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Invenções tecnológicas de cuidadores familiares na perspectiva de profissionais da atenção domiciliar

Invenciones tecnológicas de los cuidadores familiares desde la perspectiva de los profesionales del cuidado domiciliario

Resumo

Objetivo

descrever as invenções tecnológicas desenvolvidas por cuidadores familiares na perspectiva de profissionais da atenção domiciliar, discutindo-as a luz das necessidades de cuidado no domicílio.

Método

pesquisa qualitativa, multicêntrica, apoiada no modelo teórico das Necessidades Humanas Básicas, de Wanda Horta. Os dados foram obtidos a partir de entrevistas com 52 profissionais de equipes de Atenção Domiciliar de quatro municípios de Minas Gerais, submetidas à Análise de Conteúdo.

Resultados

foram identificadas 27 invenções criadas por cuidadores com materiais/recursos existentes no domicílio. A maior parte das invenções foi motivada pelas necessidades psicobiológicas de movimentação, posicionamento, proteção e conforto, alimentação, eliminações fisiológicas, higiene e terapêutica medicamentosa. Outras invenções foram motivadas pelas necessidades psicossociais e psicoespirituais para melhorar a comunicação entre o cuidador e o familiar, proporcionar lazer, distração e conforto espiritual.

Conclusões/Implicações para a prática

os processos de invenção de cuidadores explicitam consciência reflexiva ao articularem, assistemática e intuitivamente, recursos e objetos existentes no domicílio, gerando estratégias ou produtos semelhantes a tecnologias existentes. Estas invenções podem ser avaliadas, estimuladas, orientadas ou refutadas pelos profissionais de saúde cotidianamente envolvidos no cuidado domiciliar.

Descritores:
Assistência Domiciliar; Cuidador Familiar; Determinação das Necessidades de Saúde; Tecnologia Aplicada aos Cuidados de Saúde; Invenções

Resumen

Objetivo

describir las invenciones tecnológicas desarrolladas por los cuidadores familiares desde la perspectiva de los profesionales de la atención domiciliaria, discutiéndolas a la luz de las necesidades de atención en el hogar.

Método

investigación cualitativa, sustentada en el modelo teórico de las Necesidades Humanas Básicas. Los datos fueron obtenidos a partir de entrevistas con 52 profesionales de equipos de Atención Domiciliaria de cuatro municipios de Minas Gerais, sometidos al Análisis de Contenido.

Resultados

se identificaron 27 inventos creados por cuidadores con materiales disponibles en casa. La mayoría de los inventos fueron motivados por las necesidades psicobiológicas de movimiento, posicionamiento, protección y comodidad, alimentación, eliminaciones, higiene y farmacoterapia. Otros inventos fueron motivados por las necesidades psicosociales y psicoespirituales de mejorar la comunicación entre el cuidador y el familiar, proporcionando entretenimiento, distracción y consuelo espiritual.

Conclusiones/Implicaciones para la práctica

las invenciones de los cuidadores muestran una conciencia reflexiva al articular, de manera asistemática e intuitiva, los recursos y objetos existentes en el hogar, generando estrategias o productos similares a las tecnologías existentes. Estas invenciones pueden ser evaluadas, estimuladas, guiadas o refutadas por profesionales de la salud.

Descriptor
es: Atención Domiciliaria de Salud; Cuidador Familiar; Evaluación de Necesidades; Tecnología para la Atención de la Salud; Invenciones

Abstract

Objective

To describe the technological inventions developed by family caregivers from the perspective of home care professionals, discussing them in the light of the care needs at home.

Method

qualitative, multicenter research, supported by the theoretical model of the Basic Human Needs of Wanda Horta. The data were obtained from interviews with 52 professionals from Home Care teams in four municipalities of Minas Gerais, which were submitted to Content Analysis.

Results

were identified 27 inventions created by caregivers with materials/resources existing at home. Most of the inventions were motivated by the psychobiological needs of movement, positioning, protection and comfort, feeding, physiological eliminations, hygiene and drug therapy. Other inventions were motivated by psychosocial and psychospiritual needs to improve communication between caregiver and family member, provide leisure, distraction, and spiritual comfort.

Conclusions/Implications for practice

the processes of invention of caregivers show reflective awareness by articulating, unsystematically and intuitively, existing resources and objects at home, generating strategies or products similar to existing technologies. These inventions can be evaluated, stimulated, guided or refuted by health professionals involved in home care on a daily basis.

Descriptors:
Home Care; Family Caregiver; Determination of Health Needs; Technology Applied to Health Care; Inventions

INTRODUÇÃO

A Atenção Domiciliar (AD) é uma modalidade assistencial de transferência de cuidados para o domicílio. Ela tem se expandido pela necessidade de sustentabilidade econômica de sistemas de saúde, devido ao alto custo do modelo hospitalar e por possibilitar a continuidade da assistência em casa, com aporte tecnológico de distintas densidades, numa perspectiva de promoção de qualidade de vida e/ou reabilitação e, também, cuidados paliativos.11 Procópio LCR, Seixas CT, Avellar RS, Silva KL, Santos MLM. A Atenção Domiciliar no âmbito do Sistema Único de Saúde: desafios e potencialidades. Saúde Debate. 2019;43(121):592-604. http://dx.doi.org/10.1590/0103-1104201912123.
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2 Portaria nº 825, de 25 de abril de 2016 (BR). Redefine a Atenção Domiciliar no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e atualiza as equipes habilitadas. Diário Oficial da União [periódico na internet], Brasília (DF), 25 abr 2016 [citado 2012 nov 29]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2016/prt0825_25_04_2016.html
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-33 Lindahl B, Kirk S. When technology enters the home: a systematic and integrative review examining the influence of technology on the meaning of home. Scand J Caring Sci. 2019;33(1):43-56. http://dx.doi.org/10.1111/scs.12615. PMid:30320461.
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Nos últimos anos, tem-se observado um investimento na produção de novas tecnologias para a assistência domiciliar, contribuindo progressivamente para processos de desospitalização. Dentre essas novas tecnologias, destacam-se as utilizadas para monitorização, ventilação assistida, alimentação; diálise peritoneal e as que demandam teleinformática e internet, para a prática da telemedicina, tecnologia robótica, tecnologias móveis com aplicativos em smartfones, dentre outros.44 Lima AA, Jesus DSD, Silva TL. Densidade tecnológica e o cuidado humanizado em enfermagem: a realidade de dois serviços de saúde. Physis. 2018;28(3):1-15. http://dx.doi.org/10.1590/s0103-73312018280320.
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Entretanto, mesmo com o investimento em artefatos tecnológicos complexos, há evidências de que existe uma precariedade de insumos e tecnologias de menor complexidade tecnológica, indispensáveis ao cuidado integral no domicílio, mobilizando equipes e famílias num processo de inventividade no ato de cuidar.33 Lindahl B, Kirk S. When technology enters the home: a systematic and integrative review examining the influence of technology on the meaning of home. Scand J Caring Sci. 2019;33(1):43-56. http://dx.doi.org/10.1111/scs.12615. PMid:30320461.
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,55 Silva KL, Braga PP, Silva AE, Lopes LFL, Souza TM. Discursos sobre tecnologias na atenção domiciliar: contribuições entre inovar, inventar e investir. Rev Gaúcha Enferm. 2022;43:e20200491. http://dx.doi.org/10.1590/1983-1447.2022.20200491.en.
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,66 Castro EAB, Leone DRR, Santos CM, Gonçalves Na FCC, Gonçalves JRL, Contim D et al. Organização da atenção domiciliar com o Programa Melhor em Casa. Rev Gaúcha Enferm. 2018;39:e2016-0002. http://dx.doi.org/10.1590/1983-1447.2018.2016-0002.
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Tecnologias têm sido conceituadas como um conjunto de saberes, constituído para a geração e utilização de produtos, bem como para organizar as relações humanas, ou seja, além dos equipamentos/produtos, devem ser incluídos os conhecimentos e ações necessárias para operá-los.77 Schraiber LB, Mota A, Novaes HMD. Tecnologia em saúde. In: Pereira IB, Lima JC, organizadores. Dicionário da educação profissional em saúde. Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; 2008. p. 382-91. Já as invenções são definidas como sendo as criações ou recomposições de um dispositivo ou processo preexistente.88 Centro Latino-Americano e do Caribe de Informações em Ciências da Saúde, Descritores em Ciências da Saúde. Descritor em português [Internet]. 2022 [citado 2022 nov 23]. Disponível em: https://decs.bvsalud.org/ths/resource/?id=34964&filter=ths_termall&q=adapta%C3%A7%C3%A3o
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As invenções dos cuidadores possibilitam cuidados que buscam suprir necessidades humanas básicas de familiares dependentes, objeto final da AD. O movimento de aproveitar materiais preexistentes num exercício criativo dos cuidadores pode revelar a ausência ou insuficiência de investimentos para suprir as necessidades de cuidados neste cenário que parece vir se estabelecendo em função de tecnologias que a família incorpora em suas relações com a equipe ou empreende em processos inventivos iniciados com as tecnologias pré-existentes e incorporadas aos serviços de saúde.99 Andrade AM, Silva KL. Adaptações e invenções na práxis da enfermeira na atenção domiciliar: implicações da prática reflexiva. Esc Anna Nery [Internet]. 2018; [citado 2022 nov 23];22(3):e20170436. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ean/a/nKdk9fFBYrxxZ9gj9zp548L/abstract/?lang=pt
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,1010 Horta WA. Processo de enfermagem. São Paulo: EPU; 1979.

Nessa direção, o modelo teórico das Necessidades Humanas Básicas (NHB), proposto por Wanda de Aguiar Horta,1010 Horta WA. Processo de enfermagem. São Paulo: EPU; 1979. representa um aporte para se analisar as invenções tecnológicas na AD. Isto, pois, os cuidadores familiares se mostram como sujeitos inventivos, criativos, capazes de julgar, tomar decisões e de realizarem ações para a criação de algo novo, ao assumirem o cuidado de um familiar dependente, em interlocução com os profissionais da AD. Esta concepção teórica considera que o ser humano possui necessidades psicobiológicas, psicossociais e psicoespirituais que, quando não são atendidas, levam a uma instabilidade no ciclo vital. Pressupõe-se a existência de um estado de tensão, dada a natureza humana e seus fenômenos vitais, mediante as demandas e a exigência de se fornecer cuidados para supri-las, quando estão afetadas.1010 Horta WA. Processo de enfermagem. São Paulo: EPU; 1979.

Frente a esta problemática, uma justificativa deste estudo foi a necessidade de se conhecer e reconhecer os aparatos tecnológicos inventados por cuidadores familiares de usuários da AD, pela escassez de literatura sobre as invenções nesta modalidade de cuidado. Quando existentes, analisam as criações feitas pelos profissionais, discutindo-se implicação para trabalho em saúde.99 Andrade AM, Silva KL. Adaptações e invenções na práxis da enfermeira na atenção domiciliar: implicações da prática reflexiva. Esc Anna Nery [Internet]. 2018; [citado 2022 nov 23];22(3):e20170436. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ean/a/nKdk9fFBYrxxZ9gj9zp548L/abstract/?lang=pt
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Há, portanto, uma lacuna na produção de evidências sobre as invenções tecnológicas feitas por cuidadores familiares, o que desperta questões passíveis de serem investigadas.

Outra justificativa foi a possibilidade de se investigar as invenções das famílias que poderão ser apoiadas e valorizadas no ambiente domiciliário. De se pensar no potencial de incorporá-las, pois, ousa-se criar, inovar ou adaptar instrumentos que utilizarão no cuidado, visando aperfeiçoá-los na tentativa de terem uma maneira mais moderna, mais confortável, mais segura e com melhores e efetivas condições de cuidar do familiar dependente em casa.1111 Adams S, Hodges M. Adapting for ageing: good practice and innovation in home adaptations [Internet]. Centre for Ageing Better; 2018. p. 1-54 [citado 2022 nov 23]. Disponível em: https://ageing-better.org.uk/publications/adapting-for-ageing
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,1212 Reis GO. Adulto com dependência assistido nos autocuidados no domicílio. In: Mayor MS, Sequeira C, Reis G, organizadores. Visita domiciliária. Porto: Edição de Autor; 2018. p. 119-40. Além disso, urge que sejam repensadas as políticas de financiamento da AD, de forma a se demonstrar as carências para o aparato tecnológico externo, fundamental à sustentabilidade de uma prática efetiva e segura.

Assim, neste estudo, o objetivo foi o de descrever as invenções tecnológicas desenvolvidas por cuidadores familiares na perspectiva de profissionais da atenção domiciliar.

MÉTODO

Pesquisa multicêntrica com abordagem qualitativa, cujo objetivo geral foi o de descrever as tecnologias desenvolvidas pelos diferentes atores na atenção domiciliar em saúde. Neste manuscrito, o recorte voltou-se especificamente para as tecnologias desenvolvidas pelos cuidadores familiares.

A equipe de pesquisadores foi formada por onze enfermeiros (quatro doutores, um doutorando, um mestre, três mestrandos, um especialista e um acadêmico de enfermagem) vinculados a dois centros de pesquisa que operacionalizaram o protocolo da investigação. Todos os membros da equipe possuíam experiências prévias em investigação qualitativa, mas, ainda assim, foram desenvolvidas estratégias formativas, por meio de oficinas e reuniões conjuntas para alinhamento conceitual e metodológico sobre as técnicas de coleta e análise de dados.

Especificamente, aportou-se a discussão sobre as tecnologias desenvolvidas pelos cuidadores no modelo teórico das Necessidades Humanas Básicas (NHB),1010 Horta WA. Processo de enfermagem. São Paulo: EPU; 1979. que se apoia nas leis do equilíbrio, do holismo e da adaptação. Este modelo contribuiu para a classificação e análise das criações de cuidadores no contexto da AD, partindo da premissa de que seres humanos apresentam necessidades que se agrupam em psicobiológicas, psicossociais e psicoespirituais. Essas necessidades, quando afetadas, interagem com o seu meio externo, buscando sempre formas de ajustamento, recursos e cuidados integrais para reestabelecerem ou manterem o equilíbrio.1010 Horta WA. Processo de enfermagem. São Paulo: EPU; 1979.

Os cenários da pesquisa foram os Serviços de Atenção Domiciliar (SAD) de quatro municípios brasileiros do estado de Minas Gerais - Belo Horizonte, Contagem, Juiz de Fora e Pará de Minas -, definidos intencionalmente por serem serviços com experiências estabelecidas desde a implantação da Política Nacional de Atenção Domiciliar no Brasil.22 Portaria nº 825, de 25 de abril de 2016 (BR). Redefine a Atenção Domiciliar no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e atualiza as equipes habilitadas. Diário Oficial da União [periódico na internet], Brasília (DF), 25 abr 2016 [citado 2012 nov 29]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2016/prt0825_25_04_2016.html
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Os SAD atendem, de forma indistinta, públicos de várias idades, perfil clínico-assistencial e com diferentes demandas de cuidado. Para ser admitido em um SAD, o paciente deve apresentar situação de restrição ao leito ou ao lar, de maneira temporária ou definitiva, ou em grau de vulnerabilidade na qual a AD seja considerada a oferta mais oportuna para tratamento, paliação, reabilitação, prevenção de agravos; a presença do cuidador é pré-requisito.22 Portaria nº 825, de 25 de abril de 2016 (BR). Redefine a Atenção Domiciliar no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e atualiza as equipes habilitadas. Diário Oficial da União [periódico na internet], Brasília (DF), 25 abr 2016 [citado 2012 nov 29]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2016/prt0825_25_04_2016.html
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Participaram do estudo 52 profissionais - cinco coordenadores de SAD e 47 profissionais integrantes das equipes. A amostragem do estudo foi intencional, orientada pelo critério de inclusão de ser profissional integrante de equipe multiprofissional de AD do município-cenário; e de exclusão, se atuavam no SAD há menos de um mês. Em dois municípios, onde havia mais de uma equipe, foi solicitada à coordenação a indicação daquelas com atendimento de maior variabilidade quanto ao perfil dos usuários assistidos, tendo sido indicadas, em cada um desses municípios, duas equipes. Todos os profissionais abordados tinham um mês completo ou mais no serviço. Os profissionais dos serviços aceitaram participar espontaneamente, sem recusas ou ausências.

Para o alcance do objetivo deste estudo, os dados foram obtidos por meio de entrevistas semiestruturadas1313 Triviños ANS. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas; 1987. com os participantes, realizadas entre janeiro de 2019 e agosto de 2020, guiadas por um roteiro elaborado pelos pesquisadores com questões que versavam sobre as tecnologias utilizadas diariamente na assistência ofertada à interlocução com a família. A ênfase foi para as invenções tecnológicas de cuidadores familiares para suprir as necessidades humanas básicas e se atingir os objetivos e metas da AD. Não se levantou informações sociodemográficas e clínicas dos indivíduos por eles atendidos, assumindo-se o perfil de usuários para a oferta de serviços de AD descritos pela Política Nacional de Atenção Domiciliar.22 Portaria nº 825, de 25 de abril de 2016 (BR). Redefine a Atenção Domiciliar no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e atualiza as equipes habilitadas. Diário Oficial da União [periódico na internet], Brasília (DF), 25 abr 2016 [citado 2012 nov 29]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2016/prt0825_25_04_2016.html
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Devido à pandemia da COVID-19, consonante às restrições e definições éticas, as quatro últimas entrevistas ocorreram remotamente, em plataforma virtual (Google Meet). O tempo médio de cada uma foi de 25 minutos, totalizando doze horas e 46 minutos de gravação documentada em arquivos de áudio. Dois enfermeiros foram entrevistados duas vezes, em momentos diferentes, objetivando esclarecer informações. As entrevistas transcritas foram lidas e analisadas pela equipe de pesquisa.

Para a análise dos dados, foram adotados os procedimentos da Análise de Conteúdo.1414 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Editora 70; 2011. Inicialmente, cada pesquisador realizou leituras exploratórias e pré-codificações das entrevistas, individualmente, e a seguir, as codificações foram feitas coletivamente, em reuniões no grupo de pesquisadores.

As invenções de cuidadores citadas pelos participantes foram codificadas pelo processo analítico dedutivo-indutivo, considerando-se as categorias do modelo teórico das NHB.1515 Vázquez AS. Filosofia da práxis. 2ª ed. São Paulo: Editora Expressão Popular; 2011. À leitura transversal do material empírico, procedia-se às articulações com os elementos de convergência do referido modelo teórico e apreendia-se o contexto criativo das invenções, bem como a intencionalidade de uso das mesmas no âmbito assistencial da AD. A validação dos achados foi obtida por meio de discussão conjunta e alcance de consenso pelos pesquisadores sobre os códigos analíticos.

A pesquisa foi aprovada por Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais, sob o número de parecer CAAE: 44483315.3.0000.5149 e protocolo 3.338291, e obteve Carta de Anuência dos municípios cenários do estudo. À sua execução, respeitamos os preceitos éticos definidos pelas Resoluções do Conselho Nacional de Saúde, nº 466, de 12/12/12,1616 Resolução nº 466 de 12 de dezembro de 2012 (BR). Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União [periódico na internet], Brasília (DF), 12 dez 2012 [citado 2022 nov 21]. Disponível em: http://www.conselho.saude.gov.br/web_comissoes/conep/index.html
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e nº 510, de 07/04/2016.1717 Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016 (BR). Procedimentos metodológicos característicos das áreas de ciências humanas e sociais. Diário Oficial da União [periódico na internet], Brasília (DF), 24 maio 2016 [citado 2022 nov 21]. Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pdf
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Para garantia de anonimato, referenciamos as citações dos participantes por códigos alfanuméricos, no qual a primeira letra e número referem-se ao município do serviço de AD, seguidos da letra inicial da categoria profissional e número da entrevista no banco de dados (Exemplo: M3NU2 - município 3, nutricionista 2).

RESULTADOS

Dos 52 profissionais participantes, cinco eram coordenadores de SAD e 47 eram profissionais integrantes das equipes de AD - sendo 15 enfermeiros, nove técnicos de enfermagem, oito médicos, quatro fisioterapeutas, quatro fonoaudiólogos, duas nutricionistas, um terapeuta ocupacional, um psicólogo, um assistente social, um dentista e um auxiliar administrativo. Os participantes eram, em sua maioria, do sexo feminino (43), casados (21), com tempo de atuação nos serviços variando de um mês a 11 anos. No município M4, três profissionais atuavam há pouco mais de um mês.

A partir de suas vivências no SAD com pacientes de diferentes idades e perfis clínico-assistencial - a maioria com dependências, exigindo a mediação de um cuidador familiar responsável -, os participantes relataram que as invenções de cuidadores são comuns. Observam-se as adequações de instrumentos, objetos e materiais existentes no ambiente doméstico, com remodelação ou reaproveitamento, para suprirem as necessidades dos familiares dependentes de cuidados domiciliares. Para as NHB psicobiológicas de movimentação, posicionamento, proteção e conforto do paciente acamado, citaram:

O paciente não tem uma cama hospitalar e aí ele faz algumas adaptações para elevar a cabeceira da cama com alguns rolos de cobertor. (M2FO2)

Eles criaram uma cama hospitalar com seis bases na cabeceira, embaixo, de madeira. De cada necessidade dela se elevar, eles colocavam uma madeira: dez graus, 15 graus, 30 graus, 40 graus, até 50 graus, com encosto fixo, então, foi uma cama adaptada por um senhor. (M2FI2)

Ele pediu licença, foi lá fora, ouvi um barulho de motorzinho, cinco, no máximo dez minutos depois, esse senhor estava de volta com um banquinho que ele tinha acabado de fazer, ele só mediu a altura para o pé dela e voltou com aquele apoio para o pé, da altura exata que a paciente precisava. Ele tinha tudo em casa para fazer. (M3FO1O)

Para atender as NHB de alimentação, eliminações, higiene corporal, terapêutica, transferência e deambulação no ambiente domiciliar, mencionaram:

[...] um cano mesmo, fixa ali com o ‘joelho’ [conexão hidráulica], o cano, o ‘joelho’ e o cano na barra, e ele fazia isso, inclusive de levantar, sabe, de mudar de posição. E foi excelente! (M2ME4)

[...] um paciente que ele não dava conta de ficar sentado na cadeira de banho. Sabe aquelas cadeiras de piscina? [...] Espreguiçadeira [...] adaptaram para ele, tirava ele, puseram rodinha na espreguiçadeira, puseram ela mais alta, porque ele tinha essa dificuldade, aí punham ele na espreguiçadeira, levava para o banho, dava o banho nele e voltava. (M2ME4E)

Pregam um prego na parede e põem um soro lá ou então põem um bambu. [...] tem uma família lá que colocou um pedaço de pau, um bambu com um prego e serviu de suporte de soro. (M5ENF3)

Tem um quadrinho, que eles colocam os medicamentos tipo num bolsinho e coloca “aqui de manhã; esse aqui de tarde”. (M4ME1)

As alterações no ambiente do domicílio foram citadas para permitir circulação de ar ou manutenção da temperatura.

[...] botam janela para ajudar na circulação do ambiente, para não ficar tão abafado. (M2ME3)

Paciente tem telha de amianto, ele colocou placa de isopor no teto, em cima do paciente, porque não estava muito quente. Colocou plaquinhas de isopor no teto. Ai a casa tem as madeiras. Aí, ele pegou as madeiras, colocou no arame e amarrou ali o aquecedor elétrico para climatizar o ambiente, entendeu? (M5ENF4)

Algumas invenções visaram apoiar NHB psicossociais, como a comunicação entre cuidador e paciente, e responder às necessidades básicas de recreação e lazer.

Sistema de campainha de casa, sabe?! Colocou na cama do paciente. (M5ENF4)

A gente já teve paciente que, para questão de melhora de autoestima, o paciente está muito deprimido, que [a família] trouxe a galinha da casa dele para a casa em que estava, porque ele passa a mão na galinha, ele fica melhor. (M4FO1)

Tem cuidador que, quando chega a época de Natal, decora o quarto do paciente todo, até o suporte da dieta, de Natal. (M4FO1)

A criança tem um ano e seis [meses], com uma doença neuromuscular congênita e o tio fez um suporte para o tablet com tubo de PVC. Antes, ficava naquele aramado do berço, mas como o aramado é leve, esse tablet estava com risco de cair na criança. Ele fez a armação desde o chão com tubo de PVC e pôs o tablete. (M4FI1)

Em um relato, apenas, identificou-se que houve orientação específica, com incentivo de profissional, para a criação de cuidador familiar. Configuram-se, portanto, como invenções que partiram da percepção de cuidadores, seja pela sua vivência prévia por terem trabalhado em serviços de saúde, ou pela interpretação que fizeram da funcionalidade dos objetos e insumos para atender NHB afetadas e responder a finalidade da assistência no domicílio. O Quadro 1 apresenta uma síntese das principais criações de cuidadores familiares, organizadas segundo as NHB dos usuários atendidos pela AD.

Quadro 1
Necessidades Humanas Básicas atendidas com invenções de cuidadores familiares, Minas Gerais, Brasil, 2022.

Este estudo encontrou que as invenções de cuidadores familiares estiveram aliadas às necessidades humanas básicas e terapêuticas do familiar, afetadas pela condição de dependência do paciente, destacando-se: almofadas, rolos de cobertores, meia de cano longo, banco, banco de apoio e elástico para os cuidados em mecânica corporal e motilidade; grades de proteção para cama e recortes de colchão de espuma para a promoção da integridade física; invenção a partir de cadeira espreguiçadeira para a locomoção; mini-mesa e régua de madeira com gancho, com o propósito de possibilitar administração de suporte nutricional; caixa porta medicamentos e prego, bambu ou régua de madeira, como alternativa ao suporte para infusão gravitacional de medicações endovenosas; fita de Velcro® e cadeira com assento sanitário, em atenção às eliminações; instalação de janela e fixação de aquecedor elétrico, frente às necessidades ambientais; alarme/campainha para acesso à comunicação; apoio para dispositivo eletrônico, toque em animais de estimação e comunicação ao alimentar o paciente para a oferta de recreação/lazer.

Estas invenções foram desenvolvidas com recursos materiais disponíveis, inerentes à peculiaridade de cada domicílio e à criatividade, motivadas pelas demandas ao cuidador para a manutenção dos cuidados, garantia de atenção às necessidades humanas básicas dos familiares dependentes de assistência domiciliar.

DISCUSSÃO

As invenções de cuidadores foram motivadas por necessidades de cuidados do familiar, sendo a maior parte delas para atender necessidades psicobiológicas afetadas, relativas à mecânica corporal e motilidade.1010 Horta WA. Processo de enfermagem. São Paulo: EPU; 1979. Destacam-se as desenvolvidas para posicionar ou mover pacientes acamados, em função de situações crônicas, com dependências para o autocuidado, que exigem intervenções de cuidador e a constante interlocução com os profissionais das equipes da AD.1818 Neves ACOJ, Seixas CT, Andrade AM, Castro EAB. Atenção domiciliar: perfil assistencial de serviço vinculado a um hospital de ensino. Physis. 2019;29(2):e290214. http://dx.doi.org/10.1590/s0103-73312019290214.
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A perda da capacidade de movimentar-se, observada no contexto pesquisado, constitui-se em desequilíbrio gerador de necessidade, na concepção de Horta,1010 Horta WA. Processo de enfermagem. São Paulo: EPU; 1979. e esteve relacionado às respostas a traumas, adoecimentos crônicos, com comprometimentos neurológicos ou com hospitalizações prolongadas, ressaltando-se pessoas idosas e acamadas como a maior clientela dos serviços de AD. A dependência levou o cuidador familiar a buscar satisfação para as necessidades apresentadas, a fim de manter o equilíbrio dinâmico no espaço e tempo.1010 Horta WA. Processo de enfermagem. São Paulo: EPU; 1979. Estimulou processos inventivos no domicílio que estiveram associados à ideia de dar segurança e bem-estar de forma funcional, conforme necessidades do familiar, buscando restituir o melhor quanto possível a independência nas atividades da vida diária.1212 Reis GO. Adulto com dependência assistido nos autocuidados no domicílio. In: Mayor MS, Sequeira C, Reis G, organizadores. Visita domiciliária. Porto: Edição de Autor; 2018. p. 119-40.

Os tipos de invenções citadas revelam-se pelo uso de artefatos para mudar o decúbito ou promover conforto (almofadas, rolos de cobertor) ou envolvem aquelas que modificam, por exemplo, a arquitetura de cama comum, tornando-a articulada; simulando barras de apoio, suportes para pés. Estas invenções podem requerer conhecimento, habilidades, orientação/supervisão de profissionais de saúde, destinando-se a apoiar nos cuidados diários pela manutenção de posição adequada do corpo ou de uma parte do corpo. O posicionamento de pacientes é uma intervenção terapêutica que ultrapassa os séculos e o uso de almofadas destaca-se como artefato para o conforto, a proteção ou para evitar quedas. À ação de bem posicionar, busca-se promover o conforto da pessoa e a satisfação de necessidades humanas fundamentais, como a oxigenação, alimentação e as eliminações.1010 Horta WA. Processo de enfermagem. São Paulo: EPU; 1979.,1919 Santos LL, Ferreira O, Baixinho CL. Da tarefa de posicionar à terapêutica de posição, uma mudança anunciada pela história (1900-1953). Hist Enferm Rev Eletrônica [Internet]. 2019; [citado 2022 nov 22];10(1):21-30. Disponível em: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-1117391
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As barras de apoio foram criadas a partir de materiais existentes e, quando fixadas na parede, visava-se que fossem meios auxiliares na necessidade de locomoção, e de se reduzir riscos de quedas por pacientes com a mobilidade física prejudicada, como nos casos relacionados a algum comprometimento neurológico. São consideradas tecnologias assistivas e indicadas para atendimento de necessidades de movimentação/posicionamento em banho, para vestir roupas com maior segurança e independência, consonante à recomendação de diretriz do Ministério da Saúde.2020 Portaria nº 1.230, de 3 de dezembro de 2013 (BR). Institui a Rede Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento em Tecnologia Assistiva. Diário Oficial da União [periódico na internet], Brasília (DF), 3 dez 2013 [citado 2022 nov 4]. Disponível em: https://antigo.mctic.gov.br/mctic/opencms/legislacao/portarias/migracao/Portaria_MCTI_n_1230_de_03122013.html?searchRef=sc&tipoBusca=expressaoExata
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As invenções empreendidas para os cuidados relativos às necessidades de alimentação, eliminações, higiene/banho e de terapêutica medicamentosa foram também expressivas e coerentes ao perfil dos pacientes atendidos pela AD deste e de outros estudos.1818 Neves ACOJ, Seixas CT, Andrade AM, Castro EAB. Atenção domiciliar: perfil assistencial de serviço vinculado a um hospital de ensino. Physis. 2019;29(2):e290214. http://dx.doi.org/10.1590/s0103-73312019290214.
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,2121 Naves LK, Tronchin DMR. Nutrição enteral domiciliar: perfil dos usuários e cuidadores e os incidentes relacionados às sondas enterais. Rev Gaúcha Enferm. 2018;39:e2017-0175. http://dx.doi.org/10.1590/1983-1447.2018.2017-0175.
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A convivência de cuidadores com dificuldades associadas à aquisição de alimentos, bombas de infusão e itens auxiliares, como suporte de soro e equipo de dieta, pode ser o que compromete a nutrição do familiar com deglutição prejudicada, que teve prescrição de suplementação alimentar após a alta. O suporte nutricional nasogástrico ou enteral pode requerer tecnologias de alto custo, como a dieta industrializada e os insumos para possibilitar a via alimentar e a sua administração. Nem todos os materiais demandados são disponibilizados às famílias, como, por exemplo, o suporte para o posicionamento de frascos e infusão gravitacional de dietas, estimulando as criações pelo cuidador para suprir a necessidade nutricional com êxito, mantendo o familiar na AD e prevenindo internações hospitalares.2121 Naves LK, Tronchin DMR. Nutrição enteral domiciliar: perfil dos usuários e cuidadores e os incidentes relacionados às sondas enterais. Rev Gaúcha Enferm. 2018;39:e2017-0175. http://dx.doi.org/10.1590/1983-1447.2018.2017-0175.
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,2222 Ojo O. The challenges of home enteral tube feeding: a global perspective. Nutrients. 2015;7(4):2524-38. http://dx.doi.org/10.3390/nu7042524. PMid:25856223.
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Os suportes feitos com madeira e prego afixados em parede próxima ao leito, para colocar a dieta em substituição ao suporte industrializado, são de baixo custo, e possibilitam atender a necessidade de alimentação e/ou infusão de fluidos. O emprego do prego foi relatado como sendo uma condição comum no contexto da AD. É um objeto presente nas residências que, dentre os mais diferentes usos, também se adequa à função de suporte para administração de dietas e medicações endovenosas no domicílio, evitando a procura pelo cuidador por outros pontos da rede de atenção à saúde (RAS). Embora a sua utilização para esse fim não comprometa o objetivo da assistência, demonstra, entretanto, a inexistência ou não disponibilização de insumos básicos para as famílias e a necessidade de avaliações relacionadas à segurança, visando atenuar eventos adversos.99 Andrade AM, Silva KL. Adaptações e invenções na práxis da enfermeira na atenção domiciliar: implicações da prática reflexiva. Esc Anna Nery [Internet]. 2018; [citado 2022 nov 23];22(3):e20170436. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ean/a/nKdk9fFBYrxxZ9gj9zp548L/abstract/?lang=pt
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O uso de cadeiras domésticas acrescidas com assento sanitário, tampa ou encaixe de coletor externo visou apoiar a necessidade de eliminações e de banho do familiar. A cadeira espreguiçadeira com rodas, comum em piscinas, destinou-se a transportar e possibilitar banho de aspersão de paciente com dificuldade em permanecer na posição sentada. Estas são invenções que demonstram potencial inovador, contudo, o cuidador lida com o risco de queda do familiar dependente se o material das cadeiras é escorregadio ao contato com água e sabão. A segurança do paciente em AD é desafiadora pela peculiaridade do domicílio, revelando a importância do aprimoramento técnico-científico de profissionais e das outras pessoas envolvidas no cuidado do paciente.2323 Alves AS, Aguiar RS. Patient safety at home: an integrative literature review. Res. Soc. Development. 2020;9(3):e181932700. http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v9i3.2700.
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A redução dos riscos de danos desnecessários à saúde de usuários da AD é uma das preocupações quando se analisam as invenções de cuidadores. Esta preocupação cresce em todo o mundo e se aplica a todos os cenários onde há assistência à saúde. No Brasil, a segurança do paciente no domicílio é objeto de publicação específica do Ministério da Saúde. Destacamos que são poucas as pesquisas na perspectiva da gestão do cuidado seguro de pacientes com dependências no cenário da AD. Neste sentido, são necessários estudos que abordem esta temática, principalmente no que tange à criação da cultura da segurança do paciente na AD, inclusive na formação e treinamento dos profissionais de enfermagem.2424 Oliveira PC, Santos OP, Villela EFM, Barros PS. Cultura de segurança do paciente no serviço de atenção domiciliar. Rev Esc Enferm USP. 2020;54:e03586. http://dx.doi.org/10.1590/s1980-220x2018040703586. PMid:32965439.
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,2525 ten Haken I, Ben Allouch S, van Harten W. Education and training of nurses in the use of advanced medical technologies in home care related to patient safety: a cross-sectional survey. Nurse Educ Today. 2021;100:104813. http://dx.doi.org/10.1016/j.nedt.2021.104813. PMid:33662675.
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A AD requer recursos que podem ser disponibilizados pelo próprio serviço, por outros da RAS, obtidos ou criados pela família para garantir a qualidade da assistência. Há evidências de que enfermeiras produzem tecnologias no domicílio com o objetivo de transformar a realidade e dar continuidade ao cuidado. Estas podem ser necessárias em razão da insuficiência de recursos e da falta de investimentos para ofertar opções já existentes e aplicadas em outros espaços.55 Silva KL, Braga PP, Silva AE, Lopes LFL, Souza TM. Discursos sobre tecnologias na atenção domiciliar: contribuições entre inovar, inventar e investir. Rev Gaúcha Enferm. 2022;43:e20200491. http://dx.doi.org/10.1590/1983-1447.2022.20200491.en.
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Os cuidadores são impulsionados a um processo de inventividade no ato de cuidar, mobilizados pela interpretação do que julgam necessário para suprir certas necessidades dos pacientes. Neste processo, revelou-se uma prática criadora com invenções associadas ao enfrentamento de novas necessidades ou situações antes inexistentes no domicílio. Em outros feitos, vislumbraram adequações de instrumentos frente a “modelos” pré-existentes com a imitação dos insumos utilizados nos serviços de saúde. Assim, há a utilização de recursos domésticos numa reprodução daquilo que se observa no ambiente hospitalar, porém, com simplificação. O seu uso esteve vinculado à resposta de fragilidades financeiras e ao atendimento das NHB de alimentação, movimentação, conforto, proteção, termorregulação, lazer, eliminação e higiene.2626 Krel C, Vrbnjak D, Bevc S, Stiglic G, Pajnkihar M. Technological competency as caring in nursing: a description, analysis and evaluation of the theory. Zdr Varst. 2022;61(2):115-23. http://dx.doi.org/10.2478/sjph-2022-0016. PMid:35432614.
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A utilização de tecnologias simplificadas no domicílio direciona ao entendimento sobre a força criativa de novos processos e produtos pela enfermagem, como um fazer que carregue uma intencionalidade pedagógica2727 Bahari K, Talosig AT, Pizarro JB. Nursing technologies creativity as an expression of caring: a grounded theory study. Glob Qual Nurs Res. 2021;8:2333393621997397. http://dx.doi.org/10.1177/2333393621997397. PMid:33718520.
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O impulso de inventar para suprir necessidades humanas básicas com os cuidados exigidos revela um ambiente em que as carências ou insuficiências da oferta de recursos e insumos direcionam para a utilização dos objetos domésticos, como meios para a assistência em saúde. Contrapõem-se, nesta relação, o julgamento feito pelo cuidador quanto à melhor maneira de se atender às necessidades do familiar assistido pela AD e à existência dos meios para responder a essa finalidade.

Este estudo explicita o potencial de invenção de cuidadores familiares no cuidado domiciliar, importantes para a criação de novas práticas, contemplando a peculiaridade deste ambiente, que beneficia a interação e a continuidade do cuidado para famílias e usuários.99 Andrade AM, Silva KL. Adaptações e invenções na práxis da enfermeira na atenção domiciliar: implicações da prática reflexiva. Esc Anna Nery [Internet]. 2018; [citado 2022 nov 23];22(3):e20170436. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ean/a/nKdk9fFBYrxxZ9gj9zp548L/abstract/?lang=pt
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Contudo, há que se preocupar com a necessidade de investimentos nesta modalidade assistencial, dada a sua relevância para os sistemas de saúde e os modos de ofertar o cuidado.

Destaca-se que não foram exploradas todas as situações criadoras de necessidades dos pacientes, encorajadoras de invenções, em sua maioria, em caráter substitutivo a dispositivos existentes no mercado, nem as causalidades relacionadas à gestão do cuidado pela família, subfinanciamento do setor de saúde e as consequências para a segurança do paciente.

Acrescenta-se que as invenções analisadas foram extraídas sob a perspectiva dos profissionais de saúde a partir de suas observações, vivências e percepções no trabalho na AD, e não em visitas domiciliares com observação direta realizada pelos pesquisadores, o que pode ser considerada uma limitação. Reconhece-se, também, como outra limitação o não compartilhamento das entrevistas transcritas para revisão pelos participantes da pesquisa.

CONCLUSÃO E IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA

Na perspectiva de profissionais da AD, as invenções desenvolvidas por cuidadores aliam-se à exigência de cuidados do familiar em condição de dependência, conforme necessidades afetadas. Este estudo trouxe à tona a existência de aptidão e de capacidade criadora de cuidadores, expondo o potencial que eles possuem para criação de tecnologias em saúde ao cuidarem de seus familiares dependentes no domicílio. Esses atributos foram reconhecidos como contribuição à assistência ofertada pela AD, por permitirem a continuidade do cuidado no domicílio, ainda que mediante aos desafios de insuficiência de insumos e tecnologias em saúde.

As invenções tecnológicas de cuidadores familiares devem, contudo, ser avaliadas pelos profissionais cotidianamente envolvidos no cuidado domiciliar, podendo ser estimuladas, orientandas ou refutadas. Podem, por um lado, ser vistas como criações inovadoras, com potencial de utilização por outras famílias, haja vista a funcionalidade, baixos risco e custo, ou, por outro, como sendo improvisações arriscadas.

Com estas conclusões, ressalta-se a necessidade de se investir em novos estudos, uma vez que a temática das tecnologias inventadas pelas famílias no contexto da Atenção Domiciliar é pouco explorada e demonstra potencial para a descoberta de inovações possíveis de serem incorporadas por outras famílias e pelo sistema de saúde.

  • FINANCIAMENTO

    Fundação de Amparo à pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). Apoio financeiro, Processo nº APQ 01010-15, concedido à pesquisa com o título de “Tecnologias na atenção domiciliar e o trabalho da Enfermagem na produção do cuidado”, coordenado por Kênia Lara Silva.

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EDITOR CIENTÍFICO

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Out 2022
  • Aceito
    03 Ago 2023
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