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Saberes e práticas no cuidado centrado na pessoa com feridas

Conocimiento y práctica en la atención centrada en la persona con heridas

Resumo

Objetivo:

Descrever os saberes e práticas de clientes no cuidado com feridas.

Métodos:

Estudo qualitativo, descritivo do tipo etnográfico, realizado de janeiro a maio de 2014, com 20 clientes com algum tipo de ferida em um ambulatório de curativos de uma Unidade Básica de Saúde do Município de Niterói. Os dados foram coletados por meio de observação participante e entrevistas semiestruturadas e, posteriormente, submetidas à análise de conteúdo.

Resultados:

A categoria saberes e práticas dos clientes com feridas destacou a trajetória e evolução das feridas, a dependência do cuidado por um profissional de saúde e o uso de práticas alopáticas e populares advindas de informações com familiares e pessoas de convivência.

Conclusão:

Conhecer saberes e práticas dos clientes no cuidado com feridas permite o desenvolvimento do cuidado cultural e favorece a elaboração de um plano de cuidados congruente com a sua cultura, tornando-os mais participativos no processo de cuidar e se cuidar.

Palavras-chave:
Enfermagem; Ferimentos e Lesões; Plantas Medicinais; Cultura; Atenção Primária à Saúde

Resumen

Objetivo:

Describir los conocimientos y prácticas de los clientes en el cuidado de heridas.

Métodos:

Estudio cualitativo, descriptivo de tipo etnográfico, llevado a cabo de enero a mayo de 2014, con 20 clientes con algún tipo de herida en um curación ambulatorio de una unidad básica de salud en el municipio de Niteroi. Los datos fueron recogidos a través de observación participante y entrevistas semi estructuradas y posteriormente sometieron a análisis de contenido.

Resultados:

La categoría conocimientos y prácticas de los clientes destacan la historia y la evolución de las heridas, la dependencia de la atención por un profesional de la salud y el uso de prácticas alopáticas y populares provenientes de información con miembros de la familia y personas de convivencia.

Conclusión:

Con conocimientos y prácticas de los clientes en el cuidado de las heridas permite el desarrollo de los cuidados culturales y promueve el desarrollo de un plan de cuidado congruente con su cultura, haciéndolos más participativos en el proceso de cuidado y cuidarse.

Palabras clave:
Enfermería; Heridas y Traumatismos; Plantas Medicinales; Cultura; Atención Primaria de Salud

Abstract

Objective:

Describe the knowledge and practices of clients in wound care.

Methods:

A qualitative descriptive study of the ethnographic nature was performed from January to May 2014, including 20 clients with some type of wound in an outpatient clinic for wound care of a Primary Health Unit in the city of Niteroi, Southeastern Brazil. Data were collected through participant observation and semi-structured interviews and subsequently subjected to content analysis.

Results:

The category defined as "knowledge and practices of customers" emphasized the history and development of wounds, the dependence on care provided by health care professionals and the use of allopathic and popular practices originated from information obtained with family members and individuals who share their lives with clients.

Conclusion:

To identify knowledge and practices of clients in wound care allows the development of cultural care and promotes the preparation of a health care plan which is coherent with their culture, enabling them to be more participatory in the process of care and caring for themselves.

Keywords:
Nursing; Wounds and Injuries; Plants, Medicinal; Culture; Primary Health Care

INTRODUÇÃO

Estudos e pesquisas que abordam a questão do cuidado com feridas, em sua maioria, revelam uma preocupação com a objetividade, adotando uma perspectiva curativista cujo foco é o tratamento da ferida com pouca ênfase na questão educativa voltada para a pessoa com feridas e para seus conhecimentos e experiências no tratamento e prevenção das mesmas. Diante disso, há necessidade de práticas de cuidado que possibilitem superar a dimensão biológica-visível, transcendendo os conhecimentos sobre os aspectos físicos e psíquicos das lesões.11 Jacondino CB, Severo DF, Rodrigues KR, Lima L, Einhardt RR, Amestoy SC. In-service education: qualification of the nursing team on wounds treatment. Cogitare Enferm [internet] 2010 [cited 2016 Mar 25]; 15(2):314-8. Available from http://revistas.ufpr.br/cogitare/article/view/17867/11659. http://dx.doi.org/10.5380/ce.v15i2.17867
http://revistas.ufpr.br/cogitare/article...
,22 Busanello J, Silva FM, Sehnem GD, Poll MA, Deus LML, Bohlke TS. Assistência de enfermagem a portadores de feridas: tecnologias de cuidado desenvolvidas na Atenção Primária. Rev Enferm UFSM [internet] 2013 [cited 2016 Mar 25]; 3(1):175-84. Available from http://periodicos.ufsm.br/reufsm/article/view/8532/pdf. http://dx.doi.org/10.5902/217976928532
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Por outro lado, estudos apontam que a população tem o hábito de usar recursos populares antes de buscar o serviço de saúde tais como chás, plantas, frutos, cascas e a religião/fé. Os aspectos e práticas do saber popular podem ser importantes aliados na busca por uma assistência mais eficaz à saúde, emergindo alternativas diversas, tais como o uso de plantas com propriedades medicinais, inclusive no contexto do tratamento caseiro de feridas, pois essa é uma prática que persiste e resiste às inovações presentes no campo das ciências biomédicas.33 Alcoforado CLGC, Espírito Santo FH. Saberes e práticas dos clientes com feridas: um estudo de caso no município de Cruzeiro do Sul, Acre. Rev Min Enferm [internet] 2012 [cited 2016 Mar 23]; 16(1):11-7. Available from http://www.enf.ufmg.br/site_novo/modules/mastop_publish/files/files_4fccf66a17245.pdf. http://www.dx.doi.org/S1415-27622012000100002
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4 Badke MR, Budó MLD, Alvim NAT, Zanetti GD, Heisler EV. Popular knowledge and practices regarding healthcare using medicinal plants. Texto Contexto Enferm [internet] 2012 [cited 2016 Mar 20]; 21(2):363-70. Available from http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072012000200014. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-07072012000200014
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5 Silva PN, Almeida OAE, Rocha IC. Topical therapy in the treatment of chronic wounds. Enfermería Global [internet] 2014 [cited 2016 Mar 20]; 13(1):46-58. Avaiable from http://revistas.um.es/eglobal/article/view/165461/156731
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-66 Araújo MA, Lemos ICS, Menezes IRA, Fernandes GP, Kenrtopf MR. Uso de plantas medicinais para o tratamento de feridas. Rev Interd [internet] 2015 [cited 2016 Mar 20]; 8(2):60-7. Available from http://revistainterdisciplinar.uninovafapi.edu.br/index.php/revinter/article/view/631/pdf_212
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A pessoa que vive com uma ferida pode desenvolver algumas problemáticas no decorrer da vida, tanto de ordem física quanto emocional. Física, pois pode incapacitar para algumas atividades cotidianas; e emocional porque pode afetar psiquicamente a vida do indivíduo, influenciando seu modo de ser e estar no mundo.77 Waidman MAP, Rocha SC, Correa JL, Brischiliare A, Marcon SS. O cotidiano do indivíduo com ferida e sua saúde mental. Texto contexto Enferm [internet] 2011 [cited 2016 Mar 20]; 20(4):691-9. Available from http://www.scielo.br/pdf/tce/v20n4/07.pdf. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-07072011000400007
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Dessa forma, cabe aos profissionais de saúde compreender as variadas dimensões que compõem o processo de viver e ser saudável: biológica, social, cultural e subjetiva pois, as questões inerentes à saúde e à doença precisam ser pensadas a partir dos contextos socioculturais, buscando integrar os saberes e as práticas dos clientes com feridas ao conhecimento científico que norteia as práticas dos profissionais de saúde.88 Melo LP, Silva NP, Silva KCL, Ponte MPTR, Gualda DMR. Representations and care practices with a chronic wound of the inferior member: an anthropological perspective. Cogitare Enferm [internet] 2011 [cited 2016 Mar 25]; 16(2):303-10. Available from http://revistas.ufpr.br/cogitare/article/view/20804/14215. http://dx.doi.org/10.5380/ce.v16i2.20804
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A vivência do processo saúde-doença pelos indivíduos de cada sociedade está enraizada nos valores, crenças, práticas, representações, imaginário, significados, experiências individuais e coletivas, reafirmando o caráter sociocultural dos fenômenos que o compõe, além de fatores psicobiológicos nele envolvidos em que a cultura implica em um sistema de signos passíveis de interpretação.99 Melo LP, Cabral ER, Santos Júnior JA. The health- diseaseprocess: a reflection based on medical anthropology. Rev Enferm UFPE Online [internet] 2009 [cited 2016 Mar 10]; 3(4):426-32. Available from http://www.revista.ufpe.br/revistaenfermagem/index.php/revista/article/viewFile/138/pdf_993 doi: 10.5205/reuol.581-3802-1-RV.0304200953
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Na enfermagem, na perspectiva de Leininger, o processo saúde-doença é influenciado pela cultura e, no desenvolvimento de ações congruentes, há que se considerar as diferenças entre a cultura profissional e pessoal dos envolvidos no cuidado. Analisar o contexto cultural do cliente possibilita identificar as aproximações entre o cuidado popular e profissional, a partir de uma realidade específica, com mais qualidade de forma a se alcançar o compartilhamento de saberes.1010 Leininger MM, Mcfarland MR. Culture care diversity and universality: a worldwide nursing theory. 2ª ed. New York: McGraw-Hill; 2006. 413p

Ao considerar a realidade e a cultura, emerge a importância do cuidado cultural congruente que envolve o encontro entre o sistema de saúde popular e o profissional de saúde. O sistema popular de saúde é aquele que abarca os conhecimentos e práticas desenvolvidos pela família, vizinhos, comunidade e tem um significado muito grande, pois é aprendido e transmitido de geração em geração. Já o sistema profissional de saúde é desenvolvido por profissionais que oferecem serviços de cuidado ou de cura organizados. Ao interagir com os clientes, a enfermagem deve usar ações de cuidado de forma a preservá-las, negociá-las ou repadronizá-las, sempre em busca do cuidado cultural congruente. Tais ações organizadas e harmonizadas objetivam o bem-estar e a autonomia do cliente e do profissional, evitando a imposição cultural.1010 Leininger MM, Mcfarland MR. Culture care diversity and universality: a worldwide nursing theory. 2ª ed. New York: McGraw-Hill; 2006. 413p

Diante disso, o cuidado aos clientes com feridas tem como foco não a ferida, mas o cliente cuja vivência engloba saberes e práticas próprias, que precisam ser conhecidos para o planejamento e implementação dos cuidados ao mesmo. Então, na sua prática profissional com a clientela portadora de feriadas, é fundamental que o enfermeiro propicie uma aproximação entre o conhecimento científico e o saber popular, respeitando a diversidade cultural humana.

Entretanto, a assistência à saúde, tradicionalmente, é caracterizada pelo modelo biomédico, cujo foco incide sobre a doença e a cura a partir de parâmetros biológicos, e como base a relação vertical entre médico e paciente, para a qual os determinantes psicossociais e culturais interessam pouco para o diagnóstico e para a terapêutica.1111 Junges JR, Barbiani R, Soares NA, Fernandes RB, Panizzi LMS. Saberes populares e cientificismo na estratégia saúde da família: complementares ou excludentes? Ciência Saúde Coletiva [internet] 2011 [cited 2016 Mar 20]; 16(11):4327-35. Available from http://www.scielo.br/pdf/csc/v16n11/a05v16n11.pdf. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232011001200005
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Assim, buscar conhecer os saberes e práticas dos clientes no cuidado com feridas, aproxima-se da perspectiva dialógica libertadora de Freire, pois na sua concepção, todas as pessoas são dotadas de saberes e esses conhecimentos provêm da reflexão que o homem faz do contexto concreto, isto é, das experiências vividas na realidade na qual está inserido, cumprindo também a função de analisar e refletir essa realidade, no sentido de apropriar-se de um caráter crítico sobre ela.1212 Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 43ª ed. São Paulo: Paz e Terra; 2011. 144p

Dessa forma, a relação dialógica entre quem cuida e quem é cuidado é essencial para que os saberes, práticas e experiências sejam compartilhados e, dessa maneira, no caso deste estudo, o cliente com feridas possa significar as orientações recebidas embasadas em seu contexto cultural e em suas trajetórias pessoais.

A partir de um cenário, onde os profissionais da saúde continuam prestando orientações técnicas, fragmentadas e prescritivas, sem levar em consideração a multidimensionalidade do cuidado, no que se refere aos aspectos sociais, culturais e históricos do cliente, o estudo tem como relevância possibilitar um maior entendimento sobre as crenças, os saberes e as práticas dos clientes no cuidado com feridas, para que se possa oferecer um cuidado culturalmente congruente com as necessidades dos sujeitos.

Esta pesquisa teve como objetivo descrever os saberes e práticas de clientes no cuidado com feridas.

MÉTODOS

Pesquisa qualitativa com delineamento descritivo, do tipo etnográfica, desenvolvida em um ambulatório de curativos de uma Unidade Básica de Saúde no Município de Niterói, Rio de Janeiro.

A seleção dos participantes foi por saturação teórica,1313 Pires AP. Amostragem e pesquisa qualitativa: ensaio teórico e metodológico. In: Poupart J, Deslauriers JP, Groulx LH, Lapemère A, Mayer R, Pires AP, organizadores. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis: Editora Vozes; 2008. p. 154-211. tendo como amostra 20 clientes com algum tipo de ferida, que realizavam os curativos no referido ambulatório. Como critérios de inclusão: clientes de ambos os sexos e com idade igual ou superior a 18 anos. E como critérios de exclusão: clientes com alterações psíquicas e ou mentais que prejudicassem a participação na pesquisa.

A coleta de dados ocorreu entre os meses de janeiro a maio de 2014 com a ida ao campo de pesquisa para a realização da observação simples e, em seguida, para a observação participante por meio de um roteiro construído pelos autores. Essas observações foram realizadas três vezes na semana, totalizando 12 horas semanais, com o objetivo de captar o modo que os clientes chegavam na unidade básica de saúde, as suas falas, as dificuldades enfrentadas, o funcionamento da sala de curativos e a sua infraestrutura.

Os dados da observação simples e participante1414 Minayo MCS. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 29ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes; 2010. 114p foram registrados em diário de campo. Os registros consistiram na descrição escrita de todas as manifestações que o observador percebeu do campo de pesquisa e dos clientes. Os registros eram datados, sinalizando os sujeitos envolvidos, o local, a situação observada, as condições que poderiam interferir no fato, a influência da rotina, as normas institucionais e as impressões do observador.

As entrevistas foram realizadas do lado de fora da sala de curativos, nos bancos de espera, logo em seguida ao atendimento, com o objetivo de captar os saberes e práticas dos referidos clientes no cuidado com feridas. Foi utilizado um roteiro semiestruturado com as seguintes questões: O que costuma usar geralmente para cuidar da ferida? Utiliza alguma outra forma para tratamento da ferida que não seja a medicamentosa? Qual? Onde aprendeu esta outra forma de tratamento? Com quem? Como faz a aplicação? Quais resultados espera conseguir? E quais resultados acha que já conseguiu?

Foi solicitado aos participantes a permissão para o uso de gravador nas entrevistas, a fim de possibilitar o registro na íntegra dos seus depoimentos, os quais foram identificados por nomes fictícios. Para fins de caracterização dos clientes, procedeu-se à coleta das seguintes informações: idade, sexo, estado civil, escolaridade, religião, comorbidades e o tipo de ferida.

A operacionalização da análise de conteúdo1515 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa (PT): Presses Universitaires de France; 2009. 281p foi pautada nas seguintes etapas: pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados obtidos e interpretação. Tais etapas iniciaram-se pela leitura repetida e atentiva das transcrições das entrevistas realizadas. De acordo com o objetivo do estudo, foram definidos os trechos significativos para a posterior elaboração das categorias temáticas.

A interpretação do material foi realizada a partir da interlocução dos resultados com as evidências científicas referentes à temática. Além disso, aplicaram-se os conceitos de Leininger1010 Leininger MM, Mcfarland MR. Culture care diversity and universality: a worldwide nursing theory. 2ª ed. New York: McGraw-Hill; 2006. 413p (referencial teórico e metodológico), por meio da cultura e do cuidado e Freire1212 Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 43ª ed. São Paulo: Paz e Terra; 2011. 144p (referencial teórico), por meio do diálogo, cultura, conscientização e libertação, no que tange ao contexto cultural de práticas e saberes sobre o cuidado em saúde.

Após a análise de conteúdo, foram identificados seis temas: desafios no cuidado em saúde, a ferida, o cuidado, o poder do profissional, as práticas populares e o entorno do cuidado e as doenças associadas. Posteriormente, os temas comuns emergentes foram agrupados em categorias em que, nesta pesquisa, foi destacada a categoria: saberes e práticas dos clientes com feridas, onde se observou a descrição da evolução da ferida, o cuidado por meio da associação de práticas alopáticas e populares e o conhecimento de práticas alternativas no cuidado com as feridas.

A pesquisa seguiu o preconizado na Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde, tendo sido submetido ao Comitê de Ética da instituição, sob o nº CAE nº 26647614.3.0000.5243 e aprovado pelo parecer nº 559.436.

RESULTADOS

Participaram do estudo 20 clientes, dos quais 14 (70%) do sexo masculino e seis (30%) do sexo feminino, com média de 53,25 anos; quanto ao estado civil, dez (50%) casados, seis solteiros (30%), dois viúvos (10%) e dois divorciados (10%). Quanto à escolaridade, seis (30%) com ensino fundamental completo, seis (30%) com ensino médio completo, cinco (25%) com ensino fundamental incompleto, um (5%) analfabeto, um (5%) ensino superior incompleto e um (5%) superior completo. A religião predominante declarada foi a católica com 12 (60%) clientes, seguida de cinco (25%) evangélicos, dois (10%) referiram não ter religião e um (5%) declarou ser espírita. Quanto às doenças associadas dez (41,6%) apresentavam hipertensão arterial, seis (25%) diabetes mellitus e oito (33,4%) negaram doenças. O tipo de ferida predominante entre os participantes foi por corte e mordedura de animais de estimação sete (35%), úlcera venosa cinco (25%), pé diabético quatro (20%) e úlcera arterial e abscesso dois (10%), respectivamente.

Saberes e Práticas dos clientes com feridas

Essa categoria destacou a descrição da evolução da ferida, o cuidado por meio da associação de práticas alopáticas e populares e o conhecimento de práticas alternativas no cuidado.

Sobre a evolução e busca de tratamento no ambulatório de feridas, os clientes descreveram a evolução das suas feridas, mas foi possível identificar que a busca pelo serviço de saúde ou pela ajuda médica era realizada mediante a piora da ferida, conforme apresentado nos relatos a seguir:

Há muito tempo, eu tava sentindo uma quentura na minha perna, ela latejava, sentia uma queimação, uma ardência, uma coceira. Não sei te dizer ao certo o que eu sentia (...) Era uma mistura disso tudo aí que te falei. Aí comecei a coçar(...) aí de tanto coçar abriu uma feridinha, era bem pequenininha e só depois que eu vi que a coisa tava feia é que procurei um médico. (Raimundo)

Já algum tempo eu forcei a minha perna né? Bom como eu trabalhei fora, com o tempo eu fui percebendo que eu tinha umas "aveias" bem diferentes, que eu fiquei encucada (...) Aí, passado um tempo eu senti no meu ossinho aqui, no tornozelo tava meio altinho, coçava muito, pensei que era mosquitinho, fui coçando, até que um dia de tanto eu coçar, eu tava dentro do box e estouro a veia. Enfim, aquela coisa toda. Você sabe, a veia custou a estancar, aquela coisa toda. Na mesma semana eu bati na quina do box, aí abriu a ferida. Não procurei ajuda por medo(...) não fui ao médico. Aí o negócio foi se alastrando! Eu continuando a forçar a perna né? Aí quando vi que não tinha mais jeito tive que procurar o médico. (Sebastiana)

A falta de tempo, ter que cuidar da casa e dos filhos, ir ao trabalho, a distância entre a casa e a unidade de saúde foram os fatores que os clientes relataram para a demora na busca por atendimento no ambulatório. Outros alegaram que demoraram a procurar ajuda porque pensavam que aquela ferida iria melhorar com o tempo.

No que se refere ao cuidado com a ferida, os clientes relataram a frequência de ida ao ambulatório, como realizavam a troca dos curativos e o que utilizavam nas suas feridas, destacando a higiene no cuidado para a cicatrização da ferida:

Cuido aqui e cuido em casa (...). Em casa eu faço todo dia porque tem que tomar banho né? Aí aproveito para fazer. (José)

De vez em quando venho para pegar só o material, como hoje, porque como não tomei banho, não ia adiantar fazer o curativo aqui (...) prefiro pegar o material e quando eu chegar em casa tomo banho e depois faço o curativo. (Raimundo)

Eu uso o soro e a colagenase, mas, assim, eu não faço todo dia o curativo. O certo seria fazer todo dia, porque essa secreção que fica de um dia para o outro ela não pode ficar não. (Antonio)

A associação do hábito da higiene corporal com a possibilidade de melhora das feridas foi identificada nas falas de alguns clientes, o que pode também estar relacionado à sensação de bem-estar proporcionado pelo alívio da sensação frente à presença de secreção ou mesmo do odor advindo da ferida.

Entretanto, alguns clientes relataram fazer a troca dos seus curativos apenas no ambulatório, demonstrando dependência do cuidado pelo profissional da saúde, conforme as falas a seguir:

Eu não faço nada em casa não. Quando abre eu venho aqui, mas em casa não cuido. Só espero pra vir aqui. Faço aqui e espero sarar. (Sebastião)

Eu só faço aqui no posto mesmo. Eu só faço quando molha, mas é muito difícil molhar. Eu não faço em casa porque eu não acho higiênico. Aqui tem todo cuidado né?! (João)

Com relação ao conhecimento de outras formas de cuidar da ferida, que não a medicamentosa, os clientes descreveram conhecer outras formas alternativas de cuidado que aprenderam com outras pessoas como mães, tias e avós, mas demonstraram desconfiança quanto ao seu uso por não ser legitimado como científico, de acordo com as falas:

Minha avó disse que a casca de caju é boa pra cicatrizar a ferida, mas nunca usei não moça. Pode até dar certo, mas não é remédio, né? (Raimundo)

Nunca usei chá, planta, essas coisas, porque eu sou medrosa, tenho medo! Mas minha tia me falou de um tal de bambu, tipo um capim, que dentro dele tem uma água que dizem que serve pra cicatrizar. (Sebastiana)

A casca da aroeira. Minha mãe diz que é pra fazer um chá e banhar a ferida, mas eu nunca usei. E também não acredito que isso ajuda na cicatrização. Eu não usaria, nem pra testar. Eu acho que vai melhorar se eu tomar um antibiótico, colocar uma pomada. (Joana)

Embora o conhecimento acerca de práticas populares seja passado de geração em geração, os clientes relataram medo em usar algo (des)conhecido no cuidado da ferida, principalmente, quando esse saber não vem de um profissional.

Os clientes, a partir de suas experiências, já traziam saberes tanto relacionados à cicatrização de feridas quanto às práticas alimentares associadas ao controle de outras doenças, como hipertensão arterial e diabetes mellitus, que podem interferir no cuidado com as mesmas. Entretanto, alguns clientes descreveram ter feito uso de práticas alternativas no cuidado em saúde e das suas feridas, como caju, saião, aroeira e cebola, mas pararam de utilizar após começarem a frequentar o ambulatório seguindo orientações dos profissionais de saúde da unidade:

Na ferida eu já usei a casca de caju, mas, depois que eu vim aqui no posto, o médico disse pra só usar a colagenase e o sulfato de prata. (Antonio)

O saião é bom porque puxa a infecção. Eu já usei na minha ferida, puxou bem a secreção, mas depois que o médico proibiu nunca mais usei. (Sebastião)

Para baixar a pressão, eu conheço pata de vaca e água de berinjela... faz um chá pra tomar. (Antonio)

Comer cebola na comida, é bom pra cicatrizar ferida. O pepino, o inhame... quanto mais verde você comer, mais rápido vai melhorar a ferida. (Josélia)

A aroeira é boa pra colocar em cima da ferida, faz um chá com essa planta e depois joga em cima do machucado. (Pedro)

Outra prática identificada nos relatos dos clientes foi a questão da religião/fé, entendida como uma forma de suporte e ajuda na cicatrização das feridas e recuperação da saúde:

Eu não acredito nessas coisas não. Acho que só o poder de Deus cura. (Josélia)

A gente que tem fé acredita que a ferida vai sarar... (Sebastiana)

Só acredito nos mandamentos de Jesus. Eu tenho fé que esse machucado vai melhorar. Então, só isso que importa. (Cosme)

A gente que tem fé acredita que a ferida vai sarar... (Sebastiana)

Também tô na igreja... tô pedindo a Deus, faço uma oração, aí tá melhorando. Só vou na igreja pra orar... faço oração de manhã, de noite. Quando vou dormir peço a Deus. (Hélio)

DISCUSSÃO

Apesar do estudo se desenvolver em uma unidade básica de saúde e a maioria dos participantes da pesquisa ser do sexo masculino, confrontando os dados da literatura, esse resultado é justificado pelo fato dos homens procurarem a sala de curativos mediante a piora da ferida, e estudos mostram que o cuidado não é visto como uma prática masculina.66 Araújo MA, Lemos ICS, Menezes IRA, Fernandes GP, Kenrtopf MR. Uso de plantas medicinais para o tratamento de feridas. Rev Interd [internet] 2015 [cited 2016 Mar 20]; 8(2):60-7. Available from http://revistainterdisciplinar.uninovafapi.edu.br/index.php/revinter/article/view/631/pdf_212
http://revistainterdisciplinar.uninovafa...
,1616 Badke MR, Somavilla CA, Heisler EV, Andrade A, Budó MLD, Garlet TMB. Saber popular: uso de plantas medicinais como forma terapêutica no cuidado à saúde. Rev Enferm UFSM [internet] 2016 [cited 2016 Jun 20]; 6(2):225-34. Available from http://periodicos.ufsm.br/reufsm/article/view/17945/pdf. http://dx.doi.org/10.5902/2179769217945
http://periodicos.ufsm.br/reufsm/article...

Com relação às doenças associadas, foi relatado pelos clientes a hipertensão arterial e o diabetes mellitus. A presença de comorbidades é considerada fator intrínseco no desenvolvimento de lesões cutâneas, principalmente as doenças crônicas, como diabetes mellitus e doenças cardiovasculares.1717 Meirelles IB, Silva RCL, Figueiredo NMA. Feridas: fundamentos e atualizações em enfermagem. 3ª ed. São Caetano do Sul: Yendis; 2011. 760p

Os resultados deste estudo apontaram que a busca ao serviço de saúde pelos participantes ocorria frente à constatação da piora da ferida. Algumas pesquisas mostram que a procura tardia pelos serviços de saúde relaciona-se com o saber que o cliente tem sobre a sua doença, a distância entre a moradia e a unidade de saúde, custos relacionados ao transporte, impossibilidade de faltar ao trabalho e compromissos, bem como a satisfação com o atendimento prestado e a procura por cuidados alternativos.1818 Ponce MAS, Vendramini SHF, Santos MR, Santos MLSG, Scatena LM, Villa TCS. The establishment of bonds between professional and patient in TB treatment: the performance of primary health care services in a city in the interior of São Paulo. Rev Latino Am Enferm [internet] 2011 [cited 2016 Mar 12]; 19(5):1222-9. Available from http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=281421964021. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692011000500021
http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=28...
,1919 Wysocki AD, Ponce MAZ, Scatolin BE, Andrade RLP, Vendramini SHF, Netto AR, et al. Delay in seeking initial care for tuberculosis diagnosis. Rev Esc Enferm USP [internet] 2013 [cited 2016 Mar 20]; 47(2):440-7. Available from http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v47n2/24.pdf. http://dx.doi.org/10.1590/S0080-62342013000200024
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v47n2/24...

Nas falas dos clientes, observou-se uma associação do hábito da higiene corporal com a possibilidade de melhora da ferida. Os hábitos são resultados de práticas sociais ritualizadas e tem com como função a integração do indivíduo no grupo representando, portanto, um conjunto de formas de agir e de ser para a manutenção da vida. Assim, os hábitos de vida tendem a se estruturar em torno das noções de bem e mal-estar pela ameaça que deles pode advir a existência. À medida que se repetem, reforçam-se e espalham-se ao grupo, tornando-se "alicerces dos hábitos de pensamentos que se tornam crenças".2020 Colliére MF. Promover a vida: da prática das mulheres de virtude aos cuidados de enfermagem. 2ª ed. Coimbra: Lidel; 1999. 384p

Por outro lado, foi identificado em algumas falas a dependência no cuidado com a ferida pelo sistema profissional de saúde. É importante que o cliente seja protagonista nesse cuidado, tendo sua autonomia e independência preservadas e incentivadas para manutenção da própria saúde mediante orientações que proporcionem a tomada de decisão acerca do que e como fazer para contribuir no processo de recuperação e cicatrização da ferida no seu cotidiano e não apenas estar condicionado à presença do profissional de saúde e da ida à instituição para realização do curativo, parte desse processo.

O vínculo entre os profissionais e as pessoas que demandam o cuidado em saúde é atravessado por afetos e subjetividades que destituem os lugares ocupados no território assistencial, os saberes totalitários e as práticas intervencionistas. Além de institucional e físico, o território do cuidado é afetivo e produtor de singularidades, em que o cuidar nem sempre significa agir, elaborar ações, executar procedimentos. Em alguns momentos, a pessoa que demanda o cuidado necessita apenas exercer uma autonomia singular nesse território afetivo.2121 Silva MRF, Silveira LC, Pontes RJS, Vieira AN. O cuidado além da saúde: cartografia do vínculo, autonomia e território afetivo na saúde da família. Rev Min Enferm [internet] 2015 [cited 2016 un 2]; 19(1):249-54. Available from: www.reme.org.br/exportar-pdf/1000/v19n1a20.pdf. doi: 10.5935/1415-2762.20150020
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É por meio da dialogicidade que os sujeitos alcançam a comunicação. O diálogo é mediatizado por uma interação horizontal e mútua, indo de encontro à educação depositária, na qual o opressor deposita, nos outros, o conhecimento de forma verticalizada, unidirecional por meio de um discurso monológico. A prática dialógica permite o compartilhamento de saberes e práticas entre os sujeitos envolvidos por meio das palavras. Nesse momento é que se leva em consideração o saber do outro, valorizando sua cultura, suas crenças, seu contexto social, político e econômico.2222 Freire P. Pedagogia do Oprimido. 50ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2011. 256p

Nesse sentido, é oportuno considerar que o problema que abrange a falta de informação dos usuários sobre as terapêuticas a eles aplicadas, bem como sobre o diálogo necessário acerca de sua anuência ou interesse de ser cuidado com tal ou qual terapêutica, não se restringe ao universo das práticas integrativas, uma vez que se trata de situação recorrente no âmbito dos serviços de saúde e que merece ser considerada quando se pretende oferecer uma assistência de base humanizada e integralizada, independente da opção terapêutica de profissionais e usuários.2323 Magalhães MGM, Alvim NAT. Complementary and integrative therapies in nursing care: an ethical focus. Esc Anna Nery [internet] 2013 [cited 2016 Jun 2]; 17(4):646-53. Available from http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-81452013000400646&lng=en&nrm=iso&tlng=en. http://dx.doi.org/10.5935/1414-8145.20130007
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Entretanto, nos serviços de saúde o cliente tende a assumir um papel passivo e pouco (ou nada) participativo. Ainda que exista estímulo à sua participação no tratamento, esta tende a ser norteada apenas na transmissão de informações prescritivas que nem inserem e nem promovem a autonomia do cliente no cuidado. Não se acede aos saberes e práticas advindos da herança cultural, as vivências e experiências dos clientes e suas famílias.2424 Teixeira MLO, Ferreira MA. Shared care: a vision of elderly care based on health education. Texto Contex Enferm [internet] 2009 [cited 2016 Mar 23]; 18(4):750-8. Available from http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0104-07072009000400017&lng=en&nrm=iso&tlng=en. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-07072009000400017
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Na teoria do cuidado cultural de Leininger, a acomodação/negociação representa maneiras de negociar, adaptar ou ajustar os padrões de cuidado à saúde do cliente. E essa negociação implica em estabelecimento do diálogo, o que possibilita tanto ao enfermeiro compreender a forma que o cliente cuida da sua ferida, quanto ao cliente a compreensão sobre os cuidados propostos pelo enfermeiro.1010 Leininger MM, Mcfarland MR. Culture care diversity and universality: a worldwide nursing theory. 2ª ed. New York: McGraw-Hill; 2006. 413p

Ao longo da realização da pesquisa, observou-se que o foco do cuidado do profissional da saúde era a ferida do cliente e não havia um diálogo entre eles. A preocupação era centrada na realização do procedimento do curativo e não na pessoa em que estava sendo realizado o mesmo. Não foi identificada qualquer inciativa de conversar com o cliente e saber como ele estava cuidando e o que usava na ferida em casa e se tinha alguma dúvida relacionada à cicatrização da mesma.

Ao abordar os saberes e práticas de clientes em uma perspectiva educativa, considera-se a cultura do cliente por meio do compartilhamento de saberes e práticas de cuidado entre o profissional e o cliente, levando-se em conta as diferenças entre a cultura dos envolvidos no cuidado: a profissional, advinda do saber técnico-científico e a pessoal, relacionada ao saber popular dos clientes.

Para isso, Freire diz que a abordagem crítico-reflexiva é pertinente, porque discute a ação educativa de forma inovadora, centrada no diálogo. Não basta acessar os saberes e práticas dos clientes no cuidado com feridas e identificar os seus aspectos culturais. É preciso reinterpretá-los no processo do diálogo à luz do conhecimento científico. Esse novo saber permitiria a esse cliente desenvolver sua autonomia e responsabilidade acerca do próprio cuidado.2222 Freire P. Pedagogia do Oprimido. 50ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2011. 256p

Portanto, é fundamental estabelecer interação com cada cliente, visando conhecer sua trajetória desde o surgimento da ferida, suas experiências e práticas no tratamento da mesma. Com isso, emerge a necessidade de aliar saberes e práticas no cuidado a esses clientes respeitando e reconhecendo suas crenças, seus valores e cultura, os quais são apreendidos e compartilhados no grupo social a que pertencem, para, assim, minimizar o espaço entre o saber científico e o saber popular.33 Alcoforado CLGC, Espírito Santo FH. Saberes e práticas dos clientes com feridas: um estudo de caso no município de Cruzeiro do Sul, Acre. Rev Min Enferm [internet] 2012 [cited 2016 Mar 23]; 16(1):11-7. Available from http://www.enf.ufmg.br/site_novo/modules/mastop_publish/files/files_4fccf66a17245.pdf. http://www.dx.doi.org/S1415-27622012000100002
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Quanto ao conhecimento de alguma forma de cuidar da ferida que não fosse a medicamentosa, os clientes trouxeram saberes advindos de convivência com outras pessoas, como avós, mães e tias. A transferência do conhecimento sobre o uso de formas alternativas ocorre, na maioria das vezes, no contexto sociofamiliar, o que foi identificado em outro estudo sobre saberes e práticas populares de cuidado em saúde com o uso de plantas medicinais. Além disso, o conhecimento popular sobre o uso das plantas é um recurso transmitido de geração a geração e utilizado para fins terapêuticos entre a população.44 Badke MR, Budó MLD, Alvim NAT, Zanetti GD, Heisler EV. Popular knowledge and practices regarding healthcare using medicinal plants. Texto Contexto Enferm [internet] 2012 [cited 2016 Mar 20]; 21(2):363-70. Available from http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072012000200014. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-07072012000200014
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,66 Araújo MA, Lemos ICS, Menezes IRA, Fernandes GP, Kenrtopf MR. Uso de plantas medicinais para o tratamento de feridas. Rev Interd [internet] 2015 [cited 2016 Mar 20]; 8(2):60-7. Available from http://revistainterdisciplinar.uninovafapi.edu.br/index.php/revinter/article/view/631/pdf_212
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Entretanto, a cultura popular ainda tem sido relegada a segundo plano frente ao saber científico. Um estudo sobre as representações e intenção de uso da fitoterapia na atenção básica à saúde enfatizou que as práticas enraizadas na sabedoria popular e já reconhecidas no meio científico devem ser integradas, porém de maneira a ser vinculadas à assistência à saúde como um todo.2525 Rosa C, Câmara SG, Béria JU. Representations and use intention of phytoterapy in primary health care. Ciênc saúde coletiva [internet] 2011 [cited 2016 Mar 23]; 16(1): 311-18. Available from http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232011000100033. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232011000100033
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Nesse sentido, com o intuito de preencher as lacunas no saber de profissionais da saúde acerca do uso de recursos terapêuticos complementares, bem como de estimular o incentivo calcado no conhecimento e nas ações de educação em saúde para a população, evidenciam-se ações e esforços em perpetuar práticas eficazes, porém não sistematizadas, por meio de ações dirigidas, tais como a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde (SUS).2626 Brasil. Ministério da Saúde; Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Práticas Integrativas e Complementares: plantas medicinais e fitoterapia na atenção básica. Brasília; 2012. 156p

Trata-se de uma política que propõe a inserção de outras terapêuticas no âmbito dos serviços públicos de saúde, a exemplo da fitoterapia, plantas medicinais, acupuntura e homeopatia. Traz como um dos seus objetivos incorporar e implementar essas práticas na perspectiva de prevenção de agravos e da promoção e recuperação da saúde, com ênfase na atenção básica, voltada para o cuidado continuado, humanizado e integral em saúde.2626 Brasil. Ministério da Saúde; Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Práticas Integrativas e Complementares: plantas medicinais e fitoterapia na atenção básica. Brasília; 2012. 156p

Outro tema identificado nas falas dos clientes foi que os profissionais da saúde orientavam apenas sobre a utilização do produto prescrito para a cicatrização da ferida, e talvez, por isso alguns disseram não fazer o uso de formas alternativas no cuidado com a ferida ou mesmo questionar sobre a possibilidade do seu uso em alguns casos. Em um estudo internacional, constatou-se que 60% dos pacientes recorriam às práticas integrativas sem que isso fosse relatado ao médico, o que ocorria em função do medo de reprovação do trabalhador de saúde em relação à prática e ainda pelo desconhecimento deles sobre o tema.2727 Fiúza AR. O conhecimento da medicina alternativa e complementar e sua importância no trabalho médico. In: Barros NF, Siegel P, Otani MAP editores. O ensino das Práticas Integrativas e Complementares: experiências e percepções. São Paulo: Hucitec; 2011. 171p

Entretanto, das entrevistas emergiram saberes tanto relacionados à cicatrização de feridas com o uso de chás, plantas e cascas, quanto as práticas alimentares associadas ao tratamento de outras doenças, como hipertensão arterial e diabetes mellitus, que precisam ser conhecidas tendo em vista sua possibilidade de interferir no cuidado com a ferida.

Diante do conhecimento popular sobre o uso de práticas alternativas no cuidado com feridas, identificou-se que algumas possuem indicações terapêuticas semelhantes com as encontradas na literatura, como a casca de caju, o saião e a aroeira. Porém, o uso da cebola como indicação popular no auxílio da cicatrização da ferida não é referido na literatura, sendo indicado para voz, rouquidão, gripe e dor de garganta.66 Araújo MA, Lemos ICS, Menezes IRA, Fernandes GP, Kenrtopf MR. Uso de plantas medicinais para o tratamento de feridas. Rev Interd [internet] 2015 [cited 2016 Mar 20]; 8(2):60-7. Available from http://revistainterdisciplinar.uninovafapi.edu.br/index.php/revinter/article/view/631/pdf_212
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,2828 Souza CMP, Brandão DO, Silva MSP, Palmeira AC, Simões MOS, Medeiros ACD. Utilização de plantas medicinais com atividade antimicrobiana por usuários do Utilização de plantas medicinais com atividade antimicrobiana por usuários do serviço público de saúde em Campina Grande - Paraíba. Rev bras plantas med [internet] 2013 [cited 2016 Jun 2]; 15(2):188-93. Available from http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-05722013000200004. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S1516-05722013000200004
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29 Albertasse PD, Thomaz LD, Andrade MA. Plantas medicinais e seus usos na comunidade da Barra do Jucu, Vila Velha, ES. Rev bras plantas med [internet] 2010 [cited 2016 Jun 2]; 12(3):250-60. Available from http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-05722010000300002. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-05722010000300002
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-3030 Cartaxo SL, Souza MMA, Albuquerque UP. Medicinal plants with bioprospecting potential used in semi-arid northeastern Brazil. J Ethnopharmacol [internet] 2010 [cited 2016 Jun 2]; 131(2):326-42. Available from http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/20621178. doi: 10.1016/j.jep.2010.07.003
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Segundo estudo realizado no Rio Grande do Sul sobre a origem dos saberes e das práticas no uso terapêutico de plantas medicinais, o elo entre o conhecimento popular e o científico, possibilita a aproximação das pessoas da comunidade, tanto com os serviços de saúde, quanto com os profissionais nela atuantes, cuja perspectiva de integralidade no cuidado à saúde, pressupõe o respeito às diferenças e ao contexto sociocultural das pessoas cuidadas.44 Badke MR, Budó MLD, Alvim NAT, Zanetti GD, Heisler EV. Popular knowledge and practices regarding healthcare using medicinal plants. Texto Contexto Enferm [internet] 2012 [cited 2016 Mar 20]; 21(2):363-70. Available from http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072012000200014. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-07072012000200014
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As plantas medicinais requerem o adequado manuseio e preparo para que a utilização possa trazer resultados benéficos aos pacientes, do contrário, os efeitos podem agravar o problema. Para tanto, o Ministério da saúde publicou a Portaria MS/GM nº 533 de 2012, a qual estabelece o elenco de medicamentos e insumos da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais- RENAME, no âmbito do SUS. Dentre os medicamentos, a aroeira é citada e apresenta ação cicatrizante, anti-inflamatória e antisséptica tópica.3131 Brasil. Ministério da saúde. Portaria MS/GM nº 533, de 28 de março de 2012, que estabelece o elenco de medicamentos e insumos da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME) no âmbito do Sistema Único de Saúde. Brasília, Ministério da saúde, 2012. 2p

Outra prática descrita pelos clientes no cuidado de feridas foi a fé, pois segundo eles se apegar à religião, fazer orações e ter pensamento positivo traz conforto espiritual e emocional, além de ajudar na cicatrização das mesmas. A prática da religiosidade também foi encontrada em um estudo no Município de Cruzeiro do Sul sobre saberes e práticas de clientes com feridas.33 Alcoforado CLGC, Espírito Santo FH. Saberes e práticas dos clientes com feridas: um estudo de caso no município de Cruzeiro do Sul, Acre. Rev Min Enferm [internet] 2012 [cited 2016 Mar 23]; 16(1):11-7. Available from http://www.enf.ufmg.br/site_novo/modules/mastop_publish/files/files_4fccf66a17245.pdf. http://www.dx.doi.org/S1415-27622012000100002
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A espiritualidade é algo intrínseco ao ser humano que está relacionada à fé em Deus ou, simplesmente, em algo em que se acredita e que pode ajudar os indivíduos, promovendo conforto e força. Além disso, refere-se à busca humana de sentido para a vida, por meio de uma relação consigo mesmo, com os outros e com o divino. Na prática profissional, o debate sobre a fé e sua relação com a saúde é um fenômeno resultante, principalmente, da demanda dos usuários ao invocarem um cuidado que contemple a sua saúde em dimensões mais amplas, inclusive religiosas e espirituais, buscando esperança e apoio social nas dificuldades da vida.3232 Evangelista CB, Lopes MEL, Costa SFG, Abrão FMS, Batista PSS, Oliveira RC. Spirituality in patient care under palliative care: A study with nurses. Esc Anna Nery [internet] 2016 [cited 2016 un 20]; 21(1):176-82. A Available from http://www.scielo.br/pdf/ean/v20n1/1414-8145-ean-20-01-0176.pdf. http://dx.doi.org/10.5935/1414-8145.20160023
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33 Pinto S, Caldeira S, Martins JC. A espiritualidade nos pacientes com câncer em quimioterapia. Cuid Arte Enferm. [internet] 2012 [cited 2016 Jun 2]; 6(1):8-14. Available from: http://fundacaopadrealbino.org.br/facfipa/ner/pdf/CuidArte%20Enfermagem%20v%206%20n%201%20jan.%20jun.%202012.pdf
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-3434 Cortez EA. Influência da religiosidade e espiritualidade na saúde: reflexões para o cuidado de enfermagem. Online braz j nurs [internet] 2012 [cited 2016 Jun 2]; 11(2):418-9. Available from http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/4086. http://dx.doi.org/10.5935/1676-4285.2012S001
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Entende-se que, na prática assistencial em saúde, o saber científico precisa dialogar com o saber popular para que se possa compreender de onde provêm os significados com os quais os indivíduos dão sentido ao seu modo de se cuidar. É importante que o cliente participe do cuidado, sendo esclarecido para poder optar sobre o melhor para si, o que determina a autonomia e independência na implementação do cuidado. Para isso, é necessário viabilizar uma relação dialógica, com troca de conhecimentos e experiências, para o compartilhamento dos saberes por meio de uma abordagem culturalmente congruente aos clientes nos serviços de saúde.

CONCLUSÃO

Este trabalho possibilitou descrever os saberes e práticas de clientes no cuidado com feridas, em que relataram o conhecimento de práticas alternativas, como o uso da casca de caju, da aroeira, do saião em forma de chás para banhar as feridas, embora algumas falas apontassem desconfiança no que não é legitimado pelo saber científico, perpassando por práticas alimentares associadas as outras doenças, até as práticas religiosas na busca do conforto espiritual e emocional para a cicatrização das feridas. Além disso, a visão fragmentada do indivíduo, com foco na ferida, em detrimento da visão integral da pessoa com ferida, tende a reforçar a dependência do sujeito ao preconizado e informado pelo profissional.

Torna-se relevante o planejamento de cuidados compartilhados, onde a cultura, os saberes, as práticas, os valores e as crenças dos clientes sejam considerados nas práticas educativas e no processo de cuidar. Nesse sentido, conhecer os saberes e práticas dos clientes no cuidado com feridas para o desenvolvimento de um cuidado cultural permite a elaboração de um plano de cuidados congruente com a sua cultura, tornando-os mais participativos no processo de cuidar e se cuidar.

Considerar o cliente como protagonista do cuidado aponta como desafios trazer à tona o potencial de conhecimentos advindos das suas experiências em um dado contexto sociocultural, como subjacentes aos seus saberes e práticas no cuidado de feridas e, portanto bases para a prática de enfermagem a esses clientes.

Considerando a importância do estudo, ainda existem lacunas a serem trabalhadas e exploradas, tendo em vista a necessidade de aliar o saber científico ao saber popular, buscando a congruência do cuidado, o que pode ser difícil, se o profissional adotar uma postura de detentor do saber e da prática, não valorizando a cultura e a realidade dos clientes.

O estudo aponta possibilidades de outras pesquisas que viabilizem desvendar os meandros que envolvem a trajetória de clientes com feridas que buscam os serviços de saúde com questionamentos e demandas individuais de saúde, cabendo aos profissionais de saúde conhecer e estabelecer intervenções para além do tratamento de doenças, com ações efetivas que possibilitem a conquista do bem-estar e autonomia mediante implementação de um cuidado que articule saberes e práticas entre quem cuida e é cuidado no cenário das instituições.

REFERÊNCIAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    29 Out 2016
  • Aceito
    13 Fev 2017
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