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“A Psicologia no Brasil”

ENTREVISTAS

“A Psicologia no Brasil”

Para a atualização dos temas tratados no texto A Psicologia no Brasil, primeiro artigo publicado na revista número zero, a comissão editorial da revista Psicologia: Ciência e Profissão indicou duas pessoas para serem entrevistadas, que representassem respectivamente a ciência e a profissão no nosso país.

Para falar sobre o desenvolvimento da profissão nos últimos 30 anos, foi entrevistada a professora Ana Mercês Bahia Bock, Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde leciona e desenvolve pesquisas, com ênfase em Psicologia sociohistórica, atuando e pesquisando principalmente nos seguintes temas: Psicologia, educação, Psicologia sociohistórica, profissão e compromisso social e dimensão subjetiva da desigualdade social. Foi presidente do Conselho Federal de Psicologia por três gestões. Preside o Instituto Silvia Lane – Psicologia e Compromisso Social e é, atualmente, secretaria executiva da União Latino-americana de Entidades de Psicologia.

Para falar aos leitores da revista sobre o desenvolvimento da ciência psicológica, foi entrevistado o professor Cesar Ades. Doutor em Psicologia experimental (1973), livredocente pela Universidade de São Paulo (1991), é professor titular (1994) do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Atualmente, dirige o Instituto de Estudos Avançados da USP. É membro do International Council of Ethologists, da International Society of Comparative Psychology e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Etologia (SBEt), da qual foi fundador. Suas principais linhas de pesquisa estão na área de etologia e do comportamento animal.

A Psicologia como Profissão: Entrevista com Ana Bock

Ana Bock* * Doutora em Psicologia Social pela PUCSP. Professora titular do departamento de Psicologia Social da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo – SP - Brasil

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Ana Bock – O trajeto da Psicologia pode ser sintetizado como o de uma profissão comprometida com interesses da elite brasileira – que, de certa forma, é responsável pelo ingresso e desenvolvimento da Psicologia no Brasil – até o momento atual, que pode ser chamado de momento de compromisso ou, pelo menos, do começo do desenvolvimento de um projeto de compromisso com as necessidades da maioria da população brasileira, com uma vontade clara, entre os psicólogos, de uma inserção maior. Isso não quer dizer que haja um único tipo de inserção, pois há uma tensão sobre como seria essa inserção. Entretanto, pode-se dizer que todos os psicólogos atualmente gostariam que a Psicologia tivesse inserção maior na sociedade brasileira, o que significa efetivamente um compromisso maior com outros segmentos da sociedade.

As pesquisas têm mostrado que os psicólogos gostam muito da profissão, que se mantêm registrados no Conselho mesmo sem trabalhar na profissão, porque eles imaginam que um dia vão exercê-la. Os cursos de Psicologia têm baixos índices de evasão e de inadimplência, o que mostra um vínculo, e isso tem refletido o interesse por maior inserção.

Iracema Neno Cecílio Tada – No começo da profissão, quais áreas tinham maior foco de atuação dos psicólogos? Atualmente, outras áreas estão surgindo? Como você as analisa?

Ana Bock – Tínhamos, no início da institucionalização da profissão no País, um compromisso quase que exclusivo com a elite brasileira. Estávamos incluídos no projeto de modernização do País. Sabemos que, na modernização, tudo o que se apresentou como tecnologia ganhou seu espaço social. A tecnologia apresentada pela Psicologia consistia nos testes psicológicos, que, de forma objetiva e tecnológica, contribuíam para a categorização, para a diferenciação, ajudando a encontrar o homem certo para o lugar certo. Estávamos incluídos em processos de seleção de pessoal e orientação profissional. Também com os testes, nas escolas, ajudamos a formar classes mais homogêneas para preparar melhor as crianças e os jovens para o trabalho. Ganhamos espaço na sociedade com esses dois campos da Psicologia.

Edla Grisard de Andrade – E a Lei nº 4119?

Ana Bock – A Lei n° 4.119/62, que regulamenta a profissão no Brasil, foi como uma certidão de nascimento antes que o bebê tivesse nascido, ou seja, não tínhamos, naquele momento, algo que pudesse ser denominado profissão: não havia uma categoria profissional, não havia (a não ser os testes) um conjunto de ferramentas de trabalho, não havia um discurso que identificasse os psicólogos, enfim, não havia nenhuma condição social para o reconhecimento oficial, legal, de uma profissão de psicólogo. É interessante observar que os psicólogos foram surpreendidos pelo Projeto de Lei. Quando o Projeto de Lei já estava pronto, os psicólogos foram chamados para opinar sobre ele. Não gostaram, e, a partir disso, trabalharam para modificá-lo, para produzir emendas. O Projeto modifica quase completamente o texto original. Aprovada a Lei, restou o desafio de construir a profissão. Tínhamos um certo reconhecimento social que provinha das elites, mas a sociedade como um todo desconhecia a Psicologia e sua contribuição. Os anos 70 e o início dos anos 80 são fundamentais para a mudança de rumo da profissão no País. Na faculdade em que fiz o curso, por exemplo, existia um professor que criou uma disciplina chamada Caracterização sociopsicológica do trabalhador brasileiro, no início dos anos 70. Íamos para Osasco, São Bernardo do Campo, Santo André conversar com grupos operários sobre a Psicologia, e a população desconhecia completamente o que estávamos falando. Quando perguntávamos se conheciam psicólogos, a resposta era negativa. Quando perguntávamos se, na empresa onde o operário trabalhava, ele tinha feito seleção, alguns entrevistados diziam conhecer o psicólogo da seleção de pessoal, que era tido, no imaginário operário dos anos 70, como um porteiro de luxo que impedia seu trabalho usando ferramentas cuja efetividade a população desconhecia. Eu me lembro de termos feito uma matéria no jornal da faculdade, ainda como aluna, que relatava a história ouvida de um operário. Ele contava que havia perdido uma oportunidade de emprego porque não soube desenhar uma árvore, como o psicólogo havia solicitado. Dizia ele: “O psicólogo mandou desenhar uma árvore e depois disse que eu não servia para o trabalho”. De certa forma, até hoje, na seleção de pessoal, permanece esse problema do desconhecimento de como essas atividades podem servir para efetivamente selecionar. Se um profissional da seleção pedisse para que o operário apertasse um parafuso e avaliasse que não apertou bem, seria fácil entender não ser aprovado, mas mandar desenhar uma árvore soava estranho. Isso mostra o caminho de elite da profissão. Nossas formas e instrumentos de trabalho utilizavam e ainda utilizam recursos que, muitas vezes, não são compreendidos pela maioria da população, às vezes porque são sofisticados para quem tem pouca escolarização, às vezes porque se tem dificuldade de entender a relação com o objetivo para o qual se emprega a técnica.

Edla Grisard de Andrade – Quer dizer, não era significativo para a camada pobre ou mesmo média da população?

Ana Bock – Isso; havia uma relação distante com a população, que era tensa, de medo, de desconhecimento. Era um enigma o que aquele profissional efetivamente fazia e, ao mesmo tempo, havia um reconhecimento de certo poder no que ele fazia, na possibilidade de tirar do lugar, mandar para outro lugar, reprovar na escola, colocar na classe especial. As pessoas não sabiam o que faziam os psicólogos, e daí o imaginário de que os psicólogos adivinham a cabeça do outro ou que tratam de gente que tem a cabeça fraca, que é doido. Os pais muitas vezes se referiam aos psicólogos dessa forma. Os exemplos são para dizer que era uma profissão que não tinha nenhum interesse, nenhum projeto para se aproximar efetivamente da população e fazer um tipo de serviço que fosse percebido como necessário ou para responder às suas necessidades. Estávamos efetivamente ligados aos interesses da elite brasileira e ao seu projeto de modernização. Esse caminho não é sem pedras. Encontra-se, na história da profissão no País, pessoas que buscavam outras formas e outros compromissos para a Psicologia. Os psicólogos, quando entravam na saúde pública e levavam o modelo de trabalho que estavam acostumados a utilizar com a elite, encontravam dificuldades muito grandes para exercer esse trabalho, porque as técnicas e as ferramentas eram todas intelectualizadas, os recursos de linguagem sofisticados, e não serviam para a maioria da população. Isso é vivido como uma crise que se acentua nos anos 70 com o desenvolvimento do pensamento crítico na sociedade, decorrente da ampliação do movimento social que se organizou para combater a ditadura militar. É o lado contraditório da ditadura. Ela vem para nos calar, para nos impedir, mas, contraditoriamente, produz um tensionamento, uma insatisfação, e vai produzindo nas universidades e na sociedade em geral um pensamento crítico.

Edla Grisard de Andrade – E abre a brecha para o projeto do compromisso social, é isso?

Ana Bock – Sim, é isso. Alguns aspectos dos anos 70 nos permitem compreender porque o projeto do novo compromisso social vai surgir nesse período. O fato de termos a ditadura militar e a perseguição aos intelectuais, a toda a esquerda, deve ser levado em conta. A parte intelectual dessa esquerda recua para as instituições universitárias e vai fazer o seu trabalho de militância ali, ensinando Marx, que propicia leituras mais críticas. Contraditoriamente, na ditadura militar, o marxismo, um pensamento que estava resguardado às esquerdas brasileiras, começa a se espalhar. Outra coisa é todo o movimento operário, que cresce. Há um caldo de movimento social importante: o fortalecimento dos sindicatos, as grandes greves de 1970, 1972, em São Bernardo, o surgimento da liderança do Lula. Essa movimentação à esquerda propicia o surgimento, nos cursos de Psicologia, de pensamentos críticos, principalmente de questionamentos sobre de que lado estavam os psicólogos. Começa a surgir o desenho de uma nova profissão.

Também é fator importante a abertura das universidades para a camada média. A ditadura precisava do apoio das camadas médias para se sustentar. Ao mesmo tempo, quando ela abre o País aos grandes investimentos internacionais, começam a se instalar os grandes monopólios. Os pequenos negócios, como a vendinha da esquina, a padaria, a costureira, o alfaiate, o sapateiro, vão começar a falir, e os filhos da camada média vão perder sua possibilidade de manutenção do status de camada média. Claro que a ditadura perderia o apoio dessa camada se isso se mantivesse assim. Então, a ditadura negocia com esse grupo a possibilidade de que seus filhos, não mais herdeiros dos pequenos negócios, se tornem psicólogos, médicos, engenheiros, advogados. E assim as universidades vão ampliar as suas vagas. Há um grande boom das universidades na primeira metade da década de 70. Era uma outra camada social que ingressava nas universidades, que até então eram reservadas às elites. Isso muda a Universidade, isso muda a formação e muda a profissão.

Edla Grisard de Andrade – Quantas universidades de Psicologia nós tínhamos nessa época?

Ana Bock – Tínhamos poucas; é nos anos 70 que muitos cursos vão surgir. São Paulo passa a ter um grande número de cursos que colocam no mercado um número enorme de profissionais. Sou o nº 2.771 no Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP– 06), inscrita em 1977. Como esse Conselho tinha, à época, mais de 60% dos psicólogos inscritos no País, significa que não éramos mais de 5 mil (aproveito para salientar que estamos em meados dos anos 70, imagine em 1962, quando a Lei foi promulgada!). Em 1980, já se encontram nas estatísticas 30 mil. Há um salto. Crescemos em progressão geométrica, principalmente no Sudeste, depois nos espalhamos mais lentamente pelo País. Nos anos 90, em alguns Estados do Norte e do Nordeste, ainda se tem uma escola de Psicologia por Estado. Hoje não há nenhum Estado que tenha só um curso. Mas o boom dos anos 90 tem outras condições e características.

Iracema Neno Cecílio Tada – A partir da década 70, quais áreas de atuação têm mais destaque?

Ana Bock – Vou chegar lá, mas quero fazer outra correção antes. Acho que, nos anos 90, o outro boom que vai acontecer nas escolas não é ainda por uma política de acesso das camadas pobres. Atualmente, há ampliação de vagas nas universidades federais, tem o Programa Universidade para Todos, o Prouni, e agora sim, há um projeto de acesso das camadas pobres. Mas o que leva ao grande boom das escolas na década de 90, que leva Rondônia a ter sete cursos, Santa Catarina a ter 23, é o projeto neoliberal, de redução e privatização dos serviços que eram do Estado, o projeto do Estado mínimo. É essa redução dos serviços prestados pelo Estado, mas não de redução do seu controle, que vai permitir que os grandes investidores da bolsa de valores, negociantes que tinham negócios de outra natureza, passem a investir na educação, levando à abertura de escolas particulares no ensino fundamental, no ensino médio e nas universidades, campo que tinha uma demanda reprimida muito grande. Isso é um parêntese que faço, apenas para destacar que temos crescimento das universidades por vários motivos, no decorrer da História. Nos anos 70, era devido à cooptação das camadas médias pela elite.

Então, chega-se aos anos 70 com esses fatores: a ditadura, o movimento social, a classe média na Universidade. Isso vai trazer para a Universidade e para a organização da categoria profissional, dos sindicatos, do próprio Conselho, questionamentos sobre que profissão temos. Era muito comum, naquela época, encontrar semanas de Psicologia que tinham como questões que Psicologia queremos, que psicólogos queremos ser. Era um movimento de construção de identidade, e estava posta a questão será que eu quero ser esse psicólogo que está aí, da elite? Isso vai se fortalecer enormemente nos anos 80, quando acontecem duas coisas importantes: a entrada dos psicólogos na saúde mental, encontrando ali o movimento sanitarista já organizado e avançando a passos largos, e o surgimento, a partir das universidades, da Psicologia comunitária, que nasce nos estágios dos alunos. Eles vão fazer suas experiências junto ao operariado, em São Bernardo, Osasco, no caso de São Paulo, ou vão trabalhar na favela, junto ao movimento de creches ou nas comunidades de bairro. É o momento do desenvolvimento do pensamento do Paulo Freire. A Igreja vai utilizar o pensamento freiriano como um pensamento capaz de organizar as populações. É o momento das organizações das pastorais operárias. A Psicologia na saúde mental, dentro do serviço público, vai se distinguir completamente da saúde que se fazia nas clínicas psicológicas particulares, que nem se chamava saúde. E isso vai mudar muito a cara da profissão. Os psicólogos vão entrar na saúde, vão se organizar na saúde, vão se destacar, vão virar lideranças na saúde. Essas novas práticas vão, aos poucos, penetrar nas Universidades, modificando a formação. A Psicologia comunitária também teve esse mesmo papel. Ela, diferentemente da saúde, começou nas universidades e se espalhou para a profissão. De qualquer forma, eram dois movimentos que a profissão fazia que se integravam, se alimentavam e propiciavam o desenvolvimento de um novo projeto para a profissão: o projeto do compromisso social.

Edla Grisard de Andrade – Qual a repercussão disso para a Psicologia?

Ana Bock – Isso fortalece um pensamento novo no campo da Psicologia. A Psicologia comunitária é um contato direto e uma expressão direta de projeto de compromisso com a população. São os psicólogos trabalhando nas favelas, nas comunidades e associações de bairro, nas creches, junto com as mães no movimento de creche e nas entidades sindicais.

É dessa experiência que, acho, vão começar a surgir e a se desenvolver novas áreas e novas possibilidades de intervenção: uma nova tecnologia para o trabalho do psicólogo, ampliando as formas restritas que havia. Ana Maria Almeida comenta, a partir da pesquisa realizada em 88 pelo CFP, que resultou no livro Quem É o Psicólogo Brasileiro, que não tínhamos um instrumental de trabalho diversificado. Os psicólogos faziam a mesma coisa em todos os lugares em que atuavam. Nos anos 80, isso se modifica. Outros fazeres começam a se instituir como real possibilidade de trabalho em Psicologia. Cabe lembrar que, em 2000, quando realizamos a I Mostra Nacional de Práticas em Psicologia: Psicologia e Compromisso Social, tivemos dificuldades para que os psicólogos, que atuavam de maneira distinta do que se poderia chamar de tradicional, reconhecessem que o convite para mostrar seu trabalho era para eles. Eles achavam que não atuavam em Psicologia porque não faziam as atividades que estavam marcadas e que identificavam o campo. Mas, termos recebido dois mil trabalhos mostra que a nova Psicologia já estava inventada. Tudo isso significa que já havia um novo jeito de se colocar na sociedade, comprometido com necessidades, com carências, com exigências que vinham de outros segmentos da população.

Edla Grisard de Andrade – Claro que é tudo muito dialético, mas às vezes me pergunto se não é também uma reparação com a população, porque a profissão começou voltada para as elites e, em certa medida, por todo esse movimento contraditório, acaba atendendo as demandas da população.

Ana Bock – Sim, é um atender as demandas da população, como disse no começo, não sem contradições, não sem intenções. Existe um voltar-se para a população que está diretamente relacionado a interesses corporativos, de ter emprego, não exatamente ao acesso da população. Mas está tudo colocado em um mesmo campo, há um diálogo e uma tensão permanentes entre aqueles que constroem o projeto do compromisso social, porque acham que a Psicologia deve colaborar com a transformação da sociedade, dando condições dignas de vidas para a garantia dos direitos humanos, e entre aqueles que só estão interessados em ter emprego e acham que, para isso, é preciso que a Psicologia possa ser estendida a outras pessoas. A Psicologia é um bem social e todos devem ter acesso a ela, mas há uma divisão entre aqueles que acham que essa ampliação significa apenas utilizar os recursos existentes com a nova clientela e aqueles que acham que é preciso construir uma nova psicologia adequada às necessidades da nova clientela. Eu diria que essas são tensões na profissão, tensões que são quase permanentes.

Iracema Neno Cecílio Tada – E há um distanciamento do compromisso teórico, crítico, com a técnica.

Ana Bock – Há um distanciamento. Há pouca preocupação com a reformulação da técnica. Por quê? Essa é justamente a questão que me levou a estudar o fenômeno psicológico como é visto pelos psicólogos. Como temos, talvez hegemonicamente ainda, o pensamento de que o fenômeno do psicológico é um fenômeno natural do humano, universal no humano, tomamos nossos conceitos das várias teorias psicológicas e os aplicamos a qualquer humano. É a ideia de que todos são iguais, todos são dotados dessas potencialidades, que vem do pensamento liberal e que permite que se aplique à Psicologia, da mesma forma, a mesma técnica para todo mundo. Não passa pela cabeça – ainda – da maioria dos psicólogos, que nossa psicologia é uma psicologia branca, masculina, europeia ou americana. Há estudos específicos da negritude, da existência negra no Brasil, em que mais de 50% da população se reconhece negra. Essa questão não é percebida. Não discutimos, no curso de Psicologia, essas questões, não fazemos pesquisa para conhecer essa realidade psíquica da maioria de nossa população. Há um estudo de Franklin Ferreira que mostra quão poucos estudos existem sobre a questão negra no campo da Psicologia. Temos dificuldade de perceber o quanto as construções da Psicologia acabam ocultando a desigualdade social, as diferenças sociais, porque vamos aplicar os mesmos conceitos, o mesmo esquema teórico para qualquer sujeito. Essa questão a profissão ainda tem para enfrentar nos próximos anos. Há muita coisa escondida por detrás de nossos conceitos, porque ainda não fomos capazes de dar visibilidade, de enxergar com clareza que, em nossos conceitos, em nossas técnicas, está embutido um padrão de branco, masculino, europeu, e que, nas nossas teorias de desenvolvimento, ainda estamos presos a conceitos e construções que têm como modelo crianças americanas ou suíças. Ainda não vemos problema nisso, porque não se evidenciou a questão no campo da Psicologia. Nós ainda não duvidamos que os sujeitos sejam universais, não pusemos a questão verdadeiramente na Psicologia de forma que todo mundo possa dizer: “Onde está esse sujeito? Ele é índio. Será que posso usar os meus recursos teóricos que foram criados na Europa branca para entender o dinamismo psíquico do índio? Servem? E o negro? E a mulher brasileira das periferias que chefia sua família?” Mas o projeto do compromisso social já colocou essa questão sobre a mesa e, com certeza, vamos avançar nela.

Edla Grisard de Andrade – Por outro lado, há quem diga que esse tipo de pensamento enfraquece o cientificismo da Psicologia, há quem critique muito essa ideia de psicologias.

Ana Bock – Há mesmo. Você tem toda razão, por isso digo que é um debate necessário. Minha opinião aqui explicita UMA posição, mas não a única posição. Há muitos pensamentos distintos no campo da Psicologia (há psicologias) que precisam ser debatidos. Quando se começa a dizer que nem todas as pessoas são iguais, que esse conhecimento não serve para algumas, começa-se a questionar a própria sustentação do pensamento moderno, de que todo mundo é igual e pode ter as mesmas condições. Já foi a época em que nobres eram uma coisa e servos eram outra. O pensamento liberal rompeu essa certeza e disse que todo mundo pode ser igual, depende do esforço de cada um. Foi dado um salto revolucionário do pensamento feudal, sem dúvida alguma. Então, é difícil superar isso sem que se caia na ideia de que os sujeitos são novamente colocados como desiguais pela sua condição. O reconhecimento da desigualdade tem de ser um reconhecimento da desigualdade social aliado a um pensamento de que as condições sociais constituem subjetivamente os humanos, para o psicólogo poder, ao considerar os sujeitos de forma desigual, entender que são as condições sociais e subjetivas, históricas, que estão produzindo essas diferenças.

Edla Grisard de Andrade – Isso amedronta o profissional que está lá na ponta, junto com a população.

Ana Bock – Claro, pois levamos cinco anos para nos formar, e agora tudo o que se aprendeu não serve para trabalhar na Unidade Básica de Saúde ou em um Centro de Referência em Assistência Social (Cras ). Nós nos sentimos desarmados. A dificuldade de nos instrumentalizarmos para trabalhar nesses locais faz, muita vezes, com que prefiramos achar que todos os sujeitos são idênticos e que se pode usar o mesmo recurso, pois é o que aprendemos.

Edla Grisard de Andrade – Como a senhora vê a função da Academia nesse processo, como formadora? O quanto a Academia ainda está, ou não está, distante do profissional que repete técnicas descontextualizadas, porque as aprendeu na Academia?

Ana Bock – Tenho visto a Academia com muito pessimismo, talvez porque esteja muito dentro dela, há muitos anos. Eu pensava que as diretrizes curriculares, só pelo fato de serem algo que nos moveu do lugar, poderiam produzir outra realidade de formação acadêmica, sem deixar de reconhecer que muitos cursos fazem hoje um esforço para absorver as questões da população; eu acho a ciência dura. Há esforço nos estágios, professores fazendo inovações, colocando os alunos em situação, mas o conhecimento é duro. Ele não se move. Continuamos tendo, nos cursos de Psicologia, as teorias ensinadas sem suas bases epistemológicas, sem que se ensine qual humano está presente, qual humano é o modelo em cada uma dessas teorias. Tenho dito que nossa formação é tecnicista, ou seja, ensinamos para aplicar o que ensinamos. Não temos tido uma postura universitária e científica que implica duvidar, questionar, interrogar o conhecimento a partir do contato problematizador com a realidade. Acho que é isso que temos que fazer: ensinar um contato problematizador com a realidade. Podemos e devemos ensinar todas as psicologias que são produzidas no mundo todo, mas não podemos continuar com essa postura colonialista de receber e aplicar. É preciso traduzir, e isso significa dialogar com os conhecimentos produzidos em outros países de modo a reinterpretá-los.

Edla Grisard de Andrade – E não se constrói uma teoria que seja própria do Brasil.

Ana Bock – Nós precisamos ter um conhecimento que SIRVA para o Brasil, ou seja, para todos os brasileiros. Se ele é produzido aqui ou reinterpretado aqui, não importa muito. O que não se pode é aplicar mecanicamente o que é produzido a partir de outras realidades. Os povos latino-americanos têm realidades parecidas e desafios parecidos. No entanto, estamos isolados. Deveríamos fazer um esforço mais coletivo, pois precisamos ter aliados para a produção de uma nova psicologia. Há esforços no México, em Cuba, na Argentina, no Uruguai, no Chile, cada um pensando, em seu país, qual o melhor jeito de se libertar da psicologia americanizada ou europeizada. Até agora, não nos aliamos completamente para esse esforço. Lemos um autor americano porque se traduz aqui o livro, mas não lemos o autor de língua espanhola. Dificilmente os alunos estudam Baró, por exemplo, ou autores argentinos, como pensamento importante na América Latina. E eles, os outros latino-americanos, leem quase nada de português. Ainda estamos distantes, não temos a construção feita, mas já estamos nesse tempo histórico, e é por esse motivo que conseguimos dizer que temos que formar a Psicologia na América Latina, que ainda temos que criticar o pensamento do homem universal, do homem natural, ainda temos que sair dessa ideia de que os sujeitos fazem um esforço para produzir sua individualização, a partir do puxar seus próprios cabelos. Então, eu diria que já estamos no tempo de um novo compromisso social. Nesse sentido, sou otimista. E acho que é a prática dos psicólogos nos locais de trabalho, em todas essas frentes que se abriram – na área jurídica trabalhando nas Varas, em penitenciárias, no Conselho Tutelar, na assistência social, nos CRAS e nas medidas socioeducativas, na saúde pública, na área do trabalho, na educação, discutindo seu fazer, se organizando para um novo pensamento.

Edla Grisard de Andrade – No início da entrevista, falaste algo sobre, no início dos anos 70, ser dado ao psicólogo a oportunidade de trabalho, mas dizia-se o que ele deveria fazer. Hoje eu ainda vejo que, no campo jurídico, por exemplo, pelo menos na minha realidade em Santa Catarina, o psicólogo que entra no tribunal de justiça recebe um pacote do que deve fazer. Ainda se mantém esse funcionamento, embora um pouco mais crítico.

Ana Bock – Um bom termômetro disso é avaliar a entidade de cada área. Há setores que têm entidades bastante representativas, com congressos fortes, que agregam a categoria, que reúnem pessoas que pensam criticamente sobre a Psicologia e, com isso, se tem a prática avançando e a organização avançando, criando possibilidades. Quando se avança na prática, avança-se na organização, e vice-versa.

Iracema Neno Cecílio Tada – Quando temos a prática avançando com a organização, podemos, quem sabe, por meio dos eventos científicos, levá-las para a Academia e, com elas, rever alguns construtos, algumas teorias que já estão tão firmes.

Ana Bock – É isso, você tem razão. É importante agregar. Tem-se a prática profissional avançando, a organização avançando e o conhecimento avançando; tem-se as entidades sendo pressionadas para superar aquele modelo tradicional. Não quer dizer que conseguirão superar, mas elas estão sendo pressionadas.

Iracema Neno Cecílio Tada – O Paulo Rosas, no texto publicado no número zero da revista que é a base para esta conversa sobre o desenvolvimento da profissão, coloca o quanto a Academia estava distante da prática profissional, sem fornecer instrumentos para o psicólogo atuar. O psicólogo estava atuando aleatoriamente, buscando, em sua prática, condições e recursos para sua atuação. Ele chama esse fenômeno de psicologia paralela, casuística, limitando-se a uma reflexão sobre a experiência individual. No começo da tua fala, eu estava angustiada, pensando que não mudamos muito. Mas mudamos por termos as associações, as organizações, que permitem que o profissional, com a Academia, possa repensar um pouquinho sua formação inicial.

Ana Bock – Nós mudamos, e a existência do projeto do compromisso social, do qual partilho, demonstra isso. Nesse movimento histórico contraditório, temos as organizações que vamos formando e há uma camada média – hoje podemos falar até de uma camada mais pobre – que entra na universidade. Vão se criando contradições. Meus alunos, que são de uma faculdade da elite paulista, são 900 jovens que agora convivem com cem alunos que são do ProUni, ou seja, 10% deles vêm da camada pobre da população. É interessante pensar que existem lá 900 representantes da elite convivendo obrigatoriamente com essa camada mais pobre. A organização social, o crescimento do movimento social, o momento de democratização do País, o projeto de governo atual, voltado para a maioria da população, o fortalecimento da crítica à perspectiva neoliberal, temos tudo isso. Mas temos, por outro lado, uma sociedade moderna que se individualiza cada vez mais, e esse talvez seja um dos elementos que traz valorização e demanda à Psicologia. O indivíduo toma um lugar cada vez maior na preocupação social, no projeto da modernização da sociedade, e então tudo o que servir para avaliar esse indivíduo é bom. E tudo o que servir para avaliar a felicidade também. Hoje começamos a falar, no campo da Psicologia, de felicidade. O que é isso que estamos trabalhando? Contraditoriamente, percebendo que o indivíduo está correndo o risco de ser considerado descolado do contexto, do seu meio. Aí vem a força social contraditória que vai rebater, dizendo que não podemos considerar o indivíduo isoladamente. São pensamentos do nosso tempo e que estão aí para serem debatidos. Por isso, a organização e a formação se tornam aspectos importantes, porque são espaços privilegiados do debate e da conversa. Não temos que pensar em ter um pensamento único; temos que nos esforçar para dialogar, para trocar ideias e para avançarmos todos na direção de nossos projetos.

Poderíamos nos perguntar: estamos melhor ou pior? Há um movimento, e vamos poder avaliar se é pior ou se é melhor conforme essas forças contraditórias se colocarem: se o fortalecimento da ideia do sujeito coletivo, de sujeito contextualizado é grande e enfrenta a ideia de indivíduo isolado, que busca a sua felicidade individual. De um jeito ou de outro, esse confronto existirá. Nosso pensamento não é hegemônico, mas existem horas em que nosso pensamento disputa lugar com o hegemônico. Respeitamos a diversidade da Psicologia, não queremos um pensamento único, mas queremos o direito de colocar nosso pensamento na cena social para que ele possa ter certo reconhecimento e possa ser considerado uma alternativa.

Iracema Neno Cecílio Tada – E quando você estava no Conselho, quais foram as principais dificuldades da profissão? Ou no sindicato?

Edla Grisard de Andrade – No eixo ciência e profissão.

Ana Bock – No sindicato, a realidade era outra. Mas também já faz muito tempo que estive no sindicato. A questão principal era que o psicólogo não se percebe como trabalhador. Há dificuldade de construir um pensamento sindical na categoria dos psicólogos, estamos mais para sujeitos endeusados do que para meros mortais trabalhadores. Não importava ganhar pouco, porque gostavam do que faziam. Então, era e é muito difícil conseguir construir, dentro da categoria dos psicólogos, um pensamento sindical. Acho que nosso ingresso no serviço público e em muitas instituições vai permitindo isso, mas ainda é muito difícil.

As pesquisas têm mostrado que, quando se pergunta aos profissionais por que foram cursar Psicologia, os quatro tipos de resposta não se referem a uma atividade social. Referem-se a um prazer com o conhecimento, um prazer em conhecer o outro, em conhecer-se melhor e em ajudar o outro. Em nosso campo, é difícil encontramos a clareza de que Psicologia é um trabalho na e para a sociedade; as respostas indicam um projeto mais voltado para si mesmo ou para os sujeitos individualizados. Ainda hoje, dificilmente se encontra a argumentação de trabalhos sociais como motivo para a escolha da profissão.

Isso mostra que construímos nosso imaginário, nossos significados sobre a profissão incluindo pouco a ideia de que é um trabalho para a sociedade, do qual a sociedade precisa. Pensamos, muitas vezes, que sempre existiu Psicologia, e, se não existiu, as pessoas deveriam sempre ser muito infelizes. Não percebemos que foi a própria história humana que tornou necessário um conhecimento como o nosso, que servimos ao pensamento moderno e que poderemos desaparecer com a superação desse pensamento. Essas ideias de felicidade, de sujeito, de indivíduo, são todas da modernidade.

Sem falsa modéstia, acho que fizemos um excelente trabalho no Conselho. Falo isso sem modéstia, porque não fui eu quem fiz, mas um conjunto muito grande de pessoas que trabalhou por esse projeto, ocupando as direções dos Conselhos Regionais, sendo colaboradores dos Conselhos Regionais e do Federal, que passaram a envolver uma quantidade muito grande de gente disposta a construir um novo projeto para a Psicologia. Uma das dificuldades é enfrentar a resistência para o novo projeto. A categoria ainda não está completamente interessada no projeto do compromisso social. O desafio, para nós, era poder fazer a relação desse novo projeto com interesses corporativos, por exemplo. Quando se luta por políticas públicas, está se defendendo outro projeto de compromisso social para a Psicologia e também se está defendendo emprego para os psicólogos. O desafio da boa política hoje está em poder juntar os interesses dos psicólogos no projeto do compromisso social, mas favorecendo as condições de trabalho, ampliando o lugar social do psicólogo, produzindo reconhecimento pelos gestores públicos.

O desafio é esse. Por exemplo, nos testes psicológicos, foi difícil para nós demonstrarmos e convencermos a categoria da importância e da necessidade da regulamentação e da avaliação dos testes, mas ela está completamente convencida. O nosso novo código de ética, que agora já sofre nova pressão para mudar, foi notícia nos jornais, que diziam: “Os psicólogos agora vão ser dedo duro”. Fomos em frente e convencemos completamente a categoria de que era preciso repensar nosso código de ética. E assim poderíamos citar várias das iniciativas que tivemos. Já citei a I Mostra, mas pode-se acrescentar: a criação do Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia Brasileira – FENPB, a questão dos direitos humanos, a resolução da orientação sexual, o fortalecimento das formas democráticas de estruturar e funcionar dos Conselhos (os Congressos – CNP e a Assembleia de Políticas, de Adminstração e de Finanças – APAF), o Banco Social de Serviços, o CREPOP, enfim, muitas das iniciativas demoram a ser reconhecidas e aceitas. Mas esse é o papel do gestor, e nunca nos recusamos a esclarecer, demonstrar, debater e mesmo retomar e mudar.

O segredo talvez esteja em uma gestão afetiva das entidades. Sei que a maioria da categoria não pensa como nós pensamos, nem estamos querendo isso, mas tenho um respeito absoluto pela existência de diversos pensamentos, porque reconheço esses diversos projetos como frutos da História, das possibilidades sociais que o Brasil deu para o desenvolvimento da profissão. Nada do que existe no campo da Psicologia me é estranho, porque tudo tem sua justificativa no processo da evolução da profissão, inclusive o pensamento que defendo, que também tem as limitações históricas. A perspectiva histórica nos dá humildade, nos dá a capacidade de nos apaixonarmos pela questão da Psicologia, pela importância da inserção social da Psicologia na nossa sociedade; essa perspectiva nos permite a crença absoluta de que a Psicologia pode e deve se inserir na construção de uma sociedade melhor, de que ela tem condição de fazer isso. Tudo isso permite uma gestão muito carinhosa das questões da profissão.

Edla Grisard de Andrade – De respeito.

Ana Bock – De respeito, de as pessoas perceberem que dialogamos com o diferente, esse tempo todo.

Ana Bock – Às vezes as pessoas falam que já estamos no Conselho há muito tempo. Mas o nosso projeto se modifica, ele caminha, e o que se mantém nos grupos que vêm ocupando o Conselho Federal e os Conselhos Regionais é esse respeito à categoria, saber que o meu projeto para a profissão não é o único. Então, o que temos de fazer é possibilitar o diálogo de projetos. E o espaço das entidades deve ser um espaço cidadão, ou seja, do direito de cada um defender o seu projeto.

Edla Grisard de Andrade – E esse espaço se dá melhor, em sua opinião, nas associações?

Ana Bock – Ele tem se dado hoje nas entidades, porque se comprometeram com o espaço coletivo que é o Fórum das Entidades Nacionais da Psicologia Brasileira (FENPB), e com espaço na América Latina, que é a União Latino-americana de Entidades de Psicologia (ULAPSI). Mas não acho que seja só. No campo da Psicologia, desenvolvemos a ideia de que as entidades são um espaço para a diversidade, para o embate, para o diálogo, concepção que, podemos dizer, a cultura da Psicologia hoje alimenta. Quando há uma entidade pouco democrática, todos criticam. A Universidade deveria ser um lugar do diverso, mas temos tido pouco o embate das formulações distintas. A Universidade ainda tem, ao meu ver, muita característica de igreja, no sentido do lugar da certeza, da verdade. O professor tem uma abordagem e tem certeza, dá aula como se estivesse contando ao aluno qual é a verdade, não se relaciona com o saber que transmite como um saber provisório, que é fruto de um consenso temporário. Então, o aluno se relaciona da mesma forma com o saber que ele ouve, recebe, incorpora. E isso faz da Universidade um lugar muito duro, muito antigo, muito superado em seu formato.

Edla Grisard de Andrade – Que interessante. Tive uma experiência como professora e vivi o oposto, os alunos exigindo de mim um dogma, como se que eu tivesse de dizer para eles o que está certo.

Ana Bock – Sim, é desse jeito que eles se relacionam com o saber, e nós reforçamos essa postura. Nós mesmos, professores, não nos relacionamos com o saber como um consenso provisório. O saber tem sido visto por todos como A VERDADE. E o aluno demonstra que se relaciona assim também quando pergunta: “Mas o que está certo?”, “Quem está com a verdade?” Tenho achado, nos últimos tempos, que esse é um dos aspectos mais importantes para a mudança: a relação que mantemos com o saber em Psicologia. Sabermos que a Psicologia nem sempre existiu, sabermos que ela é criada para responder a necessidades específicas de um tempo histórico, saber que seus saberes são consensos sociais, frutos de acordo, na medida em que o que chamamos de TEORIA é um saber que responde adequadamente a uma pergunta da sociedade, enfim, defendo uma postura histórica frente ao saber em Psicologia e, claro, frente à profissão.

Mas voltando à questão da avaliação da gestão do Conselho, gostaria de indicar ainda que tenho uma avaliação positiva, acho que caminhamos. Tenho certeza de que nos movimentamos na direção de termos a História em nossas mãos. Acho que isso é importante. A Psicologia não tinha as rédeas da sua história nas mãos dos psicólogos, e os psicólogos caminharam nessa direção. Acho que esse é o grande avanço da Psicologia dentro do cenário brasileiro.

Edla Grisard de Andrade – Olhando um pouquinho prospectivamente, como tu achas que estará daqui a trinta anos?

Ana Bock – Se já tiver superado o pensamento moderno, podemos até não ter mais Psicologia (risos). Daqui a trinta anos, talvez a gente tenha nova crise para superar, porque acredito que, nos próximos dez ou vinte anos, vamos crescer, e, talvez em trinta anos, tenhamos novas questões nos emperrando ou nos desafiando. Acho que dá para arriscar a previsão do futuro para os próximos dez anos. Nos próximos dez anos, os psicólogos ganharão um enorme reconhecimento social, porque é tempo suficiente para estarmos nos espaços e sabermos o que devemos fazer. Isso poderá ocorrer se o País continuar com essa cultura, que vai se desenvolvendo, com a possibilidade de a população ter suas reivindicações atendidas, desse valor que os Fóruns Sociais Mundiais têm trazido e que está relacionado ao fato de termos na sociedade organizações, movimentos que dão força a essas questões, até com o envolvimento da própria elite – que começa a se envolver em movimentos de qualificação e de atendimento universal da escola, por exemplo. Nós, muitas vezes, estamos nos espaços, mas ainda não sabemos exatamente o que fazer. É o que acontece, por exemplo, com os psicólogos dos Centros de Referência em Assistência Social (CRAS). Isso está relacionado com o Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP), que é uma invenção importante do campo da Psicologia, porque vamos produzir ininterruptamente, mudando e oferecendo à sociedade, aos gestores, aos estudantes, aos professores, aos psicólogos, referências para a construção ou para a reformulação de uma prática condizente com o novo projeto. O CREPOP é uma coisa ainda tímida, ainda engatinhando, mas, em dez anos, teremos uma referência importante, e isso significará, sem dúvida alguma, a possibilidade de ampliação, que envolve um reconhecimento muito grande da inserção social dos psicólogos na sociedade brasileira.

Edla Grisard de Andrade – Então nós temos um compromisso marcado para daqui a dez anos.

Ana Bock – Eu fui ao Mato Grosso do Sul, e a professora que me convidou lembrou que eu havia ido lá em 2001 para a instalação do curso de Psicologia e havia feito a conferência de abertura. Ela me avisou que o texto estava no site deles. Fui olhar depois de já ter preparado minha fala, e pensei: “Puxa, olha o que eu disse aqui. Não penso mais isso”. Então, comecei minha conferência dizendo estar muito feliz de voltar, porque em nove anos eu mudei. Os assuntos eram os mesmos, eu falava da profissão, da história da profissão, do mercado de trabalho, mas algumas coisas eu expliquei melhor, reformulei. Sinal de que não temos outra alternativa a não ser acompanhar a História.

A Psicologia como Ciência: entrevista com Cesar Ades

Cesar Ades** ** (Universidade de São Paulo) Professor titular. Diretor do Instituto de Estudos Avançados da USP Professor titular do Instituto de Psicologia da USP, São Paulo – SP – Brasil

Universidade de São Paulo

Henrique Figueiredo Carneiro – A proposta para comemorar esses 30 anos da revista Psicologia: Ciência e Profissão é publicar uma edição especial, resgatando a história da publicação e a história da Psicologia em nosso país. Trabalharemos nas duas vertentes da revista: a Psicologia como ciência e como profissão. A partir dessa intenção, buscamos pessoas que são referência para essas áreas no País para ter essa conversa.

Inara Barbosa Leão – Nesses trinta anos, como o senhor avalia a situação da ciência psicológica no Brasil? O Paulo Rosas, no texto publicado na revista número zero, era otimista quanto à possibilidade de avanço e pontuava algumas dificuldades. Não temos, necessariamente, que nos prender àqueles indicadores, até porque nossa situação é muito diferenciada, mas poderíamos começar por esse tema.

Inara Barbosa Leão – Nesses trinta anos, como o senhor avalia a situação da ciência psicológica no Brasil? O Paulo Rosas, no texto publicado na revista número zero, era otimista quanto à possibilidade de avanço e pontuava algumas dificuldades. Não temos, necessariamente, que nos prender àqueles indicadores, até porque nossa situação é muito diferenciada, mas poderíamos começar por esse tema.

Cesar Ades – Sou um otimista de plantão, de carteirinha. Sempre olho o lado construtivo, o muito que há por fazer. A Psicologia me encanta desde que comecei, nos tempos da Maria Antonia, e vejam que comecei quando existiam três cursos de Psicologia no Brasil inteiro. Uma pessoa era considerada excêntrica, diferente, se escolhesse a Psicologia como carreira. Fico impressionado de ver a expansão da área. Há uma nova consciência psicológica, e o número de psicólogos condiciona progressos na pesquisa, na compreensão, na atuação social. Pelo menos temos a força do número, sem dúvida, estamos presentes. Tenho pensado muito no papel social, no valor estratégico da Psicologia e conversado com a Ana Bock a respeito disso. Já coordenamos uma mesa sobre o assunto no III Congresso Brasileiro Psicologia: Ciência e Profissão (2010). A Psicologia tem que se colocar estrategicamente, em função de sua inovação e de cenários futuros. Ela não tem o valor de outras iniciativas que são estratégicas na medida em que geram recursos, ela é estratégica em função do bem-estar que pode gerar, e isso é essencial.

Henrique Figueiredo Carneiro – Esse é um ponto que me chama muito a atenção. Ontem à noite, quando cheguei ao hotel, passava na televisão um programa sobre Psicologia que eu não conhecia. Creio que era Psicologia em destaque, ou algo similar. Talvez fosse de algum canal universitário, mas, de qualquer forma, um programa voltado para a Psicologia chamou-me a atenção porque é raro ser visto, pelo menos em outras cidades. Sobre essa estratégia da Psicologia, uma das questões que me chama a atenção é a linguagem do psicólogo em relação ao contexto da sociedade. Pareceme que ainda é algo muito técnico. Essa estratégia passa pela forma como o psicólogo se coloca diante da sociedade?

Cesar Ades – Sim, passa pela maneira como o psicólogo se coloca diante da sociedade. A Psicologia se esgota em disputas internas, deixa de ressaltar o que é comum, o que constitui o cerne psicológico. Como nos dividimos em escolas, isso nos deixa sem uma linguagem integrada, e mais, sem uma posição integrada em relação à sociedade. De quem é a nossa mensagem? Do psicanalista, do experimentalista, do teórico comportamental, do fenomenólogo, do lacaniano, do reichiano? A graça da Psicologia é ser assim diversa, não quero que haja uma única linguagem, mas ela precisa encontrar uma proposta unificada dentro da diversidade. O ponto que eu quero ressaltar aqui tem a ver com o nome da revista, um nome perfeito, Psicologia: Ciência e Profissão. São empreendimentos integrados; o fato de ser profissão não é contraditório com o fato de ser ciência. Quero aqui defender o lado científico da Psicologia.

Inara Barbosa Leão – A partir da minha prática, acho que o inverso está sendo mais difícil de trabalhar. Tenho acompanhado, por exemplo, o trabalho dos psicólogos que são contratados para executar atividades na política de assistência social. O que eles aprendem de teoria não facilita seu trabalho.

Em compensação, as estratégicas que estão desenvolvendo, ainda que o Conselho Federal esteja tentando mapeá-las por meio do Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas (Crepop ), não as tenho visto se transformar em discussão sistemática, nas universidades ou mesmo nas associações, talvez por ser algo muito recente.

Cesar Ades – É recente, sim. Quando falamos de ciência, usamos de uma série de arquétipos. No caso da Psicologia e das ciências humanas, são arquétipos que às vezes amedrontam, imagens que distorcem o que há de essencial na Psicologia, o contato entre pessoas. Alguns veem a perspectiva científica como perigosa, na medida em que reduzisse o senso do contato entre pessoas. Não me parece justificado o temor. O que nos define é o interesse pelo indivíduo concreto, que sofre, que fica alegre, que precisa de apoio, de instrução. Nada há, na atitude científica, que coloque isso de lado. Por atitudes como essas, discute-se pouco, em Psicologia, o papel de sua natureza científica, até que ponto a postura científica é essencial tanto para o ensino e para a prática como para a geração de conhecimentos.

Inara Barbosa Leão – Que tipo de ciência é a Psicologia?

Cesar Ades – A Psicologia, desde que tudo começou, desde a época do (Paulo) Rosas, se vale do privilégio, um pouco fantasioso, de ser uma leitura da mente. As pessoas ficam um pouco preocupadas com essa capacidade mágica de o psicólogo penetrar nos meandros da mente, “eu não sabia que eu era essa coisa complicada, eu sou isso?” Em compensação, a Psicologia perde um pouco por não ser considerada, plenamente, ciência, por ser tomada mais a partir de seu jeito intuitivo, como uma arte. Sem desistirmos da ideia de que queremos entender como funciona a mente, é importante ressaltar que o que estamos fazendo é ciência.

A Psicologia é uma ciência especial, como são a biologia, a Astronomia e outras ciências. A dificuldade que se enfrenta, quando se coloca a relevância do ponto de vista científico, é a noção de que ciência é positivismo, é coisa do Círculo de Viena, é o uso de um modelo fisicalista. É simples demais afastar a ideia de ciência em Psicologia com o argumento de que ela leva a uma posição que reduz o ser humano e o identifica com um animal de laboratório. É uma posição fácil de se tomar, mas ela leva a negligenciar a questão muito relevante, a questão do tipo de ciência que estamos praticando.

Cada vez mais, as ciências entram em interação e interdependência, e esse é especialmente o caso da Psicologia. Pode ser que exista uma Física independente, mas a Psicologia é, por natureza, interdisciplinar. Não se pode pensar em uma Psicologia sem Antropologia, sem educação, sem biologia, sem fisiologia. Somos um pouco híbridos, cada psicólogo elege uma área externa com a qual se relaciona, aprende a falar outras linguagens, comunica-se com outros cientistas. E outros cientistas hão de aprender a nossa linguagem.

Não se trata de fazer da Psicologia uma ciência exclusivamente experimental. Talvez os que nutrem alguma resistência à ideia de ciência em Psicologia tenham uma concepção rígida de ciência, tomem a ciência como muito menos criativa e menos socialmente engajada do que é. A Psicologia, como qualquer ciência, parte da descrição e da análise, estrutura-se em torno da pesquisa, tem de buscar um consenso em torno de suas conclusões principais, tem regras para estabelecer o rigor de suas afirmações, busca um conhecimento válido a respeito de algo que existe. Mas a pesquisa que ela defende se constitui a partir da abertura em relação às peculiaridades de seu objeto, desse algo que existe. O que interessa mais é a vida psicológica humana, o bem-estar humano.

Inara Barbosa Leão – Esses novos desafios que estamos encontrando na Psicologia, como o senhor entende que eles permitem que nós, psicólogos, ao lidarmos com a ciência, tenhamos condição de dizer: “Isso aqui está nos limites da ciência psicológica, e isso aqui está muito incipiente, é delirante”?

Cesar Ades – Colocar um limite entre o delirante e o rigoroso é uma tarefa de todos os momentos. Há muita controvérsia ainda – eu não sou contra a controvérsia, porque ela é o motor da reflexão – em torno de questões básicas em Psicologia. São questões que nos acompanham, mas que temos de situá-las sempre em novos patamares epistemológicos, a partir dos conhecimentos adquiridos. Ao longo desses trinta anos que festejamos, temos lidado, de forma mais ou menos implícita, com problemas clássicos: a natureza da subjetividade e da consciência, a questão da experiência e da aprendizagem, a determinação social do comportamento, as origens evolutivas da motivação humana, etc. Nada de muito novo (é só ler William James para constatá-lo), mas essas questões têm de ser retomadas e reformuladas em função do progresso do conhecimento psicológico, que pode ser impressionante em algumas áreas. Há progressos notáveis nas interfaces. Antigamente, quando se falava em cérebro e comportamento, era a partir de muita inferência, tanto que Skinner, com uma certa ironia, chegou a referir-se ao sistema nervoso conceitual (em vez de sistema nervoso central). O que se sabia decorria de experimentação em animais de laboratório, de medidas de potenciais externos, de casos excepcionais de lesões e de intervenções cirúrgicas. Os métodos modernos de neuroimagem põem, por assim dizer, o cérebro a nu, surpreeendendo-o durante sua atividade, sem necessidade de medidas invasivas. É possível conhecer as regiões do cérebro mobilizadas durante funções mentais definidas; sabemos muito mais a respeito de onde, no cérebro, sentimos e pensamos, inclusive de forma inconsciente. Lembro-me de um estudo não muito antigo em que se descreviam as regiões cerebrais especificamente ativadas quando se olha para um bebê (um pouco dentro do que Lorenz imaginava que fosse a sensibilidade instintiva diante da aparência infantil). Não cabe isolar-se no estudo da subjetividade como subjetividade; os fenômenos com os quais lidamos envolvem, sistemicamente, formas e determinantes neuropsicológicos. Não é redução, mas um trânsito em ambos os sentidos através do qual se constroem concepções mais abrangentes e completas. O neurocientista necessita das análises psicológicas para saber o que olhar e o que registrar no cérebro.

Um exemplo, entre muitos outros, do quanto progrediu o conhecimento psicológico, um exemplo de que gosto bastante, é justamente o do comportamento dos bebês. Lembrome de ter ficado sem fôlego quando li, em Science, o primeiro artigo de Meltzoff e Moore sobre as respostas imitativas de crianças recém-nascidas. Nos últimos trinta anos, foi feito um levantamento sem precedentes, através de muita pesquisa original, com metodologias cada vez mais sutis e reveladoras, sobre a cognição e o afeto de bebês. Sabemos muito mais sobre como percebem o mundo, sobre como se lembram e se esquecem das coisas, sobre como adquirem a linguagem, e, especialmente, o quanto são competentes e complexos na sua interação social.

É importante dizer que sabemos mais hoje do que há trinta anos, do que há vinte, há cinco anos. Se não ressaltarmos o avanço do conhecimento, seremos condenados a longas discussões epistemológicas ou nos exporemos à concepção difundida de que as ciências humanas, e a Psicologia em particular, não chegam a ser verdadeiramente científicas. Dispomos de metodologias melhores, e o movimento de crítica e de embate interno a respeito de como se dão as coisas, no comportamento humano, aguça as teorias. Falta muito ainda por investigar: isso não significa que não seja apreciável o progresso já efetuado.

Inara Barbosa Leão – Esses conhecimentos novos praticamente não têm chegado aos cursos de graduação. Fiquei algum tempo na Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP) e acompanhávamos as bibliografias dos cursos, que eram as bibliografias básicas do começo do século 20.

Cesar Ades – De que adianta pesquisar e descobrir, se as pesquisas e as descobertas não chegam na sala de aula e se o conhecimento transmitido é basicamente um conhecimento tirado de manuais? O aluno sente quando você apresenta ideias recentes e conhecimentos novos, isso o leva a participar do movimento da ciência. A mudança na maneira de considerar o ensino de graduação da Psicologia tem a ver com o debate, ao qual me referi, sobre o papel da ciência.

Fico muito preocupado com o número de cursos de Psicologia que existem no Brasil, alguns criados recentemente. Que tipo de ensino é praticado? Que tipo de conhecimento é transmitido?

Inara Barbosa Leão – Nos três últimos anos, houve uma contenção da abertura, mas foi algo enlouquecedor nos anos anteriores.

Cesar Ades – A formação em graduação, do jeito que se multiplica, é certamente deficiente. Há um desequilíbrio, faltam professores capacitados para tantos cursos e tantos alunos.

Henrique Figueiredo Carneiro – A maioria dos cursos abertos tem corpo docente com qualificação muito limitada e muitos desses cursos não almejam sequer pós-graduação, ter pesquisa.

Cesar Ades – Considerar a Psicologia uma ciência envolve a responsabilidade de ensiná-la como tal. É muito cômodo (e pouco produtivo, a meu ver) adotar uma perspectiva técnica para a formação do aluno de Psicologia, como se o aluno, quando formado, tivesse apenas o papel de atuar em questões profissionais específicas, sem ter-se aprofundado e sem compreender a fonte e as limitações dos conhecimentos que aplica. Publiquei um artigo no primeiro (ou segundo, se se levar em conta um número especial) número de Psicologia: Ciência e Profissão, isso, há uns trinta anos. A mensagem estava no título: Treino em pesquisa, treino em compreensão. Continuo achando que o treino em pesquisa é parte essencial da formação e prepara o estudante para a sua atividade profissional.

O aluno, quando entra no curso de Psicologia, muitas vezes quer atuar como clínico, e espera, na fantasia, ter logo um paciente deitado num divã, para exercer psicanálise. Isso se entende, o exercício da Psicologia é praticamente todo aplicado, e, muitas vezes, clínico. Mas a minha experiência na USP, acredito que seja o mesmo em outros cursos de Psicologia, indica que os estudantes gostam de pesquisa e se entusiasmam quando envolvidos em pesquisa. Aproveitam esse treino de várias maneiras, principalmente por sentirem que o conhecimento é algo relativo e em transformação. Quando se critica a abordagem científica, muitas vezes se pensa na aplicação de uma camisa de força metodológica e em uma ciência onde tudo já foi descoberto. A ciência define o seu campo e se autodefine enquanto está sendo efetuada. Uma ciência completa e redonda não tem graça.

Nunca consegui, pessoalmente, identificarme com qualquer das grandes figuras da Psicologia. Não acredito que haja vantagem em ser seguidor, de forma exclusiva, desta ou daquela escola psicológica, em ser skinneriano, piagetiano, lacaniano, jungiano, darwiniano ou de outra designação. Mais vale seguir o que são as coisas, mesmo que nos surpreendam e nos choquem nossos pressupostos. O aluno ganha quando se dá conta desse aspecto em-se-fazer do conhecimento. Ele gosta de perceber que seu professor não tem todas as respostas, quando tem a honestidade de dizer que não sabe. O treino em pesquisa é um belo e importante objetivo para qualquer curso de Psicologia.

Henrique Figueiredo Carneiro – O senhor tocou em um ponto essencial do nosso trabalho, esses mitos que se criam em torno da figura do psicólogo, visto quase como um bruxo. Quando o senhor busca o treino em Psicologia, em uma Psicologia como ciência, esse é o caminho que começamos a construir, é uma estratégia para dirimir essa concepção mítica da Psicologia?

Cesar Ades – O treino em pesquisa incentiva uma certa modéstia, ao mostrar que a Psicologia sabe de suas limitações, mas, ao mesmo tempo, tem de transmitir a ideia de que é possível descobrir e conhecer algo com alguma certeza. A alegria do cientista é descobrir: entra nisso uma vaidade raramente confessada (risos). Algo que eu achava diferente, algo que eu supunha conhecer, não é exatamente como eu pensava, e, às vezes, no final da pesquisa, vejo-me dono de um pouco mais de incerteza. O estudante adora ser parte do processo. Demonstra mais interesse do que quando parte apenas daquilo que pessoas geniais elaboraram e em que ele tem que acreditar. As perguntas que levam ao trabalho prático podem muitas vezes ser perguntas para as quais a pesquisa já ofereceu respostas, como, por exemplo: em que medida a percepção e a produção de expressões de emoção difere entre mulheres e homens? Mas a graça é refazer o caminho e redescobrir, além da abstração necessária, da teoria, a percepção de que, em assuntos relevantes e do dia a dia, a observação e o registro sistemático podem ter a sua vez.

Fico gratificado por ter participado, recentemente, da criação da revista Psicologia: Ensino e Formação, da ABEP, e por ter contribuído com o primeiro artigo do seu primeiro fascículo, tocando justamente numa prática de pesquisa muitas vezes empregada em minhas aulas, através da qual os alunos podem avaliar aspectos da teoria de William James a respeito de emoção. O objetivo da revista é chamar a atenção para o processo de ensinar, de permitir que as experiências de ensino possam estimular outras experiências. A discussão sobre o que é Psicologia passa pela reflexão acerca do que é ensinar Psicologia.

Inara Barbosa Leão – Naquele momento do número zero da revista Psicologia: Ciência e Profissão, falava-se muito da limitação dos métodos disponíveis. O senhor vê como um aspecto facilitador ou como complicador essa amplitude de métodos e técnicas que temos hoje?

Cesar Ades – Por mais métodos que tenhamos, há lacunas e mitos. Não é possível dizer que tenhamos chegado à plenitude. Há certamente coisas interessantes para, ainda, investigar. Houve progresso, e o progresso é perceptível quando se trabalha dentro de um campo científico. Não há critérios para decidir se um artista contemporâneo é mais (ou menos) adiantado do que Leonardo da Vinci, não se trata disso no campo artístico. Mas, em ciência, não há dúvida de que sabemos mais a respeito de memória do que se sabia na época de Ebbinghaus ou de Ribot. E essa ampliação de saber leva necessariamente a uma ampliação das formas de aplicação.

Voltando ao tema da formação do aluno: na reforma curricular que fizemos, quando eu era diretor do Instituto de Psicologia da USP, abrimos opções suplementares para os estudantes escolherem disciplinas de pesquisa em todos os campos. Não era puxar o currículo para a minha área, não, mas a adoção de uma concepção de ensino.

Henrique Figueiredo Carneiro – A formação do psicólogo nas universidades ainda é um calcanhar de Aquiles.

Cesar Ades – Vai sempre haver um certo desequilíbrio entre ensinar e pesquisar. Por mim, todo docente deveria estar envolvido em pesquisa e ter as condições materiais de fazê-lo. Não acredito em universidades de puro ensino. Mas como conciliar a necessidade de pesquisa com os aspectos mais concretos das horas-aula e do salário? Em geral, as universidades não estão dispostas a subvencionar a pesquisa (em termos do salário de seus docentes): essa é uma questão que merece ser pensada.

Henrique Figueiredo Carneiro – E sobre esse diálogo interno que o senhor mencionou, que perpassa o corpo docente, sobre a formação do psicólogo, o senhor pode comentar?

Cesar Ades – É muito pessoal a minha posição, talvez possa convencê-los! Acredito que exista, por trás dos inevitáveis vieses com os quais se abordam os fenômenos psicológicos, uma realidade que resiste e da qual temos condições de nos aproximar, por correções sucessivas. É uma posição realista. As pessoas se comportam e podem ser vistas se comportando, as pessoas sentem, eu sinto, você sente; pensam, eu penso, você pensa; tenho certeza de que você sente e pensa, seu pensamento e seu sentimento não são criação minha. Incomoda-me uma visão relativista muito comum em Psicologia. Ela afirma, e eu concordo plenamente, que o conhecimento científico depende da postura epistemológica que se assume. Como tenho uma certa experiência e obedeço a certos princípios, vejo as coisas de uma certa maneira. OK, mas o objeto não deixa de existir. Esse tipo de relativismo (muitas vezes colocado dogmaticamente) leva a uma postura que tenho combatido, porque embasa uma falta de diálogo. Só poderei ser plenamente entendido se for por alguém do meu grupo, ou seja, por alguém que partilhe os meus pressupostos; os outros, nem mesmo espero que entendam. Há aqui uma certa concepção da liberdade teórica em Psicologia: cada um descreve os processos psicológicos tais como os define, quase como se se tratasse de um ser humano à parte, e são eliminados os confrontos (necessários) com outras perspectivas.

Essa posição talvez evite conflitos diretos, mas não contribui para o estabelecimento de pontes e tira a Psicologia do que eu chamaria de uma interdisciplinaridade interna. Sem diálogo interno, como apresentar à comunidade científica e à sociedade um corpo de conhecimentos seguros? Além disso, como estabelecer interfaces externas se as internas não são cultivadas?

Pensei uma vez em organizar um congresso sobre o comportamento de bebês, convidando um etólogo, um psicanalista, um psicólogo experimental, um fenomenólogo, um analista do comportamento, um adepto da teoria crítica e outros psicólogos de outras correntes. Haveria de início a variedade e a incompatibilidade teórica esperadas, mas quem sabe surgisse a percepção de que as diversas posições convergem no mesmo bebê, e que explicar porque chora e atendêlo na sua aflição pudessem se beneficiar de uma superação das fronteiras teóricas.

Tem de haver diálogo interno. A interdisciplinaridade não é, contudo, algo que se imponha por decreto, mas decorre de interesses convergentes e de uma vantagem em termos de metodologia. Tenho um colega neurofisiólogo, Gilberto Xavier, interessado em retomar, no campo experimental, ideias psicanalíticas a respeito de memória. Não sei se os seus resultados e reflexões serão aceitos tranquilamente por psicanalistas, mas, se entendermos um pouco mais os mecanismos da memória a partir de sua iniciativa, terá valido a pena.

Não se trata de impor um certo esquema de ciência, mas de deslocar o centro da atenção para o objeto de estudo, entendido como independente, no limite, das formas de apreendê-lo. Se eu tenho que me maravilhar, não é apenas com a contribuição dos grandes psicólogos, que modificaram e constituíram a minha ciência e são por isso admiráveis. Tenho de manter aberta a capacidade de me surpreender com fatos novos, com sínteses originais e de rever, em função disso e do debate crítico, os meus próprios pressupostos.

Henrique Figueiredo Carneiro – Estou entendendo, de nossa conversa, que talvez o ponto referencial para que esse diálogo interno seja frutífero seja exatamente a pesquisa, se a pesquisa puder dialogar internamente.

Cesar Ades – Exatamente. Isso acontece quando várias pessoas descobrem que se interessam pelo mesmo assunto. Não significa ir contra a especialização, ela é necessária, ninguém jamais poderia dominar a Psicologia toda. Em geral, permanecemos dentro de um círculo imediato de estudiosos que nos entendem e usam a mesma linguagem, mas há elementos a partir dos quais estabelecer o confronto e o copensamento.

Um tipo de copensamento é que fazemos o tempo todo no Instituto de Estudos Avançados, que é um domínio privilegiado para a interdisciplinaridade. Participei, por exemplo, de uma sessão em que um economista e um físico debatiam o conceito de entropia, acredito que para mútuo aproveitamento. Temos um grupo de pesquisa no IEA centrado na questão da desnutrição: dele participam especialistas em biologia, nutrição, Psicologia e Sociologia em bons termos e, acredito, com boas ideias. Estão para publicar um livro cujo título inclui nutrição e sofrimento psíquico.

Henrique Figueiredo Carneiro – Parece-me, pensando a partir da sua fala, que esse é um caminho para articular, com nossos alunos em formação, a forma de dialogar com outros campos do saber.

Cesar Ades – Você não perde sua individualidade por relacionar-se, essa é a ideia. Há um medo de perder a essência no confronto com outros campos do saber. Ao contrário, a individualidade é a maneira através da qual podemos nos relacionar. É importante que você pense como psicólogo para que a interação tenha frutos.

Henrique Figueiredo Carneiro – Psicologia e psiquiatria, por exemplo, que fazem parte de um campo em questão e sobre o qual existe uma eterna discussão. Hoje há vários especialistas que lidam com a questão do cérebro. Por que não podemos estar junto com esses especialistas e discutir com eles a partir de um ponto, como o senhor colocou, do sofrimento psíquico, por exemplo?

Cesar Ades – Temos um acesso especial aos fenômenos psicológicos, pelo nosso foco, pela nossa formação. Lidamos com indivíduos, é essa a nossa especialização, sabemos um pouco mais a respeito de como indivíduos se desenvolvem, como sentem e pensam, como se comportam. O psiquiatra sabe mais sobre a maquinaria cerebral, sobre núcleos, sinapses e neurotransmissores, e sobre remédios capazes de atuar sobre essa maquinaria. Não há como negar a importância desse conhecimento, e temos, como psicólogos, que aproveitar os pontos de convergência e de complementação. Os psiquiatras se dão conta, cada vez mais, da importância dos estudos psicológicos. Fui convidado há pouco, com uma colega do IPUSP, para escrever capítulos (psicológicos) em dois manuais de psiquiatria.

Henrique Figueiredo Carneiro – Essas questões nos convidam também a uma reflexão sobre a relação da Psicologia com ciência e a política, não?

Cesar Ades – Existe uma disputa entre psicólogos e psiquiatras, que é política. A história da Psicologia é a história da luta em torno dos decretos e das leis que permitem ao psicólogo ter autonomia na sua atuação profissional. É de se esperar que algum atrito haja com outras áreas profissionais, com a psiquiatria em particular, e é claro que temos que nos defender institucionalmente. Essa é a função dos Conselhos. A ideia à qual me referi de colocar a Psicologia dentro de um projeto estratégico também constitui uma defesa institucional. O aperfeiçoamento de nossa pesquisa e de nossa prática é que nos confere a força principal, não apenas a disputa política como tal.

Inara Barbosa Leão – Respaldados pelo nosso conhecimento, com todas essas transformações que podemos exemplificar, a nossa ciência psicológica, na sua opinião, tem se aproximado mais das necessidades cotidianas? Por exemplo, sempre fomos muito próximos da educação, mas quando o psicólogo está nas escolas, ainda há um receio da sua atuação, e os psicólogos também demonstram incertezas sobre como deve ser sua atividade. Ao mesmo tempo, temos alguns enfrentamentos na área da saúde que não se resumem a essa questão de quem pode ou não fazer terapia. Algumas áreas mais próximas ao serviço público agora já estão nos cobrando mais. Isso ainda é reflexo dessa nossa complexidade ou não tivemos ainda condição de resolver?

Cesar Ades – Sua questão é relevante. Não basta ter boa intenção para atuar. Entre a teoria, a concepção que tenho da atuação, e atuar, há muito espaço. A escola na qual vou atuar é real, concreta, preciso estar equipado para dar soluções. E há um espaço em que a pesquisa guiada por conceitos básicos e a percepção do que acontece no contexto histórico e situado onde a nossa prática precisa se instalar, em que novas soluções podem ser exploradas. Uma experiência rica foi ter participado, com a minha colega Emma Otta, de um curso, dado no Instituto de Psicologia da USP para estudantes de graduação, sobre a motivação na sala de aula. É impressionante como, embora todos os docentes (e estudantes) concordem quanto à relevância da motivação durante o processo de ensino-aprendizagem, o campo ainda requer bastante pesquisa, pelo menos na área do ensino superior. Há uma contribuição muito importante a ser dada pela Psicologia. Agora, como definir, em termos institucionais, a presença e a participação do psicólogo na escola? É outra questão.

Inara Barbosa Leão – Nós teríamos conhecimento acumulado para dar conta de algumas dessas questões, mas ainda não conseguimos utilizá-las, sistematizá-las?

Cesar Ades – A abordagem científica envolve o contato direto com o objeto. Tenho que estar perto do que me interessa, observando. Esse contato gera uma série de conhecimentos, ideias, intuições, às vezes sem coerência interna, mas estou ali, em contato. É impossível fazer Psicologia sem contato direto, aberto, com as pessoas e com seu ambiente de vida. Trazê-las para o laboratório? Sim, às vezes é essencial, mas preciso também conhecê-las em seu contexto de vida.

Henrique Figueiredo Carneiro – Estou realizando em Fortaleza uma pesquisa sobre vítimas de violência em espaços públicos. Nesse sentido, o grupo de pesquisadores vai trabalhar com as vítimas nas delegacias, na hora que vão fazer o boletim de ocorrência. São experiências como essa a que o senhor se refere?

Cesar Ades – Ir à delegacia, na hora da ocorrência, observando e perguntando e tentando o mais possível ser fiel ao que está ocorrendo, é entrar em contato com a ecologia do fato psicológico. Não há como prescindir dele. Existem metodologias para trabalhos de campo como esse. Fazer ciência não significa necessariamente saber de que jeito atuar sobre a realidade social, há que se distinguir um pragmatismo bem intencionado, e que muitas vezes funciona, e o conhecimento mais estrutural do que está acontecendo. É diferente procurar pelos princípios teóricos que dão conta da forma que a violência assume e planejar uma intervenção local. Há, aqui também, um campo rico para um vai-evem entre teoria e aplicação. A questão não é o psicólogo seguir uma cartilha teórica. Seguir é que me incomoda um pouco.

Inara Barbosa Leão – Seguir e não refletir.

Cesar Ades – Isso. E não ver que às vezes o dado pode desmentir a bela teoria que tenho. Sinto por Lacan e Lorenz, às vezes a observação pode desmenti-los.

Henrique Figueiredo Carneiro – E não há nada de mal.

Inara Barbosa Leão – Até porque não se pode cobrar deles explicações para fenômenos que não presenciaram.

Cesar Ades – Isso mesmo. Não acho que todo psicólogo deva ser um cientista. Há certa vocação para isso, deve-se achar graça nisso. Também há certa vocação para ser um bom terapeuta, e há prazeres muitos no exercício da terapia. As coisas funcionam de maneira mais primitiva do que se imagina. Quando duas pessoas se encontram, elas colocam em jogo mecanismos ensaiados durante todo o seu desenvolvimento e também durante a evolução social complexíssima da espécie humana. O que acontece entre duas pessoas é sutil, rápido, complexo, inconsciente e racional de um jeito para o qual a ciência ainda não tem resposta completa. É necessário fazer uso desses mecanismos, mesmo que não os compreendamos totalmente, mas também vale explorá-los cientificamente.

Inara Barbosa Leão – À medida que vamos complicando o mundo, complicando a vida, necessariamente vamos complicar a Psicologia também. Essa ideia da possibilidade de leis concretizadas, de enunciados que contemplem a maioria dos fenômenos, vem se mostrando cada dia mais distante da Psicologia.

Cesar Ades – Essa é uma longa discussão. Não há um conjunto simples de princípios, mas há princípios básicos. O problema é a inserção histórica e cultural do fenômeno psicológico. Nunca haverá uma teoria completa, definitiva, do fato comportamental, porque ela tem de ser reformulada ou pelo menos modulada a partir da mudança que ocorre nos parâmetros contextuais. Mas não se pode ceder ao reducionismo cultural, que relativiza tudo e não dá conta do transcultural. Se você der a volta ao mundo, perceberá que as pessoas permanecem psicologicamente semelhantes ao mesmo tempo em que se distinguem por causa de sua experiência peculiar (serão as leis da aquisição de experiência similares?).

É difícil atribuir a expressão facial das emoções, um tema que Darwin tratou de maneira espetacular e que me interessa sobremaneira, a influências culturais localizadas e arbitrárias. Se você der a volta ao mundo, verá que sorrir é sorrir, chorar é chorar, manifestar nojo é manifestar nojo, mesmo que a circunstância em que essas emoções são sentidas possa variar bastante de um lugar a outro. Matsumoto, discípulo de Eckman, especialista renomado em expressões faciais, fotografou atletas de judô, cegos e videntes, quando ganhavam medalhas ou não, durante uma olimpíada. As expressões de uns e de outros são praticamente indistinguíveis, um forte argumento a favor da determinação biológica. Há, contudo, indicações recentes e controvertidas de que há variações interculturais na expressão facial, dialetos emocionais. Falei desse assunto na última reunião (2010) da ANPEPP, em Fortaleza. Meu ponto é este: não há contradição entre uma determinação biológica e uma determinação cultural. O dialeto se manifesta dentro de uma linguagem universal das emoções, são aspectos integrados, facetas que compõem o conhecimento psicológico. A regra geral abrange suas próprias flutuações locais e históricas.

Inara Barbosa Leão – E nessas interações, os limites seriam dados por quem? (risos)

Cesar Ades – Como eu vejo, é criar oportunidades de contato entre psicólogos de linhas diferentes em torno de problemas comuns: o que interessa a um pode não ser tão afastado do que interessa ao outro. Concretamente, seria avaliar o ensino de Psicologia, pensar a atuação como fonte riquíssima de conhecimento, eliminar a barreira entre ciência básica e ciência aplicada. Por que não? São atitudes institucionais pelas quais temos de batalhar. Se é que a Psicologia tem que se situar em uma rede de relevância social, cabe que transcenda, sem perder o senso e a graça dos olhares diversos, as suas cisões através de um diálogo interno.

Henrique Figueiredo Carneiro – Um psicanalista com certa tendência a psicólogo vai dizer que trabalha com laços sociais.

Cesar Ades – Por que não?

Inara Barbosa Leão – E, com tanta novidade, como garantir coerência, respeitabilidade? Dentro das confusões, encontra- se justificativa para tudo. Já vimos, em uma visita a um curso de especialização que pedia credenciamento, a oferta de uma disciplina sobre terapia de vidas pregressas. Como lidamos com isso?

Cesar Ades – Não há solução mágica nem imediata. Não garanto nada, mas, se houver um trabalho de confronto, uma reflexão epistemológica feita e refeita, oportunidades boas de intercâmbio, quem sabe? Senão, tudo é possível (risos). Estamos em um momento bom, de boa produção da ciência brasileira. Há um aumento notável do número de artigos brasileiros publicados em revistas de impacto, estamos começando a nos integrar na comunidade internacional da ciência. A internet, os intercâmbios internacionais transfiguram a ciência provinciana que estávamos acostumados a fazer. Não digo que esteja tudo bem em Psicologia, precisamos urgentemente parar e ver o quanto temos que fazer, mas houve expansão. O Paulo Rosas já falava de expansão, no seu artigo de trinta anos atrás, hoje, então! O momento é propício para um salto na qualidade e para uma inserção maior da Psicologia, tanto em nosso meio como na comunidade internacional.

Inara Barbosa Leão – Nesse período que vem do otimismo do Paulo Rosas até agora, o que você acha que impulsionou o avanço da Psicologia, mesmo em períodos tão desfavoráveis pelos quais o País passou?

Cesar Ades – Há fatores de desenvolvimento e fatores que emperram o desenvolvimento. Uma atitude crítica é essencial. Muita coisa se fez em universidades públicas e em algumas universidades particulares no campo do apoio à pesquisa. O progresso se deve muito simplesmente ao fato de ter havido investimento em ciência. Nada ocorre por mágica, sem investimento. Tivemos e temos a Fapesp, a Capes, o CNPq.

Henrique Figueiredo Carneiro – E o modelo de pós-graduação hoje é muito respeitado.

Cesar Ades – Muito respeitado, viu-se isso no mais recente simpósio da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP). Não quero ser ufanista, há muitas restrições. A questão é como proporcionar boa formação, dado o grande número de cursos de Psicologia, como oferecer formação que inclua ciência e tenha professores capacitados. Nossos pósgraduandos, quando dão aula em algumas faculdades particulares, nem sempre colocam em uso o que aprenderam, ficam tolhidos porque não têm condição de produzir pesquisas. São questões dramáticas.

Inara Barbosa Leão – E é para as faculdades particulares que vai a grande maioria dos alunos.

Cesar Ades – Fico contente, de um lado, pela existência das muitas faculdades particulares: são fontes de emprego para os nossos pósgraduandos! De outro lado, evidentemente, preocupa-me o nível de ensino.

Inara Barbosa Leão – Essa ampliação da oferta de pós-graduação aparece como um indicador de que poderemos fazer tanto quanto foi feito anteriormente, ou melhor?

Cesar Ades – Certamente. O problema é que geramos Mestres e Doutores para serem absorvidos pela carreira docente, por universidades. Há limitação, nem todos poderão ser aproveitados. Valeria a pena discutir a possibilidade de o título de Mestre ou Doutor representar um trunfo profissional, fora da universidade.

Henrique Figueiredo Carneiro – Que a função do Doutor e do Mestre não seja apenas no recorte da Universidade?

Cesar Ades – Sim, não poderia a pessoa com título ser um profissional mais capacitado?

Inara Barbosa Leão – O senhor acha que não estamos conseguindo mostrar isso para aqueles Mestres e Doutores que saem das universidades?

Cesar Ades – O contexto social precisaria valorizar o título.

Henrique Figueiredo Carneiro – Se a formação passa pela pesquisa, e se essa relação entre Psicologia e sociedade não for muito bem colocada para os alunos em formação...

Cesar Ades – Penso que há vantagens para o psicólogo que trabalha em aplicação atualizarse prestando atenção às publicações científicas em sua área. Minha filha, psicóloga clínica, trabalha com transtornos de alimentação (nem todos são pesquisadores na família). Noto o quanto é importante para ela a leitura de artigos de pesquisa e a participação em congressos. Temos a dupla tarefa de interessar nossos futuros psicólogos pela problemática social e de torná-los consumidores de ciência.

Nossa posição em relação à sociedade, como classe de profissionais, a nossa proposta estratégica, depende da ação dos Conselhos e das Associações em Psicologia. Lembro-me de ter ouvido uma exposição do Professor Zago a respeito das prioridades de investimento do CNPq (do qual ele era presidente). Delas não constava a Psicologia, e isso é sintomático da posição que nos acostumamos a ter dentro do nosso contexto acadêmico e social.

Inara Barbosa Leão – Voltando à questão da pós-graduação e à possibilidade de ela perder esse caráter mais acadêmico: tenho visto coisas em relação à pós-graduação. Os alunos vão porque não acham emprego, e lá terão bolsa. E, ao mesmo tempo, existe esse discurso fácil da sociedade do conhecimento e da solução dos problemas do mundo pela sociedade do conhecimento. Mas isso nos parece que quebra um pouco a ideia de uma formação para a pesquisa que pudesse ser articulada com a profissão.

Cesar Ades – A questão é complexa. Falei sobre a necessidade de haver empregos externos para o Mestre ou o Doutor, mas é necessário tomar cuidado em não tornar a pós-graduação uma continuação da graduação e uma forma de esperar pelo emprego. A pós-graduação não deve desviarse de seu objetivo, que é acadêmico, mas seria interessante discuti-la em termos de um peso possível em termos de mercado.

Henrique Figueiredo Carneiro – Com relação ao início da nossa conversa, dos 30 anos atrás e agora, a questão dos três cursos iniciais que o senhor colocou continuou em minha cabeça.

Cesar Ades – É algo impressionante. Havia 20 vagas aqui na USP para psicólogo, e a nota era eliminatória, então o pessoal se dava ao luxo de aceitar 10, 12 estudantes. E o número de candidatos era em torno de 30 para 20 vagas.

Henrique Figueiredo Carneiro – A Psicologia hoje, no Brasil, tem presença no Norte, no Centro-Oeste, no Nordeste. Gostaria de ouvir um pouco do senhor sua impressão sobre isso, e como isso repercute na ciência.

Cesar Ades – Pode-se fazer muito mais hoje em dia porque há mais gente que pensa, mais gente que pesquisa, um número maior de áreas a serem exploradas, um acesso cem por cento maior às fontes bibliográficas. Mas nem sempre a qualidade acompanha o número. O curso que tive na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, por carente que fosse em relação aos padrões modernos (não tínhamos manuais traduzidos, eram poucos os laboratórios e os espaços para o treino em aplicação, a Psicologia mal deslanchava como profissão, não havia computadores nem internet, etc.) não deixou de ser extremamente estimulante, talvez porque, contrariamente aos alunos de hoje, nos sentíssemos no começo de tudo. A expansão geográfica da Psicologia é muito bem-vinda: contribui para que a nossa ciência esteja mais perto de todos os aspectos da realidade brasileira.

Henrique Figueiredo Carneiro – E a discussão sobre produção científica na Psicologia, é outro calcanhar de Aquiles que nos chama a atenção?

Cesar Ades – A exigência de produtividade, quando começou a ser sentida, gerou resistência, principalmente entre docentes da área de ciências humanas. Criticou-se o produtivismo por privilegiar certos tipos de pesquisa, por criar um desequilíbrio entre os vários requisitos da carreira, prejudicando o interesse didático, etc. Hoje os docentes estão mais reconciliados com a necessidade de publicar e de publicar com qualidade, e as pressões da CAPES surtiram, pelo menos, maior consciência de que pesquisa precisa ser divulgada e lida. Campos novos de comunicação se abrem, por exemplo, com a possibilidade de pesquisadores brasileiros publicarem em revistas de Psicologia de outros países da América Latina. Sobra ainda o sentimento, que eu acho justificado, de que não se deveria publicar por publicar. Uma professora carioca, cuja palestra assisti na reunião da ANPEPP em Fortaleza, disse, de uma forma muito pessoal e divertida, que a obsessão em publicar afasta o pesquisador de um rico lazer cognitivo, da vontade de pensar as coisas sem compromisso, da criatividade, de não estar com pressa.

Inara Barbosa Leão – Pedir dois artigos a um aluno no primeiro ano do mestrado, por exemplo. Não se pode dar um tempo necessário para o aluno amadurecer?

Cesar Ades – Ele ter que publicar sobre a tese dele é importante, senão ela fica esquecida na estante da biblioteca. Mas publicar é apenas o ponto final de um longo processo de amadurecimento, de aprendizagem da arte de pesquisar.

Inara Barbosa Leão – Agradecemos pela entrevista.

Cesar Ades – Muito obrigado a vocês, que me estimularam com os seus questionamentos; as perguntas iluminam também a quem responde. A Psicologia cresceu de uma forma impressionante e assumiu um papel importante entre nós. Sobra uma grande responsabilidade quanto à qualidade da formação, quanto à inserção do campo social e quanto ao incentivo para a pesquisa. Considero a comemoração dos 30 anos da revista Psicologia: Ciência e Profissão menos uma recapitulação do que foi feito nos últimos 30 anos passados e mais um olhar para a frente, para o que queremos fazer e para o que esperamos que aconteça para a Psicologia. Se houver ciência, está bem.

  • Endereço para correspondência
    Ana Bock
    Rua Irundiara, 35 – Vila Nova Conceição São Paulo, SP – Brasil CEP 04535-050
    E-mail:
    Cesar Ades
    R. Pamplona 825/34 São Paulo, SP – Brasil CEP 01405-001
    E-mail:
  • *
    Doutora em Psicologia Social pela PUCSP. Professora titular do departamento de Psicologia Social da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo – SP - Brasil
  • **
    (Universidade de São Paulo) Professor titular. Diretor do Instituto de Estudos Avançados da USP Professor titular do Instituto de Psicologia da USP, São Paulo – SP – Brasil
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Ago 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010
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