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Eventos adversos cirúrgicos divulgados na mídia audiovisual: um estudo documental

Eventos quirúrgicos adversos en medios audiovisuales: estudio documental

RESUMO

Objetivo

analisar os eventos adversos cirúrgicos divulgados por uma mídia brasileira.

Método

pesquisa documental, qualitativa. A fonte de informação consistiu em reportagens audiovisuais sobre danos decorrentes de intervenções cirúrgicas, noticiadas em uma mídia brasileira. Para as buscas no portal eletrônico, consideraram-se as publicadas até junho de 2019. O referencial de Bardin foi empregado na análise temática. Os incidentes mencionados foram classificados segundo as barreiras de segurança contidas na Lista de Verificação de Segurança Cirúrgica (LVSC) da Organização Mundial da Saúde.

Resultados

foram analisados 16 casos apresentados através de 17 reportagens. Do total de falhas cometidas (n=16), a maioria (n=13) poderia ser prevenida através da checagem de itens contidos na LVSC. Na análise temática, três categorias emergiram: i. incidente relacionado à intervenção cirúrgica; ii. danos físicos, psicológicos e socioeconômicos decorrentes; iii. consequências ético-profissionais e/ou jurídicas.

Conclusão e implicações para a prática

os eventos adversos cirúrgicos divulgados pelas reportagens impactaram sobremaneira a vida dos pacientes, nos aspectos físicos, emocionais e socioeconômicos. Ainda trouxeram implicações para os profissionais envolvidos e instituições de saúde. Acredita-se que, as barreiras de segurança contidas em instrumento de verificação mundialmente reconhecido, são importantes ferramentas a serem empregadas para promover a segurança do paciente cirúrgico e salvar vidas.

Palavras-chave:
Procedimentos Cirúrgicos Operatórios; Dano ao Paciente; Mídia Audiovisual; Lista de Checagem; Segurança do Paciente

RESUMEN

Objetivo

analizar los eventos quirúrgicos adversos reportados por un medio brasileño.

Método

investigación documental, cualitativa. La fuente de información consistió en reportajes audiovisuales sobre daños resultantes de intervenciones quirúrgicas, reportados en un medio brasileño. Para las búsquedas en el portal electrónico, se consideraron las publicaciones realizadas hasta junio de 2019. En el análisis temático se utilizó el marco de Bardin. Los incidentes mencionados fueron clasificados de acuerdo a las barreras de seguridad contenidas en la Lista de Verificación de Seguridad Quirúrgica (LVSC) de la Organización Mundial de la Salud.

Resultados

se analizaron 16 casos presentados a través de 17 informes. Del total de fallas cometidos (n = 16), la mayoría (n = 13) podría evitarse mediante la verificación de los elementos contenidos en el LVSC. En el análisis temático surgieron tres categorías: i. Incidente relacionado con la intervención quirúrgica; ii. daño físico, psicológico y socioeconómico resultante; iii. Consecuencias ético-profesionales y / o legales.

Conclusión e implicaciones para la práctica

los eventos quirúrgicos adversos reportados por los informes impactaron enormemente en la vida de los pacientes, en los aspectos físicos, emocionales y socioeconómicos. También trajeron implicaciones para los profesionales involucrados y las instituciones de salud. Se cree que las barreras de seguridad contenidas en un instrumento de verificación reconocido mundialmente son herramientas importantes que se utilizarán para promover la seguridad de los pacientes quirúrgicos y salvar vidas.

Palabras clave:
Procedimientos Quirúrgicos Operativos; Daños al Paciente; Medios Audiovisuales, Lista de Verificación; Seguridad del Paciente

ABSTRACT

Objective

to analyze surgical adverse events reported by a Brazilian media.

Method

documentary and qualitative research. The source of information consisted of audiovisual reports on damages resulting from surgical interventions, reported in a Brazilian media. For searches on the electronic portal, those published until June 2019 were considered. Bardin's framework was used in the thematic analysis. The aforementioned incidents were classified according to the safety barriers contained in the Surgical Safety Checklist (SSC) of the World Health Organization.

Results

a total of 16 cases presented through 17 reports were analyzed. Of the total number of failures committed (n = 16), the majority (n = 13) could be prevented by checking items contained in the SSC. In the thematic analysis, three categories emerged: i. incident related to surgical intervention; ii. physical, psychological and socioeconomic resulting damage; iii. ethical-professional and/or legal consequences.

Conclusion and implications for the practice

the adverse surgical events disclosed by the reports greatly impacted on the lives of patients, in physical, emotional and socioeconomic aspects. They also brought implications for the professionals and health institutions involved. It is believed that the safety barriers contained in a globally recognized verification instrument are important tools to be used to promote the safety of surgical patients and save lives.

Keywords:
Surgical Operative Procedures; Patient Harm; Audiovisual Media; Checklist; Patient Safety

INTRODUÇÃO

Eventos adversos no cuidado perioperatório podem ser entendidos como injúria ou complicação não intencional, decorrentes de um evento ou omissão, relacionados a um procedimento, a um cuidado ou à gestão em saúde, que pode resultar em incapacidade, em prolongamento da permanência hospitalar ou em mortalidade, não relacionados à doença subjacente do paciente.11 World Health Organization. Conceptual framework for the international classification for patient safety [Internet]. Geneva: WHO; 2009 [citado 2020 maio 3]. Disponível em: http://www.who.int/patientsafety/taxonomy/icps_full_report.pdf
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Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que complicações pós-operatórias ocorrem em até 25% dos pacientes e a taxa de mortalidade varia entre 0,5% a 5%. Nos países industrializados, pelo menos metade dos casos em que a cirurgia levou a danos, estes foram considerados evitáveis. Um fator contribuinte é que medidas de segurança cirúrgica são aplicadas inconsistentemente, mesmo nos locais com infraestrutura adequada.22 World Health Organization. WHO surgical safety checklist implementation [Internet]. Geneva: WHO; 2009 [citado 2020 maio 3]. Disponível em: https://www.who.int/patientsafety/safesurgery/checklist_implementation/en/
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No Brasil, verifica-se a escassez de estudos que abordem a ocorrência de eventos adversos cirúrgicos em âmbito nacional, pois os existentes retratam apenas a realidade loco-regional.33 Moura ML, Mendes W. Avaliação de eventos adversos cirúrgicos em hospitais do Rio de Janeiro. Rev Bras Epidemiol. 2012 set;15(3):523-35. http://dx.doi.org/10.1590/S1415-790X2012000300007. PMid:23090300.
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,44 Batista J, Cruz EDA, Alpendre FT, Rocha DJM, Brandão MB, Maziero ECS. Prevalência e evitabilidade de eventos adversos cirúrgicos em hospital de ensino do Brasil. Rev Lat Am Enfermagem. 2019;27:e2939. http://dx.doi.org/10.1590/1518-8345.2939.3171. PMid:31596404.
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A subnotificação desses incidentes pelos hospitais ocorre porque estes têm que lidar com a exposição de falhas e fragilidades no sistema e nos processos de assistência à saúde, o que pode contribuir para que esses dados não sejam abordados suficientemente nas publicações científicas disponíveis.55 Alves MFT, Carvalho DS, Albuquerque GSC. Motivos para a não notificação de incidentes de segurança do paciente por profissionais de saúde: revisão integrativa. Ciênc. Saúde Colet (Barueri). 2019;24(8):2895-908. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018248.23912017. PMid:31389537.
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Para mitigar eventos adversos cirúrgicos e melhorar a segurança do paciente cirúrgico, desde 2009, a OMS recomenda a incorporação da Lista de Verificação de Segurança Cirúrgica (LVSC) em sala cirúrgica.22 World Health Organization. WHO surgical safety checklist implementation [Internet]. Geneva: WHO; 2009 [citado 2020 maio 3]. Disponível em: https://www.who.int/patientsafety/safesurgery/checklist_implementation/en/
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Desde então,observa-se sua implementação progressiva pelos hospitais.66 Weiser TG, Haynes AB. Ten years of the surgical safety checklist. Br J Surg. 2018;105(8):927-9. http://dx.doi.org/10.1002/bjs.10907. PMid:29770959.
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Apesar desse avanço, acredita-se que, até haver consolidação da cultura de segurança nos serviços de saúde, a mídia ao denunciar eventos adversos relacionados à assistência em saúde pode contribuir para que a comunidade científica desenvolva pesquisas que busquem compreender os motivos dessas falhas e estratégias de mitigação.

Além disso, a mídia pode exercer papel fundamental no debate e mobilização social em prol da construção de uma cultura de segurança do paciente, isso porque expõe a realidade dramática dos pacientes,oriunda de eventos adversos cirúrgicos e suas implicações e exerce influência sobre o sistema de saúde, não só no que se refere à procura por atendimentos, mas no planejamento de intervenções médicas futuras.77 Sudore RL, Landefeld CS, Pantilat SZ, Noyes KM, Schillinger D. Reach andimpact of a mass media event among vulnerable patients: the Terri Schiavo Story. J Gen Intern Med. 2008;23(11):1854-7. http://dx.doi.org/10.1007/s11606-008-0733-7. PMid:18716849.
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,88 Akira F, Marques AC. O papel da mídia nos serviços de saúde. Rev Assoc Med Bras. 2009;55(3):246. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-42302009000300010. PMid:19629337.
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Diante do exposto, o presente estudo tem como objetivo analisar os eventos adversos cirúrgicos divulgados por uma mídia brasileira.

MÉTODO

Pesquisa descritiva, documental com abordagem qualitativa. No estudo foram utilizadas reportagens do portal online de notícias G1, vinculado à emissora de televisão Rede Globo. Esta fonte de dados foi escolhida, por ser um site com grande repercussão nacional e internacional, de acesso livre e gratuito.

Para definição das reportagens/matérias, a busca foi realizada na plataforma digital, através do localizador disponível na pagina inicial do site (https://www.globo.com/), utilizando os termos “erros cirúrgicos” e “erro e cirurgia”, ocorridos em território brasileiro e noticiados em formato multimídia, com matéria escrita e produção audiovisual. Salienta-se que, no processo de busca no portal, inicialmente, foram utilizadas as palavras-chaves: “eventos adversos” e “eventos adversos cirúrgicos”, entretanto, com esses termos não foi possível recuperar nenhuma reportagem. Diante dessa limitação, os termos utilizados foram os que continham a palavra “erro”, apesar do entendimento de que a maioria das reportagens recuperadas retrate indício de erro e não erro propriamente dito, pois este se refere ao ato julgado. A delimitação temporal foi oriunda do resultado das buscas, o que a definiu de 2012 a 2019. Ademais, considerou-se todas as reportagens relacionadas aos eventos adversos cirúrgicos com envolvimento (suspeito ou confirmado) da equipe multiprofissional – cirurgião, anestesista e equipe de enfermagem.

Devido às limitações de recursos de busca e ordenação dos resultados encontrados neste processo, as reportagens foram classificadas por temas e selecionadas por meio da leitura da manchete, olho e lead, que compreendem os termos que designam a frase destacada e o primeiro parágrafo da reportagem, que se voltam a responder as questões básicas para deixar o leitor informado. Inicialmente, foram encontradas 95 reportagens e a descrição das exclusões estão apresentadas na Figura 1.

Figura 1
Fluxograma de seleção das reportagens. Brasil, 2019

Na etapa de coleta de dados, empreendeu-se o seguinte procedimento para permitir a análise: cada uma das 17 reportagens selecionadas foi assistida várias vezes para identificar a fala de todos os indivíduos envolvidos e, com isso, viabilizar a transcrição do conteúdo na íntegra. Posteriormente, uma planilha foi construída para caracterizar cada reportagem em relação às seguintes variáveis: título, ano de publicação, localidade, serviço de saúde envolvido,tipo de evento adverso, caracterização das vítimas, categoria profissional envolvida, desfechos, vídeo, foto, tempo de vídeo e imagens divulgadas.

Cada evento adverso cirúrgico foi classificado de acordo com as barreiras de segurança contidas na LVSC, proposto pela OMS, como forma de prevenção ao evento adverso, a saber: barreiras de segurança relacionadas ao período anterior à indução anestésica (entrada), período anterior à incisão cirúrgica (pausa cirúrgica) e período imediatamente após o fechamento da incisão cirúrgica (saída).22 World Health Organization. WHO surgical safety checklist implementation [Internet]. Geneva: WHO; 2009 [citado 2020 maio 3]. Disponível em: https://www.who.int/patientsafety/safesurgery/checklist_implementation/en/
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Na sequência, a análise temática do conteúdo das reportagens foi empregada segundo o referencial teórico de Bardin: 1) pré-análise; 2) exploração do material; e 3) inferência e interpretação.99 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016. Na etapa da pré-análise, leituras exaustivas do conteúdo das reportagens foram realizadas a fim de possibilitar a imersão em seu conteúdo, permitindo maior apreensão do todo apresentado. Na etapa de exploração do material, os dados brutos foram codificados e transformados em informações significativas que deram origem às unidades de registro. Em seguida, por meio da análise temática, os núcleos de sentido foram gerados, considerando sua aparição e repetição. À medida que os núcleos foram reunidos por aproximação de seus significados, emergiram as categorias, a saber: i. Incidente relacionado à intervenção cirúrgica; ii. Danos físicos, psicológicos e socioeconômicos decorrentes; iii. Consequências ético-profissionais e/ou jurídicas. Por fim, na etapa de inferência e interpretação, com base nos discursos, foram elaboradas as interpretações.99 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016. Adicionalmente, na categoria um, os tipos de incidente foram pautados na estrutura conceitual para classificação internacional de segurança do paciente.11 World Health Organization. Conceptual framework for the international classification for patient safety [Internet]. Geneva: WHO; 2009 [citado 2020 maio 3]. Disponível em: http://www.who.int/patientsafety/taxonomy/icps_full_report.pdf
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Em relação aos aspectos éticos, como a informação está contida em site de domínio público, não se estabeleceu necessidade de apreciação por mecanismo ético formal. Como garantia de anonimato, o nome das vítimas e dos profissionais foi ocultado na análise dos dados e, os trechos das reportagens foram codificados por números.

RESULTADOS

Em relação à caracterização das reportagens, os casos foram divulgados entre 2012 e 2019. As vítimas abrangeram os diferentes ciclos da vida, com predomínio de adultos (75,0%), sendo oito mulheres e quatro homens. As notícias divulgadas foram mais frequentes na região Sudeste (56,3%). O formato de divulgação abrangeu texto, fotos e vídeos, sendo que a duração dos vídeos variou entre 1’48” e 5’24”, totalizando 39’e 18”, conforme Tabela 1.

Tabela 1
Caracterização das reportagens sobre eventos adversos cirúrgicos divulgados em uma mídia brasileira. Brasil, 2019.

Incidente relacionado à intervenção cirúrgica

Em relação à primeira categoria de análise, os tipos de incidentes abrangeram: a) Processo/procedimento clínico (n=14/ casos 1 a 6 e 9 a 16), dos quais envolviam procedimento errado (n=2/ casos 10 e 11), lado errado (n=2, casos 9 e 16), local errado e identificação não realizada (n=1/ caso 1), não efetuado quando indicado – contagem de itens cirúrgicos (n=6/casos 2, 3, 6, 13 a 15) e inadequado (n=3/casos 4, 5 e 12); b) Dispositivos/equipamentos médicos(n=1/caso 7), o qual envolvia falha/avaria/mau funcionamento; c) Nutrição(n=1/caso 8), relativa à dieta errada.

Adicionalmente, os tipos de incidentes foram relacionados às barreiras de segurança contidas na LVSC que, quando utilizadas,contribuem para prevenção de eventos adversos.Os casos 4, 5 e 12 abordaram o evento adverso cirúrgico relacionado à imprudência, imperícia ou negligência do cirurgião durante o ato operatório. Nessas circunstâncias, a barreira de segurança da LVSC na etapa da saída daria oportunidade ao cirurgião para revisar com toda a equipe preocupações essenciais para a recuperação e manejo do paciente, conforme Quadro 1.

Quadro 1
Tipo de incidente relacionado ao procedimento cirúrgico e correspondência com as barreiras de segurança contidas na LVSC. Brasil, 2019.

Danos físicos, psicológicos e socioeconômicos decorrentes.

Nesta categoria, na totalidade dos casos analisados (n=16), o evento adverso cirúrgico resultou em dano físico aos pacientes. Os prejuízos incluíram dor intensa, dificuldade para se alimentar, incapacidade para se movimentar, broncoaspiração, remoção de órgão sadio e parada cardiorrespiratória, os quais necessitaram de cirurgia suplementar e/ou terapêutica adicional(terapia medicamentosa, exames adicionais, cuidados intensivos para salvar vidas, dentre outros),ou aumento no tempo de internação hospitalar, até a ocorrência de óbito.

Com exceção de quatro casos (1, 2, 7 e 15), os demais (n=12) mencionaram danos psicológicos, tais como sofrimento, impotência, dor pela perda e luto, tristeza, nervosismo, desespero, descrença, constrangimento, desgaste emocional e indignação.

Ademais, dois casos (casos 9 e 14) evidenciaram repercussões socioeconômicas. Essas se caracterizaram pela impossibilidade de retornar ao trabalho e custeio próprio do tratamento complementar, o que impactou financeiramente a vida do indivíduo, conforme Quadro 200.

Quadro 200
Danos físicos, psicológicos e socioeconômicos decorrentes de eventos adversos cirúrgicos divulgados em uma mídia brasileira. Brasil, 2019.

Consequências ético-profissionais e/ou jurídicas oriundas

Nesta categoria, as consequências ético-profissionais (n=7/casos 1, 2, 3, 5, 6, 7, 8) consistiram em instauração de diligências e atos que objetivaram a apuração da verdade de fatos alegados pelo órgão do conselho de classe médica. E, em seis casos (3, 6, 7, 8, 10, 12), a reportagem mencionou que o hospital envolvido abriu processo administrativo (sindicância) para apurar as infrações funcionais e instituir penalidades, caso se apliquem.

No aspecto jurídico, boletim de ocorrência foi registrado (n=4/casos 1, 7, 9 e 12) para formalizar a ocorrência perante a autoridade policial. A abertura de inquérito policial aconteceu em cinco casos (2, 3, 5, 7, 10) para apurar a verdade real do fato supostamente criminoso. O processo judicial foi mencionado em quatro casos (4, 13, 14 e 16), em três casos (4,13 e 16) estão em andamento e um (caso 14) resultou em condenação judicial onde a sentença aplicada cursou em indenização à vítima. E, apenas um caso (caso 15) não constou menção a qualquer encaminhamento jurídico, conforme Quadro 3.

Quadro 3
Consequências ético-profissionais e/ou jurídicas advindas de eventos adversos cirúrgicos divulgados em uma mídia brasileira. Brasil, 2019.

DISCUSSÃO

A assistência cirúrgica é imprescindível. Entretanto, de acordo com as reportagens analisadas, os eventos adversos cirúrgicos ocorridos evidenciaram uma prática assistencial insegura, uma vez que resultou em danos expressivos e, algumas vezes, irreversíveis aos pacientes e seus familiares, além de consequências aos profissionais envolvidos e desfechos organizacionais.

Em estudo que objetivou conhecer as experiências das vítimas de eventos adversos ocorridos na assistência à saúde e perceber de que maneira enfrentaram os desafios impostos, os autores destacaram a perplexidade do paciente ao se descobrir vítima e a dificuldade em se aceitar como tal, para além do impacto fisiológico. As mudanças impostas pelos eventos adversos acarretaram transformações comportamentais e de atitudes, como a falta de confiança nos profissionais médicos. Ademais, sofrimento e sentimentos negativos passam a fazer parte da vivência dessas pessoas e, sugerem que é necessário criar estratégias que permitam auxílio e cuidado da saúde mental das pessoas que sofreram danos.1010 Mendonça VS, Custódio EM. Nuances e desafios do erro médico no Brasil: as vítimas e seus olhares. Rev Bioet. 2016;24(1):136-46. http://dx.doi.org/10.1590/1983-80422016241115.
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A maioria dos eventos adversos cirúrgicos evidenciados nas reportagens (n=12), consistiu na retenção inadvertida de itens (n=6), seguido por realização de procedimento errado (casos 10 e 11) e lado errado (casos 9 e 16). Ressalta-se que, na análise pautada nas barreiras de segurança tem-se na LVSC uma importante estratégia para prevenção dos eventos adversos cirúrgicos, o que reforça a importância de sua utilização.

Similarmente aos resultados obtidos, eventos sentinelas cirúrgicos analisados entre 2016 a 2019 apontam para o predomínio de retenção inadvertida de corpos estranhos, seguido pela cirurgia em local errado, complicações cirúrgicas e pós-operatórias, procedimento errado e paciente errado.1111 The Join Commission. Sentinel events data: summary [Internet]. USA: Joint Commission; 2019 [citado 2020 maio 1]. Disponível em: https://www.jointcommission.org/resources/patient-safety-topics/sentinel-event/sentinel-event-data-summary/
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Nessa perspectiva, reforça-se a confirmação verbal do paciente, do procedimento e sítio cirúrgico antes da indução anestésica, previstas na LVSC, como barreira à ocorrência de tais eventos adversos. Essas checagens devem ser realizadas verbalmente com a presença da equipe multidisciplinar na sala de cirurgia, envolvendo o paciente neste processo.22 World Health Organization. WHO surgical safety checklist implementation [Internet]. Geneva: WHO; 2009 [citado 2020 maio 3]. Disponível em: https://www.who.int/patientsafety/safesurgery/checklist_implementation/en/
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Outra prática segura orientada por protocolos seria a demarcação segura do membro, de preferência enquanto o paciente ainda não recebeu anestésicos para obter a confirmação verbal, e com isso, envolver o paciente com a própria segurança. Nesse sentido, percebe-se que a implementação da LVSC fomenta a prática da cirurgia segura e se apresenta como uma ferramenta de mitigação de falhas assistenciais.22 World Health Organization. WHO surgical safety checklist implementation [Internet]. Geneva: WHO; 2009 [citado 2020 maio 3]. Disponível em: https://www.who.int/patientsafety/safesurgery/checklist_implementation/en/
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Em seis casos, houve a retenção inadvertida de itens cirúrgicos (gazes e compressas) na cavidade do paciente. Nessa direção, estudos apontam incidência entre 0,15% e 0,2% de retenção pós-operatória de corpos estranhos, principalmente em cirurgias abdominais, o que pode gerar grandes complicações e risco de vida ao paciente, com mortalidade entre 10% e 18%.1212 Amaral ALS, Borges O, Cordeiro AP, Matos RR. Corpo estranho intra-abdominal: relato de caso. Rev. Ciênc. Estud. Acad. Med. [Internet]. 2014; [citado 2020 maio 3];1:54-60. Disponível em: https://periodicos.unemat.br/index.php/revistamedicina/article/view/349
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Para evitar a ocorrência de casos de esquecimento de materiais na cavidade do paciente, a literatura sugere a realização do método clássico da contagem dos materiais utilizados no campo cirúrgico no início e no fim da cirurgia. Entretanto, sabe-se que existe a possibilidade de falhas durante a contagem de materiais, conforme apontado em investigação que demonstrou que 88% dos casos de objetos retidos na cavidade dos pacientes, havia relatos em prontuários que houve contagem correta dos materiais.1313 Gawande AA, Studdert DM, Orav EJ, Brennan TA, Zinner MJ. Risk factors for retained instruments and sponges after surgery. N Engl J Med. 2003;348(3):229-35. http://dx.doi.org/10.1056/NEJMsa021721. PMid:12529464.
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Como estratégia de mitigação de tal falha, a OMS recomenda que o cirurgião deve realizar uma exploração metódica da ferida antes do fechamento de qualquer cavidade anatômica, embora o procedimento não substitua que o processo de contagem dos materiais seja realizado e registrado, envolvendo diferentes profissionais, circulante, instrumentador cirúrgico e cirurgião.22 World Health Organization. WHO surgical safety checklist implementation [Internet]. Geneva: WHO; 2009 [citado 2020 maio 3]. Disponível em: https://www.who.int/patientsafety/safesurgery/checklist_implementation/en/
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Cumpre ressaltar que, é inegável o potencial benéfico da LVSC para a segurança do paciente cirúrgico, entretanto, nos hospitais, a implementação da LVSC é um processo complexo e desafiador que exige o envolvimento de todos os profissionais de saúde responsáveis pelo cuidado do paciente no período intraoperatório. Isso porque, requer a compreensão de que a LVSC não é um mero exercício de assinalar itens e trata-se de um instrumento que visa o estímulo à comunicação e o trabalho em equipe, com a insubstituível conferência verbal dos itens de checagem entre os participantes. Para o sucesso na implementação, existe a necessidade de liderança efetiva, delegação clara das responsabilidades de cada profissional, colaboração entre os membros da equipe e suporte institucional disponibilizando recursos humanos e materiais necessários para o seu uso diário.1414 Tostes MFP, Galvão CM. Implementation process of the Surgical Safety Checklist: integrative review. Rev Lat Am Enfermagem. 2019;27:e3104. http://dx.doi.org/10.1590/1518-8345.2921.3104.
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Em relação aos desfechos ético-profissionais oriundos do evento adverso cirúrgico, estudo conduzido apontou para o fato de que a responsabilização dos profissionais deve seguir os trâmites ético-legais, mas é preciso lembrar que existe aparente culpabilização de indivíduos sem demonstração de preocupação com os processos pelos quais as falhas se desencadeiam, o que denota um modo equivocado na abordagem do evento adverso.1515 Souza VS, Inoue KC, Costa MAR, Oliveira JLC, Marcon SS, Matsuda LM. Nursing errors in the medication process: television electronic media analysis. Esc Anna Nery. 2018 maio 10;22(2):1-7. http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2017-0306.
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No aspecto jurídico, similarmente aos resultados, estudo documental caracterizou processos com decisões judiciais (n=31) por erros envolvendo profissionais de enfermagem. Em oito casos a vítima foi a óbito, em metade deles apresentou incapacidade temporária (17=50%) e sete pessoas apresentaram incapacidade permanente. O erro mais frequente envolveu a administração de medicamentos (38,71%), seguido por erro de assistência ao parto (19,35%) e cirurgia (n=5; 16,13%), o que incluiu posicionamento do cautério (queimadura) 3(9,68%), contagem de material (gaze em cavidade) 1(3,23%) e negligência de cuidados pós-operatórios1 (3,23%). Em mais da metade dos casos, o boletim de ocorrência foi registrado pela própria vítima. Em 22 casos o profissional foi condenado. O maior número de condenações envolveu as instituições, o que justifica a participação/respaldo da alta gestão institucional e busca de autopreservação.1616 Souza VS, Inoue KC, Oliveira JLC, Freitas GF, Barlem JGT, Marcon SS et al. Desdobramentos judiciais do erro na enfermagem. Acta Paul Enferm. 2019;32(6):700-6. http://dx.doi.org/10.1590/1982-0194201900096.
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CONCLUSÃO E IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA

Os eventos adversos cirúrgicos divulgados pelas reportagens impactaram sobremaneira a vida dos pacientes, nos aspectos físicos, emocionais e socioeconômicos. Ainda, trouxeram implicações para os profissionais envolvidos e instituições de saúde.

Salienta-se que a análise das reportagens se restringiu àquelas divulgadas em uma mídia brasileira, portanto, esta realidade não é representativa do país. Além disso, as reportagens produzidas podem ter seu material editado. Deste modo, estes são aspectos que podem consistir em limitação para o estudo.

Apesar disso, este estudo pode subsidiar o preenchimento de uma lacuna do conhecimento, pois permitiu conhecer a inaceitável existência de eventos adversos cirúrgicos na perspectiva de alguns pacientes e familiares que tiveram seu caso divulgado em um meio de comunicação. Nesse contexto, a mídia é uma ferramenta relevante que dá voz aos usuários do sistema de saúde brasileiro, expondo aspectos de uma realidade dramática de cidadãos que, ao buscar a assistência cirúrgica para resolver seu problema de saúde, sentiram as consequências de uma assistência insegura geradora de danos.

Em acréscimo, acredita-se que, se as barreiras de segurança contidas na LVSC fossem rigorosamente adotadas na prática clínica, a maioria dos eventos adversos cirúrgicos divulgados poderia ser evitado. Neste aspecto, espera-se que este estudo possa contribuir para que os serviços de saúde revisitem seus protocolos de cuidado cirúrgico, a fim de garantir a segurança do paciente e salvar vidas.

REFERÊNCIAS

Editado por

EDITOR ASSOCIADO

Antonio José Almeida Filho

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    11 Jun 2020
  • Aceito
    12 Set 2020
Universidade Federal do Rio de Janeiro Rua Afonso Cavalcanti, 275, Cidade Nova, 20211-110 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil, Tel: +55 21 3398-0952 e 3398-0941 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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