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Interrelações das Epistemologias do Sul e o cuidado transcultural nas práticas em saúde e Enfermagem

Interrelaciones de Epistemologías del Sur y cuidado transcultural en salud y prácticas de enfermería

Resumo

Objetivo

refletir sobre as interrelações do cuidado transcultural e as Epistemologias do Sul nas práticas em saúde e Enfermagem.

Método

trata-se um de estudo reflexivo, com base em uma revisão narrativa da literatura, destacando os conceitos da linha abissal, ecologia dos saberes e descolonização do saber do referencial das Epistemologias do Sul.

Resultados

após a análise reflexiva do material emergiram três eixos reflexivos, a saber: Populações ao Sul da linha abissal; Ecologia dos saberes e a interculturalidade; e Descolonização do saber nas práticas em saúde e Enfermagem: cuidado culturalmente congruente.

Considerações finais e implicações para a prática

a valorização da cultura de autocuidado de grupos populacionais vulneráveis ao sul da linha abissal é fundamental para oportunizar a visibilidade e a voz, retirados pelo processo de colonização no campo da saúde, fruto da supervalorização do saber biomédico. Observa-se a necessidade do diálogo entre os conhecimentos para a construção de um ambiente de aprendizagem mútua, caracterizado como ecologia dos saberes. Para isso, é preciso o processo de descolonização na perspectiva do pensamento pós-abissal, com a valorização do saber popular, em prol de um cuidado culturalmente congruente. Por fim, na Enfermagem, o referencial da Teoria da Universalidade e Diversidade do Cuidado Cultural instrumentaliza o enfermeiro para planejar e implementar o cuidado transcultural sensível.

Palavras-chave:
Assistência à Saúde; Conhecimento; Diversidade Cultural; Enfermagem Transcultural; Populações Vulneráveis

Resumen

Objetivo

reflexionar sobre las interrelaciones del cuidado transcultural y las Epistemologías del Sur en las prácticas de salud y Enfermería.

Método

se trata de un estudio reflexivo, a partir de una revisión narrativa de la literatura, destacando los conceptos de la línea abisal, ecología del saber y descolonización del saber en el marco de las Epistemologías del Sur.

Resultados

luego del análisis reflexivo del material surgieron tres ejes reflexivos, a saber: Poblaciones al sur de la línea abisal; Ecología del conocimiento e interculturalidad; y Descolonización del saber en salud y prácticas de Enfermería: cuidado culturalmente congruente.

Consideraciones finales e implicaciones para la práctica

la valorización de la cultura del autocuidado de los grupos poblacionales vulnerables al sur de la línea abisal es fundamental para generar espacios de visibilidad y voz sustraídos por el proceso de colonización en el campo de la salud, producto de la sobrevaloración de la biomedicina conocimiento. Hay una necesidad de diálogo entre saberes para construir un ambiente de aprendizaje mutuo, caracterizado como la ecología del saber. Para ello, se necesita el proceso de descolonización desde la perspectiva del pensamiento postabismal, con la valorización del saber popular, en pro del cuidado culturalmente congruente. Finalmente, en Enfermería, el marco de la Teoría de la Universalidad y Diversidad del Cuidado Cultural equipa a los enfermeros para planificar e implementar un cuidado transcultural sensible.

Palabras clave:
Atención a la Salud; Conocimiento; Diversidad Cultural; Enfermería Transcultural; Poblaciones Vulnerables

Abstract

Objective

to reflect on the interrelationships of transcultural care and the Epistemologies of the South of health and Nursing practices.

Method

this is a reflective study, based on a narrative review of the literature, highlighting the concepts of abyssal line, ecology of knowledge, and decolonization of knowledge from the framework of the Epistemologies of the South.

Results

after the reflective analysis of the material, three reflexive axes emerged, namely: Populations south of the abyssal line; Ecology of knowledge and interculturality; and Decolonization of knowledge in health and nursing practices: culturally congruent care.

Final considerations and implications for practice

the appreciation of the self-care culture of vulnerable population groups south of the abyssal line is essential to create opportunities for visibility and voice removed by the colonization process in the health field, as a result of the overvaluation of biomedical knowledge. There is a need for dialogue between knowledge to build an environment of mutual learning, characterized as the ecology of knowledge. For this, the decolonization process is needed from the perspective of post-abyssal thinking, with the appreciation of popular knowledge, in favor of culturally congruent care. Finally, in nursing, the framework of the Theory of Universality and Diversity of Cultural Care equips nurses to plan and implement sensitive transcultural care.

Keywords:
Delivery of Health Care; Knowledge; Cultural Diversity; Transcultural Nursing; Vulnerable Populations

INTRODUÇÃO

A cultura é compreendida como uma composição de elementos que caracterizam as atividades não biológicas, e, envolve símbolos, valores, práticas, tradições e costumes, compartilhados por diferentes integrantes de um grupo social, como um produto coletivo da vida humana. Por meio desse, expressam-se as características da realidade dos grupos humanos, como a saúde, assim, o termo cultura de cuidado relaciona-se aos atributos das ações de cuidado de si e do outro em um determinado grupo.11 Silveira DB, Chagas MDF, Hora TS, Daher DV, Acioli S. Implicações da cultura no cuidado da equipe de saúde da família em uma Comunidade Quilombola. Rev Enferm UERJ. 2015 nov;23(5):622-6. http://dx.doi.org/10.12957/reuerj.2015.17734.
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Entende-se que o autocuidado descreve e explica a prática de cuidados executados pela pessoa em relação à necessidade para manter a saúde e o bem-estar. Assim, todos realizam o autocuidado, o qual é influenciado diretamente pelas concepções, valores e percepções individuais e coletivas de cada pessoa e/ou grupo.22 Orem DE. Nursing: concepts of practice. 4ª ed. St. Louis: Mosby; 1991.

Soma-se a esse contexto a diversidade cultural evidenciada pela pluralidade de saberes e práticas sociais e de saúde. Acredita-se que a expressão diversidade cultural, hoje, compreende a superação da negação das diferenças.33 Gonçalves JB, Oliveira EL. Diversidade cultural e relações de gênero em uma escola indígena sul-mato-grossense. Educ Pesqui. 2018 jan;44(0):1-19. http://dx.doi.org/10.1590/s1678-4634201844185144.
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Porém, essas diferenças ainda são interpretadas como negativas, com questionamentos relacionados à valorização de conhecimentos (hegemônicos) em detrimento a outros (não hegemônicos).

Esse pensamento enfatiza a necessidade de um diálogo harmonioso entre as culturas, não com o objetivo da homogeneização dessas, mas sim, com a possibilidade de um conviver pautado no respeito e na negociação. Diante do contexto atual de globalização com alta interação cultural, além da presença de fenômenos como os movimentos de imigração, presença de refugiados em diversos países, e iniquidades em saúde aos grupos vulneráveis, como a população indígena, do campo, ribeirinhos, os quais possuem uma cultura de autocuidado própria e necessitam de uma assistência em saúde culturalmente congruente.

Todavia, na assistência à saúde ainda é predominante o desconhecimento do contexto histórico e sociocultural dos grupos assistidos, assim como a desvalorização das práticas culturais de autocuidado nos territórios que predominam as culturas não hegemônicas. Essas práticas coexistem com o modelo biomédico, ainda hegemônico e supervalorizado.44 Lima MRA, Nunes MLA, Klüppel BLP, Medeiros SM, Sá LD. Atuação de enfermeiros sobre práticas de cuidados afrodescendentes e indígenas. Rev Bras Enferm. 2016 out;69(5):840-6. http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167.2016690504. PMid:27783725.
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Portanto, acredita-se ser pertinente a discussão sobre como as práticas de saúde e Enfermagem podem ser desenvolvidas e vivenciadas nesse contexto transcultural.

Com isso, este estudo objetiva refletir sobre as interrelações do cuidado transcultural e as Epistemologias do Sul nas práticas em saúde e Enfermagem.

Referencial teórico das Epistemologias do Sul

Boaventura de Souza Santos é um pensador reconhecido e premiado em diversas partes do mundo. Em uma de suas obras, o livro “Epistemologias do Sul” oferece reflexões sobre as epistemologias. Epistemologia é toda a noção ou ideia refletida ou não, sobre as condições do que conta como conhecimento válido. É por via do conhecimento válido que uma dada experiência social se torna intencional e inteligível. Não há, pois, conhecimentos práticos e atores sociais.55 Boaventura SS, Meneses MP. Epistemologias do Sul. Coimbra: Editora Cortez; 2017.

As Epistemologias do Sul surgem diante da visão que o mundo é variado e diversificado em relação às culturas e saberes, mas que no decorrer da história da modernidade se sobrepôs uma forma de conhecimento pautada no modelo epistemológico da ciência moderna, desconsiderando os outros saberes.55 Boaventura SS, Meneses MP. Epistemologias do Sul. Coimbra: Editora Cortez; 2017.

Assim, pode-se dizer que as Epistemologias do Sul são procedimentos que visam validar os conhecimentos nascidos na luta contra o capitalismo, colonialismo e patriarcado, ou seja, conhecimentos nascidos das lutas sociais. Dessa forma, Epistemologia do Sul representa a diversidade epistemológica do mundo e o Sul representa metaforicamente como um campo que visa superar as consequências do colonialismo sob os países da região sul geográfica.55 Boaventura SS, Meneses MP. Epistemologias do Sul. Coimbra: Editora Cortez; 2017.

Nessa perspectiva, dentre os conceitos do referencial em questão, os que irão embasar este estudo são da linha abissal, ecologia dos saberes e descolonização do saber (Figura 1).

Figura 1
Conceitos da Epistemologias do Sul.

Assim, a proposta de refletir sobre as interfaces das práticas de saúde e Enfermagem transcultural na perspectiva das Epistemologias do Sul baseiam-se na abordagem de Boaventura para subsidiar as práticas de Enfermagem com uma visão holística e desprendida de pré-julgamento, sem a imposição de saberes. De tal modo que o referencial se baseia na diversidade, pluralidade e o respeito às individualidades.

MÉTODO

Trata-se de um estudo reflexivo que pretende responder ao seguinte questionamento: “De que forma a perspectiva teórica das Epistemologias do Sul relaciona-se com as práticas em saúde e Enfermagem no contexto do cuidado transcultural?”

O estudo foi desenvolvido durante o primeiro semestre de 2021 como produto da disciplina “Temas avançados em Educação, Saúde e Cidadania” do curso de doutorado em Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Para a operacionalização da reflexão, realizou-se uma revisão narrativa da literatura durante o período de setembro a novembro de 2021, por meio da busca de livros, artigos e documentos que versam sobre a temática em questão, a fim de discuti-la sob um ponto de vista teórico/contextual.66 Rother ET. Revisão sistemática X revisão narrativa. Acta Paul Enferm. 2007 jul;20(2):5-6. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-21002007000200001.
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Utilizou-se da busca na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) com a utilização dos termos Epistemologias do Sul e cuidado transcultural.

Para a estruturação do referencial teórico e o aprofundamento temático-conceitual, realizou-se a leitura do livro “Epistemologia do Sul” e de artigos científicos que possibilitassem a formação de pontes entre o referencial em questão e o desenvolvimento das práticas assistenciais em saúde e Enfermagem no contexto transcultural. Utilizou-se, também, como referência os documentos considerados importantes sobre o cuidado transcultural.

Para o tratamento das informações, utilizou-se a construção de fichamentos com os pontos reflexivos os quais possibilitaram uma visão panorâmica sobre os documentos e a construção do deste estudo.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A partir da análise reflexiva do material e da discussão em grupo entre os autores sobre a temática, emergiram três eixos reflexivos, a saber: Populações ao Sul da linha abissal; Ecologia dos saberes e a interculturalidade; e Descolonização do saber nas práticas em saúde e Enfermagem: cuidado culturalmente congruente.

Populações ao sul da linha abissal

Por meio do pensamento construído por Boaventura, entende-se que a linha abissal invisível que separa o mundo de conhecimentos e vivências, caracteriza uma dicotomia visível entre o legal e o ilegal, estando esse último ao sul.55 Boaventura SS, Meneses MP. Epistemologias do Sul. Coimbra: Editora Cortez; 2017. Ao sul encontra-se a invisibilidade de formas, de conhecimentos não hegemônicos, conhecimentos populares, leigos, camponeses, indígenas, ou não compatíveis com os conhecimentos do norte.

Esses conhecimentos são construídos por atores sociais, grupos populacionais culturalmente definidos, que possuem uma visão de mundo própria e relacionam-se entre si e com outros grupos sociais de forma própria. Essas diferentes relações dão origem às diferentes epistemologias, às quais, acabam oprimidas e minimizadas pela epistemologia ao norte da linha abissal.

Estar ao sul da linha abissal refere-se ao conjunto de países do mundo que foram submetidos ao colonialismo europeu, e que não atingiram o desenvolvimento econômico semelhante ao do norte global. Assim, denota uma posição contra-hegemônica, e ilustra a presença de um conjunto de conhecimentos e práticas subjugadas, consideradas inferiores. Essa posição inferior liga-se ao conhecimento dessas populações, silenciadas a cada dia, com o avançar da globalização e do capitalismo.

Por meio de reflexão, pode-se inferir que os imigrantes, refugiados, indígenas, ciganos, população do campo, das florestas e das águas, são algumas dessas pessoas que sofrem com a minimização de seu próprio saber em saúde. Essa repressão repercute em seu espaço na sociedade, assim como em seu poder de voz e representatividade, o que contribui para o processo de aculturação, aumento das diferenças sociais e apagamento de suas identidades no mundo atual.

Ecologia dos saberes e a interculturalidade

Na perspectiva das Epistemologias do Sul, a Ecologia dos Saberes é um conjunto de epistemologias que partem da possibilidade da diversidade e da globalização contra-hegemônica e pretendem contribuir para credibilizá-las e fortalecê-las. Ela assenta-se em dois pressupostos: não há epistemologia neutra e as que dizem ser são as menos neutras; a reflexão epistemológica deve incidir não nos conhecimentos abstratos, mas nas práticas de conhecimento e seus impactos noutras práticas sociais. Quando se fala em ecologia dos saberes entende-se como ecologia das práticas dos saberes.55 Boaventura SS, Meneses MP. Epistemologias do Sul. Coimbra: Editora Cortez; 2017.

Isso posto, a ecologia de saberes é um conceito que visa promover o diálogo entre os vários saberes e poderá ajudar a compreender o contexto, a história, as tensões e os desafios vividos pela interculturalidade no contexto da assistência à saúde das populações vulneráveis, ao sul da linha abissal. Com isso, potencializa-se a possibilidade de aproximação com a realidade dessas populações, assim como do seu cotidiano no viver, ter e fazer saúde.

Em relação ao campo da saúde e da Enfermagem, a ecologia dos saberes repercute de forma positiva por possibilitar a oferta de uma prática profissional com responsabilidade de aceitar a diversidade e os contextos dos usuários e o reconhecimento de uma pluralidade de formas de conhecimento que devem ser levadas em consideração além do conhecimento científico.

O enfermeiro nesse contexto, tem como responsabilidade aceitar a diversidade de estilos dos usuários, a fim de ofertar um cuidado que respeite cada indivíduo e oferte um cuidado digno e intercultural. Propõe-se, então, nortear as práticas, considerando a diversidade da visão de mundo, das características individuais e grupais, assim como o pluralismo epistemológico que reconheça a existência de múltiplas visões.

Descolonização do saber nas práticas em saúde e Enfermagem: cuidado culturalmente congruente

Ao se pensar sobre a descolonização do saber, se é exigido a compreensão do que seja a colonização. O colonialismo também foi uma dominação epistemológica, pautado em uma relação desigual de saber-poder que conduziu à supressão de muitas formas de conhecimentos próprias dos povos e nações colonizados, relegando muitos outros saberes a um espaço de subalternidade. Portanto, a colonização do saber significa, de modo denotativo, um modelo de exclusão e exploração radical, que no campo epistemológico, subjuga e minimiza os saberes e as práticas ao sul da linha abissal.

Diante disso, as práticas de saúde podem ser entendidas como o conjunto de saberes utilizados para reconhecer ou identificar um problema relacionado ao equilíbrio físico e/ou mental de uma pessoa, e, consequentemente, planejar as ações que visam recuperar este equilíbrio. Ressalta-se que as práticas de atenção à saúde são fortemente influenciadas por processos culturais, históricos, sociais, políticos e econômicos. Além desses fatores, existem outros, de caráter mais subjetivo, que também influenciam as práticas de saúde, como as crenças e a religião.77 Raymundo MM. Interculturalidade e a conjunção de saberes que congregam a atenção em saúde. Rev Bioét. 2013 jun;21(2):218-25. http://dx.doi.org/10.1590/S1983-80422013000200004.
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Atualmente, o modelo de atenção hegemônico supervaloriza o conhecimento biomédico, rejeitando qualquer outro tipo de saber, o qual não seja oriundo na academia, embasado de alguma forma em teorias ou experimentos. Contudo, para a assistência à saúde, a valorização da cultura e as práticas de cuidado estão cada vez mais necessárias, com vistas a tornar o ser cuidado como ator principal desse processo. Portanto, esse entendimento é o que estabelece um divisor de águas entre o considerar a cultura do outro como a possibilidade de um encontro gerador de potência ou, diferentemente, a cultura do outro como um obstáculo a superar.88 Fernandez JCA. Determinantes culturais da saúde: uma abordagem para a promoção de equidade. Saúde Soc. 2014 mar;23(1):167-79. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902014000100013.
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A Enfermagem como profissão, disciplina e ciência, apresenta componentes sensíveis para as questões culturais concernente aos cuidados em saúde. Em suas bases teóricas, apresenta-se a Teoria da Universalidade e Diversidade do Cuidado Cultural (TUDCC). Essa teoria foi proposta por Madeleine M. Leininger, e considera que a visão de mundo dos indivíduos e suas estruturas sociais e culturais influenciam seu estado de saúde, bem-estar ou doença.99 George JB. Teorias de Enfermagem: os fundamentos à prática profissional. Porto Alegre: Artes Médicas Sul; 2000.

Pode-se entender que essa influência ocorre, pois, os fatores sociais e culturais estruturam e influenciam a compreensão do que é saúde e doença, assim como moldam as ações de cuidado e autocuidado dos indivíduos ou grupos populacionais para a manutenção da saúde. Essa percepção pode possibilitar o profissional de saúde a ampliar sua visão e a sensibilidade ao assistir as minorias sociais ou populações marginalizadas.

Segundo Leininger, o cuidado humano é universal, graças a isso os seres humanos têm sobrevivido ao longo tempo, pois são capazes de cuidar de si e uns dos outros, de maneiras variadas e em diferentes ambientes. Assim, são universalmente seres cuidadores que sobrevivem em uma diversidade de culturas pela sua capacidade de proporcionar a universalidade do cuidado de várias maneiras, de acordo com as diferentes culturas, necessidades e situações vividas.99 George JB. Teorias de Enfermagem: os fundamentos à prática profissional. Porto Alegre: Artes Médicas Sul; 2000.

Nesse ínterim, a Enfermagem reveste-se do manto do cuidar, ao atentar-se às respostas humanas e às necessidades de cuidado do indivíduo, da família e da coletividade de forma profissional e científica, ao mesmo tempo que se atenta para a faceta humanista e social desse cuidado. Portanto, ao perceber esse contexto, a TDUCC tem como preocupação proporcionar um cuidado de Enfermagem congruente com a cultura de cada pessoa/grupo ao abordar os aspectos da vida do ser humano, na sua complexidade, considerando as pessoas como seres de relações na comunidade, providos de uma cultura de autocuidado própria.1010 Seima MD, Michel T, Méier MJ, Wall ML, Lenardt MH. A produção científica da enfermagem e a utilização da teoria de Madeleine Leininger: revisão integrativa 1985 - 2011. Esc Anna Nery. 2011 dez;15(4):851-7. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-81452011000400027.
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Portanto, afirma-se a existência de diferenças entre os sistemas profissionais de saúde (conhecimento científico) e os sistemas populares de saúde (cultura de cuidado e autocuidado), às quais podem criar conflitos, se não forem trabalhadas na perspectiva da ecologia dos saberes. A(o) enfermeira(o), nesse cenário, atua como elo que aproxima esses sistemas ao buscar congruência entre as práticas desses dois sistemas de cuidados.

A TDUCC ilustra essa relação e ação da(o) enfermeira(o) utilizando-se de um modelo teórico-conceitual denominado de modelo Sunrise ou também chamado modelo Sol Nascente (Figura 2) para descrever essa interação.1111 Terças A, Nascimento V, Hattori T, Zenazokenae L, Lemos E, Santos M. Produção de pesquisa clínica em área indígena: relato de experiência com os Haliti-Paresí. Rev Enferm UFPE On Line. 2016 abr;10(6):2253-61. http://dx.doi.org/10.5205/reuol.9199-80250-1-SM1006201642.
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Trata-se de um modelo, visto como um mapa cognitivo que tem os objetivos de descobrir, explicar, interpretar e predizer o conhecimento do cuidado, bem como desenvolver os cuidados de Enfermagem culturalmente congruentes. É constituído de quatro níveis e dirige-se do nível I - mais abstrato - para o nível IV - menos abstrato. Os três primeiros fornecem subsídios para o planejamento e a execução do cuidado, uma vez que envolvem o desenvolvimento do conhecimento relacionado à cultura de cuidado da pessoa que será cuidada, embora esta terminologia não seja utilizada pela autora.1212 Leininger M. Teoria do cuidado transcultural: diversidade e universalidade. Anais do 1º Simpósio Brasileiro de Teorias de Enfermagem; 1985; Florianópolis, Brasil. Florianópolis (SC): Universidade Federal de Santa Catarina; 1985. p. 255-276

Figura 2
Modelo teórico-conceitual Sunrise.

O enfermeiro, ao utilizar a TDUCC, trabalha em mútuo conhecimento e respeito, de modo a produzir uma prática de saúde alicerçada nos sistemas populares e profissionais, no sentido da descolonização do saber, assim, valorizando o conhecimento que está ao sul da linha abissal, fruto do pensamento pós-abissal. Ao conhecer, reconhecer e valorizar o modo de viver de indivíduos e grupos, e inserir a cultura de autocuidado no plano assistencial, a(o) enfermeira(o) possibilita a sustentação técnico-científica da assistência de Enfermagem, como também, a autonomia do indivíduo, família e coletividade, caracterizando um verdadeiro ecossistema dos saberes em prática.

CONSIDERAÇÕES FINAIS E IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA

Com esta reflexão foi possível observar os pontos de interseção entre as Epistemologias do Sul e as práticas em saúde e Enfermagem no contexto transcultural. A valorização da cultura do cuidado e do autocuidado de grupos populacionais ao sul da linha abissal é fundamental diante do contexto social atual, na perspectiva de oportunizar a visibilidade e a voz, retirados pelo processo de colonização vivenciados no campo da saúde ao longo dos séculos com a supervalorização do saber biomédico.

Em contraponto, observa-se a necessidade do diálogo entre os conhecimentos (profissional e popular) para a construção de um ambiente de aprendizagem mútua, caracterizado como ecologia dos saberes. Para isso, coloca-se o processo de descolonização na perspectiva do pensamento pós-abissal, com a valorização do saber das populações que se encontram ao sul para a estruturação de uma assistência em saúde e Enfermagem culturalmente congruente.

Como implicações para a prática, considera-se que a Enfermagem dispõe do referencial da Teoria da Universalidade e Diversidade do Cuidado Cultural, o qual possui excelente potencial de alinhar o processo de cuidado à ótica intercultural, com a valorização às características da visão de mundo e estrutura cultural do indivíduo, família e coletividade, posicionando o enfermeiro no importante papel de interlocução entre os sistemas de saúde, profissionais e populares, para promover a aproximação entre estes atores sociais, o reconhecimento dos saberes e a assistência reflexiva e em regime de mutualidade transcultural.

Por fim, considera-se importante o desenvolvimento de outros estudos que articulem pensamentos/referenciais teóricos modernos, com as teorias próprias de ciências específicas, como a Enfermagem, no intuito de transpor os conceitos e as relações teóricas, considerando que, a ciência não pode estar hermética em que pese as demandas sociais cada vez mais desafiadoras.

REFERÊNCIAS

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Editado por

EDITOR ASSOCIADO

EDITOR CIENTÍFICO

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Dez 2022
  • Aceito
    24 Maio 2023
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