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Representações sociais sobre o parto domiciliar

Representaciones sociales del parto en domicilio

Resumo

Objetivo:

Conhecer as representações sociais sobre o parto domiciliar de mulheres que fizeram esta opção diante da escassez de estudos que avaliem esse fenômeno sob uma perspectiva humana, histórica e social.

Métodos:

Pesquisa qualitativa, exploratória e descritiva, fundamentada na Teoria das Representações Sociais. Foram entrevistadas 14 mulheres que vivenciaram ao menos uma experiência de parto domiciliar, assistido e planejado, na cidade de Campinas-SP e região entre fevereiro e março de 2014. Utilizou-se o critério de saturação teórica para definição do tamanho amostral.

Resultados:

Os dados analisados revelaram uma representação social: meu corpo, minhas escolhas, meu parto. As participantes mostraram-se discordantes com o modelo de atendimento institucionalizado da atualidade e buscam o parto domiciliar como uma alternativa concreta de contemplação às suas expectativas, as quais estão fortemente alicerçadas pelo princípio da autonomia.

Conclusão:

As reflexões apresentadas servem como subsídios para o debate e reformulação das políticas de saúde obstétrica brasileira.

Palavras-chave:
Tocologia; Parto domiciliar; Parto humanizado

Resumen

Objetivo:

Conocer las representaciones sociales sobre la elección del parto en domicilio frente a la escasez de estudios que evalúen este fenómeno bajo la perspectiva humana, histórica y social.

Métodos:

Investigación cualitativa, exploratoria y descriptiva, fundamentada en la Teoría de las Representaciones Sociales. Fueron entrevistadas 14 mujeres que vivenciaron al menos una experiencia de parto en domicilio, asistido y planificado, en Campinas (SP) y región, entre febrero y marzo de 2014. Se utilizó el criterio de saturación teórica para definir el tamaño de la muestra.

Resultado:

Los datos revelaron una representación social: mi cuerpo, mis decisiones, mi parto. Las participantes fueron discordantes con el modelo de atención institucionalizada actual y buscaron el parto domiciliario como una alternativa para atender a sus expectativas, respaldadas por el principio de la autonomía.

Conclusión:

Las reflexiones presentadas sirven de contribución para el debate y la reformulación de las políticas de salud obstétrica brasileña.

Palabras clave:
Tocología; Parto domiciliario; Parto humanizado

Abstract

Objective:

To identify the Social Representations about the home birth of women who have made this choice due to the lack of studies evaluating this phenomenon from a human, historical and social perspective.

Method:

We conducted a qualitative, exploratory and descriptive research, based on the Theory of Social Representations. Fourteen women who experienced at least one practice of home childbirth were interviewed in the city of Campinas-SP and region, from February to March of 2014. It was used the criterion of theoretical saturation to define the sample size.

Results:

The data revealed a social representation: my body, my choices, my childbirth. The participants were discordant with the actual institutionalized care model and look for home birth as a concrete alternative to contemplate their expectations, which are strongly underpinned by the principle of autonomy.

Conclusion:

The reflections presented contribute as inputs to the debate and reformulation of Brazilian obstetric health policies.

Keywords:
Midwifery; Home Birth; Humanized Childbirth

INTRODUÇÃO

No cenário mundial, as taxas de assistência institucional para o parto melhoraram nas últimas décadas, porque as mulheres estão sendo cada vez mais incentivadas a utilizar as instituições de saúde, por meio de ações para geração de demanda, mobilização comunitária, educação, incentivos financeiros e medidas políticas11 Organização Mundial de Saúde. Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus tratos durante o parto em instituições de saúde; 2014 [citado 2014 nov 20]. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/134588/3/WHO_RHR_14.23_por.pdf
http://apps.who.int/iris/bitstream/10665...
.

Paralelo a esse cenário, um crescente volume de pesquisas sobre as experiências das mulheres ao longo da gravidez e, em particular no parto, descreve um quadro perturbador. No mundo inteiro, muitas mulheres experimentam abusos, desrespeito, maus-tratos e negligência durante a assistência ao parto nas instituições de saúde11 Organização Mundial de Saúde. Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus tratos durante o parto em instituições de saúde; 2014 [citado 2014 nov 20]. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/134588/3/WHO_RHR_14.23_por.pdf
http://apps.who.int/iris/bitstream/10665...
.

Isso representa uma violação da confiança entre as mulheres e suas equipes de saúde e, também, pode ser um poderoso desestímulo para as mulheres procurarem os serviços de assistência obstétrica22 Silal SP, Penn-Kekana L, Harris B, Birch S, Mclntyre D. Exploring inequalities in access to and use maternal health services in South Africa. BMC Health Serv Res. 2011 dez; 31(12):120-0.

3 Small R, Yelland J, Lumlev J, Brown S, Liamputtong P. Immigrant women`s views about care during labor and birth: an Australian study of Vienamese, Turkish and Filipino women. Birth. 2002 dez; 29(4):266-77.
-44 D´Oliveira AFPLA, Diniz SGS, Schraiber LBL. Violence against women in health care institucions: an emerging problem. Lancet. 2002 set; 359(9318): 1681-5..

No Brasil, o panorama obstétrico atual tem sido alvo de muitas críticas devido à fusão de fatores que resultam em um cenário cruel e, potencialmente, perigoso à saúde das mulheres e dos recém-nascidos, caracterizado por um modelo de atenção medicalizado, elevados índices de cirurgia cesariana e uso indiscriminado da tecnologia e de intervenções rotineiras sem respaldo científico55 Lessa HF, Tyrrell MAR, Alves VH, Rodrigues DP. Informação para a opção pelo parto domiciliar planejado: um direito de escolha das mulheres. Texto Contexto Enferm. jul/set;2014; 23(3):665-72..

Segundo os dados nacionais, pouco mais de 98% dos nascimentos ocorrem em instituições de saúde66 Brasil. Ministério da Saúde. Rede Interagencial de Informações para a Saúde [Internet]. Proporção de partos hospitalares; 2011 [citado em 2014 set 05]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?idb2012/f07.def
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi....
. As taxas de cirurgia cesariana se aproximaram de 54% no ano de 2011 no setor público77 Brasil. Ministério da Saúde. Rede Interagencial de Informações para a Saúde [Internet]. Proporção de partos cesáreos; 2011 [citado 2014 set 05] Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?idb2012/f08.def
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi....
e 80% no setor de saúde suplementar88 Brasil. Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). O modelo de atenção obstétrica no setor de Saúde Suplementar no Brasil: cenários e perspectivas. Agência Nacional de Saúde Suplementar. 1a ed. Rio de Janeiro: Agência Nacional de Saúde; 2008.. Esses valores não são encontrados em nenhum outro país do mundo e culminam com resultados maternos e perinatais piores que os observados em países, com igual ou menores índices de desenvolvimento sócioeconômico99 Dias MAB. Humanização do parto: política pública, comportamento organizacional e ethos professional. Cad. Saúde Pública. 2011 maio;27(5):1042-3..

Também se percebe um cenário incoerente no que diz respeito ao uso abusivo e indiscriminado da tecnologia no parto: de um lado o adoecimento e a morte por falta de tecnologia apropriada, e do outro o adoecimento e a morte por excesso de tecnologia inapropriada1010 Diniz CSG. Gênero, saúde materna e o paradoxo perinatal. J. Hum. Growth Dev. 2010 maio/ago;19(2):13-26..

Aliado a esse quadro, a recente pesquisa de abrangência nacional conduzida pela Fundação Perseu Abramo constatou que uma em cada quatro brasileiras relata ter sofrido maus-tratos durante o trabalho de parto e no parto1111 Brasil. Fundação Perseu Abramo. Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado: pesquisa de opinião pública [on line]. 2010; São Paulo: Fundação Perseu Abramo [citado 2014 nov 16]. Disponível em: http://www.fpa.org.br/sites/default/files/cap4a.pdf
http://www.fpa.org.br/sites/default/file...
, demonstrando um modelo de assistência fragilizado que merece e precisa ser reformulado em favor da saúde materna e perinatal.

Relatos sobre desrespeito e abusos no decorrer do parto em instituições de saúde incluem violência física, humilhação profunda e abusos verbais, procedimentos médicos coercivos ou não consentidos (incluindo a esterilização), falta de confidencialidade, não obtenção de consentimento esclarecido antes da realização de procedimentos, recusa em administrar analgésicos, graves violações da privacidade, recusa de internação nas instituições de saúde, atendimento negligente durante o parto, levando a complicações evitáveis e situações ameaçadoras da vida, detenção de mulheres e seus recém-nascidos nas instituições, após o parto, por incapacidade de pagamento, entre outras1212 Bowser D, Hill K. Exploring evidence for disrespect and abuse in facility-based childbirth: report of a landscape analysis [on line]. 2010; Harvard School of Public Health [citado 2014 nov 24]. Disponível em: http://www.mhtf.org/wp-content/uploads/sites/17/2013/02/Respectful_Care_at_Birth_9-20-101_Final.pdf
http://www.mhtf.org/wp-content/uploads/s...
.

De forma paralela a essa situação observa-se na atualidade um tímido, porém crescente movimento de resgate à prática do parto em domicílio nas regiões urbanas, mesmo em locais onde o acesso hospitalar é possível. Trata-se de uma opção consciente, planejada e que parece estar relacionada ao nível de escolaridade mais elevado1313 Feyer ISS, Monticelli M, Knobel R. Perfil de casais que optam pelo parto domiciliar assistido por enfermeiras obstétricas. Esc. Anna Nery. 2013 abri/jun;17(2):298-305..

A ideia corrente na sociedade brasileira, compartilhada inclusive por profissionais de saúde, é a de que o parto domiciliar, mesmo quando planejado, representa maior risco de desfechos maternos e neonatais desfavoráveis1313 Feyer ISS, Monticelli M, Knobel R. Perfil de casais que optam pelo parto domiciliar assistido por enfermeiras obstétricas. Esc. Anna Nery. 2013 abri/jun;17(2):298-305..

No entanto, essa concepção de risco associada ao parto domiciliar vem sendo diluída diante da publicação de diversos e recentes estudos na literatura internacional que demonstram que os resultados obstétricos e perinatais são semelhantes quando comparados aos locais de parto, desmistificando a ideia de que parir em casa confere maior risco à saúde da mãe e o do recém-nascido1414 Jonge A, Mesman JAJM, Manniën J, Zwart JJ, van Dillen J, van Roosmalen J. Several adverse maternal outcomes among low risk women with planned home versus hospital births in the Netherlands: nationwide cohort study. BMJ. 2013 jun;13;346:f3263.

15 Birthplace in England Collaborative Group. Perinatal and maternal outcomes by planned place of birth for healthy women with low risk pregnancies: the Birthplace in England national prospective cohort study. BMJ. 2011 nov;23;343:d7400.
-1616 Wax JR, Lucas FL, Lamont M, Pinette MG, Cartin A, Blackstone J. Maternal and newborn outcomes in planned home birth vs planned hospital births: a metaanalysis. Am J Obstet Gynecol. 2011 jul/ago;204(4):7-13..

A Biblioteca Cochrane, em sua revisão mais recente sobre o tema não encontrou uma amostra suficiente de estudos para estabelecer uma conclusão estatisticamente fundamentada, porém, os autores concluíram que não existe evidência a favor do parto hospitalar planejado para gestantes de baixo risco, chegando à conclusão de que não há provas fundamentadas para desencorajar o parto domiciliar para esse grupo. Os autores, também, destacaram que há resultados provenientes de bons estudos observacionais que sugerem que o parto domiciliar planejado pode ser tão seguro quanto o parto hospitalar, com menos intervenções e complicações associadas1717 Olsen O, Clausen JA. Planned hospital birth versus planned home birth. Cochrane Database Syst Rev. 2012 Sep 12;9:[aprox. 39 telas]. Disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4238062/pdf/emss-57065.pdf
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles...
.

A literatura nacional sobre o tema, embora escassa, também apresenta bons resultados obstétricos e neonatais, semelhantes aos estudos internacionais. Essas pesquisas mostram reduzida taxa de transferência hospitalar, de necessidade de cesariana, de traumas perineais e uso de fármacos tanto no trabalho de parto como no pós-parto dos partos domiciliares1818 Koettker JG, Brüggemann OM, Dufloth RM, Knobel R, Monticelli M. Resultado de partos domiciliares atendidos por enfermeiras de 2005 a 2009 em Florianópolis. SC. Rev. Saúde Públ. 2012 jul/ago;46(4):747-50.

19 Colacioppo PM, Koiffman MD, Gonzalez Riesco ML, Schneck CA, Osava RH. Parto domiciliar planejado: resultados maternos e neonatais. Referência. 2010 fev;3(2):81-90.
-2020 Koettker JG, Bruggmann OM, Dufloth RM. Partos domiciliares planejados assistidos por enfermeiras obstétricas: transferências maternas e neonatais. Rev. Esc. Enferm. USP. 2013 jan/fev; 47(1):15-21..

Embora exista uma vasta produção sobre a temática do parto domiciliar de natureza quantitativa, percebe-se uma restrição de estudos de origem qualitativa que visam compreender a escolha pelo parto em casa não somente enquanto um fenômeno físico, mas também, levando-se em consideração o aspecto humano, histórico e social envolvidos nesse evento. Dessa forma, optou-se pela utilização da Representação Social enquanto referencial teórico com objetivo de se compreender os motivos que estão levando essa parcela de mulheres brasileiras a optarem por dar a luz em casa, encabeçando um movimento que está na contramão do modelo obstétrico vigente.

Diante desse contexto, essa pesquisa tem como objetivo conhecer as representações sociais sobre o parto domiciliar planejado de mulheres que optaram por vivenciar essa experiência, de modo que essas representações contribuam para que as mulheres expressem o que pensam, como percebem suas opiniões e experiências acerca desse evento, dando voz aos conceitos construídos socialmente e ancorados em suas realidades.

Considera-se que as informações encontradas nesta pesquisa podem servir como subsídios para enriquecer o debate e fundamentar as discussões sobre o modelo de atenção ao parto em vigor na atualidade.

REFERENCIAL TEÓRICO

Para o embasamento teórico deste estudo foi utilizada a Teoria das Representações Sociais (TRS), criada pelo psicólogo social francês Serge Moscovici na década de 602121 Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes; 2003..

A TRS pode ser compreendida como uma forma de conhecimento socialmente elaborado e compartilhado, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum ao conjunto social2020 Koettker JG, Bruggmann OM, Dufloth RM. Partos domiciliares planejados assistidos por enfermeiras obstétricas: transferências maternas e neonatais. Rev. Esc. Enferm. USP. 2013 jan/fev; 47(1):15-21.,2121 Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes; 2003..

Realizando-se a articulação dos conceitos da TRS para o campo da obstetrícia, percebe-se que a ideia de parto predominante em nossa sociedade atual e que, portanto, corresponde ao universo consensual, é a do parto institucionalizado, atendido pelo profissional médico e com utilização maciça de intervenção e tecnologia no processo fisiológico de parir e nascer. Ou seja, o pensamento compartilhado no senso comum é de que o parto deve ocorrer no hospital, de preferência com o mínimo de "dor e sofrimento" à mulher.

Já a opção pelo parto em casa pode ser compreendida como o fato não familiar do universo consensual (senso comum), gerador de tensão e desconforto. Por meio do processo de construção das representações sociais, as mulheres que fazem essa opção transformam o não familiar (parto domiciliar) em familiar. Esse movimento permite a formação de grupos de iguais que partilham das mesmas concepções sobre o assunto e, portanto, adotam condutas e práticas semelhantes.

A TRS tem sido muito empregada na área de enfermagem, devido à possibilidade do pesquisador captar a interpretação dos próprios participantes da realidade que se almeja pesquisar, possibilitando a compreensão das atitudes e comportamentos que um determinado grupo social frente a um objeto psicossocial2222 Jodelet D. Representações sociais: um domínio em expansão. In.: Jodelet D. (Org.) As representações sociais. Rio de Janeiro: UERJ, 2001, p. 17-44..

A complexidade do fenômeno das representações sociais e as possibilidades metodológicas e interdisciplinares que a mesma oferece têm levado inúmeros pesquisadores à combinação de diferentes níveis de análises, resultando daí estudos bastante diversificados. Essa diversidade resulta, ainda, da dupla face das representações: como produto e como processo2323 Silva SED, Camargo BV, Padilha MI. A Teoria das Representações Sociais nas pesquisas da Enfermagem brasileira. Rev. Bras. Enferm. 2011 set/out;64(5):947-51..

Quando enfocada como produto, como no caso deste estudo, a pesquisa visa depreender os elementos constitutivos das representações (informações, imagens, opiniões, crenças), tendo sempre como referência as condições sociais de sua produção. Já quando enfocada como processo, a pesquisa volta-se à compreensão da elaboração e transformação das representações sob a força das determinações sociais2222 Jodelet D. Representações sociais: um domínio em expansão. In.: Jodelet D. (Org.) As representações sociais. Rio de Janeiro: UERJ, 2001, p. 17-44..

MÉTODOS

Trata-se de uma pesquisa exploratória, descritiva, de natureza qualitativa e fundamentada na Teoria das Representações Sociais (TRS).

A amostra foi composta por 14 mulheres que vivenciaram a experiência do parir em casa de forma planejada e assistida por um profissional de saúde habilitado (obstetriz, enfermeira obstetra e/ou médico obstetra), no decorrer do último ano (2014), na cidade de Campinas/SP e região. Adotou-se como critério de inclusão o período de três a seis meses pós-parto, a vivência do parto domiciliar planejado e assistido por profissional habilitado e ser maior de 18 anos. Optou-se por não entrevistar as mulheres nos primeiros três meses pós-parto, visto que é nesse período que a mulher está mais suscetível a desenvolver quadros de disforia puerperal ou baby-blue e psicose2424 Spink MJ (Org). O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense; 1995..

Os dados foram coletados nos meses de fevereiro e março de 2014, por meio de um instrumento que continha dados referentes à caracterização sociodemográfica e obstétrica, juntamente com uma entrevista semiestruturada composta por 11 perguntas abertas. As entrevistas foram audiogravadas e imediatamente transcritas, tiveram duração média de 25 minutos e foram realizadas no domicílio das mulheres.

As participantes foram captadas mediante a disponibilização de seus nomes concedidos por equipes que trabalham no atendimento ao parto domiciliar na referida região. Dentre todas as participantes convidadas, não houve recusa para a participação da pesquisa.

A determinação do número de participantes deu-se por meio da amostragem por saturação, que pode ser compreendido como a suspensão de inclusão de novos participantes, quando os dados obtidos passam a apresentar, na avaliação do pesquisador, certa redundância ou repetição, não sendo considerado relevante persistir na coleta. Esse conceito tem sido amplamente utilizado nas pesquisas qualitativas na área da saúde2525 Secretaria Estadual de São Paulo (SP). Secretaria da Saúde. Coordenadoria de Planejamento em Saúde. Assessoria Técnica em Saúde da Mulher. Atenção à gestante e à puérpera no SUS - SP: manual técnico do pré-natal e puerpério. Calife K, Lago T, Lavras C (Org). São Paulo (SP): Secretaria Estadual de Saúde/SP; 2010, 234p..

O tratamento e a análise dos dados se deram por meio do processo manual de análise de conteúdo temática proposta por Bardin2626 Fontanella BJB, Ricas J, Turato ER. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cad. Saúde Pública. 2008 jan; 24(1):17-27., que é composto por três etapas que se seguem: 1) pré-análise; 2) exploração do material e 3) tratamento dos resultados, inferência e interpretação2626 Fontanella BJB, Ricas J, Turato ER. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cad. Saúde Pública. 2008 jan; 24(1):17-27..

Na primeira etapa, o material foi organizado de modo que se tornasse operacional. Esse processo de organização realizou-se por meio de quatro fases: 1) leitura flutuante; 2) escolha dos documentos; 3) elaboração de hipóteses e objetivos e 4) referenciação dos índices e elaboração dos indicadores. Em seguida, procederam-se à exploração do material, realizando-se a codificação, classificação e categorização por temas. Na última fase, realizou-se a condensação e o destaque das informações para análise, culminando nas interpretações inferenciais; é o momento da intuição, da análise reflexiva e crítica2626 Fontanella BJB, Ricas J, Turato ER. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cad. Saúde Pública. 2008 jan; 24(1):17-27..

A pesquisa segue as diretrizes e as normas regulamentadoras de pesquisas, envolvendo seres humanos contidas na Resolução 196/96 (RES CNS 196/96) e 466 de 12/12/2012 do Conselho Nacional de Saúde. Os dados somente foram coletados após a aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa, cuja aprovação se encontra no parecer de Nº 331.743 e após anuência do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) por cada participante.

Como forma de se garantir a confidencialidade das informações, as participantes desse estudo foram identificadas pela letra E seguida de uma numeração aleatória.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados e a discussão serão apresentados em duas partes. Da primeira consta a caracterização dos sujeitos (Tabelas 1 e 2) e, da segunda, consta da exploração e fundamentação da representação social compartilhada por essas mulheres.

Tabela 1
Perfil sociodemográfico de mulheres que pariram em casa. Campinas, SP, Brasil
Tabela 2
Perfil obstétrico de mulheres que pariram em casa. Campinas, SP, Brasil

Caracterização das participantes

Verificou-se média de idade de 31 anos, como grau de instrução predominante o ensino superior completo (100%), estado marital casado ou união estável (100%), renda familiar ≥ 10 salários mínimos (50%) e convênio médico (92,9%). Os achados estão apresentados na Tabela 1.

Em relação aos dados obstétricos, a amostra foi composta em sua maioria por primíparas (57,1%). Entre as multíparas (42,9%) verificou-se prevalência do parto vaginal (83,3%) e hospitalar (83,3%) anterior à experiência do parto domiciliar. Esses achados estão apresentados na Tabela 2.

A construção da Representação Social

Após exaustivo e minucioso processo manual de análise dos conteúdos revelados nas entrevistas, todo o material foi dividido em unidades de sentido, seguido do agrupamento em subcategorias para que, finalmente, surgissem três grandes categorias temáticas, que foram nomeadas como: 1) O poder da informação; 2) Não concordância com o modelo de atendimento obstétrico hospitalar e 3) Satisfação em viver a experiência sem interferências.

O conteúdo partilhado e comum a essas categorias fez emergir uma única representação social, mostrando que essas mulheres reconhecem o parto domiciliar como uma opção consistente para parir, pois representa um setting oportuno para a vivência do parto fisiológico e de forma individualizada, em que se valorizam as recomendações científicas disponíveis, se estimula o resgate ao empoderamento feminino, além de permitir que as mulheres permaneçam verdadeiramente no controle da situação, podendo tomar decisões, participar das escolhas, recusarem o que lhes não convém, sem que isso represente uma situação de estresse/conflito. Tendo em vista essas informações, abstraídas dos discursos analisados, a representação social emergente foi nomeada como Meu corpo, minhas escolhas, meu parto.

Vale ressaltar que cada categoria emergente deu origem a textos para publicação devido à riqueza de informações nelas contidas.

Meu corpo, minhas escolhas, meu parto

A representação social emergente desta pesquisa relaciona-se como conceito de autonomia exercido pelas mulheres sobre seus corpos no momento do parto.

Autonomia pode ser entendida como a ampliação da capacidade de escolhas por parte das pessoas. O conceito está relacionado à ideia de liberdade, da livre decisão dos indivíduos sobre suas próprias ações e da possibilidade de traçar suas trajetórias de vida. Refere-se ainda à capacidade dos seres humanos de viverem suas vidas a partir de leis próprias. Supõe a condição de homem livre para assumir suas escolhas2727 Bardin L. Análise de conteúdo. Edição revisada e ampliada. São Paulo: Edições 70, 2011, 229p.,2828 Fleury-Teixeira P, Vaz FAC, Campos FCC, Álvares J, Aguiar RAT, Oliveira VA. Autonomia como categoria central no conceito de promoção de saúde. Cienc. saude colet. 2008;13(sup. 2):2115-22..

A compreensão do conceito de autonomia ficou evidente por parte dessas mulheres, que possuem como objetivo maior a busca pelo controle de todo o processo de parto, já que entendem que possuem direito e discernimento para fazerem suas escolhas.

O exercício da autonomia pode ser compreendido como uma característica das sociedades democráticas marcadas pelo direito a diversidade, livre expressão, liberdade de comportamentos de indivíduos e grupos, desde que respeitados os limites de danos a terceiros2929 Haeser LM, Büchele F, Brzozowski FS. Considerações sobre a autonomia e a promoção da saúde. Physis. 2012; 22(2):605-20..

O que se mostrou angustiante a essas mulheres, no entanto, é a impossibilidade de se viver o ciclo gravídico puerperal sustentado pelo princípio de autonomia dentro do modelo de atenção obstétrica hegemônico da sociedade brasileira contemporânea.

De acordo com essas mulheres, a visão de parto alicerçada no princípio de autonomia é valorizada dentro do ambiente doméstico para parir, o que as motiva para essa opção.

Eu sempre fui a favor do parto normal, mas assim, a gente vê que no hospital hoje você não consegue ter muito controle sobre seu corpo, os profissionais não te respeitam muito, não respeitam muito as suas escolhas. (E13)

Apesar de desejarem participar do seu parto e de verbalizarem suas necessidades, escolhas e preferências, as mulheres não encontram condições favoráveis para que suas necessidades de cuidado e o desejo de participação nas decisões sobre o parto sejam viabilizados3030 Sodré TM, Bonadio IC, Jesus MCP, Merighi MAB. Necessidade de cuidado e desejo de participação no parto de gestantes residentes em Londrina-PR. Texto Contexto Enferm. 2010 jul/set;19(3):452-60..

A consciência de que muito provavelmente a mulher não consiga estabelecer uma relação igualitária com o profissional de saúde no que tange às suas escolhas e às decisões tomadas no decorrer da assistência prestada, as levam à procura de alternativas capazes de propiciar esse diálogo. As mulheres que optam por um parto domiciliar buscam na relação com o profissional de saúde confiança e segurança, sentimentos construídos a partir do estabelecimento de vínculo, respeito a sua cultura, as suas escolhas e expectativas3131 Medeiros RMK, Santos IMM, Silva LR. A escolha pelo parto domiciliar: história de vida de mulheres que vivenciaram esta experiência. Esc. Anna Nery. Enferm. 2008 out/dez;12(4):765-72..

Idealmente, o profissional de saúde tem obrigação ética e legal de oferecer informações claras e completas sobre o cuidado e dar a oportunidade ao cliente de participar das decisões com base nas informações recebidas3232 Sodré TM, Merighi MAB, Bonadio IC. Escolha informada no parto: um pensar para o cuidado centrado nas necessidades da mulher. Cienc. cuid. saude. 2012;11(suplem.):115-20..

Na ótica dessas mulheres, esse diálogo de teor mais democrático não ocorre quando as mesmas estão sob os cuidados de profissionais dentro de uma instituição de saúde, como aparece nos discursos abaixo:

[...] não me senti bem, falei "não quero!" Você acha que no hospital eu ia falar não? (E9)

O domicílio possibilita atenção centrada na mulher e na sua família, uma vez que quem se encontra em outro ambiente é o profissional, o que exige um ajuste deste ao local e não mais uma adequação da mulher às rotinas e aos profissionais como é incutido no ambiente hospitalar3333 Frank TC, Pelloso SM. A percepção dos profissionais sobre a assistência a parto domiciliar planejado. Rev. Gaúch. Enferm. 2013 jan/mar; 34(1):22-29.. O excesso de autonomia profissional, praticado hoje na maioria das instituições de saúde diminui a autonomia materna3434 Pontes MGA, Lima GMB. Arte de partejar: quem protagoniza a cena?. Revista de Ciências da Saúde Nova Esperança. 2012 jan/jun; 10(2):34-46..

[...] não faz sentido para a gente, fazer um parto onde não sou eu, onde é outra pessoa que vai comandar e não do jeito que é o natural, comandado por uma instituição e tal. (E10)

[...] pontos positivos (do parto em casa): [...] você ter total controle sobre o seu corpo, então você não ser obrigada a ficar numa cama, com soro, ou restrita a um ambiente, coisas que eu acho que no hospital é muito mais difícil, [...] algumas regras que você tem que seguir, então eu acho que tudo isso atrapalha bastante. (E13)

O profissional de saúde deve promover a autonomia da mulher no parto, a começar pelas informações cientificamente embasadas e não tendenciosas, a fim de que elas possam tomar decisões compartilhadas e adequadamente fundamentadas3131 Medeiros RMK, Santos IMM, Silva LR. A escolha pelo parto domiciliar: história de vida de mulheres que vivenciaram esta experiência. Esc. Anna Nery. Enferm. 2008 out/dez;12(4):765-72.. Ou seja, deve estar disponível para um diálogo esclarecedor e dinâmico, integrando um ambiente de relações horizontais, onde a construção de conhecimento aconteça norteada pela obstetrícia baseada em evidências3434 Pontes MGA, Lima GMB. Arte de partejar: quem protagoniza a cena?. Revista de Ciências da Saúde Nova Esperança. 2012 jan/jun; 10(2):34-46..

A ênfase dada à autonomia quando se discute o local de parto parece estar relacionada à necessidade de transformação dos cenários atuais do parto, revelando uma crítica à impessoalidade e inflexibilidade dos ambientes hospitalares, onde prevalece o modelo hegemônico tecnocrático de atendimento e exige um papel passivo da mulher3535 Rabelo LR, Oliveira DL. Percepções de enfermeiras obstétricas sobre sua competência na atenção ao parto hospitalar. Rev. Esc. Enferm. USP. 2010 jan/fev;44(1):213-20..

Reforçando essa ideia, existem evidências científicas que demonstram que a democratização das relações entre profissionais de saúde e usuários, em um modelo de corresponsabilidade, e a valorização da autonomia do usuário em relação à escolha da terapêutica e dos procedimentos estão associadas a melhores resultados em saúde3636 Soares JCRS, Camargo Júnior KR. A autonomia do paciente no processo terapêutico como valor para a saúde. Interface: Comunicacao, Saúde, Educacao. 2007 jan/abr; 11(21):65-78..

Assim, o principal desafio dos profissionais está na transformação de suas atitudes para agir de maneira ética e científica em favor do cuidado integral e focado nas necessidades da mulher e da sua família, e não na rotina hospitalar ou em seus interesses particulares. O profissional de saúde deve estar disposto a adotar novas ideias e caminhar junto com o movimento de humanização do cuidado ao parto, consciente de que as mulheres têm o seu acervo de conhecimentos e necessitam ser ouvidas2929 Haeser LM, Büchele F, Brzozowski FS. Considerações sobre a autonomia e a promoção da saúde. Physis. 2012; 22(2):605-20..

O processo de informação fortalece as mulheres em suas escolhas, enquanto a ausência de esclarecimentos gera à parturiente vulnerabilidade e falta de conhecimento quanto a sua condição3434 Pontes MGA, Lima GMB. Arte de partejar: quem protagoniza a cena?. Revista de Ciências da Saúde Nova Esperança. 2012 jan/jun; 10(2):34-46..

É um parto de muita entrega e de consciência sabe, de entrega e de responsabilidade, porque você tem que assumir a responsabilidade daquilo que você está fazendo e eu acho que é diferente, quando você está no hospital você consegue delegar mais essa responsabilidade para o médico [...] quando você assume um parto em casa, você tem que bancar a sua responsabilidade, você divide a responsabilidade com a equipe, não é só responsabilidade deles. (E7)

Para as mulheres participantes deste estudo, o ambiente domiciliar e os profissionais que nele atendem, concordam, favorecem e estimulam essa relação de corresponsabilidade no que tange à tomada de decisões, possibilitando o livre exercício da autonomia, dando voz e autoridade a essas mulheres. Esses aspectos estão presentes nos resultados encontrados em recentes estudos sobre o tema55 Lessa HF, Tyrrell MAR, Alves VH, Rodrigues DP. Informação para a opção pelo parto domiciliar planejado: um direito de escolha das mulheres. Texto Contexto Enferm. jul/set;2014; 23(3):665-72.,3131 Medeiros RMK, Santos IMM, Silva LR. A escolha pelo parto domiciliar: história de vida de mulheres que vivenciaram esta experiência. Esc. Anna Nery. Enferm. 2008 out/dez;12(4):765-72.,3737 Santos AA, Nunes IM, Coelho EAC, Souza KRF, Torres TCC, Lima JS. Discurso de mulheres que vivenciaram o parto domiciliar como opção de parto. Rev. Enferm. UFPE [on line] 2014 ago; [citado 2015 dez 9];8(8): [aprox. 6 telas] 2716-22. Disponível em: http://www.revista.ufpe.br/revistaenfermagem/index.php/revista/article/view/4626/pdf_5887
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Na ótica dos profissionais de saúde atuantes em parto domiciliar, o resgate à autonomia é um dos principais requisitos para o resgate da humanização do parto3333 Frank TC, Pelloso SM. A percepção dos profissionais sobre a assistência a parto domiciliar planejado. Rev. Gaúch. Enferm. 2013 jan/mar; 34(1):22-29.. No domicílio, a mulher se torna sujeito ativo de seu parto, trazendo para si o próprio parto e o controle sobre seu corpo, tendo a oportunidade de atuar, de fazer suas escolhas com segurança e sem se inibir. Em casa, ela está livre para expressar seus sentimentos e ser autêntica no seu comportamento e conduta3333 Frank TC, Pelloso SM. A percepção dos profissionais sobre a assistência a parto domiciliar planejado. Rev. Gaúch. Enferm. 2013 jan/mar; 34(1):22-29..

[...] eu senti muito essa questão delas deixarem que o parto fosse meu e do meu marido, então o parto não era delas, era meu, nosso, e então tudo o que foi feito, mesmo quando foi feito o toque, era tudo com o meu consentimento, não era nada obrigado, algumas sugestões eu acatei, outras não, e tudo muito tranquilo. (E13)

As entrevistas mostraram que essas mulheres não estão resignadas ao modelo de atenção hospitalar instaurado. Pelo contrário, reconhecem todas as contradições e fragilidades do sistema e conseguem ultrapassar essas barreiras por meio, principalmente, de um processo de busca de informações. A opção pelo parto domiciliar está relacionada ao nível de escolaridade mais alto, o que reflete na facilidade de acesso à informação e ao conhecimento biomédico, permitindo análise crítica às práticas obstétricas e possibilidade de argumentação e sustentação das decisões tomadas1313 Feyer ISS, Monticelli M, Knobel R. Perfil de casais que optam pelo parto domiciliar assistido por enfermeiras obstétricas. Esc. Anna Nery. 2013 abri/jun;17(2):298-305..

Assim, essas mulheres adquirem informações oferecidas pelos estudos e evidências científicas atuais, se apropriam desse saber, têm condições de questionar as práticas atuais e, a partir de então, se sentem seguras para realizar uma escolha informada, consciente e fundamentada.

Assim, como aparece em outras pesquisas, a aquisição de informação parece ser tanto o ponto de partida de todo o processo como o grande sustentáculo para a decisão de parir em casa55 Lessa HF, Tyrrell MAR, Alves VH, Rodrigues DP. Informação para a opção pelo parto domiciliar planejado: um direito de escolha das mulheres. Texto Contexto Enferm. jul/set;2014; 23(3):665-72.,3131 Medeiros RMK, Santos IMM, Silva LR. A escolha pelo parto domiciliar: história de vida de mulheres que vivenciaram esta experiência. Esc. Anna Nery. Enferm. 2008 out/dez;12(4):765-72.,3737 Santos AA, Nunes IM, Coelho EAC, Souza KRF, Torres TCC, Lima JS. Discurso de mulheres que vivenciaram o parto domiciliar como opção de parto. Rev. Enferm. UFPE [on line] 2014 ago; [citado 2015 dez 9];8(8): [aprox. 6 telas] 2716-22. Disponível em: http://www.revista.ufpe.br/revistaenfermagem/index.php/revista/article/view/4626/pdf_5887
http://www.revista.ufpe.br/revistaenferm...
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Já que o parto domiciliar está diretamente ligado ao nível escolar e financeiro mais elevado, uma política de inclusão do mesmo no Sistema Único de Saúde (SUS) parece ser uma alternativa para oferecer essa modalidade de atendimento à população menos favorecida.

No Brasil, o Hospital Sofia Feldman localizado na cidade de Belo Horizonte/MG completou, recentemente, um ano de atendimento aos partos domiciliares realizados por enfermeiras obstetras e financiados exclusivamente pelo SUS. Trata-se de uma experiência pioneira e que vem dando bons resultados3838 Hospital Sofia Feldman - cuidados de mãe para filho [homepage na internet]. Sofia comemora um ano de parto domiciliar. 2015 jan [citado em 10 de jan 2015] Disponível em: http://www.sofiafeldman.org.br/2015/01/05/sofia-comemora-um-ano-de-parto-domiciliar/
http://www.sofiafeldman.org.br/2015/01/0...
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Segundo os depoimentos, o ambiente hospitalar as enxerga e lhes incuti características não compatíveis com suas visões de parto, enquanto parturientes. A medicalização do corpo feminino durante o trabalho de parto e no momento do parto é um dos clássicos exemplos na atualidade, que acaba por converter mulheres e corpos saudáveis em paciente doentes, fragilizadas e que necessitam de ajuda externa para vencer o grande "obstáculo" que é parir.

Esse evento é compreendido como um reflexo da medicalização social, descrita como um processo sociocultural complexo que transforma em necessidades médicas as vivências, os sofrimentos e as dores que antes eram administradas no próprio ambiente familiar ou comunitário3838 Hospital Sofia Feldman - cuidados de mãe para filho [homepage na internet]. Sofia comemora um ano de parto domiciliar. 2015 jan [citado em 10 de jan 2015] Disponível em: http://www.sofiafeldman.org.br/2015/01/05/sofia-comemora-um-ano-de-parto-domiciliar/
http://www.sofiafeldman.org.br/2015/01/0...
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Assim, a medicalização do parto, um fato já tão enraizado no atendimento institucionalizado de assistência ao parto no Brasil, projeta sob as parturientes a visão de sujeitos dependentes, incapazes de lidar de forma autônoma com os eventos adversos que podem e devem ser vivenciados durante o trabalho de parto e no parto.

Essa construção social contribuiu para o declínio da capacidade da mulher em lidar com o fenômeno do parto, sua imprevisibilidade, as dores inerentes ao trabalho de parto, dentre outros3939 Leão MRC, Riesco MLG, Schneck CA, Angelo M. Reflexões sobre o excesso de cesarianas no Brasil e a autonomia das mulheres. Cienc. saude colet. 2013 ago; 18(8):2395-2400.. Dessa forma, a grande maioria das mulheres se sente incapaz de viver a experiência de parir e delega ao profissional/instituição de saúde o poder e a responsabilidade para conduzir esse processo.

No entanto, as mulheres que optam pelo parto domiciliar não se sentem fracas ou amedrontadas pelo evento do trabalho de parto e parto. De maneira oposta e devido a toda informação absorvida previamente, aguardam de forma natural e celebram com orgulho e grande satisfação a experiência de parir.

Assim, em oposição ao excesso de intervenções médicas no processo de gestação e parto, observa-se, na última década, uma expansão significativa de movimentos de usuárias e profissionais de saúde que se posicionam criticamente em relação a essa realidade3939 Leão MRC, Riesco MLG, Schneck CA, Angelo M. Reflexões sobre o excesso de cesarianas no Brasil e a autonomia das mulheres. Cienc. saude colet. 2013 ago; 18(8):2395-2400., o que nos permite inferir que a gradativa procura pela opção do parto em casa é um dos mais evidentes retratos da insatisfação e frustração com o sistema predominante.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados deste estudo nos permitem reconhecer que a representação social compartilhada pelas mulheres, que fazem a opção pelo parto domiciliar, está intrinsecamente relacionada à busca pela experiência do trabalho de parto e partos fundamentados no princípio da autonomia e no resgate ao empoderamento feminino.

Observa-se que essas mulheres se mostram insatisfeitas com o atual modelo de atenção obstétrica, praticado dentro das instituições hospitalares e, portanto, buscam uma alternativa capaz de suprir e respeitar as suas expectativas e concepções sobre o evento do parto.

Segundo as participantes, o modelo obstétrico institucionalizado 1) oferece um atendimento baseado em normas e rotinas inflexíveis, 2) apropria-se do momento de fragilidade materna para impor condutas e procedimentos, 3) não é favorável ao diálogo entre cliente e profissional de saúde, 4) não valoriza as decisões maternas, 5) tenta disciplinar os corpos e seus processos naturais de acordo com os interesses pessoais e/ou institucionais e 6) enaltece a visão de parto como um processo patológico.

Dessa forma, parir em casa não se mostra uma opção de mulheres pouco informadas ou adeptas de um modismo atual. Trata-se de uma opção concreta, fundamentada em amplo e atual conhecimento sobre o tema, e que de forma paralela demonstra uma clara insatisfação com o modelo obstétrico hospitalar vigente.

Considera-se que este estudo contribui para enriquecer o conhecimento acerca desse tema, principalmente, para os profissionais envolvidos com a assistência ao parto, além de colaborar com futuras pesquisas.

Assim, espera-se que todas as reflexões levantadas neste estudo representem um elemento propulsor ao questionamento e ao debate da assistência obstétrica praticada na atualidade, de forma que esse modelo possa ser repensado e readequado, visando o oferecimento de uma prática obstétrica segura, respeitosa e prazerosa às mulheres brasileiras.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    20 Set 2015
  • Aceito
    21 Nov 2015
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