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Projeto transformando o trânsito e a perspectiva do facilitador

Proyecto transformando el tránsito y la perspectiva del facilitador

Project transforming the traffic and the facilitator's perspective

Resumos

Acidentes de trânsito são um problema de saúde pública no Brasil, principalmente entre jovens. A educação para a segurança no trânsito oferece ferramentas para solucionar essa questão, entretanto deve superar o método expositivo tradicional de comunicação de riscos. O Projeto Transformando o Trânsito é uma intervenção extensionista do Núcleo de Psicologia do Trânsito da Universidade Federal do Paraná. Baseado nos eventos dirija sua vida, inova métodos educativos que promovem a discussão sobre a percepção de risco no trânsito, pela aplicação de instrumentos vivenciais com jovens. A dinâmica de grupo metaphor proporciona experiência afetiva no processo de desenvolvimento grupal utilizando o jogo da sobrevivência, que fertiliza a discussão sobre trânsito por meio de metáforas. O facilitador é o cerne do processo de realização dos eventos, pois catalisa as fases do desenvolvimento grupal e estimula a discussão. Este estudo analisa as habilidades inerentes ao facilitador, relacionadas aos fundamentos do projeto, ao arcabouço teórico do desenvolvimento de grupos, ao método de facilitação do jogo da sobrevivência, ao método de facilitação do debate sobre trânsito e temas centrais e ao procedimento de conclusão da atividade. A síntese deste estudo referencia teórica e tecnicamente a elaboração do programa para a formação de facilitadores do projeto.

Percepção de risco; Acidente de trânsito; Psicologia do trânsito; Dinâmica de grupo; Saúde pública


Accidentes de tránsito son un problema de salud pública en el Brasil, principalmente entre jóvenes. La educación para seguridad en el tránsito ofrece herramientas para aplacar esa cuestión, no obstante debe superar el método expositivo tradicional de comunicación de riesgos. El “Proyecto Transformando el Tránsito” es una intervención extensionista del Núcleo de Psicología del Tránsito de la Universidad Federal de Paraná. Basado en los eventos “Dirija su Vida”, innova métodos educativos que promueven la discusión sobre percepción de riesgo en el tránsito, por la aplicación de instrumentos vivenciales con jóvenes. La dinámica de grupo “Metaphor” proporciona experiencia afectiva en el proceso de desarrollo grupal utilizando el “Juego de la Supervivencia” que fertiliza la discusión sobre tránsito por medio de metáforas. El Facilitador es el tronco del proceso de realización de los eventos, pues cataliza las fases del desarrollo grupal y estimula la discusión. Este estudio analiza las habilidades inherentes al facilitador, relacionadas a los fundamentos del Proyecto, al armazón teórico del desarrollo de grupos, al método de facilitación del “Juego de la Supervivencia”, al método de facilitación del debate sobre tránsito y temas centrales, al procedimiento de conclusión de la actividad. La síntesis de este estudio referencia teórica y técnicamente la elaboración del programa para formación de facilitadores del Proyecto.

Percepción de riesgo; Accidentes de tránsito; del tránsito; Dinámica de grupo; Salud pública


Traffic accidents are a public health problem in Brazil, and mainly concern youngsters. Traffic safety education offers tools to diminish this problem, but it is necessary to improve the traditional methods of risk communication. The project Transforming the Traffic is an intervention of the Traffic Psychology Lab of the Federal University of Paraná, Brazil. Based on activities named drive your life, innovates in education methods using experiential tools to promote a discussion about traffic risk perception to youngsters. The metaphor group dynamics gives an affective experience in the group development process through the survival game, that promotes a discussion about traffic using metaphors. The group facilitator is the core of these activities because he/she stimulates the discussion and the reflections about traffic. This study analyses the abilities of the group facilitator through the fundamentals of the project proposals: the theoretical bases of the group development, the structure of facilitation on the “survival game”, the orientation about the discussion of traffic and other central themes, and the procedures to end the activities. This study gives technical and theoretical support to an education program to facilitators.

Risk perception; Traffic accidents; Traffic psychology; Group dynamics; Public health


EXPERIÊNCIA

Projeto transformando o trânsito e a perspectiva do facilitador

Project transforming the traffic and the facilitator's perspective

Proyecto transformando el tránsito y la perspectiva del facilitador

Diogo Picchioni Soares* * Psicólogo, Especialista em Psicologia do Trabalho e Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná. Atua com Psicologia do Trabalho, Psicologia do Trânsito, Segurança Pública. Possui experiência profissional em gestão de recursos humanos, ensino, pesquisa e extensão. Curitiba, Paraná – Brasil. E-mail: diogopsi@gmail.com ; Iara Picchioni Thielen** ** Doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina, professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Paraná – Brasil. E-mail: iara.thielen@gmail.com; iara.thielen@pq.cnpq.br

Universidade Federal do Paraná

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Diogo Picchioni Soares Avenida Visconde de Guarapuava, 1535, ap. 43, CEP 80.060-060, Curitiba, Paraná. Email: diogopsi@gmail.com

RESUMO

Acidentes de trânsito são um problema de saúde pública no Brasil, principalmente entre jovens. A educação para a segurança no trânsito oferece ferramentas para solucionar essa questão, entretanto deve superar o método expositivo tradicional de comunicação de riscos. O Projeto Transformando o Trânsito é uma intervenção extensionista do Núcleo de Psicologia do Trânsito da Universidade Federal do Paraná. Baseado nos eventos dirija sua vida, inova métodos educativos que promovem a discussão sobre a percepção de risco no trânsito, pela aplicação de instrumentos vivenciais com jovens. A dinâmica de grupo metaphor proporciona experiência afetiva no processo de desenvolvimento grupal utilizando o jogo da sobrevivência, que fertiliza a discussão sobre trânsito por meio de metáforas. O facilitador é o cerne do processo de realização dos eventos, pois catalisa as fases do desenvolvimento grupal e estimula a discussão. Este estudo analisa as habilidades inerentes ao facilitador, relacionadas aos fundamentos do projeto, ao arcabouço teórico do desenvolvimento de grupos, ao método de facilitação do jogo da sobrevivência, ao método de facilitação do debate sobre trânsito e temas centrais e ao procedimento de conclusão da atividade. A síntese deste estudo referencia teórica e tecnicamente a elaboração do programa para a formação de facilitadores do projeto.

Palavras-chave: Percepção de risco, Acidente de trânsito, Psicologia do trânsito, Dinâmica de grupo, Saúde pública

ABSTRACT

Traffic accidents are a public health problem in Brazil, and mainly concern youngsters. Traffic safety education offers tools to diminish this problem, but it is necessary to improve the traditional methods of risk communication. The project Transforming the Traffic is an intervention of the Traffic Psychology Lab of the Federal University of Paraná, Brazil. Based on activities named drive your life, innovates in education methods using experiential tools to promote a discussion about traffic risk perception to youngsters. The metaphor group dynamics gives an affective experience in the group development process through the survival game, that promotes a discussion about traffic using metaphors. The group facilitator is the core of these activities because he/she stimulates the discussion and the reflections about traffic. This study analyses the abilities of the group facilitator through the fundamentals of the project proposals: the theoretical bases of the group development, the structure of facilitation on the “survival game”, the orientation about the discussion of traffic and other central themes, and the procedures to end the activities. This study gives technical and theoretical support to an education program to facilitators.

Keywords: Risk perception, Traffic accidents,Traffic psychology, Group dynamics, Public health.

RESUMEN

Accidentes de tránsito son un problema de salud pública en el Brasil, principalmente entre jóvenes. La educación para seguridad en el tránsito ofrece herramientas para aplacar esa cuestión, no obstante debe superar el método expositivo tradicional de comunicación de riesgos. El “Proyecto Transformando el Tránsito” es una intervención extensionista del Núcleo de Psicología del Tránsito de la Universidad Federal de Paraná. Basado en los eventos “Dirija su Vida”, innova métodos educativos que promueven la discusión sobre percepción de riesgo en el tránsito, por la aplicación de instrumentos vivenciales con jóvenes. La dinámica de grupo “Metaphor” proporciona experiencia afectiva en el proceso de desarrollo grupal utilizando el “Juego de la Supervivencia” que fertiliza la discusión sobre tránsito por medio de metáforas. El Facilitador es el tronco del proceso de realización de los eventos, pues cataliza las fases del desarrollo grupal y estimula la discusión. Este estudio analiza las habilidades inherentes al facilitador, relacionadas a los fundamentos del Proyecto, al armazón teórico del desarrollo de grupos, al método de facilitación del “Juego de la Supervivencia”, al método de facilitación del debate sobre tránsito y temas centrales, al procedimiento de conclusión de la actividad. La síntesis de este estudio referencia teórica y técnicamente la elaboración del programa para formación de facilitadores del Proyecto.

Palavras clave: Percepción de riesgo, Accidentes de tránsito, Psicología del tránsito, Dinámica de grupo, Salud pública.

Os acidentes de trânsito são um problema de saúde pública no Brasil e produzem vítimas que ocupam dois terços dos leitos hospitalares dos setores de ortopedia e traumatologia (Marin & Queiroz, 2000). A mortalidade no trânsito incide principalmente em jovens do sexo masculino (Brasil, 2006a), e, durante o ano 2008, o Departamento Nacional de Trânsito registrou 33.996 vítimas fatais e 619.831 vítimas não fatais (Brasil, 2009). Tal problema causa um elevado dispêndio financeiro cujo ônus é compartilhado socialmente por todos os brasileiros. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) (Brasil, 2003), o custo dos acidentes de trânsito em aglomerações urbanas do Brasil foi estimado em 5,3 bilhões de reais durante o ano 2001 a preços de 2003. Nas rodovias federais, o IPEA (Brasil, 2006b) estimou um prejuízo de 6,5 bilhões de reais no ano 2005 a preços de 2005. Os estudos descartam o prejuízo imensurável decorrente de danos ambientais e de sequelas psicológicas, pois contabilizam apenas uma parcela das consequências prejudiciais dos acidentes: atendimento hospitalar, reabilitação, perda de produção, gastos previdenciários, remoção de veículos, resgate de vítimas, danos materiais a cargas e veículos, tempo perdido em congestionamentos e processos judiciais. Essas constatações reforçam a prioridade aos programas que visam à segurança e à redução dos acidentes de trânsito com vítimas (Brasil, 2003).

A catástrofe dos acidentes de trânsito demanda intervenção multifatorial e interdisciplinar, sobretudo, preventiva. Wilde (2005) discorre sobre a abordagem tradicional da segurança no trânsito que prioriza ações no triplo E – Engenharia, educação e esforço legal – e salienta o malogro de ações isoladas nessas três vertentes quando o comportamento de risco não é enfatizado. Não basta apenas incrementar as vias e os veículos, pois um veículo seguro sobre uma via em boas condições incita os condutores a assumir maior quantidade de risco, e, como resultado, a chance de consequências indesejáveis permanece constante. O aumento de conhecimentos e habilidades de condução de veículos tende a tornar os motoristas autoconfiantes e a induzi-los a assumir comportamentos mais arriscados (Sümer, Özkan, & Lajunen, 2006; MacGregor & Slovic, 1999).

A Psicologia é consolidada como disciplina fundamental na empreitada pelo trânsito seguro, pois o fator humano responde por 90% dos acidentes de trânsito (Rozestraten, 1988; Hoffmann, 2005). A prática da Psicologia do trânsito é predominantemente atrelada à avaliação psicológica (Cristo e Silva & Günther, 2009), contudo, tem sido promovida a produção teórica voltada para o desenvolvimento de novos e sofisticados métodos educativos para motoristas, enfocando a experiência afetiva dos riscos (Engström, Gregersen, Hernetkoski, Keskinen, & Nyberg, 2003). A elaboração dessas técnicas demanda compreensão de mecanismos decisórios dos motoristas nas situações de perigo. O estudo da percepção de risco no trânsito envolve a investigação sobre os fatores analíticos que permeiam o processo decisório (Slovic, 1987) e proporciona a articulação de estratégias educativas específicas. A abordagem preventiva dos acidentes de trânsito necessita de ferramentas que superem campanhas e métodos de educação meramente expositivos, e que propiciem vivência de fatores subjacentes a eventos críticos e a situações de risco.

O artigo 74 do Código de Trânsito Brasileiro (Brasil, 1997) estabelece que “a educação para o trânsito é direito de todos e constitui dever prioritário para os componentes do Sistema Nacional de Trânsito”, e define, no artigo 76, “a elaboração de planos de redução de acidentes de trânsito junto aos núcleos interdisciplinares universitários de trânsito, com vistas à integração universidadessociedade na área de trânsito”. Este estudo aborda uma experiência extensionista que promove discussão sobre os riscos no trânsito. O relato profissional é estruturado sobre a atuação de um projeto de extensão universitária desvelado na perspectiva do facilitador que catalisa a intervenção.

Projeto transformando o trânsito

A ideia de criar uma estratégia inovadora para intervir nos problemas do trânsito instigou a elaboração de um projeto de extensão universitária do Núcleo de Psicologia do Trânsito (NPT) da Universidade Federal do Paraná (UFPR): o Projeto Transformando o Trânsito (PTT) (UFPR, 2002; Thielen, Soares, Hartmann, Penteado, & Rossler, 2006), cuja finalidade é discutir temas pertinentes ao trânsito com jovens. A opção de público-alvo do PTT traduz a preocupação em planejar alternativas de intervenção que visem a despertar um novo significado do trânsito, transformador dos expressivos índices de acidentes na faixa etária dos jovens. O projeto integra a formação de alunos do curso de Psicologia da UFPR e envolve atividades de ensino, pesquisa e extensão.

Jovens dos primeiros anos de cursos de graduação da UFPR passaram a participar do PTT no ano 2002, quando foram iniciadas as atividades pela equipe do NPT. O objetivo do PTT é “propiciar aos participantes a oportunidade de discutir o assunto ‘trânsito', identificando o envolvimento e a responsabilidade de cada um nessa atividade, promovendo a reflexão sobre a transformação que pode ser alcançada a partir das contribuições individuais” (UFPR, 2002). A proposta consiste em desenvolver a percepção de risco com discussão sobre trânsito por meio da realização de eventos denominados dirija sua vida (DSV), cuja duração é de duas horas.

O PTT preconiza a discussão da consequência de concepções individualistas sobre trânsito, identificadas na pesquisa de Thielen (2002), que constata a prevalência de uma concepção de trânsito distorcida e centralizada nos próprios motoristas (Thielen, Hartmann, & Soares, 2008). O individualismo gera desrespeito a regras que orientam a convivência harmônica no trânsito e produz formas de sofrimento que causam agressividade e impaciência na disputa pelo espaço público (Thielen & Grassi, 2006).

O escopo do debate desenvolvido pelo PTT situa a tensão entre comportamento individualista e coletivo, utilizada pelo NPT para expressar a aparente polaridade no trânsito: o comportamento individualista, caracterizado pela privatização do espaço público no trânsito e pela falta de consideração com o outro em decisões e ações, e o comportamento orientado coletivamente, do qual a interação no trânsito depende. A perspectiva individualista considera o trânsito um espaço privado e reflete o valor hegemônico do culto ao alvedrio individual na sociedade capitalista.

Ações individualistas podem ser pensadas em termos da promoção de orientações sociais e disposições psicológicas, que se caracterizam pela disposição da pessoa em orientar-se exclusivamente para o próprio bem-estar, em detrimento dos demais e da coletividade, desconsiderando a repercussão que tal disposição representa na relação com outras pessoas ou grupos sociais. (...) (O) individualismo (...) relacionase de perto com disposições egoístas, corporativistas, hostis e competitivas (Palmieri & Branco, 2004, p. 193)

A superação da aparente polaridade entre indivíduo e sociedade é possível pelo conceito de coletivo (Escóssia & Kastrup, 2005). O comportamento coletivo é subjacente à abordagem do trânsito como fenômeno complexo, que envolve deslocamento humano e transporte, no qual participam pedestres, ciclistas, motociclistas, motoristas profissionais e de passeio. A demanda para o comportamento que não seja individualista incorpora o sentido coletivo na ocupação do espaço público compartilhado igualitariamente. Desconhecer o sentido público do espaço produz catástrofe no trânsito: cada pessoa age como se o espaço fosse seu (Thielen, Hartmann, & Soares, 2008).

A dimensão individualismo x coletivismo refere-se à natureza das relações que o indivíduo mantém com o grupo, caracterizando-se o individualismo pela prevalência do interesse individual sobre o grupal, o que leva as pessoas a se preocuparem apenas consigo próprias ou com sua família imediata, e o coletivismo, pela sobreposição do interesse do grupo sobre o individual, o que tem como conseqüência a formação de grupos coesos que protegem o indivíduo em troca de sua lealdade (Ferreira, Assmar, & Souto, 2002, p. 83)

O comportamento coletivo é um comportamento individual que incorpora o sentido da coletividade, manifestado pela pessoa que não age como se fosse a única no universo a partir da qual o mundo gira, mas toma decisões e age com base em uma concepção do trânsito como um fenômeno que ocorre no espaço público, compartilhado coletivamente. A orientação do comportamento individual ao contexto que ressalta a prioridade da coletividade como determinante da sobrevivência passa a criar a demanda de desenvolvimento de habilidades grupais nas pessoas.

O progresso na área (...) dos transportes cada vez nos torna mais vizinhos em uma aldeia global, por cuja preservação somos todos igualmente responsáveis e onde cuidar da vida alheia é indissociável da preservação da própria. (...) A construção coletiva do bem-estar coletivo só se concretizará quando o impulso a rivalizar seja gradativamente substituído pela inclinação a cooperar. Precisamos desenvolver a inteligência relacional e as competências a ela vinculadas (Osório, 2003, p. 164)

O PTT facilita o debate sobre a tensão entre individualismo e coletividade através de atividades com grupos. Segundo Osório, as abordagens compartilhadas pela Psicologia grupal – estudo dos microgrupos humanos de objetivos compartilhados – derivam da interdisciplinaridade entre Psicologia, Sociologia e Psicologia social, que aborda o psiquismo individual com manifestações coletivas de fenômenos sociais. Técnicas grupais, aplicadas sem propósito terapêutico, constituem ferramentas que propiciam o desenvolvimento de habilidades interpessoais através de caminhos afetivos de aprendizagem, no contexto organizacional e educacional. A concepção do PTT consolida a teoria de Carl Rogers, que possibilita a educação pela abordagem vivencial da dimensão interpessoal e proporciona desenvolvimento criativo e eficiente para superar problemas. O centro do processo educacional abrange ideias e sentimentos.

Através de cursos e seminários, venho tentando comunicar idéias e conceitos a outras pessoas. Em psicoterapia e grupos de encontro, tenho facilitado aprendizagens pessoais na área dos sentimentos – a vivência, muitas vezes a um nível não verbal, mas visceral, dos importantes eventos emocionais que ocorrem no organismo. Mas não posso satisfazer-me com essas duas espécies separadas de aprendizagem. Deveria haver um lugar para a aprendizagem pela pessoa toda, com seus sentimentos e idéias integrados. Tenho refletido nessa questão de reunir aprendizagem cognitiva, que foi sempre necessária, com a aprendizagem afetivovivencial, tão descurada hoje no ensino (Rogers, 2009b, p. 143)

A proposta de intervenção preconizada pelo PTT pretende incorporar essas duas dimensões, abstraindo da vivência durante o jogo as reflexões dela decorrentes. A vivência prioriza a aprendizagem significativa, ao contrário da mera comunicação expositiva de riscos do trânsito.

Por aprendizagem significativa, entendo aquela que provoca uma modificação, quer seja no comportamento do indivíduo, na orientação da ação futura que escolhe ou nas suas atitudes e na personalidade. É uma aprendizagem penetrante, que não se limita a um aumento de conhecimentos, mas que penetra profundamente em todas as parcelas de sua existência (Rogers, 2009a, p. 322)

A atenção ao método de aprendizagem proporciona melhores resultados, em contrapartida à dedicação de tempo e esforço exclusivamente ao conteúdo ensinado por métodos expositivos convencionais. O PTT utiliza um jogo, aparentemente sem relação com o trânsito, que funciona como metáfora, pois explicita a interação coletiva vivenciada cotidianamente. Segundo Moscovici (2005), a aprendizagem baseada em experiências diretas ou vivências permite que o indivíduo enfrente situações novas de forma livre e criativa, torne-se melhor preparado para avaliar situações de risco e desenvolva potencialidades cognitivas, emocionais, atitudinais e comportamentais:

As mudanças pessoais podem abranger diferentes níveis de aprendizagem: nível cognitivo (informações, conhecimentos, compreensão intelectual), nível emocional (emoções e sentimentos, gostos, preferências), nível atitudinal (percepções, conhecimentos, emoções e predisposição para ação integrados) e nível comportamental (atuação e competência). Modalidades diversas de processos de influência social visam, preferencialmente, níveis diferentes de aprendizagem. Assim, por exemplo, o alvo principal da psicoterapia é o nível emocional, o do ensino tradicional, o cognitivo, da educação de laboratório, o de atitudes, englobando funções e experiências cognitivas efetivas (Moscovici, 2005, p. 5)

O PTT engloba essas quatro dimensões da aprendizagem: reelaboração de conhecimentos a partir da ação coletiva durante o jogo, vivência e expressão de emoções, abandono de atitudes individualistas preteridas em favor de comportamentos voltados para a sobrevivência coletiva e organização de comportamentos na delimitação de tarefas que constituem a ação coletiva sinérgica. Além disso, a aprendizagem vivencial depende de fatores internos e externos que facilitam ou dificultam o processo: os internos são maturidade, motivação, aptidões e experiência anterior do aprendiz; os externos incluem componentes da situação como conteúdo e metodologia, relações interpessoais, clima afetivo, personalidade e desempenho do coordenador (Moscovici, 2005).

O alvo dos debates é estruturado por atividades vivenciais que permitem aos jovens construir concepções de trânsito que incorporem a intrínseca orientação coletiva do comportamento, as quais desenvolvem a percepção de risco no processo decisório. Para fomentar as discussões, é realizada uma dinâmica de grupo que recria situações do cotidiano do trânsito: individualismo, conflito, disputa por espaço, confronto com a autoridade e com as regras, organização, planejamento, cooperação grupal e solidariedade (Thielen, Ricardi, Soares, & Hartmann, 2005). Como pressuposto do PTT, a construção da orientação coletiva ao comportamento individual deve ser compartilhada, vivenciada, debatida, analisada – para consolidar novos posicionamentos diante do quadro de morbimortalidade provocado pelos acidentes de trânsito. O método de intervenção do PTT gerencia um ciclo contínuo de quatro ações: diagnóstico de turmas de cursos de graduação para agendamento de eventos DSV, planejamento e qualificação da equipe executora, realização do evento DSV e avaliação dos resultados. O centro desse ciclo é o evento DSV, que ocorre em quatro etapas: apresentação da equipe executora e convite para a atividade, com predomínio de ansiedade e desconfiança dos participantes, realização da dinâmica de grupo metaphor, com o jogo da sobrevivência (Thielen et al., 2005; Ferreira & Corte, 1978), discussão de analogias entre o que ocorreu durante o jogo e o cotidiano do trânsito e o preenchimento de formulários pelos participantes com o “compromisso para a transformação do trânsito”.

Dinâmica de grupo metaphor

O principal instrumento do DSV é a dinâmica de grupo metaphor (Ferreira & Corte, 1978) – introduzida no Brasil na década de 1970 com aplicação original de integração para grupos de treinamento – e que consiste em uma técnica vivencial fundamentada em duas etapas: inicia com o jogo da sobrevivência e culmina no debate de articulação metafórica dos aspectos vivenciados no jogo em relação a temas do trânsito. O jogo confere um determinado sentido à ação, e é na sua intensidade e poder de fascinação que reside sua essência e característica fundamental (Huizinga, 2005). Os jogos são considerados uma forma de abordar o trânsito no processo educacional ligado à saúde:

Outra modalidade que favorece o diálogo, a referência e a responsabilidade é o jogo. Nele são distribuídos papéis e representadas as várias situações inerentes à circulação humana (normas de trânsito, os diversos usuários das vias e suas percepções, sinais de trânsito, velocidade mais conveniente, indicações de direção/sentido das vias, impacto ambiental, implicações do ruído, problemas de estacionamento, colisões, socorro a vítimas). (...) Com o jogo, tratase de criar uma dinâmica de relação que elimine, ao máximo possível, os traços de agressividade, sentando as bases do convívio social sobre as bases da tolerância, negociação e solidariedade (Hoffmann & Luz, 2003, p. 115)

O jogo realizado pelo PTT utiliza fichas de quatro cores e tem como objetivo a sobrevivência de todos os participantes do grupo, a qual é simbolizada por uma ficha branca para cada participante. O cálculo que define as regras de distribuição de fichas no jogo compele o grupo ao desenvolvimento de organização, cooperação e rompimento do individualismo – como única forma de atingir o objetivo da atividade.

O jogo da sobrevivência acontece em quantas rodadas forem necessárias até que cada participante conquiste uma ficha branca na mesma rodada, e, mesmo que falte apenas um participante sem a ficha branca, a rodada é reiniciada para todos. As rodadas têm duração constante padronizada no início do jogo, fixada entre dois e três segundos por participante, cujo início e fim são sinalizados pelo soar de um apito. Cada participante inicia a rodada com um par de fichas da mesma cor – verde, amarela ou vermelha, distribuídas na mesma proporção ao grupo – e deve concluir a rodada com uma ficha branca que simboliza a vida. Todas as fichas são recolhidas ao final de cada rodada, e o jogo é reiniciado até que o objetivo seja alcançado. A ficha branca não é distribuída aos participantes no início da rodada, pois somente pode ser conquistada por meio de trocas com um integrante da equipe executora denominado mãe-natureza, durante as rodadas.

A função desempenhada pela mãe natureza é a execução de trocas de fichas, regidas por duas regras para obtenção da ficha branca da vida pelos participantes: 1) três fichas coloridas de cores diferentes – verde, amarela e vermelha – podem ser trocadas por uma ficha branca e uma ficha colorida à escolha do participante, 2) três fichas brancas podem ser trocadas por um kit mãe-natureza que contempla sete fichas coloridas entre verdes, amarelas e vermelhas. O cálculo do jogo pressupõe e obriga a utilização da segunda regra de trocas para a conquista do objetivo.

Não existem regras para trocas de fichas entre os participantes durante as rodadas – a estratégia do grupo para alcançar o objetivo do jogo deve ser desenvolvida criativamente. No intervalo entre as rodadas, podem ser concedidos ao grupo dois minutos para organização, diálogo e estabelecimento de estratégias para atingir o objetivo. Ao final de cada rodada, são registrados em um quadro visível aos participantes: o número de sobreviventes que conquistaram a ficha branca, o número de mortos que não a conquistaram e os comentários verbalizados pelos participantes.

O jogo pode ser executado por um aplicador experiente ou por uma equipe de alunos do NPT em que um dos integrantes coordena os demais e divide a execução de tarefas. O coordenador apresenta a equipe, explica as atividades que serão desenvolvidas, realiza um convite de participação, apresenta os objetivos e as regras do jogo, demonstra o material utilizado, esclarece dúvidas, controla o tempo das rodadas, sinaliza o início e o fim das rodadas com um apito e realiza a contagem do número de mortos e sobreviventes de cada rodada. Além das tarefas exclusivas do coordenador, outras podem ser delegadas ao demais integrantes da equipe executora: distribuição de pares de fichas para os participantes no início das rodadas, recolhimento das fichas ao final das rodadas, registro de verbalizações dos participantes e atuação como mãe-natureza.

A análise do jogo da sobrevivência revela uma estrutura que permite vivenciar a trajetória de desenvolvimento de grupos de maneira rápida e eficiente, pois há características análogas ao crescimento grupal abordado por Moscovici (2005). O jogo permite que seja vivenciada uma fase inicial, com predomínio de individualismo e de desorganização, uma fase intermediária, caracterizada por tentativas paulatinas de organização do grupo com confronto às figuras de autoridade e às regras, e uma fase final, que explicita o crescimento do grupo pela compreensão dos aspectos coletivos que passam a dirigir os comportamentos individuais. Para percorrer as fases, o grupo deve desenvolver habilidades como comunicação, liderança, solidariedade, administração de conflitos e cooperação.

Quando todos os participantes conquistam a sobrevivência ao final do jogo, o coordenador inicia um debate organizando subgrupos para discutir o tema trânsito a partir das frases registradas e dos demais comportamentos manifestados durante o jogo. O rumo da discussão é construído pelos participantes e contempla o jogo como metáfora de situações vivenciadas no cotidiano do trânsito, entretanto, o coordenador pode sugerir que sejam feitas analogias ao trânsito segundo aspectos específicos: papéis desempenhados pelos participantes e pela equipe executora durante o jogo, frases dos participantes e análise do desenvolvimento grupal para a conquista do objetivo do jogo. Aparecem centralmente nos debates: espaço público e espaço privado, comportamento individual e comportamento coletivo, vida e morte. Cada subgrupo compartilha os resultados com os demais.

A partir da utilização das metáforas elaboradas pelos participantes, torna-se possível aos jovens discutir seus comportamentos individualistas característicos do início do jogo, refletindo sobre a necessidade de construção de uma perspectiva coletiva como única forma de atingir o objetivo da sobrevivência no jogo e no trânsito (Thielen, Ricardi, Soares, & Hartmann, 2005).

As etapas do desenvolvimento grupal inerentes ao jogo da sobrevivência são caracterizadas por indicadores específicos expressados pelos participantes: verbalizações, movimentação e circulação, frequência de troca de fichas brancas pelo kit mãe natureza, tentativa de fraude nas trocas de fichas. A consecução do DSV demanda capacidade do facilitador em identificar o movimento de transformação do grupo de acordo com os indicadores.

A hesitação inicial é expressa por frases como: – Não entendi o que deve ser feito!; – O que precisamos fazer? A desorganização, a falta de estratégia grupal e a preponderância do individualismo: – Preciso de uma ficha vermelha para conseguir a minha sobreviência; – Ele roubou minha ficha; – Eu morri por culpa dele; – É necessário que alguém morra. A tentativa de organização: – Calma pessoal!; – Joga todas as nossas fichas no meio da sala. O facilitador constata a etapa de confronto com a autoridade a partir de frases defensivas que culpabilizam pelo fracasso fatores externos ao grupo: – A mãe natureza está muito lerda; – O tempo é muito curto; – Precisa de duas mãesnatureza para dar conta das trocas; – As regras do jogo estão erradas. O aprimoramento do funcionamento grupal: – Somente um de nós realiza as trocas com a mãe natureza para não sobrecarregá-la; – Entreguem rápido todas as verdes para mim, as vermelhas para ele, e as amarelas para ela, e depois sentem. A coletividade: – Vamos organizar uma fila para distribuição da vida.

A circulação reflete o processo de transformação e o rompimento do individualismo. A movimentação é reservada e individualizada no início do jogo, pois os participantes não assimilaram as regras e o tempo de cada rodada, nem obtiveram o insight da coletividade. Deslocam-se vagarosa, competitiva e individualmente até à mãe natureza para efetuar trocas. A partir da segunda ou da terceira rodada, os participantes correm todos ao mesmo tempo na direção da mãe natureza, colidem entre si, aglomeram-se, falam simultaneamente. Apesar da agitação, o grupo melhora o desempenho, mas não alcança o êxito da sobrevivência de todos. Nesse momento da vivência, a euforia tende a diminuir até que o grupo elabore uma nova estratégia em que a circulação excessiva ceda à ordenação expressada pelo estabelecimento de lideranças, divisão de tarefas, concessão de fichas a representantes e distribuição de fichas brancas de sobrevivência.

O indicador que comprova o movimento de transformação do individualismo para a coletividade é a troca pelo kit mãe-natureza. Os participantes desenvolvem a agilidade de trocar todas as suas fichas coloridas por fichas brancas, mas utilizam apenas a primeira regra de trocas de fichas. A utilização da segunda regra – troca de fichas brancas pelo kit mãe natureza – demonstra que os participantes compartilham o objetivo coletivo, pois indica a capacidade de doar a vida em favor do outro. A conquista do objetivo somente é possível pela utilização da segunda regra, que implica redistribuição de fichas brancas já conquistadas – individualmente – para a realização de novas trocas. Esse é um indicador importante do movimento em direção à coletividade: a metáfora de ceder a própria vida pela sobrevivência coletiva (Thielen et al., 2005).

A incidência da retirada de fichas brancas sem autorização da mãe natureza constitui um indicador da tentativa de fraude para atingir o objetivo do jogo. O roubo de fichas compromete os resultados da discussão e deve ser prevenido, pois torna dispensável a utilização da segunda regra de trocas e suplanta o desenvolvimento da coletividade para a conquista do objetivo. A utilização da segunda regra é fundamental para comprovar que o grupo alcançou um estágio de desenvolvimento que atesta a integração da coletividade nas decisões individuais.

Facilitação do processo grupal no PTT

O desenvolvimento interpessoal nos processos grupais depende fundamentalmente da função desempenhada pelo facilitador, cuja formação profissional requer o desenvolvimento de aptidões pessoais, conhecimento de técnicas, procedimentos e prática em laboratório. O facilitador que coordena as atividades é um fator crucial para o aproveitamento da experiência:

O conjunto de características pessoais e interpessoais do coordenador pode facilitar ou dificultar a aprendizagem dos participantes, ao provocar reações de agrado ou desagrado por parte de um ou mais membros do grupo. Respostas emocionais, positivas ou negativas, por sua vez, podem criar uma atmosfera favorável ou desfavorável para o trabalho com grupo. Se o clima é agradável, a tendência à aproximação, à simpatia, à receptividade aumenta e propicia condições emocionais facilitadoras de aprendizagem. Se o clima, porém, é desagradável, a tendência crescente é para afastamento, aversão, rejeição, resistência (Moscovici, 2005, p. 179)

Os integrantes da equipe do PTT que coordenam as atividades do DSV são denominados facilitadores – termo que traduz a postura do terapeuta nos Grupos de Encontro (Rogers, 2009b) e do educador na Aprendizagem Significativa (Rogers, 2009a). O tema emerge do próprio grupo nos Grupos de Encontro – método de trabalho que “pretende acentuar o crescimento pessoal e o desenvolvimento e o aperfeiçoamento da comunicação e das relações interpessoais, através de um processo experiencial” (Rogers, 2009b, p. 14). O foco específico dos debates do PTT também emerge do próprio grupo, embora o objetivo geral esteja explícito na proposta e focalize a relação entre os aspectos individuais e os coletivos no trânsito. No PTT e nos Grupos de Encontro, o papel do facilitador é fomentar reflexões, cujo direcionamento é dado pelos participantes das atividades:

(...) O papel do facilitador não será o de dirigir o grupo, impor regras ou normas, mas de viabilizar o processo de desenvolvimento do grupo, dentro do seu próprio ritmo. Dessa forma, o tema tratado entre os participantes do grupo de encontro será o emergente, trazido pelo grupo (Moreira, 1999, p. 66)

Essa concepção agrega o posicionamento da atuação da equipe executora nos grupos do PTT, pois representa a convicção de que todo o grupo possui o potencial de desenvolvimento por meios genuínos, autênticos e independentes. O facilitador age como catalisador, e cria um clima afetivo que permite o desenvolvimento de potencialidades dos membros do grupo (Rogers, 2009b).

O termo facilitador é utilizado para denominar o profissional que possibilitará que o processo do grupo se desenvolva, partindo do princípio de que esse profissional não irá dirigir ou determinar o processo do grupo, mas tão somente proporcionar condições facilitadoras para o seu desenvolvimento – daí a denominação. (...) Essa forma de trabalho com grupos baseia-se no axioma básico da terapia de grupo centrada na pessoa, proposta por Carl Rogers: a tendência formativa (Moreira, 1999, p. 64)

Cabe ao facilitador identificar os aspectos vivenciados durante o jogo, instigando os participantes a relacionar a experiência com o cotidiano do trânsito. O debate é gerado não a partir do senso comum, mas a partir de uma estrutura baseada na vivência durante o jogo, a partir da análise dos comportamentos individuais e de suas repercussões para o alcance do objetivo coletivo. O coordenador expressa seu caráter constitutivo na mediação entre processos grupais vivenciais e compreensão crítica (Andaló, 2001), pois incita e catalisa a discussão sobre trânsito, resgatando as metáforas proporcionadas pela dinâmica de grupo metaphor.

A compreensão da transição do desenvolvimento grupal demanda que o facilitador visualise a consecução de etapas do processo. Lundgren (1972 como citado em Moscovici, 2005) distingue cinco estágios de desenvolvimento de grupos: encontro inicial, confrontação do coordenador, solidariedade grupal, intercâmbio de feedback e terminação. O incisivo impacto do teor afetivo do jogo cria uma demanda especial de compreensão do fenômeno grupal, pois expressa brevemente, fases grupais que são comumente observadas em intervenções complexas e duradouras, sintetizadas no PTT em encontro inicial, confronto com autoridade e organização coletiva.

No encontro inicial, observa-se o predomínio de uma concepção individualista, que gera confusão, caos e conflito entre os membros – análoga à fase de hesitação dos membros do grupo, confusão inicial e silêncio nos Grupos de Encontro (Rogers, 2009b). O grupo questiona os objetivos da atividade, duvida das regras e recusa-se a acreditar que o facilitador abdique da direção do jogo.

(...) Acreditavam que ele (o facilitador) estabeleceria as tarefas, que ele seria o centro do que quer que ocorresse e que manipularia o grupo. Foram necessárias quatro sessões para que o grupo percebesse que estava errado, que ele havia vindo com nada além de si mesmo, além de sua própria pessoa, que, se eles realmente desejassem que algo acontecesse, caberia a eles fornecer o conteúdo – uma situação incômoda, desafiadora de fato. (...) Como parte do processo, eles compartilhavam, opunham-se, concordavam, discordavam (Rogers, 2009b, p. 351)

No segundo momento do jogo, o grupo percebe que a tarefa é coletiva – sobrevivência de todos – mas fracassa nas tentativas de executá-la e atribui à figura de autoridade externa a culpa pela sua falta de êxito. O grupo remete sua incompetência às figuras que representam controle, autoridade e regras. Eventualmente, participantes são rechaçados e responsabilizados por supostamente impedirem o sucesso do grupo no jogo.

No terceiro momento do jogo, o grupo assume a responsabilidade coletiva por encontrar uma solução, e desenvolve características que permitem a elaboração de estratégias interpessoais para o alcance do objetivo: liderança, cooperação, solidariedade, mediação de conflitos, comunicação e feedback. Quando o grupo atinge o objetivo ao final do jogo, não surgem mais referências dos participantes à mãe-natureza ou ao controle do tempo. Os participantes foram compelidos a mudar coletivamente para superar os obstáculos, pois o setting permaneceu o mesmo. O grupo explicita a transição da busca de apoio e direcionamento por autoridade, predominante no início do jogo, que recrudesce na medida em que as preocupações são centradas na divisão de papéis e de responsabilidades, quando os membros do grupo percebem a demanda de dependência recíproca para que o grupo atinja a coesão.

O facilitador deve preservar sua postura e ritmo de desempenho durante o jogo, assegurando que a tarefa seja alcançada exclusivamente pelo desenvolvimento dos participantes. O grupo critica a mãe-naturezapor sua falta agilidade, mas esta não pode ceder à pressão de mudar seus procedimentos e deve continuar a efetuar trocas na mesma velocidade. O facilitador é tentado pelo envolvimento afetivo com o grupo e compelido a liderar ou a auxiliar os participantes – postura inadequada para o propósito da atividade – mas não deve ensinar o grupo a solucionar o problema, nem aceitar a pressão para que sejam sanadas as supostas deficiências das regras do jogo, do rigor no controle do tempo das rodadas ou da velocidade da mãe natureza.

A orientação teórica sobre grupos na dinâmica metaphor possibilita analisar os procedimentos de execução do PTT e os aspectos fundamentais à formação de seus integrantes. A equipe executora do evento DSV demanda habilidades específicas para que os objetivos do PTT sejam alcançados.

Facilitar a discussão requer atenção especial, pois constitui o momento que demanda a compreensão plena da atividade. Após a conquista do objetivo do jogo e a comemoração da vitória, o facilitador deve promover a discussão, dividindo os participantes em subgrupos e organizando um debate que possibilite a elaboração espontânea de metáforas entre a vivência do jogo e o trânsito. O facilitador lê frases dos próprios participantes, registradas para orientar a discussão, centralizando o debate no que aconteceu durante o jogo. Quando solicitado, deve fornecer sugestões de elementos do jogo que podem expressar metáforas da interação no trânsito – papéis desempenhados por participantes e facilitadores, verbalizações dos participantes, descrição da trajetória do grupo e análise da transformação de comportamentos durante o jogo. O facilitador pode instigar cada participante a identificar e a analisar o comportamento individualista característico do início do jogo e a perceber suas consequências para o fracasso da sobrevivência no trânsito.

A facilitação da discussão entre os subgrupos demanda o conhecimento do substrato teórico das polaridades centrais: individual e coletivo, espaço público e privado, vida e morte no trânsito. O facilitador deve organizar e sintetizar as principais ideias que emergem dos grupos, fortalecer a centralidade da concepção do trânsito como um fenômeno coletivo, ressaltar a transformação de cada participante para o êxito da sobrevivência no jogo e no trânsito, instigar os participantes a perceber que culparam alguém quando foram incompetentes, possibilitar a análise da facilidade com que a responsabilidade pelo fracasso das próprias ações é transferida a outros e contornar manifestações que tumultuem as atividades ou desviem o foco do trânsito.

O desempenho da equipe executora do DSV, no jogo da sobrevivência e na discussão sobre trânsito, requer desenvolvimento adequado dos facilitadores. A etapa introdutória da formação do facilitador deve situar o contexto que envolve o PTT pelo estudo teórico da proposta e da dinâmica de grupo metaphor. O facilitador deve familiarizar-se com a proposta do projeto, com o arcabouço teórico do desenvolvimento de grupos, com o método de facilitação do jogo da sobrevivência, com o método de facilitação do debate sobre trânsito e temas centrais e com o procedimento de conclusão da atividade. Entretanto, o desempenho eficiente do facilitador não é exclusivamente assegurado pelo conhecimento do substrato teórico e dos procedimentos do PTT; suas habilidades demandam a participação ativa no processo de desenvolvimento grupal, por meio de articulação teórico-prática que envolva o desempenho de papéis específicos no jogo e de facilitação da discussão sobre trânsito – no treinamento do NPT ou nos eventos DSV.

Após a etapa introdutória, baseada no referencial teórico do PTT, o aluno aspirante a facilitador integra a equipe e adentra gradativamente na capacitação vivencial, cujo primeiro estágio é observar o desenvolvimento grupal e a conduta da equipe executora nos eventos DSV. O aluno deve exercitar a capacidade de analisar as transições nos grupos segundo os indicadores do jogo da sobrevivência. A etapa seguinte preconiza o treino de desempenho em papéis específicos da equipe executora, cuja hierarquia é programada de acordo com a complexidade de cada função: distribuição de fichas aos participantes com agilidade para não procrastinar ou interromper o fluxo das rodadas do jogo, registro de verbalizações dos participantes, número de sobreviventes e de mortos ao final das rodadas, desempenho da função de mãe-natureza, facilitação do jogo e controle do tempo apropriado para iniciar e finalizar cada rodada, facilitação da discussão e coordenação da equipe executora. O processo em que o aluno aspirante a facilitador agrega conhecimentos e aplica-os na prática culmina no desenvolvimento de suas atitudes: crença no potencial de transformação e de sucesso dos grupos, impassividade ao não auxiliar os grupos nas tarefas como efetiva facilitação do processo de desenvolvimento e valorização de demandas dos grupos para o rumo da discussão.

Considerações finais

Este estudo reitera e atualiza a proposta do PTT de resistência ao individualismo pela coletividade, enfatizando a atuação e o desenvovimento do facilitador. A intervenção do PTT mune participantes e facilitadores de elementos que potencializam e subsidiam reflexões sobre as transformações promovidas no comportamento durante o jogo, proporcionando a vivência de um problema concreto que é relativizado em forma de metáfora, e impulsiona todos os envolvidos a um processo irreversível de transformação.

A partir da sistematização realizada neste estudo, recomenda-se a ampliação do ganho social do PTT através da incorporação e da institucionalização do projeto por esferas profissionais públicas. A aplicação desse modelo de intervenção deve assumir novos públicos-alvo: motoristas profissionais, gestores do sistema de transportes e alunos secundaristas. O PTT possui potencial para enfrentar novos desafios, e pode diversificar ferramentas para flexibilizar sua abrangência. Não existem limites para a criatividade dos facilitadores vindouros na elaboração e na aplicação de novos instrumentos: jogos, recursos audiovisuais, métodos de discussão e avaliação de resultados.

Recebido 27/12/2010

Aprovado 27/6/2012.

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  • Endereço para correspondência
    Diogo Picchioni Soares
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    Doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina, professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Paraná – Brasil. E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Dez 2012
    • Data do Fascículo
      2012

    Histórico

    • Recebido
      27 Dez 2010
    • Aceito
      27 Jun 2012
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