LEITURA
Atendimento ao aluno "difícil"
Maria Helena Souza Patto
Professora do Instituto de Psicologia da USP, pesquisadora da Fundação Carlos Chagas, autora do livro Psicologia e Ideologia (T.A. Queiroz Editor) e organizadora da coletânea Introdução à Psicologia Escolar (T.A. Queiroz Editor)
Aconselhamento Escolar. Uma proposta alternativa: atendimento ao "aluno-difícil", de Elcie Salzano Masini, Editora Loyola, 206p. Endereço da editora: Caixa Postal 42.335, CEP 01000, São Paulo.
Elcie Masini é uma verdadeira psicóloga-militante: há anos dedica-se à reflexão crítica do papel que os psicólogs tradicionalmente desempenham junto à clientela das escolas públicas de 1.° grau, especialmente àquelas a quem os especialistasentre os quais encontra-se o psicólogonão têm hesitado em chamar de alunos difíceis, mesmo sabendo que as condições de aprendizagem escolar que lhes são oferecidas não resistem a qualquer exame.
Elcie recusa os procedimentos que classificam as pessoas segundo critérios que lhes são alheios, enquadrando-as nas roupas estreitas dos rótulos, dos estereótipos e dos preconceitos. Quer um referencial teórico que lhe dê pistas para perceber as pessoas como elas são. Na procura de um referencial teórico-metodológico que desse conta desse recado, voltou-se inicialmente para Rogers; no entanto, a proposta de terapia centrada no cliente, a seu ver, contém lacunas que se manifestam principalmente na prática do aconselhamento escolar.
Movida pelo desejo de continuar a buscar caminhos alternativos para a Psicologia Escolar na filosofia existencial-humanista talvez por considerá-la a mais promissora na constituição de uma Psicologia não-rotuladora Elcie encontra-se com Minkowski (antropólogo que se propôs a estudar as relações primitivas olhando sem instrumentos) e com Boss (psiquiatra que reformulou a prática da psicoterapia a partir da filosofia de Heidegger e criou a Daseinsanalyse que, entre outras características, movimenta-se num sentido contrário à terapia analítica, pois recusa a interpretação). Ambos se propõem a olhar sem deformar, condição para que o Aconselhador possa aproximar-se do mundo de significados do Aconselhando (p. 105), como forma mais autêntica de conhecê-lo e, assim, ajudá-lo a conhecer-se. Será que ainda nos é possível o resgate deste olhar?
Aproximar-se do aluno difícil, num contexto escolar, de modo a tentar compreender a maneira como ele vive, reage, atua, pensa e sente, é o único caminho, desta perspectiva filosófica, para aliar-se a ele no desvelamento do significado de suas experiências. Entre estas, a experiência escolar foi o desafio que se colocou ao grupo supervisionado por Elcie no Curso de Aconselhamento em Pscòlogia Escolar que ela mesma organizou no Instituto Sedes Sapientiae. Juntos, superviora e supervisionandos, dedicaram-se, em 1978 e 79, a delinear uma prática psicológica alternativa junto aos alunos equivocadamente chamados difíceis. O livro Aconselhamento Escolar. Uma proposta alternativa: atendimento ao "aluno-difícil", é o relato de uma pesquisa-ação levada a efeito em escolas públicas de 1.º grau do Estado e do Município de São Paulo.
Durante as sessões de aconselhamento, constantemente discutidas, vistas e revistas pelo grupo, houve uma descoberta: a de que não só o aconselhado tem a possibilidade de entender sua maneira de estar no mundo em sua relação com o aconselhador, mas que este se conheceou seja, toma consciência do viés ideológico, do assistenciãlismo e, portanto, do preconceito que o aconselhador nutre em relação a estas criançasem sua relação constantemente refletida com o aconselhando. Dá-se, então, a principal mudança de ótica em relação às preocupações rogerianas: ao invés de se voltar para a definição das condições facilitadoras do crescimento pessoal do aconselhando, Elcie chama a atenção do leitor para as condições dificultadoras presentes nesta relação que, a julgar pelos textos de Rogers, parece mais fácil do que na realidade é.
Certamente, os aspectos teóricos da proposta comportam uma longa discussão: o caráter a-histórico do ser humano me parece uma característica da filosofia existencial-humanista que a concepção materialista histórica de homem superou. No entanto, não é isto que vem ao caso quando lemos este livro: sua contribuição maior encontra-se no espírito questionador e incansável da autora queao conduzir a Psicologia em direção a uma visão de homem que quer, acima de tudo, olhá-lo como ser individual e único ajuda a distanciá-la da abordagem empobrecedora da norma e das generalizações massificantes.
Nos meios educacionais, olhar para cada criança como se ela fosse única tornou-se uma prática que privilegia a clientela de alguns bons colégios particulares. Com sua proposta, Elcie nos convida a tirar a venda imposta pela Psicologia, que estereotipa e discursa sobre, e a refletir mais amplamente sobre as discordâncias entre o saber, sentir e agir junto ao Outro, sobre os caminhos possíveis para lidar com as distorções da comunicação humana numa busca de recursos para aproximar-se dos significados do próprio existir de cada um e do existir do Outro (p. 120). Este convite será tanto mais rico e proveitoso quanto mais for aceito por todos os que se dedicam à educação de crianças das classes populares, sempre olhadas de maneira tão distorcida.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
04 Out 2012 -
Data do Fascículo
1986