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Segurança do paciente em tempos de pandemia: reflexão a partir dos atributos de qualidade do cuidado

Seguridad del paciente en tiempos de pandemia: reflexión basada en los atributos de la calidad de la atención

Resumo

Objetivo

discutir a segurança do paciente sob um enfoque teórico e nos atributos de qualidade em saúde, no contexto da pandemia pelo novo coronavírus.

Método

reflexão desenvolvida com base nas dimensões estrutural, particular e singular, contidas na Teoria da Intervenção Práxica da Enfermagem em Saúde Coletiva e nos atributos da qualidade em saúde de Donabedian, e no Programa de Avaliação de Desempenho dos Serviços de Saúde.

Resultados

as mudanças drásticas e repentinas no cenário de assistência à saúde, ocasionadas pela pandemia, constituíram-se em risco adicional à oferta de uma assistência segura. Isto pode ser evidenciado por meio da ruptura dos atributos adequação, segurança, acesso/oportunidade, equidade e efetividade.

Conclusão e implicações para a prática

o contexto pandêmico atual representou uma séria ameaça à qualidade do cuidado e à segurança do paciente. O desafio é repensarmos a consolidação de boas práticas de saúde, a partir do investimento em organizações seguras, considerando os atributos/domínios da qualidade do cuidado em saúde. Contribui para a reflexão sobre a gestão responsável dos serviços de saúde fundamentada em conhecimentos científicos, e sobre a importância de persistir no fortalecimento do SUS, enquanto estratégia de efetivação dos atributos de qualidade do cuidado.

Palavras-chave:
COVID-19; Gestão da Segurança; Pandemias; Qualidade da Assistência à Saúde; Segurança do Paciente

Resumen

Objetivo

debatir la seguridad del paciente desde un enfoque teórico y sobre la base los atributos de la calidad en salud, en el contexto de la pandemia provocada por el nuevo coronavirus.

Método

reflexión desarrollada a partir de las dimensiones estructural, particular y singular contenidas en la Teoría de la Intervención Práctica de Enfermería en Salud Pública y en los atributos de calidad en salud de Donabedian, al igual que en el Programa de Evaluación del Desempeño de los Servicios de Salud.

Resultados

los cambios drásticos y repentinos en el escenario de atención en salud provocados por la pandemia constituyen un riesgo adicional para la prestación de una atención segura. Esto puede evidenciarse a través de la ruptura de los atributos de adecuación, seguridad, acceso/oportunidad, equidad y eficacia.

Conclusión e implicaciones para la práctica

el actual contexto de la pandemia representó una grave amenaza para la calidad de la atención y la seguridad del paciente. El desafío es que podamos repensar la consolidación de buenas prácticas en salud, a partir de inversiones en organizaciones seguras, considerando los atributos/dominios de la calidad de la atención en salud. Al igual que contribuir a la reflexión sobre una gestión responsable de los servicios de salud basada en el conocimiento científico, al igual que sobre la importancia de persistir en el fortalecimiento del SUS, como estrategia para implementar los atributos de calidad de la atención.

Palabras clave:
Administración de la Seguridad; Calidad de la Atención de Salud; COVID-19; Seguridad del paciente; Pandemias

Abstract

Objective

to discuss patient safety based on a theoretical approach and on the health quality attributes in the context of the new coronavirus pandemic.

Method

a reflection developed based on the structural, particular and singular dimensions contained in the Theory of Practical Intervention of Collective Health Nursing and in the Donabedian health quality attributes, as well as on the Program for Performance Evaluation of Health Services.

Results

the drastic and sudden changes in the health care scenario caused by the pandemic constitute an additional risk to the provision of safe care. This can be evidenced through non-compliance with the adequacy, safety, access/opportunity, equality and effectiveness attributes.

Conclusion and implications for the practice

the current pandemic context represented a serious threat to care quality and patient safety. The challenge is for us to rethink the consolidation of good health practices, based on investment in safe organizations, considering the health care quality attributes/domains. As well as to contribute to the reflection on responsible management of the health services based on scientific knowledge, and on the importance of persisting in strengthening the SUS, as a strategy for implementing the care quality attributes.

Keywords:
COVID-19; Pandemics. Patient Safety; Health Care Quality; Safety Management

INTRODUÇÃO

A segurança do paciente constitui-se na oferta de uma assistência de qualidade, eficiente e, principalmente, livre de danos; definida como a redução, a um mínimo aceitável, do risco de dano desnecessário associado ao cuidado de saúde.11 Portaria n° 529, de 1º de abril de 2013 (BR). Institui o Programa Nacional de Segurança do Paciente. Diário Oficial da União [periódico na internet], Brasília (DF), 2 abr 2013 [citado 20 maio 2015]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt0529_01_04_2013.html
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A qualidade da assistência à saúde é conceituada a partir dos atributos/domínios de qualidade. Neste artigo, serão destacados os atributos, Adequação, Segurança, Acesso/Oportunidade, Equidade e Efetividade, conforme conceituação do Proadess e Donabedian.

Para além do referencial teórico dos atributos de qualidade, utilizar-se-á a Teoria da Intervenção Práxica da Enfermagem em Saúde Coletiva, TIPESC, por entender que esta fundamenta a compreensão ampla da realidade, para além dos fenômenos per se. Permite o olhar sobre seus determinantes: a conjuntura político-econômica-ideológica, contida na totalidade (dimensão estrutural), a qual atravessa a organização dos serviços de saúde (dimensão particular) e os processos assistenciais utilizados pelos trabalhadores da saúde (dimensão singular).22 Egry EY, Fonseca RMGS, Oliveira MAC, Bertolozzi MR. Nursing in collective health: reinterpretation of objective reality by the praxis action. Rev Bras Enferm. 2018;71(Supl. 1):710-5. http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0677. PMid:29562032.
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Há mais de 20 anos, a partir do relatório To Err is Human, disseminou-se a compreensão de que os serviços de saúde, paradoxalmente, à sua missão de cuidar, reabilitar e/ou curar, podem ser fontes de riscos à saúde das pessoas que dele precisam. Concluiu-se que erros ou falhas denominados de incidentes, são passíveis de provocar danos à saúde das pessoas. Os danos são conceituados como eventos adversos, os quais podem ocasionar lesão temporária ou permanente e até mesmo, a morte.33 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (BR). Assistência Segura: uma reflexão teórica aplicada a pratica [Internet]. Brasília: Anvisa; 2017. 168 p. (Série Segurança do Paciente e Qualidade em Serviços de Saúde) [citado 15 maio 2015]. Disponível em: http://www.saude.pi.gov.br/uploads/divisa_document/file/374/Caderno_1_-_Assist%C3%AAncia_Segura_-_Uma_Reflex%C3%A3o_Te%C3%B3rica_Aplicada_%C3%A0_Pr%C3%A1tica.pdf
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A fim de se tornarem ambientes mais seguros, os serviços de saúde têm sido foco de recomendações internacionais pela Organização Mundial de Saúde (OMS), e nacionais, pelo Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP). A OMS e o PNSP apontam a necessidade de adoção de uma estrutura organizacional segura composta por, entre outros, cultura de segurança forte, gestão organizacional, adequações de estrutura e ambiência, capacitação de trabalhadores e adequação de processos de trabalho pertinentes às metas de segurança do paciente estabelecidas nos protocolos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

A adoção de tais recomendações são estimuladas e examinadas anualmente por meio do processo de Avaliação Nacional das Práticas de Segurança do Paciente, realizado pela Anvisa. Os resultados de tais avaliações mostram que somente 68% dos hospitais brasileiros aderiram à participação na autoavaliação, no ano de 2021. Dentre os participantes, no que diz respeito aos indicadores de processo, os quais verificam o grau de adesão dos serviços de saúde às recomendações de segurança, esta adesão ainda apresenta variância significativa, com amplitude entre 48,1% e 89,2%.44 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (BR). Relatório da autoavaliação nacional das práticas de segurança do paciente em serviços de saúde [Internet]. Brasília: Anvisa; 2019. 70 p. [citado 15 maio 2015]. Disponível em: http://antigo.anvisa.gov.br/documents/33852/271855/Relat%C3%B3rio+de+Autoavalia%C3%A7%C3%A3o+Nacional+das+Pr%C3%A1ticas+de+Seguran%C3%A7a+do+Paciente+em+Servi%C3%A7os+de+Sa%C3%BAde+%E2%80%93+2019/faa6381c-b3c3-4210-8ddf-4e93927c64dd
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O que demonstra que ainda é necessário percorrer um longo caminho na conquista de organizações com cultura de segurança fortalecidas.

Diante da preocupação com a segurança do paciente durante a pandemia, a Agência Americana para a Pesquisa e Qualidade em Saúde (ARQH) descreveu erros e danos que podem potencialmente ocorrer durante esse período, como atraso ou erro de diagnóstico, erros relacionados aos fatores humanos e falhas na prevenção e controle de infecções. Para a agência, os erros relacionados ao diagnóstico podem incluir, diagnósticos perdidos ou atrasados em pacientes com problemas respiratórios, atraso ou ausência de diagnóstico de uma condição não COVID-19.55 Stocking JC, Sandrock C, Fitall E, Hall KK, Gale B. Perspectiva anual da AHRQ PSnet: impacto da pandemia de COVID-19 na segurança do paciente. PSnet Patient Safety Network [Internet], 30 mar 2021 [citado 2022 jun 14]. Disponível em: https://psnet.ahrq.gov/perspective/ahrq-psnet-annual-perspective-impact-covid-19-pandemic-patient-safety
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A pandemia também foi atribuída a atrasos nos exames preventivos, no diagnóstico e tratamento do câncer e outras doenças crônicas. Atrasar e/ou adiar o atendimento impactou negativamente nos pacientes, piorando potencialmente os resultados de longo prazo.66 Rosenbaum L. The untold toll: the pandemic’s effects on patients without COVID-19. N Engl J Med. 2020 Jun 11;382(24):2368-71. http://dx.doi.org/10.1056/NEJMms2009984. PMid:32302076.
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Ainda nesse sentido, é válido compreender que as interações entre os seres humanos e seus sistemas de trabalho podem ser úteis para identificar as causas dos erros que resultam de condições humanas. Uma revisão de casos relatados ao Sistema de Relatórios de Segurança do Paciente da Pensilvânia para identificar eventos de segurança do paciente relacionados ao COVID-19, descobriu que muitos estavam associados a fatores humanos, como estresse e exaustão dos trabalhadores de saúde.77 Taylor M, Kepner S, Gardner LA, Jones R. Patient safety concerns in COVID-19-related events: a study of 343 event reports from 71 hospitals in Pennsylvania. PatientSaf. 2020;2(2):16-27. http://dx.doi.org/10.33940/data/2020.6.3.
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A ARQH pontuou também que as práticas de prevenção e controle de infecções foram componentes críticos da estratégia para conter a disseminação do COVID-19 nas unidades de saúde e reduzir o risco de infecção entre os profissionais de saúde. Falhas na adesão às diretrizes e a falta de EPIs limitaram a capacidade dos trabalhadores de desenvolverem suas atividades, principalmente durante os picos no número de pacientes que necessitavam de tratamento.

Nessa direção, estudo de reflexão sobre as ações relacionadas à segurança do paciente diante do novo coronavírus, utilizadas e sugeridas por órgãos reguladores e instituições de saúde, reforçou a importância do resgate de ações e estratégias para o cuidado seguro e de qualidade.88 Báo ACP, Amestoy SC, Bertoldi K, Barreto LNM, Nomura ATG, Silveira JCS. Patient safety in the face of the covid-19 pandemic: theoretical-reflective essay. Res Soc Dev. 2020;9(11):e73091110252. http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v9i11.10252.
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Assim, aponta-se a relevância de refletir, com base em um referencial teórico, sobre os impactos da pandemia na segurança do paciente. Diante do exposto, o objetivo deste artigo foi discutir a segurança do paciente sob o enfoque da Teoria da Intervenção Práxica da Enfermagem em Saúde Coletiva, dos atributos de qualidade de Donabedian e do PROADESS, no contexto da pandemia pelo novo coronavírus.

METODOLOGIA

Estudo descritivo baseado em revisão de literatura, de abordagem qualitativa, além da percepção das autoras a respeito do assunto abordado. A obtenção dos dados realizou-se por meio de artigos científicos disponibilizados na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), MEDLINE (PubMed) e entidades de interesse para a discussão do problema, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Organização Mundial de Saúde e a Associação Médica Brasileira. Adotou-se como critério de inclusão aqueles que contemplassem o tema segurança do paciente, qualidade, gestão da segurança e COVID-19.

Segurança do paciente em tempos de pandemia na perspectiva dos atributos de qualidade por Donabedian e Proadess

Desde o advento da pandemia pelo novo coronavírus, em dezembro de 2019, cientistas e estudiosos do mundo inteiro se dedicam a tentar compreender o agente etiológico da COVID-19. Suas formas de disseminação e medidas de controle; as medidas de biossegurança e mecanismos de proteção da saúde das pessoas globalmente, assim como dos trabalhadores da saúde. Foram grandes as contribuições e muitos os avanços. Assentes nestes conhecimentos produzidos, governos e sociedades tomaram medidas importantes para o controle da disseminação do vírus. Entre elas, o distanciamento social, adoção de medidas de higiene e uso de equipamentos de proteção individual nos serviços de saúde. Ações que contribuíram para a gestão da segurança global da saúde.99 Chou R, Dana T, Buckley DI, Selph S, Fu R, Totten AM. Epidemiology of and risk factors for coronavirus infection in health care workers. Ann Intern Med. 2020;173(2):120-36. http://dx.doi.org/10.7326/M20-1632. PMid:32369541.
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No entanto, mesmo com os avanços da ciência e os esforços globais no enfrentamento a pandemia, a sua emergência instalou um novo contexto de saúde, permeado por instabilidades, incertezas e novas exigências, que se somaram aos riscos já existentes para a segurança do paciente. Ancorados na Teoria da Intervenção Práxica da Enfermagem em Saúde Coletiva, compreende-se que as ameaças à segurança do paciente, neste contexto pandêmico, podem advir de três origens: estrutural, advindas da organização ou desorganização global no enfrentamento da mesma, as quais denominamos de ameaças externas; particular, advindas da assistência in loco nos serviços de saúde, e singular, concernente aos processos assistenciais e aos trabalhadores da saúde. As duas últimas denominamos de ameaças internas, ou in loco, embora compreenda-se que essas três dimensões são interconectadas e fazem parte de um todo.22 Egry EY, Fonseca RMGS, Oliveira MAC, Bertolozzi MR. Nursing in collective health: reinterpretation of objective reality by the praxis action. Rev Bras Enferm. 2018;71(Supl. 1):710-5. http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0677. PMid:29562032.
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Donabedian descreve a qualidade do cuidado em saúde e avalia as dimensões (estrutura e processo) necessárias para a medida da qualidade do cuidado e propõe sete atributos, por ele chamados de pilares da qualidade: eficácia, efetividade, eficiência, otimização, aceitabilidade, legitimidade e equidade.1010 Donabedian A. An introduction to quality assurance in health care [Internet]. Oxford: Oxford University Press; 2002 [citado 2021 out 18] Disponível em: https://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=fDSriunx6UEC&oi=fnd&pg=PR17&dq=Donabedian+A.+An+Introduction+to+Quality+Assurance+in+Health+Care&ots=v6BhNIEymw&sig=7s5ejDS9lVZBqa90zTH7_KJ9qPU#v=onepage&q=Donabedian%20A.%20An%20Introduction%20to%20Quality%20Assurance%20in%20Health%20Care&f=false
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No Brasil, o Projeto de Avaliação de Desempenho de Sistemas de Saúde (Proadess), criado após a divulgação do “Relatório Mundial de Saúde” (World Health Report) identifica oito dimensões para a avaliação do desempenho do sistema de saúde: efetividade; acesso; eficiência; respeito aos direitos das pessoas; aceitabilidade; continuidade; adequação e segurança.1111 Fundação Oswaldo Cruz. PROADESS - Programa de Avaliação do Desempenho do Sistema de Saúde [Internet]. 2011 [citado 2021 jul 9]. Disponível em: https://www.proadess.icict.fiocruz.br/index.php?pag=matp
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Desses atributos, cinco apresentam interesse especial para esta reflexão: Adequação, Segurança, Acesso/Oportunidade, Equidade e Efetividade.

Pandemia por coronavírus e segurança do paciente: o perigo que vem de fora

Nesta dimensão, identificada como estrutural, por conter a resposta do sistema de saúde a uma problemática, ancorada em seu arcabouço político, destaca-se a logística de adoção da terapêutica medicamentosa. Esta é de grande valia para a segurança do paciente, visto ser o lócus de maior ocorrência de eventos adversos.1212 de Vries EN, Ramrattan MA, Smorenburg SM, Gouma DJ, Boermeester MA. The incidence and nature of in-hospital adverse events: a systematic review. Qual Saf Health Care. 2008;17(3):216-23. http://dx.doi.org/10.1136/qshc.2007.023622. PMid:18519629.
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E, quanto a isto, assistiu-se a uma celeuma em torno do caso da cloroquina, adotada para tratamento medicamentoso por muitos médicos, amparados pela política nacional equivocada, de combate ao COVID-19 no Brasil, sob os auspícios de dúvidas e estudos conflitantes.1313 Associação Médica Brasileira (BR), Sociedade Brasileira de Infectologia. Informe da Sociedade Brasileira de Infectologia sobre o novo coronavírus n° 15: uso de medicamentos para COVID-19 [Internet]. 2020 [citado 2021 out 19]. Disponível em: https://infectologia.org.br/wp-content/uploads/2020/07/Informe-15-uso-de-medicamentos-para-covid-19.pdf
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A sua utilização, foi assente mais numa inquietação por se fazer algo, e menos em evidências científicas. E tal situação é o que se considera um primeiro grande perigo do contexto de pandemia para a segurança do paciente.

A prática baseada em evidências (PBE) surgida há quase 30 anos e conceituada como “uma capacidade de avaliar a validade e a importância da evidência antes de aplicá-la aos problemas clínicos do dia-a-dia”1414 Dawes M, Summerskill W, Glasziou P, Cartabellotta A, Martin J, Hopayian K et al. Sicily statement on evidence-based practice. BMC Med Educ. 2005;5(1):1. http://dx.doi.org/10.1186/1472-6920-5-1. PMid:15634359.
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, tem sido compreendida e adotada em escala global como elemento necessário à oferta de uma assistência segura. A negligência a esta, fere o atributo “Adequação” da segurança do paciente, conceituado como “grau com que os cuidados prestados às pessoas estão baseados no conhecimento técnico-científico1111 Fundação Oswaldo Cruz. PROADESS - Programa de Avaliação do Desempenho do Sistema de Saúde [Internet]. 2011 [citado 2021 jul 9]. Disponível em: https://www.proadess.icict.fiocruz.br/index.php?pag=matp
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Deste modo, tomar decisões e fundamentar condutas excluindo a utilização da PBE, é desferir um golpe na segurança do paciente. O cuidado em saúde fundamentado nesta é evidência de uma cultura de segurança fortalecida.1515 Sammer CE, Lykens K, Singh KP, Mains DA, Lackan NA. What is patient safety culture? A review of the literature. J Nurs Scholarsh. 2010;42(2):156-65. http://dx.doi.org/10.1111/j.1547-5069.2009.01330.x. PMid:20618600.
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No início da pandemia, a utilização da cloroquina talvez encontrasse alguma justificativa mediante a ausência de estudos sobre sua ineficácia. No entanto, ao tempo em que a pandemia avançou, os estudos científicos também avançaram e mostraram sua ineficácia no tratamento da COVID-19.1616 Imoto MA, Gottems LBD, Branco HPC, Santana LA, Monteiro OLR, Fernandes SES et al. Cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da COVID-19: sumário de evidências. Com Ciênc Saúde [Internet]. 2020; [citado 2022 jun 11];31(Supl. 1):17-30. Disponível em: https://revistaccs.escs.edu.br/index.php/comunicacaoemcienciasdasaude/article/view/653
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De outro modo, corroboraram os riscos relacionados ao seu uso. Dessa forma, a persistência na sua indicação e utilização, se configura em atitude de negacionismo, movimento que nos ameaça desde o século XIX, a partir do qual passamos a conviver com grandes epidemias,1717 Troi M, Quintilio W. Coronavírus: lições anti-negacionistas e o futuro do planeta. SciELO em Perspectiva [Internet], 31 mar 2020 [citado 2021 set 15]. Disponível em: https://blog.scielo.org/blog/2020/03/31/coronavirus-licoes-anti-negacionistas-e-o-futuro-do-planeta/
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e que sem dúvidas, fragiliza a segurança do paciente.

Ao lado disso, temos ainda um problema mais grave para discutir a respeito, quando a decisão terapêutica deixa de ser prerrogativa de pessoas com formação e competência para tal, e passa a ser objeto de decisão política.1818 Caponi S, Brzozowski FS, Hellmann F, Bittencourt SC. O uso político da cloroquina: covid-19, negacionismo e neoliberalismo. Revista Brasileira de Sociologia-RBS. 2021;9(21):78-102. http://dx.doi.org/10.20336/rbs.774.
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O que dizer da formulação de kits anti COVID-19, tendo a cloroquina como um de seus itens, esta conhecidamente potencial para produzir efeitos colaterais.1313 Associação Médica Brasileira (BR), Sociedade Brasileira de Infectologia. Informe da Sociedade Brasileira de Infectologia sobre o novo coronavírus n° 15: uso de medicamentos para COVID-19 [Internet]. 2020 [citado 2021 out 19]. Disponível em: https://infectologia.org.br/wp-content/uploads/2020/07/Informe-15-uso-de-medicamentos-para-covid-19.pdf
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Se seu uso, indicado e acompanhado por médicos, já suscita dúvidas, face a consolidação de evidências científicas contrárias a sua indicação, na segunda situação, assente em decisão política, essa confiança torna-se mais nebulosa.

Ambas as situações, condutas profissionais que excluem as evidências científicas e decisões terapêuticas de cunho político, anunciam ameaças à segurança do paciente. A primeira, caracteriza a negligência às práticas baseadas em evidências; na segunda, para além disso, vê-se o envolvimento de atos políticos nas decisões diretas dos cuidados à saúde das pessoas. Faz-se mister lembrar que a premissa basilar de um serviço de saúde é não fazer mal aos seus pacientes “primum non nocere” e, assim sendo, não podemos utilizar procedimentos ou terapêuticas com conhecido risco colateral e evidências fracas no que diz respeito aos benefícios.

No entanto, a ameaça do negacionismo à segurança do paciente não foi um privilégio brasileiro. Ocorrências semelhantes despontaram pelo mundo. Nos Estados Unidos da América (EUA) negligenciou-se a recomendação científica de medidas interruptivas da cadeia de contágio, como testagem em massa e isolamento, em detrimento do investimento em mais ventiladores. O seu presidente chegou usar a frase “EUA, rei dos ventiladores” e, para além disso, disseminaram-se crenças de conspiração acerca da origem do vírus.1919 Lasco G. Medical populism and the covid-19 pandemic. Glob Public Health. 2020;15(10):1417-29. http://dx.doi.org/10.1080/17441692.2020.1807581. PMid:32780635.
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No México, não obstante um dos piores índices de óbitos no mundo, houve resistência factível às restrições de circulação e à testagem em massa.2020 Taylor L. Covid-19: How denialism led Mexico’s disastrous pandemic control effort. BMJ. 2020;371(1):m4952. http://dx.doi.org/10.1136/bmj.m4952. PMid:33380418.
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Na Nicarágua, o extremismo negacionista atingiu o ponto de negar a existência da doença no país e sua transmissão comunitária.2121 Buben R, Kouba K. The causes of disease impact denialism in Nicaragua’s response to covid ‐19. Bull Lat Am Res. 2020;39(S1):103-7. http://dx.doi.org/10.1111/blar.13176.
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Na Índia, o primeiro-ministro Narendra Modi, repreendeu a imprensa alertando sobre a importância de combater a disseminação do pessimismo, negatividade e boatos sobre a COVID-19.2222 The Lancet. Covid-19 in India: the dangers of false optimism. Lancet. 2020;396(10255):867. http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32001-8. PMid:32979962.
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Ao refletir sobre a intervenção direta do Estado nas decisões terapêuticas-assistenciais, faz-se mister lembrar que o Estado é ordenador das políticas de saúde. No caso brasileiro, o ordenador do Sistema Único de Saúde, e não um prescritor de medicamentos. Isso não é óbvio? O Estado forma os prescritores, com qualidade, por meio, especialmente da universidade pública. Não prescreve ou indica quaisquer terapêuticas. O Estado ordena as políticas de enfrentamento às crises de saúde, ou melhor, ordena a organização da rede de assistência à saúde.2323 Paim JS, Teixeira CF. Política, planejamento e gestão em saúde: balanço do estado da arte. Rev Saude Publica. 2006;40(spe):73-8. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102006000400011.
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A ultrapassagem desses limites fragiliza a segurança do paciente, e, consequentemente, engrossa a fila dos possíveis eventos adversos na saúde, contra os quais temos lutado tão arduamente.

Pandemia por coronavírus e segurança do paciente: o perigo in locu

Nos dedicaremos a refletir agora sobre os riscos da pandemia para a segurança do paciente olhando para nós mesmos, enquanto produtores de assistência à saúde. Aqui, podem ser identificadas, a partir da TIPESC, as dimensões particular, organização das instituições de saúde para enfrentamento da pandemia e singular, resposta dos trabalhadores de saúde, por meio de seus processos de trabalho, enquanto totalidade menor.22 Egry EY, Fonseca RMGS, Oliveira MAC, Bertolozzi MR. Nursing in collective health: reinterpretation of objective reality by the praxis action. Rev Bras Enferm. 2018;71(Supl. 1):710-5. http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0677. PMid:29562032.
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A partir da compreensão vigente sobre segurança do paciente não seria possível conduzir a reflexão procurando culpados, mas sim, buscando olhar para as organizações de saúde como um todo, para além de seus atores, profissionais de saúde individualizados.

O escopo da assistência segura inclui ampla gama de elementos, os quais transitam entre pessoas (trabalhadores da saúde, pacientes, gestores), processos de trabalho (protocolos), equipamentos, insumos, medicamentos, tecnologias, ambiência, relações e tantos outros. Desse modo, está imbricado em uma rede complexa de conexões, não sendo possível desvincular um ou outro elemento da importância da oferta de uma assistência segura.

Como afirmado anteriormente, o novo coronavírus apresentou-se com uma série de exigências para seu enfrentamento. Pode-se citar necessidades de adequação quanto ambiência e ventilação;2424 Ge XY, Pu Y, Liao CH, Huang W, Zeng Q, Zhou H et al. Evaluation of the exposure risk of SAR-Cov-2 in different hospital environment. Sustain Cities Soc. 2020;61:102413. http://dx.doi.org/10.1016/j.scs.2020.102413. PMid:32834932.
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número de leitos suficientes para atendimento aos surtos que despontavam paulatinamente em todas as regiões do mundo;2525 Costa DCAR, Bahia L, Carvalho EMCL, Cardoso AM, Souza PMS. Oferta pública e privada de leitos e acesso aos cuidados à saúde na pandemia de Covid-19 no Brasil. Saúde Debate. 2020;44(spe4):232-47. http://dx.doi.org/10.1590/0103-11042020e415.
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equipamentos tecnológicos tais como ventiladores mecânicos, filtros respiratórios e máscaras respiratórias;2626 Schultz-Macedo D, Bastos LG, Lima AMF. Pandemia da covid-19: prospecção bibliométrica e patentária de ventiladores mecânicos alternativos de baixo custo. Revista de Administração Hospitalar e Inovação em Saúde. 2021;18(3):103-22. http://dx.doi.org/10.21450/rahis.v18i3.6826.
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redimensionamento dos trabalhadores da saúde, especialmente os da enfermagem, para dar conta do número de doentes acometidos pela COVID-19, que se enfileiravam nos serviços de saúde;2727 Soares SSS, Souza NVDO, Carvalho EC, Varella TCMML, Andrade KBS, Pereira SRM et al. De cuidador a paciente: na pandemia da COVID-19, quem defende e cuida da enfermagem brasileira? Esc Anna Nery. 2020;24(spe):e20200161. http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2020-0161.
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profissionais capacitados; conhecimentos atualizados sobre uma condição de saúde nova e ainda com pesquisas incipientes sobre a mesma. Todos esses elementos levam a refletir sobre qual o lugar ocupado pela segurança do paciente nesse contexto, especialmente, quando considerada a incipiente cultura de segurança no Brasil.

O primeiro grande desafio foi a estrutura e capacidade instalada dos serviços de saúde. Em seus mais de 30 anos, o SUS logrou avanços importantes para a saúde brasileira, no entanto, permanece entre os desafios, a conquista do equilíbrio entre oferta e demanda por serviços. Especialmente após o ano de 2016, vê-se o avanço da prática neoliberal como ameaça à consolidação da saúde como direito de todos.2828 Machado MH, Ximenes No FRG. Gestão da Educação e do Trabalho em Saúde no SUS: trinta anos de avanços e desafios. Cien Saude Colet. 2018;23(6):1971-9. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018236.06682018. PMid:29972504.
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Conforme pode-se acompanhar por meio das mídias e, factualmente, nas instituições de saúde enquanto trabalhadores, em muitos serviços de saúde brasileiros, os locais para atendimento às demandas oriundas da pandemia foram improvisados.

As instituições de grande porte como hospitais de traumatologia, por exemplo, reverteram seus leitos para atendimento a pessoas com COVID-19; instituições de pequeno porte tiveram que recorrer ao achatamento dos leitos, reduzindo vagas em clínicas médica, cirúrgica e cancelando cirurgias eletivas para permitir abertura de leitos de isolamento.2929 Congresso de Saúde. Hospitais do interior sofrem com falta de estrutura para COVID-19. Summit Saúde Estadão [Internet], 8 jul 2022 [citado 2021 jul 8]. Disponível em: https://summitsaude.estadao.com.br/desafios-no-brasil/hospitais-do-interior-sofrem-com-falta-de-estrutura-para-covid-19/
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Um dos elementos preocupantes desta improvisação diz respeito às condições de ambiência adequada. Nossas instituições hospitalares, em sua maioria, apresentam infraestruturas carentes.3030 Fundação Oswaldo Cruz, PROADESS - Programa de Avaliação do Desempenho do Sistema de Saúde. Avaliação de desempenho dos sistemas de saúde. Monitoramento da assistência hospitalar no Brasil (2009-2017) [Internet]. Rio de Janeiro; 2019. (Boletim Informativo) [citado 2021 jul 9]. Disponível em: https://www.proadess.icict.fiocruz.br/Boletim_4_PROADESS_Monitoramento%20da%20assistencia%20hospitalar_errata_1403.pdf
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E, ademais, não foram projetadas, pensadas para dar respostas a pandemias. E, destarte, não contavam com estrutura para permitir fluxo de atendimento seguro,3131 Massuda A, Malik AM, Vecina No G, Tasca R, Ferreira Jr WC. A resiliência do sistema único de saúde frente à covid-19. Cad EBAPE BR. 2021;19(spe):735-44. http://dx.doi.org/10.1590/1679-395120200185.
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segregando, por exemplo, pessoas confirmadas laboratorial e clinicamente para COVID-19, daquelas suspeitas. De maneira, que, muito provavelmente, o isolamento adequado de pacientes foi um dos primeiros critérios feridos na segurança do paciente na era COVID-19. E, desse modo, o atributo Segurança definido como “Capacidade do sistema de saúde de identificar, evitar ou minimizar os riscos potenciais das intervenções em saúde…”1111 Fundação Oswaldo Cruz. PROADESS - Programa de Avaliação do Desempenho do Sistema de Saúde [Internet]. 2011 [citado 2021 jul 9]. Disponível em: https://www.proadess.icict.fiocruz.br/index.php?pag=matp
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, foi ameaçado, frente à possibilidade de pessoas livres da COVID-19, correrem o risco de contaminação no contato com pessoas contaminadas, no próprio serviço de saúde.

Ao lado da problemática ambiência, a segurança do paciente foi afetada duramente também pelo colapso dos serviços de saúde. Assistimos pelas mídias televisivas relatos de famílias que peregrinaram com seus queridos, especialmente, idosos, entre várias instituições de saúde e não conseguiram uma vaga. Inclusive, há relatos de pacientes que vieram a óbito em suas residências, sem nenhuma assistência de saúde.3232 Fundação Amazônia Sustentável – FAS. Caos na saúde: a luta pela vida em meio à crise sanitária no Amazonas [Internet]. 2021 [citado 2021 jul 9]. Disponível em: https://fas-amazonia.org/reportagem/caos-na-saude-a-luta-pela-vida-em-meio-a-crise-sanitaria-no-amazonas/?gclid=CjwKCAjw55-HBhAHEiwARMCszn2wMkLUDUylYslUhsHmP7EuuMcVW3WCT6el9mq79My62DRm_30ifBoCT2IQAvD_BwE
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Sendo nessa situação, desrespeitado o atributo “Acesso/Oportunidade”, definido como “Capacidade do sistema de saúde para prover o cuidado e os serviços necessários no momento certo e no lugar adequado”1111 Fundação Oswaldo Cruz. PROADESS - Programa de Avaliação do Desempenho do Sistema de Saúde [Internet]. 2011 [citado 2021 jul 9]. Disponível em: https://www.proadess.icict.fiocruz.br/index.php?pag=matp
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Cabe ainda refletir sobre o atributo Acesso/Oportunidade, lembrando que as pessoas mais atingidas pela pandemia, indivíduos com comorbidades, negros e pobres, são as com maiores vulnerabilidades sociais e de saúde. Grupos que já convivem com acesso restrito a bens e serviços de saúde. E, no caso brasileiro, essa situação sofreu recrudescimento mediante as políticas de austeridade fiscal em curso, reformas previdenciária e trabalhista e desfinanciamento do SUS.3333 Almeida-Filho N. Pandemia COVID-19 no Brasil: equívocos estratégicos induzidos pela retórica negacionista: principais elementos [Internet]. Brasília: Conselho Nacional de Secretários de Saúde; 16 fev 2021. p. 214-25 [citado 2022 jun 16]. Disponível em: https://cnte.org.br/images/stories/2021/2021_02_16_almeida_filho_pandemia_conass_opas.pdf
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De maneira que a pandemia constituiu em um terreno profícuo para a disruptura desse atributo da segurança do paciente.

De outro modo, a baixa disponibilidade de equipamentos tecnológicos, especialmente relacionados a suporte ventilatório, ao lado da escassez de equipamentos de proteção individual, imputaram dias de angústia aos trabalhadores da saúde. Os recursos para enfrentamento da pandemia não chegaram aos serviços de saúde na mesma velocidade que esta. Tornaram-se mais caros e escassos no mercado que o habitual e provocaram uma verdadeira corrida ao ouro. Entre o provimento dos serviços de saúde com recursos tecnológicos e as disputas capitalistas que se formaram em torno destes, a segurança do paciente também foi ameaçada. Profissionais de saúde tiveram que escolher quem morria e quem vivia face à disponibilidade ou não de ventiladores mecânicos, por exemplo. E não sabemos quantas pessoas deixaram de ser intubadas a tempo, aspiradas ou ventiladas por falta de algum destes equipamentos. Tal situação caracterizou o comprometimento dos atributos segurança, equidade e efetividade, sendo a equidade definida como distribuição justa e razoável do cuidado; e a efetividade como o grau em que o cuidado atingiu os resultados esperados.1010 Donabedian A. An introduction to quality assurance in health care [Internet]. Oxford: Oxford University Press; 2002 [citado 2021 out 18] Disponível em: https://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=fDSriunx6UEC&oi=fnd&pg=PR17&dq=Donabedian+A.+An+Introduction+to+Quality+Assurance+in+Health+Care&ots=v6BhNIEymw&sig=7s5ejDS9lVZBqa90zTH7_KJ9qPU#v=onepage&q=Donabedian%20A.%20An%20Introduction%20to%20Quality%20Assurance%20in%20Health%20Care&f=false
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,1111 Fundação Oswaldo Cruz. PROADESS - Programa de Avaliação do Desempenho do Sistema de Saúde [Internet]. 2011 [citado 2021 jul 9]. Disponível em: https://www.proadess.icict.fiocruz.br/index.php?pag=matp
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Mencionamos ainda como disruptura do atributo efetividade a escolha equivocada do modelo de enfrentamento à pandemia, o desdém ou rejeição às medidas de controle epidemiológico em detrimento à mitigação dos danos. As primeiras, reconhecidas cientificamente há séculos quanto à sua efetividade para controle de doenças respiratórias de alta contagiosidade. Já a estratégia de mitigação, a qual tentou debelar a infecção a partir dos leitos de UTI, se mostrou um total fracasso.3333 Almeida-Filho N. Pandemia COVID-19 no Brasil: equívocos estratégicos induzidos pela retórica negacionista: principais elementos [Internet]. Brasília: Conselho Nacional de Secretários de Saúde; 16 fev 2021. p. 214-25 [citado 2022 jun 16]. Disponível em: https://cnte.org.br/images/stories/2021/2021_02_16_almeida_filho_pandemia_conass_opas.pdf
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Ao lado da falta ou escassez de recursos e equipamentos tecnológicos, a segurança do paciente na pandemia pela COVID-19, foi duramente ameaçada pela escassez do mais importante elemento do cuidado em saúde, o elemento humano. Indiscutivelmente, é impossível desenvolver boas práticas de saúde com dimensionamento inadequado de trabalhadores. Conforme reconhece a Organização Mundial de Saúde (OMS), “No coração de cada um dos sistemas de saúde, a força de trabalho é central para promover o avanço da saúde”3434 Organização Mundial da Saúde – OMS. Trabalhando juntos pela saúde: relatório mundial de saúde 2006 [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2007. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/i_capa.pdf
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. Em 2007, a OMS já identificou um limiar da densidade da força de trabalho da saúde e avaliou que este se encontrava muito abaixo do quantitativo necessário para atender as demandas e os objetivos da saúde no milênio. E destaca-se o dimensionamento do pessoal da enfermagem, visto que a força de trabalho na saúde é composta por mais de 50% de trabalhadores dessa área.3535 Organização Panamericana de Saúde – OPAS, Organização Mundial da Saúde – OMS. Enfermeiras e enfermeiros são essenciais para avançar rumo à saúde universal [Internet]. 2019 [citado 2021 out 18]. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5931:enfermeiras-e-enfermeiros-sao-essenciais-para-avancar-rumo-a-saude-universal-2&Itemid=844#:~:text=OPAS%2FOMS%20Brasil%20%2D%20Enfermeiras%20e,avan%C3%A7ar%20rumo%20%C3%A0%20sa%C3%BAde%20universal
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Mediante o agravamento da escassez de trabalhadores da saúde durante a pandemia, os gestores, tanto públicos quanto privados, especialmente o SUS, onde se deu o enfrentamento massivo à pandemia,3636 Araújo JL, Oliveira KKD, de Freitas RJM. In defense of the unified health system in the context of SARS-CoV-2 pandemic. Rev Bras Enferm. 2020;73(2, Supl. 2):e20200247. PMid:32667577. necessitaram realizar contratações em caráter urgente, não sendo possível a eleição de critérios rígidos de qualidade para tal; e de outro modo, não sendo possível a eleição de trabalhadores com experiência prévia.

Assim sendo, boa parte da força de trabalho que estava à frente na pandemia constituiu-se de trabalhadores jovens e ainda com pouca experiência no cuidado em saúde. Esta situação certamente contribuiu e ainda contribui sobremaneira, para a qualidade e segurança da assistência em saúde durante a pandemia, considerando que não houve tempo hábil para capacitação e aquisição de experiências por parte destes novos trabalhadores. Num curto espaço de tempo tiveram que assumir postos de trabalho no enfrentamento à COVID-19 e serem capacitados após a entrada nos serviços. E, diga-se de passagem, serviços complexos de unidades de terapia intensiva (UTI), visto que as formas graves da COVID-19 exigem hospitalização em UTI.

É importante refletir que a instabilidade na qualificação dos trabalhadores da saúde para o enfrentamento da pandemia não é exclusiva de novos trabalhadores contratados ou inexperientes. O contexto pandêmico desafiou também os trabalhadores experientes que jaziam nos serviços de saúde antes da pandemia. Isso porque esta originou um contexto novo de trabalho, exigiu dos trabalhadores da saúde novas posturas e condutas, além de novos conhecimentos e da necessidade de enfrentar o desconhecido e letal agente etiológico. Em relatos de experiência, autores afirmam que “A adaptação dos profissionais assistenciais frente às drásticas mudanças em seu âmbito de trabalho pode ser vista como um dos principais desafios apresentados frente a esta pandemia”3737 Rodrigues NH, Silva LGA. Gestão da pandemia coronavírus em um hospital: relato de experiência profissional. J Nutr Health [Internet]. 2020 [citado 2020 out 18];10(4):e20104004. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/enfermagem/article/view/18530/11239
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Todos esses elementos, sintetizados no Quadro 1, levam a refletir sobre o lugar ocupado pela segurança do paciente em contexto de pandemias. Fica compreensível de que se trata de um lugar de fragilidade, especialmente em realidades como a brasileira, na qual a cultura de segurança do paciente ainda não se estabeleceu satisfatoriamente.3838 Andrade LEL, Lopes JM, Souza Fo MCM, Vieira Jr RF, Farias LPC, Santos CCMD et al. Cultura de segurança do paciente em três hospitais brasileiros com diferentes tipos de gestão. Cien Saude Colet. 2018;23(1):161-72. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018231.24392015. PMid:29267821.
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E como se isso não bastasse, a segurança do paciente no Brasil foi ameaçada duplamente, de um lado a pandemia, do outro uma crise política que desestruturou setores importantes do governo, entre os quais podemos citar o Ministério da Saúde. Uma evidência desta crise está nas trocas de ministro da saúde pós-pandemia. Entre 1º de Janeiro de 2019 e 15 de março de 2021 o Brasil teve quatro ministros da Saúde.

Quadro 1
síntese das disrupturas dos atributos de segurança do paciente na pandemia por COVID-19.

Apreciamos a ideia de que é necessário avançar no fortalecimento da cultura de segurança do paciente hoje e sempre a fim de estarmos prontos para os problemas de saúde cotidianos assim como para os emergentes. E no caso brasileiro, faz-se mister, persistir na luta encampada pelo Movimento de Reforma Sanitária Brasileira, por um sistema de saúde universal, equânime e igualitário.

As limitações desta pesquisa dizem respeito à carência de literatura científica que discute a segurança do paciente em contexto de pandemias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS E IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA

O contexto de pandemia por SARS-CoV-2 representou e ainda representa uma séria ameaça à segurança do paciente. Esta evidenciou a nudez e fragilidade mediante atributos importantes da qualidade em saúde. Entre os quais destacam-se: Adequação, Segurança, Acesso/Oportunidade e Efetividade. A pandemia também deixou o desafio de repensar a consolidação de boas práticas de saúde, a partir do investimento em organizações seguras, gestão responsável e consideração dos atributos/domínios da qualidade do cuidado em saúde.

Este investimento pressupõe a disponibilização de aparato tecnológico necessário para o cuidado em saúde, dimensionamento adequado de trabalhadores e capacitação permanente destes; assim como, processos de trabalho assentes em protocolos assistenciais e evidências científicas reconhecidas. Tais condições são indispensáveis para a promoção da segurança do paciente em qualquer contexto de saúde, pandêmico ou não pandêmico. Este é um compromisso que deve ser assumido por todos, Governos, sociedade e organizações de saúde. A negligência a esta responsabilidade compromete duramente o importante princípio da assistência à saúde “primeiro não faça mal”.

Acredita-se que essa reflexão é importante para propor a gestores, trabalhadores da Saúde e sociedade civil, para persistirem no fortalecimento do SUS e na cultura de segurança do paciente, sob o olhar mais acurado acerca dos elementos necessários à construção de organizações de saúde mais seguras. Outrossim, o estudo chama a atenção para a necessária recusa ao negacionismo e a perene adoção da prática baseada em evidências científicas aceitáveis.

REFERÊNCIAS

Editado por

EDITOR ASSOCIADO

EDITOR CIENTÍFICO

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    07 Abr 2022
  • Aceito
    30 Ago 2022
Universidade Federal do Rio de Janeiro Rua Afonso Cavalcanti, 275, Cidade Nova, 20211-110 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil, Tel: +55 21 3398-0952 e 3398-0941 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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