples da vida cotidiana.

Nossa realidade tecnológica e industrial pode indagar: torna-se o homem responsável por seu comportamento sob o impacto do sofrimento? Existe um Deus todo-poderoso, que harmoniza a existência do sofrimento?

Se não existisse esse Deus capaz de compensar o sofrimento do ser humano, ninguém poderia responder pelo conjunto das injustiças e dos sofrimentos encontrados pela vida, e, com isso, só caberia aguentar ou desistir1010. Stork RY, Echevarria JA. Fundamentos de Antropologia:um ideal de excelência humana. São Paulo (SP): Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência "Raimundo Lúcio" (Ramon Llull); 2005..

Enfermagem: uma visão holística do sofrimento

A essência da Enfermagem é o cuidado, e este se manifesta na preservação do potencial saudável do ser humano e depende de uma concepção ética que contemple a vida como um bem valioso em si; e por ser um conceito de amplo espectro, pode incorporar vários significados e manifestações.

O cuidado significa desvelo, solicitude, diligência, zelo, atenção, e se concretiza no contexto da vida em sociedade. Cuidar implica interação com a finalidade de ajudar, geralmente em situações adversas, quer na dimensão pessoal, quer na social. É um modo de estar com o outro, no que se refere a questões especiais da vida e de suas relações sociais, entre estas o nascimento, a promoção e a recuperação da saúde e a própria morte1111. Souza ML, Sartor VVB, Prado ML. Subsídios para uma ética da responsabilidade em enfermagem. Texto & contexto enferm. 2005 mar/abr;14(1):75-81..

Dessa maneira, a tentativa de compreender o valor do cuidado de Enfermagem requer uma concepção ética, de respeito ao outro em sua complexidade, escolhas, individualidade e ao mesmo tempo pluralidades, características do homem.

O homem, ser vulnerável, precisa de um cuidado direcionado a sua autenticidade, unicidade e verdade. As ações de Enfermagem devem compreender as fragilidades do paciente, pois, a partir de sua identificação, é que o cuidado será direcionado às necessidades de cada um.

Cuidar em Enfermagem consiste em envidar esforços para o outro, visando proteger, promover e preservar, ajudando pessoas a encontrar significados na doença, sofrimento e dor, bem como na existência1212. Waldow VR, Lopes MJM, Meyer DE. Maneiras de cuidar, maneiras de ensinar. Porto Alegre(RS): Artes Médicas; 1998.. Tem como premissa essencial a tentativa de evitar que o outro sofra, ou que, ao identificar este sofrer, realizar medidas para erradicar ou minimizar o sofrimento, sendo muito importante a atitude de compreensão de quem cuida, pois a hospitalização é angustiante, por evidenciar a fragilidade a que estamos sujeitos, bem como a exposição física e emocional.

A condição de enfermidade produz sentimentos como incapacidade, dependência, insegurança e sensação de perda do controle sobre si mesmo. Os doentes encaram a hospitalização como fator de despersonalização pelo fato de reconhecerem a dificuldade para manter sua identidade, intimidade e privacidade. O ambiente hospitalar é estressante por diversos fatores, essencialmente ao doente, por perder o controle sobre os que o afetam, e dos quais depende para a sua sobrevivência1313. Pupulim JSL, Sawada NO. Nursing care and the invasion of patients' privacy: an ethical and moral issue. Rev. latino-am. enfermagem. 2002 maio/jun;10(3):433-8..

O cuidado de Enfermagem possui duas esferas distintas: uma objetiva, que se refere ao desenvolvimento de técnicas e procedimentos, e uma subjetiva, que se baseia em sensibilidade, criatividade e intuição para cuidar de outro ser, sendo esta última bastante relevante, pois o objeto do cuidado da Enfermagem é o ser humano1414. Ferreira MA. A comunicação no cuidado: uma questão fundamental na enfermagem. Rev. bras. enferm. 2006 maio/jun;59(3):327-30..

O sofrimento é inerente à vida. Mesmo na ausência de doença, ele acompanha o ser humano em toda sua jornada, e depende de cada um a forma como é vivenciado, como se apresenta e se manifesta. Todo ser humano sofre, principalmente quando está doente, e neste momento é importante ter ao seu lado pessoas disponíveis para cuidar, de forma a compreender este momento.

A cura da doença e o alívio da dor e sofrimento, desde o nascedouro da Medicina hipocrática, são aceitos como os objetivos da Medicina. A doença destrói a integridade do corpo, e a dor e o sofrimento podem ser fatores de desintegração do ser humano. Enquanto hoje a Medicina está até que bem aparelhada para combater a dor, no que tange a lidar com o sofrimento, encontra-se ainda em uma fase bastante rudimentar99. Pessini L. Humanização e cuidados paliativos. 3ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2004..

O sofrimento ocorre quando existe a possibilidade de uma destruição iminente da pessoa e continua até que a ameaça de desintegração passe ou até que a integridade da pessoa seja restaurada novamente de outra maneira. Aponta-se que o "sentido e a transcendência" oferecem duas pistas de como o sofrimento associado à destruição de uma parte da personalidade pode ser diminuído. Dar um significado à condição sofrida, frequentemente, reduz ou mesmo elimina o sofrimento a ela associado. A transcendência é provavelmente a forma mais poderosa na qual alguém pode ter sua integridade restaurada, após ter sofrido a desintegração da personalidade1515. Cassel EJ. The nature of suffering and goals of medicine. New York (USA): Oxford University Press; 1991..

O sofrimento é a experiência de impotência com o prospecto de dor não aliviada, situação de doença que leva a interpretar a vida vazia de sentido. Portanto, o sofrimento é mais complexo do que a dor e, fundamentalmente, sinônimo de qualidade de vida diminuída, ocorrendo em situações como as de doenças graves e prolongadas que causam rupturas sociais na vida do paciente e, consequentemente, na sua família.

Nesse ínterim, entende-se o sofrimento a partir de um conceito mais amplo, podendo ser definido, no caso de doença, como um sentimento de angústia, vulnerabilidade, perda de controle e ameaça à integridade do eu99. Pessini L. Humanização e cuidados paliativos. 3ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2004..

No Homo patiens sofrimento é abandono, é mais abrangente e global do que a dor, e é mais profundo. O sofrimento é uma situação na qual o homem se encontra antes ou depois, uma matéria pendente para todos, uma etapa necessária para a maturidade1010. Stork RY, Echevarria JA. Fundamentos de Antropologia:um ideal de excelência humana. São Paulo (SP): Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência "Raimundo Lúcio" (Ramon Llull); 2005..

Portanto, não existe saída para o estado de sofrimento senão reconhecê-lo, olhar para ele de frente, com a coragem de admitir essa fragilidade. O sofrimento leva à reflexão, possibilidade de autoconhecimento e surpresa com a superação, pois ele machuca, mas nos faz crescer.

O objetivo não é fugir do sofrimento, mas senti-lo plenamente. Falar dele um pouco, se necessário, como uma forma de deixá-lo partir, sair de nós e seguir seu caminho. O importante é ficar atento para que a mente não utilize o sofrimento para não se manter preso ao papel de vítima, seja do destino, ou de alguém em particular. Sentir pena de si mesma e querer obter atenção contando sua história a todo mundo só fará com que a pessoa permaneça paralisada no sofrimento. A chama da consciência é a única defesa que se tem para passar pelo sofrimento, pois ela ajuda as pessoas a atravessar o túnel escuro e encontrar a luz que sempre esteve à espera do ser que sofre99. Pessini L. Humanização e cuidados paliativos. 3ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2004..

O sofrimento não é alheio à vida humana, mas está completamente presente nela ainda que sob formas e modalidades muito distintas; ele é uma vivência que acompanha a vida humana em toda sua trajetória. O homem sofre precisamente porque é vulnerável, e, quando sofre ou quando está doente, percebe de modo evidente sua extrema vulnerabilidade e heteronímia88. Torralba RF. Antropologia do cuidar. Petropoles(RJ): vozes; 2009..

O ponto mais comum do sofrimento é a doença, pois é nela que a pessoa experimenta a dor física e emocional em simultâneo. Quando o homem adoece, passa a perceber a sua vulnerabilidade. Assim, deve-se sempre ter em consideração os fatores que conduziram a pessoa àquele estado, a forma como a pessoa lida com a situação e o tipo de apoio que recebe para revertê-la.

Sofrimento e doença relacionam-se mutuamente, ainda que não necessariamente se identifiquem. A doença leva, em geral, a algum tipo de dor ou sofrimento. Por outro lado, há sofrimentos que não se relacionam diretamente com a doença, como o sofrimento da solidão, da velhice, do desamor, da saudade, ainda que possam se converter em vivências de tipo patológico88. Torralba RF. Antropologia do cuidar. Petropoles(RJ): vozes; 2009..

É importante reconhecer que o sofrimento não tem uma manifestação unitária para os indivíduos, ainda que sejam de uma mesma família, cultura ou período histórico. O que é sofrimento para um não é necessariamente para outro. Daí a relevância de entender que, na qualidade de enfermeiros, devemos estar preparados para cuidar nesta perspectiva de complexidade do ser humano e de suas infinitas possibilidades e potencialidades, e ao mesmo tempo oferecer um cuidado que respeite a singularidade e que também seja integral e holístico.

Essa condição básica do ser no mundo não pode ser definida somente a partir do acontecimento, pois o sofrimento depende da significação que assume no tempo e no espaço, bem como no corpo que ele toca. O homem sofre porque passa a perceber a sua finitude, o que faz do sofrimento uma dimensão não apenas psicológica, mas, sobretudo, existencial77. Brant LC, Gomes CM. A transformação do sofrimento em adoecimento: do nascimento da clínica à psicodinâmica do trabalho. Cienc. saude colet. 2004;9(1):213-23..

Refletir sobre esta condição é ponto fundamental, pois vivemos em um momento tecnológico dominado pela "medicalização", em que fugir da dor é o caminho racional e normal. Assim, o sofrimento não é permitido, como se fosse algo que estivesse no domínio do homem. Claro que esta mentalidade retira do sofrimento seu significado íntimo e pessoal e o transforma em problema técnico. Estamos em uma sociedade secularizada em que o sofrer não tem sentido e por isso somos incapazes de percebê-lo99. Pessini L. Humanização e cuidados paliativos. 3ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2004..

Sofrimento humano e o cuidado de Enfermagem

Na arte de cuidar, a consideração de sofrimento é fundamental, pois só se pode cuidar adequadamente de um ser humano se se reconhece o duplo nível de padecimento, a saber, o sofrimento exterior e o sofrimento interior. Pode-se combater o sofrimento exterior a partir da terapêutica, da farmacologia e dos instrumentos tecnológicos, mas o sofrimento interior reclama um modo de atenção distinta, reclama presença humana, a palavra adequada e o árduo exercício do dialogo88. Torralba RF. Antropologia do cuidar. Petropoles(RJ): vozes; 2009..

Neste âmbito, a Enfermagem não pode negligenciar o sofrimento, temos que romper a tendência de cuidar em concentrar somente nos sintomas físicos, como se fossem a raiz única de angústias para o paciente. Assim, na relação de cuidado, têm de ser valorizados aspectos importantes, como o diálogo, a escuta, sensibilidade, ternura, empatia, porque o ser humano é um ser em busca de sentido. Essas são condições necessárias que o enfermeiro deve ter para cuidar de alguém que sofre.

Além disso, ajudar a enfrentar o sofrimento, sem mentiras, é importante, pois o sofrimento também leva a autoconhecimento, superação. Ele tem o papel de preparar, pois o ser humano, apesar das incertezas, resiste e tem esperança de que aquele momento é uma etapa a ser enfrentada e que de nada adiantará fugir.

Existe uma interface também do sofrimento de quem é cuidado com o de quem cuida. O enfermeiro não está alheio ao sofrimento e precisa se perceber como um ser vulnerável, para daí transcender e ter melhores condições de cuidar, acompanhar. Portanto, é criado para cuidar e ser cuidado, ora ativo, ora passivo nesta relação.

Em uma aproximação da humanização do cuidado da dor e sofrimento humanos, passamos por uma profunda crise de humanismo, pois falamos insistentemente de ambientes desumanizados, tecnicamente perfeitos, mas sem alma e ternura humana, tanto para quem é cuidado como para quem cuida.

A pessoa humana vulnerabilizada pela doença deixou de ser o centro de atenções e passou a ser instrumentalizada em função de determinado fim, podendo ser transformada em objeto de aprendizado, o status do pesquisador, ou ser cobaia de pesquisa, situações que comprometem a verdade ética de que as coisas têm preço e podem ser trocadas, mudadas e comercializadas, mas as pessoas têm dignidade que deve ser respeitada99. Pessini L. Humanização e cuidados paliativos. 3ª ed. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2004..

A tecnologia hospitalar (equipamentos e medicações) tem o objetivo de cada vez mais tentar prolongar a vida, mas nos faz refletir também até que ponto não prolonga o sofrimento. É preciso ter equilíbrio na relação de cuidado para que não extrapole o limite entre amenizar, e sim favorecer o sofrimento. É preciso não perder o foco do respeito à dignidade humana e à ética do cuidar.

O desenvolvimento tecnológico biomédico estabelece o que é chamado de triunfo da "medicalização", levando a procedimentos de intervenção prolongada, à obstinação terapêutica. Isso pode resultar na perpetuação de intervenções e de tratamentos que não agregam benefícios substanciais para os pacientes.

Além de uma Antropologia do cuidar, existe, de modo explícito ou implícito, uma Ética do cuidar, cujo fim é regular eticamente a ação de cuidar, ou seja, analisar sob uma perspectiva racional e crítica o que significa cuidar de um modo virtuoso. A ação de cuidar delineia graves e profundos desafios de caráter moral e ético, sendo absolutamente imprescindível refletir em torno de aspectos tais como: liberdade, intimidade, justiça e bem88. Torralba RF. Antropologia do cuidar. Petropoles(RJ): vozes; 2009..

A Medicina contemporânea alcançou um desenvolvimento técnico tão impressionante que os profissionais de saúde tendem a considerar um imperativo sua incorporação, correndo-se constantemente o risco de reinvidicá-lo como sendo, também, uma exigência ética. Assim, o que pode ter ocorrido é uma inversão da relação entre Medicina e tecnologia: não mais esta a serviço da primeira, mas, ao contrário, a Medicina a serviço da tecnologia.

É neste contexto da Medicina contemporânea que surge o moderno movimento hospice, emergindo dentro de um ethos que se fundamenta na compaixão e em um tipo de cuidado do paciente que pretende ser global, estendendo-se os cuidados à família, em uma busca ativa de medidas que aliviem os sintomas angustiantes da doença, em especial, a dor, e que possam dar significado ao sofrimento do paciente, encarando a morte como parte de um processo natural da biografia humana, e não como um inimigo a ser "obstinadamente" enfrentado.

É importante perceber que o cuidado não é um processo de uma só via, pois existe uma relação entre dois seres humanos; de um ser humano dotado de preparo técnico-científico e humanístico e disponível para o cuidado efetivo e de outro ser que está necessitando de ajuda. Desse modo, se sentirá satisfeito com o cuidado e o afeto recebidos e, certamente, estará pensando positivamente sobre o fato e emanando um sentimento correspondente, o que certamente refletirá beneficamente em si.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em um contexto de crescente "tecnologização" do cuidado, é urgente recobrar uma visão antropológica holística, que cuide da dor e sofrimento humanos nas suas várias dimensões, ou seja, física, social, psíquica, emocional e espiritual, que alia competência técnico-científica e humana.

Um dos objetivos do cuidado em Enfermagem é justamente minorar o sofrimento humano causado pelas doenças; com o surpreendente progresso tecnológico, chegou-se à ilusão de pensar que a gestão técnica da dor seria a solução, mas, independentemente de serem um problema de ordem técnica, a dor e o sofrimento situam-se na esfera ética / humana e devem ser considerados nas suas várias interfaces.

REFERENCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2014

Histórico

  • Recebido
    05 Set 2012
  • Revisado
    24 Maio 2013
  • Aceito
    06 Jul 2013
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