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Cuidados terminais: reflexão filosófica sob a ótica da ética e da moral

Cuidados terminales: reflexión filosófica desde la perspectiva de la ética y la moral

RESUMO

Objetivo

Objetivou-se refletir sobre a prática assistencial do cuidado ao paciente com doença terminal sob a ótica da ética e da moral.

Método

Trata-se de estudo teórico-reflexivo realizado a partir da análise crítica de textos filosóficos sobre ética e moral no contexto do desenvolvimento moral humano e das práticas de saúde.

Resultados

Na época dos filósofos gregos, a ética se baseava na busca pela felicidade; contudo, com o advento do cristianismo, ela passou a ser vista como um dever. Pela ótica de Kant, a ética e a moral são também um dever, um imperativo categórico, e a questão da manutenção da vida deve ser perseguida, abrindo espaço para a ocorrência de práticas de distanásia. Já para Hans Jonas, o dever dos profissionais de saúde é considerar a qualidade de vida dos pacientes mais do que da quantidade de vida, introduzindo conceitos dos cuidados paliativos.

Conclusão e implicações para a prática

Tais conceitos se modificaram ao longo da história, sendo necessário conhecê-los, fazer uma reflexão crítica sobre a finitude humana e repensar as condutas nesse processo.

Palavras-chave:
Assistência terminal; Enfermagem; Ética; Moral; Tomada de decisão

RESUMEN

Objetivo

El objetivo fue reflexionar sobre la práctica del cuidado al paciente con enfermedad terminal desde una perspectiva de la ética y la moral.

Método

Se trata de un estudio teórico-reflexivo, basado en el análisis crítico de textos filosóficos sobre ética y moral en el contexto del desarrollo moral humano y las prácticas de salud.

Resultados

La ética, en la época de los filósofos griegos, se basaba en la búsqueda de la felicidad, sin embargo, con el advenimiento del cristianismo, ésta pasó a ser vista como un deber. Desde el punto de vista de Kant, la ética y la moral también son un deber, un imperativo categórico y la cuestión del mantenimiento de la vida debe ser perseguida, abriendo espacio para la ocurrencia de prácticas distanásicas. Para Hans Jonas, el deber de los profesionales de la salud es considerar la calidad de vida de los pacientes por encima de la cantidad de vida, introduciendo conceptos de cuidados paliativos.

Conclusión e implicaciones para la práctica

Tales conceptos han cambiado con la historia, requiriendo conocimiento y reflexión crítica sobre la finitud humana y repensar el comportamiento en este proceso.

Palabras clave:
Cuidado Terminal; Enfermería; Ética; Moral; Toma de Decisiones

ABSTRACT

Objective

To reflect on the care practice for patients with a terminal illness from ethical and moral perspectives.

Method

This is a theoretical-reflective study carried out from the critical analysis of philosophical texts on ethics and morals in the context of human moral development and health practices.

Results

At the time of Greek philosophers, ethics was based on the search for happiness. However, with the advent of Christianity, this came to be seen as a duty. According to Kant, ethics and morals are duties as well — a categorical imperative — and the life maintenance issue must be pursued, opening space for the occurrence of dysthanasia practices. From Hans Jonas’ point of view, otherwise, health professionals must consider the quality of life of the patient over their life span, introducing concepts of palliative care.

Conclusion and implications for the practice

The above-mentioned concepts changed over time, and knowing them is necessary for critically reflecting on human finitude and rethinking practices that revolve around this process.

Keywords:
Terminal Care; Nursing; Ethics; Morals; Decision-making

INTRODUÇÃO

Os termos “fim da vida” e “cuidados ao fim da vida” são aplicados às pessoas com enfermidades progressivas e que têm expectativa de vida de meses ou menos. Tais cuidados envolvem o suporte físico, emocional, social e espiritual para pacientes e familiares, também podendo incluir mudanças nos objetivos do tratamento, como transição de locais de cuidado e nível de tecnologia ofertada.11 Hui D, Nooruddin Z, Didwaniya N, Dev R, De La Cruz M, Kim SH et al. Concepts and definitions for “actively dying,” “end of life,” “terminally ill,” “terminal care,” and “transition of care”: a systematic review. J Pain Symptom Manage. 2014;47(1):77-89. http://dx.doi.org/10.1016/j.jpainsymman.2013.02.021. PMid:23796586.
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Cuidar de um paciente em fim de vida é uma tarefa complexa para quem atua na área da saúde, mesmo que a irreversibilidade da condição clínica da doença seja conhecida. Questões de ordem ética são postas em debate, as quais provêm do conflito de valores pessoais dos diferentes profissionais que prestam a assistência, bem como do paciente e seus familiares.22 Pimenta NMP. Acompanhar o fim de vida: dilemas éticos dos enfermeiros [dissertação]. Portugal: Instituto Politécnico de Viana do Castelo, Escola Superior de Saúde; 2015 [citado 2021 maio 10]. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11960/1325
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O avanço tecnológico nas práticas de saúde e a formação acadêmica predominantemente voltada à abordagem curativa viabilizaram que, entre os trabalhadores de saúde, surgissem dúvidas sobre até que ponto devem investir em procedimentos de suporte vital. Nesse cenário, os dilemas morais se tornam constantes quando esses trabalhadores se deparam com a necessidade de escolher entre a manutenção artificial da vida ou a possível retirada de suporte vital — ou seja, deixando de oferecer todos os artifícios possíveis para o prolongamento do processo de morte.33 Sousa GM, Lustosa MA, Carvalho VS. Dilemas de profissionais de unidade de terapia intensiva diante da terminalidade. Rev Bioet. 2019;27(3):516-27. http://dx.doi.org/10.1590/1983-80422019273336.
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Outros fatores também contribuem para o surgimento de tais dilemas entre os profissionais, tais como; o pouco conhecimento sobre assistência terminal; a falta de tempo; a relação interprofissional; a definição incerta do quadro do enfermo; e a relação equipe-paciente e suas dificuldades comunicativas.44 Alcântara FA. Dilemas éticos em cuidados paliativos: revisão de literatura. Rev Bioet. 2020;28(4):704-9. http://dx.doi.org/10.1590/1983-80422020284434.
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Percebe-se a contribuição dos princípios éticos para elucidar dilemas morais e sejam tomadas decisões nos cuidados ao fim da vida, os quais fazem parte da prática dos profissionais de saúde que lidam com o paciente nessa fase. Sendo assim, o presente estudo tem por objetivo refletir sobre a prática assistencial do cuidado ao paciente com doença terminal sob a ótica da ética e da moral.

MÉTODO

Trata-se de um estudo teórico-reflexivo realizado a partir da análise crítica de textos filosóficos sobre ética e moral no contexto do desenvolvimento moral humano e das práticas de saúde. As considerações foram organizadas de acordo com seções temáticas provenientes das discussões e reflexões realizadas durante a leitura dos textos, as quais contribuíram para a elaboração das três seções do artigo, quais sejam: i) Moral antiga e moral moderna e as práticas de cuidado em saúde; ii) O imperativo categórico de Kant e a conservação da vida; iii) Ética e cuidados ao fim da vida a partir do princípio da responsabilidade de Hans Jonas: o direito de morrer.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Moral antiga e moral moderna e as práticas de cuidado em saúde

Para a discussão que se pretende desenvolver nesta categoria, as ideias de Victor Brochard subsidiaram a aproximação com o conceito de moral. Tal escolha não se reveste de acaso, pois Brochard foi um renomado professor e filósofo francês do século XIX conhecido por suas obras sobre ceticismo antigo e filosofia grega, tendo deixado uma grande contribuição para a história desse campo de estudo. Entre seus trabalhos, o autor publicou estudos sobre os pensamentos de filósofos gregos como Platão, Sócrates e Epicuro e, num artigo em específico, aprofundou as diferenças marcantes entre a moral antiga e a moral moderna. Quanto à moral antiga, destacou a ausência das ideias de dever e obrigação, as quais estão fortemente presentes na concepção de moral moderna.55 Brochard V. A moral antiga e a moral moderna. Cad Ética Filos Polít [Internet]. 2006; [citado 2021 set 27];1(8):131-46. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/cefp/article/view/163520/157218
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Para os antigos filósofos gregos, a moral como forma de lei ou mandamento jamais fora concebida. Ela era vista como uma opção a ser seguida, apresentando-se na forma de conselhos, não de ordens. Assim, a moral era um ideal a ser imitado ou um modelo a ser seguido a fim de alcançar um bem supremo, a felicidade na vida presente. De modo inverso, na moral moderna, a junção da ideia de dever e felicidade se torna contraditória, pois o bem realizado pelo homem visando à sua própria felicidade não seria uma obrigação. Portanto, a moral moderna opera em forma de apelo para a consciência; já para os gregos, sem a existência de uma ideia de dever, não poderia haver ordens prescritas pela consciência.55 Brochard V. A moral antiga e a moral moderna. Cad Ética Filos Polít [Internet]. 2006; [citado 2021 set 27];1(8):131-46. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/cefp/article/view/163520/157218
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Atribuir o caráter de dever para a moral e compreendê-la como obrigação a ser cumprida possibilita o surgimento dos dilemas morais vistos tão frequentemente na atualidade. No campo da saúde, se o progresso biotecnológico permitiu o avanço de métodos diagnósticos e terapêuticos, também possibilitou o surgimento de questões que envolvem assuntos relacionados à vida, à morte e aos direitos humanos nas tomadas de decisões sobre saúde. Exemplo disso são os dilemas éticos relacionados aos cuidados neonatais em fim de vida a recém-nascidos com má formações congênitas graves. Os problemas surgem desde o diagnóstico no pré-natal, e o principal desafio é encontrar critérios que permitam conciliar proteção dos direitos do paciente, expectativas dos pais que buscam minimizar sua dor e a não realização de medidas terapêuticas fúteis por parte da equipe.66 Leite H, Gonçalves G, Gazzola L. O feto e o recém-nascido com condições genéticas e congênitas graves: aspectos bioéticos e jurídicos no Brasil. Rev Bio y Der. 2020;49(49):141-54. http://dx.doi.org/10.1344/rbd2020.49.28624.
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Dilemas semelhantes são encontrados em relação à doação de órgãos, pois são levantadas dúvidas sobre o verdadeiro significado da vida e da morte. Embora a ausência de atividade cerebral e do tronco encefálico permita considerar que o paciente tenha falecido, a retirada do suporte vital gera desconforto em profissionais e familiares, pois ainda parece existir vida pelo fato de as batidas do coração continuarem, mesmo que por recursos terapêuticos externos. Desse modo, os conflitos éticos são vivenciados em função da dificuldade em lidar com a finitude humana e aceitar a morte encefálica, o que gera resistência dos profissionais para iniciar o protocolo que comprove essa morte.77 Araújo MN, Massarollo MCKB. Conflitos éticos vivenciados por enfermeiros no processo de doação de órgãos. Acta Paul Enferm. 2014;27(3):215-20. http://dx.doi.org/10.1590/1982-0194201400037.
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Nas práticas de saúde, a morte é considerada um fracasso a ser combatido. A incorporação do arsenal tecnológico possibilitou um adiamento prolongado da morte. Consequentemente, isso leva a uma atitude obstinada do profissional para manter o paciente vivo enquanto possível, pois a vida é entendida como um bem sagrado.88 Resolução CFM nº 1.805/2006 (BR). Diário Oficial da União [periódico na internet], Brasília (DF), 28 nov 2006: Seção 1: 169 [citado 2021 mar 23]. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2006/1805
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Essa visão da moral como dever foi sendo estabelecida com o advento do cristianismo, a partir da promessa de uma vida eterna. Nessa perspectiva, as ações morais seriam um movimento de renúncia, com a esperança de encontrar uma felicidade maior num outro mundo. A ideia do dever na moral deriva, essencialmente, do ponto de vista religioso, como de uma dívida com Deus.55 Brochard V. A moral antiga e a moral moderna. Cad Ética Filos Polít [Internet]. 2006; [citado 2021 set 27];1(8):131-46. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/cefp/article/view/163520/157218
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O entrelaçamento da moral moderna com a teologia permeia muito dos dilemas bioéticos presentes no contexto de cuidados ao paciente em finitude. Muitos profissionais fundamentam, suas decisões em crenças de fundo religioso, justificando-se por meio da fé e valores pessoais, o que gera instabilidade emocional e insegurança no que se refere às condutas.33 Sousa GM, Lustosa MA, Carvalho VS. Dilemas de profissionais de unidade de terapia intensiva diante da terminalidade. Rev Bioet. 2019;27(3):516-27. http://dx.doi.org/10.1590/1983-80422019273336.
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Na prática profissional, valores e crenças influenciam o cuidado de enfermagem e interferem diretamente no comportamento dos profissionais, impactando em como a assistência é prestada aos pacientes e familiares. Ademais, esses valores e crenças causam reações de afastamento e pouco envolvimento nas situações de terminalidade.33 Sousa GM, Lustosa MA, Carvalho VS. Dilemas de profissionais de unidade de terapia intensiva diante da terminalidade. Rev Bioet. 2019;27(3):516-27. http://dx.doi.org/10.1590/1983-80422019273336.
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,99 Ramos FRS, Vargas MAO, Schneider DG, Barlem ELD, Scapin SQ, Schneider AMM. Conflito ético como desencadeador de sofrimento moral: survey com enfermeiros brasileiros. Rev Enferm UERJ. 2017;25:e22646. http://dx.doi.org/10.12957/reuerj.2017.22646.
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Segundo Brochard, a visão da moral moderna, cercada de valores e crenças pessoais, poderia ser contornada se fosse completamente separada da teologia e se tornasse puramente filosófica, científica e racional, eliminando as ideias de dever e obrigação. Para o autor, as ideias de moral não seriam contraditórias, posto que, para a razão e para a ciência, o fim supremo é o bem, entendido como a felicidade. Ambas seriam apenas duas expressões de uma mesma verdade: uma seria apresentada sob perspectiva da razão e da ciência, e a outra, da crença popular. O autor propõe revisão do processo de entendimento da moral moderna, sem, contudo, retornar pura e simplesmente ao conceito antigo de moral.55 Brochard V. A moral antiga e a moral moderna. Cad Ética Filos Polít [Internet]. 2006; [citado 2021 set 27];1(8):131-46. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/cefp/article/view/163520/157218
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A moral estabelece relação de interdependência e complementaridade com a ética. Ambos os conceitos são relacionados à ação humana e aos fatores determinantes na escolha de uma conduta. Enquanto a moral compreende as normas históricas e sociais acatadas de forma livre e consciente pelos indivíduos para organizar as relações interpessoais, de um ponto de vista mais amplo, o papel de estudar os atos morais, buscando compreender as normas e as proibições de cada sistema na sociedade e sua retidão diante da ordem moral, está atribuído à ética.1010 Figueiredo AM. Ética: origens e distinção da moral. Saúde, Ética Justiça. 2008;13(1):1-9. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2317-2770.v13i1p1-9.
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O filósofo Immanuel Kant,1111 Kant I. Metafísica dos costumes. Tradução de Clélia Aparecida Martins, Bruno Nadai, Diego Kosbiau e Monique Hulshof. 1. ed. Petrópolis: Editora Universitária São Francisco; 2013. 320 p. em sua definição de ética, também traz o termo “dever”, tão fortemente presente na reflexão sobre a moral moderna aqui discutida. Além disso, o autor formulou a ideia do imperativo categórico, bem como outros pensamentos relacionados ao dever, apresentados brevemente a seguir e nos quais buscamos estabelecer relações com as práticas assistenciais de saúde nos cuidados ao fim da vida, já que as ideias provenientes de Kant estão relacionadas à compreensão das ações humanas.

O imperativo categórico de Kant e a conservação da vida

Em seu livro Metafísica dos Costumes, Immanuel Kant postula que a ética diz respeito à legislação interna que faz da ação um dever, o qual, por si próprio, é o agente que mobiliza o homem a agir de acordo com a lei. Ou seja, a própria ideia do dever já é suficiente para a gerar a ação. Outra característica apontada pelo autor é o fato de que a legislação ética não pode ser externa, o qual exclui, do seu escopo, a vontade divina.1111 Kant I. Metafísica dos costumes. Tradução de Clélia Aparecida Martins, Bruno Nadai, Diego Kosbiau e Monique Hulshof. 1. ed. Petrópolis: Editora Universitária São Francisco; 2013. 320 p.

A ideia da abordagem ética fundamentada na noção de dever foi difundida a partir das formulações dos imperativos categóricos de Kant, que seriam sentimentos de normas comuns a todos os seres humanos, tendo como base valores considerados absolutos.1212 Mongiovi VG. Ética profissional e formação em enfermagem: a concepção dos docentes. [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2013 [citado 2021 jun 4]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/24337
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Em seu conceito de imperativo categórico, Kant relata que, do ponto de vista da moral, certas ações são permitidas ou não. Essas ações, sendo moralmente necessárias — não pelos fins que podem ser alcançados por elas, mas pela sua própria representação —, tornam-se obrigatórias, constituindo-se um dever. Logo, o imperativo representa uma lei prático-moral, na qual o cumprimento ou não dessas ações levaria a sensações denominadas de sentimento moral, que seria a percepção de adequação, derivada da conformidade ou do conflito da nossa ação com o dever moral.1111 Kant I. Metafísica dos costumes. Tradução de Clélia Aparecida Martins, Bruno Nadai, Diego Kosbiau e Monique Hulshof. 1. ed. Petrópolis: Editora Universitária São Francisco; 2013. 320 p.

Um conceito semelhante, frequentemente associado no contexto da assistência de saúde e da enfermagem, é o de sofrimento moral. Esse sofrimento seria o surgimento de sentimentos dolorosos decorrentes de ações que o próprio sujeito percebe como incorretas, seja pela sua realização ou por sua omissão. Muitas vezes, em suas práticas de cuidado, o enfermeiro precisa questionar, refletir e agir em defesa dos interesses do paciente, fazendo com que assuma uma responsabilidade moral, atuando como uma espécie de advogado do paciente. Diante de situações consideradas inadequadas, o sofrimento moral seria gerado quando o enfermeiro não cumpre com esse papel de acordo com seus princípios.1313 Barlem ELD, Lunardi VL, Lunardi GL, Tomaschewski-Barlem JG, Silveira RS, Dalmolin GL. Sofrimento moral em trabalhadores de enfermagem. Rev Latinoam Enferm. 2013;21:1-9. https://doi.org/10.1590/S0104-11692013000700011.
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A defesa dos direitos do paciente integra o conceito de advocacy em saúde, que seria a realização de ações que buscam reivindicar direitos juridicamente garantidos e que não são respeitados. Na prática da enfermagem, o comprometimento com o advocacy pode auxiliar no enfrentamento de conflitos éticos ao fim da vida, além de assegurar a autonomia do profissional e do paciente, bem como o direito à informação e à comunicação. Portanto, o exercício do advocacy pelo enfermeiro envolve ações que objetivam, por exemplo: usar o conhecimento sobre a doença e tratamentos para orientar os pacientes e ajudá-los a tomar decisões; priorizar a consideração das reais necessidades dos pacientes; e planejar o cuidado com vistas a evitar conflitos.1414 Neves FB, Vargas MAO, Zilli F, Trentin D, Huhn A, Brehmer LCF. Advocacia em saúde na enfermagem oncológica: revisão integrativa da literatura. Esc Anna Nery. 2021;25(1):e20200106. http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2020-0106.
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Corroborando as ideias de Kant sobre as percepções advindas da realização ou não de determinadas ações, podemos pensar que os dilemas morais presentes no contexto dos cuidados ao fim da vida dizem respeito, justamente, ao sentimento de inadequação àquilo que se toma como dever. Além da dificuldade de lidar com a morte — que pode gerar, no profissional, sentimento de tristeza, impotência e fracasso,1515 Silveira LC, Brito MB, Portella SDC. Os sentimentos gerados nos (as) profissionais enfermeiros (as) diante o processo morte/morrer do paciente. Rev Enf Contemp. 2016;4(2):152-69. http://dx.doi.org/10.17267/2317-3378rec.v4i2.256.
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quando considera a morte como algo a ser combatido —, a não realização de medidas visando à cura pode ser vista, pelo profissional de saúde, como violação do dever para com a vida.

Kant considera que a conservação da vida é o primeiro dever do homem para consigo. O contrário desse dever seria a morte física voluntária, ou seja, o suicídio. Além de considerar transgressão do dever para consigo mesmo, o autor compreende essa ação uma transgressão do dever para com os outros, abandonando funções sociais, como a de pai, por exemplo.1111 Kant I. Metafísica dos costumes. Tradução de Clélia Aparecida Martins, Bruno Nadai, Diego Kosbiau e Monique Hulshof. 1. ed. Petrópolis: Editora Universitária São Francisco; 2013. 320 p.

Para o filósofo, a conservação da vida é um dever, ainda que o indivíduo aja contra sua vontade interna de morrer, o que definiria essencialmente a atitude moral. Em Kant, o princípio de autonomia de decidir sobre a própria vida seria o que tornaria a ação como algo moral; pois, ao decidir manter a própria vida, mesmo diante de um grande sofrimento, o indivíduo escolheu agir de acordo com o seu dever.1616 Foderario VE, Zacanaro L. A eutanásia voluntária vista a partir do princípio de autonomia em Kant. Anais do 7º Seminário de Pesquisa em Ciências Humanas; VII Seminário de Pesquisa em Ciências Humanas [Internet]; 2008 set. 17-19; Londrina. Londrina (PR): Eduel; 2008 [citado 2021 maio 18]. Disponível em: http://www.uel.br/eventos/sepech/sepech08/anais_capa.htm
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Se vista a partir da perspectiva de uma lei universal ou um imperativo, como proposto por Kant, a ideia do dever de conservar a vida pode levar ao surgimento dos dilemas morais que permeiam as ações de saúde no contexto dos cuidados ao fim da vida. Isso pode conduzir à atitude profissional de obstinação terapêutica e ao uso exagerado de tecnologias para manutenção artificial da vida a qualquer custo.

Tal comportamento profissional está presente na definição da distanásia, que acontece quando são adotadas medidas terapêuticas consideradas fúteis ao paciente sem expectativa de cura, pois tais medidas também podem ampliar a dor e o sofrimento do paciente. Portanto, a distanásia pode ser considerada um tratamento desumano, que desrespeita a dignidade do paciente, estando presente quando o uso da tecnologia se configura como principal foco dos tratamentos de saúde.1717 Paiva FCL, Almeida Jr JJ, Damásio AC. Ética em cuidados paliativos: concepções sobre o fim da vida. Rev Bioet. 2014;22(3):550-60. http://dx.doi.org/10.1590/1983-80422014223038.
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Diante de conflitos morais e da necessidade de realizar escolhas na assistência de saúde, a negociação entre os envolvidos é essencial para assegurar o cumprimento de direitos e deveres, além de possibilitar que benefícios sejam alcançados. Para tanto, é necessário que os profissionais de saúde estejam comprometidos com o cuidado moralmente válido e sustentado por princípios éticos que respeitem e valorizem o outro, seja o paciente, a família ou a equipe multiprofissional, permitindo que suas subjetividades e os valores sejam expostos e considerados na tomada de decisão.1818 Medeiros MB, Pereira ER, Silva RMCRA, Silva MA. Dilemas éticos em UTI: contribuições da Teoria dos Valores de Max Scheler. Rev Bras Enferm. 2012;65(2):276-84. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-71672012000200012. PMid:22911410.
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Nessa perspectiva, o código de ética de enfermagem afirma que o respeito aos direitos humanos é inerente ao exercício da categoria, pois os profissionais participam da assistência de saúde em todas as fases da vida, sendo responsáveis pela promoção, pela restauração da saúde, pela prevenção de doenças e pelos agravos, além do alívio do sofrimento, considerando a integralidade do ser humano e respeitando a vontade da pessoa ou de seu representante legal.1919 Resolução COFEN nº 564/2017 (BR). Aprova o novo Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem. Diário Oficial da União [periódico na internet], Brasília (DF), 6 nov 2017 [citado 2021 mar 23]. Disponível em: http://biblioteca.cofen.gov.br/wp-content/uploads/2019/11/C%C3%B3digo-de-%C3%89tica-dos-profissionais-de-Enfermagem.pdf
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O desejo de fazer aquilo que se acredita ser o certo e mais adequado ao paciente está entre as características necessárias para se ter uma motivação benevolente, um dos componentes da sensibilidade moral. Esse conceito é relacionado ao desenvolvimento de raciocínio moral e de habilidades para aplicar princípios diante de problemas éticos, bem como direcionar tomadas de decisão fundamentadas nos melhores benefícios dos pacientes nos cuidados de enfermagem. Além da motivação benevolente, a consciência moral — que seria agir de acordo com o código de ética — e a percepção moral espontânea — relativo à capacidade de reconhecer problemas éticos — estão entre os outros componentes da sensibilidade moral dos enfermeiros.2020 Schallenberger CD, Tomaschewski-Barlem JG, Barlem ELD, Rocha LP, Dalmolin GL, Pereira LA. Moral sensitivity components identified among nurses from Intensive Care Units. Rev Bras Enferm. 2019;72(Supl. 1):2-8. http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0202. PMid:30942338.
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Além dos componentes citados, o raciocínio clínico e crítico, a autonomia profissional, a comunicação efetiva, a liderança, a educação ética, o diálogo e a boa relação com a equipe são relevantes atributos da sensibilidade moral para direcionar tomadas de decisão fundamentadas nos melhores benefícios dos pacientes perante os conflitos éticos presentes nos cuidados de enfermagem.2020 Schallenberger CD, Tomaschewski-Barlem JG, Barlem ELD, Rocha LP, Dalmolin GL, Pereira LA. Moral sensitivity components identified among nurses from Intensive Care Units. Rev Bras Enferm. 2019;72(Supl. 1):2-8. http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0202. PMid:30942338.
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Em contraponto à ideia de moral e ética como prescritoras de ações com um fim em si mesmas — ou seja, que são realizadas pela ideia do dever —, tem-se o surgimento da ética da responsabilidade, do filósofo Hans Jonas.2121 Hans J. Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio responsabilidade. 1. ed. São Paulo: Paulus; 2013. 328 p. Poderemos ver a preocupação do autor ao expor a necessidade de refletir sobre as consequências das ações realizadas no campo da saúde e a relevância de defender a autonomia e a dignidade do paciente ao fim da vida, ideias apresentadas a seguir.

Ética e cuidados ao fim da vida a partir do princípio da responsabilidade de Hans Jonas: o direito de morte

O filósofo Hans Jonas, ao falar sobre a ética da responsabilidade, preocupa-se com os avanços da ciência e seus impactos na permanência da vida humana sobre a Terra. O autor defende que as ações humanas devem ser pautadas em escolhas conscientes sobre si e nas implicações que elas podem causar ao próximo e às futuras gerações. Para ele, a libertação alcançada pelo avanço da tecnologia tem limites, e sua adequada aplicação só é possível quando fundamentada na responsabilidade. O autor destaca também o cuidado como aquilo que diferencia as relações do homem entre a tecnologia e os seres humanos.2121 Hans J. Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio responsabilidade. 1. ed. São Paulo: Paulus; 2013. 328 p.

Diferenciando-se da ética tradicional — que se fundamenta apenas no “aqui e no agora” e não consegue controlar os efeitos dos riscos das utilizações tecnológicas —, a ética da responsabilidade é baseada em elementos ontológicos, mostrando-se adequada para evitar situações catastróficas, contemplando o dever para com a natureza e aquele que ainda não existe. Além disso, o princípio defende que, diante da incerteza científica, é preciso cautela, responsabilidade e precaução. Um dos pontos principais do pensamento de Jonas é chamar a atenção para o fato de que as tecnologias podem ser usadas tanto para o bem como para o mal e que precisamos fazer bom uso delas inclusive para lidar com as próprias consequências negativas de seu uso.2222 Hupffer HM, Engelmann W. O princípio responsabilidade de H. Jonas como contraponto ao avanço (ir)responsável das nanotecnologias. Rev Direito e Práx. 2017;8(4):2658-87. http://dx.doi.org/10.1590/2179-8966/2017/26193.
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Na esfera dos cuidados ao fim da vida, Hans Jonas assume que o prolongamento excessivo da vida e o adiamento da morte é uma postura que vai contra a responsabilidade do profissional de saúde, podendo, inclusive, estar em desacordo com a vontade do paciente, o qual é submetido a uma situação que causa sofrimento, tendo em vista o uso exagerado das tecnologias.2121 Hans J. Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio responsabilidade. 1. ed. São Paulo: Paulus; 2013. 328 p. Desse modo, percebe-se o posicionamento do autor sobre a distanásia, prática sobre a qual ele se mostra abertamente contra. Tal atitude pode ser fortalecida em instituições de saúde e sociedades que supervalorizam a tecnologia, nas quais o curar reina sobre o cuidar e a morte se torna uma ameaça à principal função dos hospitais: a cura.2323 Feio AGO, Oliveira CC. Responsabilidade e tecnologia: a questão da distanásia. Rev Bioet [Internet]. 2011; [citado 2021 maio 22];19(3):615-30. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=361533257002
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Estabelecer discussões entre os sujeitos envolvidos no processo de terminalidade é fundamental para que decisões mais justas sejam tomadas, visando à não realização de terapias fúteis. Em quadros clínicos tidos como irreversíveis, é de suma importância estabelecer diálogos que possam esclarecer as dúvidas dos familiares e demonstrar as possíveis formas de tratamento que possam oferecer conforto e minimização do sofrimento do paciente. Atitudes que objetivam auxiliar o paciente a superar sentimentos de dependência também devem ser levadas em consideração, contribuindo para o respeito de sua autonomia.2424 Santana JCB, Pessini L, Sá AC. Desejos dos pacientes em situação de terminalidade: uma reflexão bioética. Enferm Rev [Internet]. 2015; [citado 2022 maio 6];18(1):28-48. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/enfermagemrevista/article/view/9367/10325
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Em oposição à prática da distanásia, está o conceito de ortotanásia, que seria o processo em que a vida se encerra de forma natural, sem a adoção de intervenções extraordinárias diante da morte iminente do paciente, tendo como objetivo humanizar o processo. O conceito é reconhecido pelo poder jurídico brasileiro e associado à necessidade de cuidados efetivos, como o controle da dor. Ademais, é visto como melhoria de políticas públicas e fiscalização da saúde suplementar.2525 Dadalto L. Morte digna para quem? O direito fundamental de escolha do próprio fim. Pensar. 2019;24(3):1-11. http://dx.doi.org/10.5020/2317-2150.2018.9555.
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Entretanto, a identificação de condutas distanásicas na prática assistencial ainda é comum, mesmo com o conhecimento da definição e da importância de cuidados ao fim da vida fundamentados nos princípios da ortotanásia.2626 Silva RS, Evangelista CLS, Santos RD, Paixão GPN, Marinho CLA, Lira GG. Percepção de enfermeiras intensivistas de hospital regional sobre distanásia, eutanásia e ortotanásia. Rev Bioet. 2016;24(3):579-89. http://dx.doi.org/10.1590/1983-80422016243157.
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Ainda estabelecendo reflexões sobre o fim da vida, Hans Jonas aprofunda mais a temática ao falar sobre o direito de morte. Para ele, esse direito nasce quando o indivíduo se encontra numa situação em que lhe é imposta uma obrigação de viver, estando a sua morte sob o controle de outro ser humano. Esses pacientes estariam gravemente enfermos e expostos a tecnologias para o adiamento da morte. No entendimento de Hans, elas levam à extensão do padecimento e a um sobreviver precário, tornando questionável até que ponto os direitos do indivíduo estão sendo preservados.2121 Hans J. Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio responsabilidade. 1. ed. São Paulo: Paulus; 2013. 328 p. A percepção do filósofo encontra base sólida nos princípios dos cuidados paliativos, os quais não buscam postergar nem acelerar a morte, mas fornecer qualidade de vida ao paciente que enfrenta uma doença ameaçadora à continuidade da vida, buscando assegurar sua dignidade.2727 World Health Organization. National câncer control programmes: policies and managerial guidelines [Internet]. 2. ed. Geneva; 2002. 203 p. [citado 2021 maio 10]. Disponível em: https://apps.who.int/iris/handle/10665/42494
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Dois exemplos propostos por Hans Jonas ilustram seu posicionamento. Consideremos dois pacientes: um consciente, em um estágio terminal de câncer avançado; o outro inconsciente, em estado de coma irreversível. Para que, no primeiro caso, o indivíduo possa exercer seu direito de morte, ele primeiro deve ser completamente esclarecido de sua condição para que possa exercer sua autonomia e decidir livremente como gostaria de viver seu tempo restante. Dessa maneira, o direito de morte se torna inseparável do direito à autonomia, sendo dever do profissional permitir que o paciente tome uma decisão informada, não omitindo a verdade, de forma a não anular o seu direito.2121 Hans J. Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio responsabilidade. 1. ed. São Paulo: Paulus; 2013. 328 p.

A autonomia do paciente nas situações expostas pelo filósofo é um dos princípios fundamentais da ética na saúde: impõe que profissionais e familiares respeitem as decisões tomadas pelo paciente, inclusive quanto aos aspectos do suporte de vida. Desse modo, a comunicação entre os sujeitos envolvidos nesse processo deve ocorrer de forma aberta e honesta, permitindo a livre expressão da liberdade de escolha do paciente — inclusive se ele desejar não tratar de questões relacionadas ao fim da vida —, contribuindo, assim, para o cuidado pautado na valorização de suas necessidades e singularidades.2828 Associação Beneficente Síria. Alocação justa de recursos em cenário de escassez [Internet]. São Paulo; 2021. Versão 1.1 [citado 2021 maio 23] Disponível: https://shortest.link/2Ohu
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No caso do paciente inconsciente, já sem condições de escolher seu tratamento por si mesmo, Hans Jonas esclarece que não se poderia mais falar num direito de morte no sentido literário, pois, para que haja um direito, é necessário um sujeito que o solicite. No entanto, o autor sugere que uma declaração de vontade previamente redigida pelo indivíduo serviria como apoio moral em tais situações, indicando sua aceitação também no âmbito jurídico. A ideia proposta apresenta, na atualidade, semelhanças com o conceito de diretivas antecipadas de vontade (DAV), gênero de manifestação escrita de preferências pessoais sobre cuidados de saúde, que entram em vigor somente quando o paciente não for mais capaz de expressar sua vontade.2929 Thompson MD. JAMA patient page. Advance directives. JAMA. 2015;313(8):868. http://dx.doi.org/10.1001/jama.2015.133. PMid:25710673.
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As DAV são reconhecidas como instrumento parcialmente facilitador para resolver indecisões sobre condutas a serem tomadas e conflitos que envolvem a terminalidade. Além disso, elas estimulam o diálogo aprofundado sobre os desejos e as vontades do paciente e, preferencialmente, não devem ser escritas no contexto do fim da vida, no qual pode existir uma sobrecarga emocional.3030 Nogario ACD, Barlem ELD, Tomaschewski-Barlem JG, Silveira RS, Cogo SB, Carvalho DP. Advance directives of patients: process of implementation by palliative care teams. Rev Bras Enferm. 2020;73(Supl. 6):e20190567. http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2019-0567. PMid:33338126.
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No Brasil, não existe legislação que regulamente as DAV, apenas algumas resoluções publicadas por categorias profissionais de saúde. No âmbito da enfermagem, a Resolução nº 564/2017 cita o assunto em seu segundo capítulo: determina que é dever do profissional de enfermagem respeitar as diretivas antecipadas sobre cuidados e tratamentos do paciente incapaz de expressar suas vontades. Além disso, a Resolução também declara que é dever da enfermagem respeitar o direito do exercício da autonomia do paciente e de seu representante legal em tomadas de decisão sobre sua saúde e demais aspectos envolvidos, considerando os princípios éticos e legais.1919 Resolução COFEN nº 564/2017 (BR). Aprova o novo Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem. Diário Oficial da União [periódico na internet], Brasília (DF), 6 nov 2017 [citado 2021 mar 23]. Disponível em: http://biblioteca.cofen.gov.br/wp-content/uploads/2019/11/C%C3%B3digo-de-%C3%89tica-dos-profissionais-de-Enfermagem.pdf
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De toda forma, Hans Jonas acredita que, nos casos irreversíveis — em que o paciente é mantido em vida somente a custo de aparelhos artificiais —, moralmente, a retirada do suporte é um direito profissional ou mesmo uma obrigação. Assim, permitir a morte da pessoa mantida artificialmente é dar ouvidos à razão e à humanidade, pondo fim à degradação de uma existência forçada. Quanto aos profissionais da saúde, o filósofo entende que a postura deve ser de “guardiões da integridade” humana; entretanto, tal postura exige um olhar metafísico para a vida e a morte, terminando com o argumento pela permissão do direito de morte sustentado pelo princípio de justiça social.2121 Hans J. Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio responsabilidade. 1. ed. São Paulo: Paulus; 2013. 328 p.

Para Hans Jonas, é preciso repensar as medidas empreendidas no processo de cuidar do paciente em fim de vida, tendo sempre em vista o princípio da responsabilidade como uma ética do cuidado e o pensamento de que a morte, assim como o nascimento, é um processo natural.2121 Hans J. Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio responsabilidade. 1. ed. São Paulo: Paulus; 2013. 328 p. Dessa forma, podemos entender que o cuidado em saúde pautado no princípio da responsabilidade impulsiona o profissional à reflexão e à conscientização sobre o uso equilibrado das tecnologias de suporte vital, evitando ao máximo seu impacto negativo sobre a dignidade do paciente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS E IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA

A partir da leitura dos filósofos apresentados, percebe-se que a compreensão do conceito de moral se apresenta de modo diverso em distintos momentos da humanidade. No entanto, seja amparada na moral que recebe influência religiosa ou na moral como ideal de felicidade, a prática dos profissionais de saúde sofre influência direta de tais posicionamentos, determinando suas escolhas no processo de tomada de decisão ao cuidar do paciente em fim de vida.

A moral kantiana, ainda que tendo rompido com a influência da teologia, considera a conservação da vida como um dever primário, e tal atitude seria o que caracterizaria a ação como algo moral. O imperativo categórico, nessa perspectiva, possibilita o surgimento de práticas distanásicas, pois o sentimento moral perante o fim da vida seria o de manutenção da vida.

Como rompimento de tais pensamentos, o princípio da responsabilidade de Hans Jonas e a ideia do “direito de morte” encontram convergências com os fundamentos dos cuidados paliativos ao considerarem a qualidade de vida do indivíduo como tão valorosa quanto à vida em si, mais do que a quantidade de vida. São introduzidos conceitos de autonomia sobre as escolhas que envolvem os valores e as preferências do paciente ao fim da vida, trazendo, inclusive, um esboço do que seriam as diretivas antecipadas de vontade.

Refletimos, assim, que as práticas dos profissionais de saúde ao paciente em fim de vida apresentam, nas entrelinhas do processo de cuidar, influência das distintas concepções sobre moral e ética discutidas neste estudo. O conhecimento de tais perspectivas filosóficas possibilita reflexão crítica sobre a finitude humana e reconsideração de condutas neste processo, resultando em tomadas de decisões éticas e autônomas que valorizem a dignidade dos sujeitos e mitiguem, ao máximo, o sofrimento presente na terminalidade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    16 Mar 2022
  • Aceito
    01 Jun 2022
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