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Adoecimento psíquico de trabalhadores de unidades de terapia intensiva

Mental illness of workers in intensive care units

Resumos

As unidades de terapia intensiva (UTIs) podem ser consideradas um dos setores mais agressivos e sobrecarregados em hospitais. Esta pesquisa teve como objetivo compreender aspectos da organização do trabalho que podem estar associados ao adoecimento psíquico em trabalhadores da saúde de UTIs e às estratégias defensivas utilizadas, com a utilização do método misto. A partir de um estudo quantitativo com profissionais da área de enfermagem que atuam nesse setor, recrutados de dois hospitais privados da região metropolitana de Porto Alegre/RS, foram entrevistados oito sujeitos com adoecimento mental (depressão e/ou burnout). Nos resultados, destacaram-se: pouco reconhecimento e apoio no trabalho, sobrecarga de trabalho, trabalhar no turno noturno (prejuízo no sono), dificuldades de relacionamento com chefia, crise ética entre seus valores e questões profissionais, rigidez institucional e dificuldade de lidar com a morte. Nas estratégias utilizadas, apareceram a negação e a banalização do sofrimento, a racionalização e a fuga. Salienta-se a necessidade de uma escuta qualificada e de apoio institucional para esse profissional, que se encontra em sofrimento psíquico extremo.

Unidades de terapia intensiva; Profissionais da saúde; Doenças ocupacionais; Psicopatologia; Trabalho; Saúde ocupacional.


Las unidades de terapia intensiva (Utis) pueden ser consideradas uno de los sectores más agresivos y sobrecargados en hospitales. Esta investigación tuvo como objetivo comprender aspectos de la organización del trabajo que pueden estar asociados al enfermamiento psíquico en trabajadores de la salud de Utis y a las estrategias defensivas utilizadas, con la utilización del método mixto. Desde un estudio cuantitativo con profesionales del área de enfermería que actúan en ese sector, reclutados de dos hospitales privados de la región metropolitana de Porto Alegre/RS, fueron entrevistados ocho sujetos con enfermamiento mental (depresión y/o burnout). En los resultados, se destacaron: poco reconocimiento y apoyo en el trabajo, sobrecarga de trabajo, trabajar en el turno nocturno (perjuicio en el sueño), dificultades de relación con los jefes, crisis ética entre sus valores y cuestiones profesionales, rigidez institucional y dificultad de manejar la muerte. En las estrategias utilizadas, aparecieron la negación y la banalización del sufrimiento, la racionalización y la fuga. Se destaca la necesidad de una escucha calificada y de apoyo institucional para ese profesional, que se encuentra en sufrimiento psíquico extremo.

Unidades de terapia intensiva; Profesionales de la salud; Enfermedades ocupacionales; Psicopatología; Salud ocupacional


The intensive care units (ICUs) can be considered as one of the most aggressive and overloaded sectors in hospitals. This research had the objective of understanding the aspects of work organization which may be associated to the psychic illness in ICUs (intensive care units) health employees and their defensive strategies. The mixed method was used. From a quantitative study with nursing professionals who work in this sector in two private hospitals in the metropolitan area of Porto Alegre - RS, eight subjects with mental sickness (depression or burnout) were interviewed. In the results, certain aspects can be highlighted: few acknowledgement and support at work, work overload, working in the night shift (lack of sleep), relationship difficulties with the management, ethical issues between values and professional aspects, institutional rigidities, and difficulty in dealing with death. In the strategies used, denial and banalization of suffering, rationalization and escape can be stressed. We point out the necessity of qualified assistance and institutional support for this professional, who is in deep psychic suffering.

Intensive care units; Health professionals; Occupational disease; Psychopathology; Work; Occupational health


ARTIGOS

Adoecimento psíquico de trabalhadores de unidades de terapia intensiva

Mental illness of workers in intensive care units

Enfermamiento psíquico de trabajadores de unidades de terapia intensiva

Janine Kieling Monteiro* * Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e docente da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo – RS – Brasil. E-mail: janinekm@unisinos.br ; Artur Luís Linck de Oliveira** ** Discente do curso de Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo – RS – Brasil. E-mail: arturllo@gmail.com ; Camilla Spara Ribeiro*** *** Formada em Psicologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo – RS – Brasil. E-mail: milla_spara@hotmail.com ; Gabrielle Hennig Grisa**** **** Discente do curso de Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo – RS – Brasil. E-mail: gabrielleghg@gmail.com ; Nívia de Agostini***** ***** Discente do curso de Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo – RS – Brasil. E-mail: nivia.agostini@gmail.com ;

Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Janine Kieling Monteiro Rua Carlos Von Koseritz 700 apt 402, Bairro São João. CEP: 90540-030. Porto Alegre, RS. E-mail: janinekm@unisinos.br

RESUMO

As unidades de terapia intensiva (UTIs) podem ser consideradas um dos setores mais agressivos e sobrecarregados em hospitais. Esta pesquisa teve como objetivo compreender aspectos da organização do trabalho que podem estar associados ao adoecimento psíquico em trabalhadores da saúde de UTIs e às estratégias defensivas utilizadas, com a utilização do método misto. A partir de um estudo quantitativo com profissionais da área de enfermagem que atuam nesse setor, recrutados de dois hospitais privados da região metropolitana de Porto Alegre/RS, foram entrevistados oito sujeitos com adoecimento mental (depressão e/ou burnout). Nos resultados, destacaram-se: pouco reconhecimento e apoio no trabalho, sobrecarga de trabalho, trabalhar no turno noturno (prejuízo no sono), dificuldades de relacionamento com chefia, crise ética entre seus valores e questões profissionais, rigidez institucional e dificuldade de lidar com a morte. Nas estratégias utilizadas, apareceram a negação e a banalização do sofrimento, a racionalização e a fuga. Salienta-se a necessidade de uma escuta qualificada e de apoio institucional para esse profissional, que se encontra em sofrimento psíquico extremo.

Palavras-chave: Unidades de terapia intensiva, Profissionais da saúde, Doenças ocupacionais, Psicopatologia, Trabalho, Saúde ocupacional.

ABSTRACT

The intensive care units (ICUs) can be considered as one of the most aggressive and overloaded sectors in hospitals. This research had the objective of understanding the aspects of work organization which may be associated to the psychic illness in ICUs (intensive care units) health employees and their defensive strategies. The mixed method was used. From a quantitative study with nursing professionals who work in this sector in two private hospitals in the metropolitan area of Porto Alegre – RS, eight subjects with mental sickness (depression or burnout) were interviewed. In the results, certain aspects can be highlighted: few acknowledgement and support at work, work overload, working in the night shift (lack of sleep), relationship difficulties with the management, ethical issues between values and professional aspects, institutional rigidities, and difficulty in dealing with death. In the strategies used, denial and banalization of suffering, rationalization and escape can be stressed. We point out the necessity of qualified assistance and institutional support for this professional, who is in deep psychic suffering.

Keywords: Intensive care units, Health professionals, Occupational disease, Psychopathology, Work, Occupational health.

RESUMEN

Las unidades de terapia intensiva (Utis) pueden ser consideradas uno de los sectores más agresivos y sobrecargados en hospitales. Esta investigación tuvo como objetivo comprender aspectos de la organización del trabajo que pueden estar asociados al enfermamiento psíquico en trabajadores de la salud de Utis y a las estrategias defensivas utilizadas, con la utilización del método mixto. Desde un estudio cuantitativo con profesionales del área de enfermería que actúan en ese sector, reclutados de dos hospitales privados de la región metropolitana de Porto Alegre/RS, fueron entrevistados ocho sujetos con enfermamiento mental (depresión y/o burnout). En los resultados, se destacaron: poco reconocimiento y apoyo en el trabajo, sobrecarga de trabajo, trabajar en el turno nocturno (perjuicio en el sueño), dificultades de relación con los jefes, crisis ética entre sus valores y cuestiones profesionales, rigidez institucional y dificultad de manejar la muerte. En las estrategias utilizadas, aparecieron la negación y la banalización del sufrimiento, la racionalización y la fuga. Se destaca la necesidad de una escucha calificada y de apoyo institucional para ese profesional, que se encuentra en sufrimiento psíquico extremo.

Palavras clave: Unidades de terapia intensiva, Profesionales de la salud, Enfermedades ocupacionales, Psicopatología, Salud ocupacional.

O trabalho ocupa um status central no universo da práxis humana da sociedade contemporânea. No Brasil, o adoecimento mental relacionado ao trabalho tem sido apontado como um fator de grande preocupação. No contexto hospitalar brasileiro, vários estudos (Elias & Navarro, 2006; Teixeira & Gorini, 2008) têm focalizado o aumento da violência, as péssimas condições de trabalho e os problemas na organização do trabalho como questões que têm contribuído para o aumento do adoecimento dos trabalhadores da saúde. O hospital por si só configura-se como um ambiente insalubre, árduo e de risco ocupacional para os que ali trabalham, por apresentar aspectos como: contato com materiais de alta periculosidade, grande volume de trabalho e presença de situações afetuosas e extremas, que causam elevado nível de tensão. O funcionamento total da organização também exige o regime de turnos e plantões, permitindo os duplos empregos e as longas jornadas de trabalho, que são práticas comuns desses profissionais da saúde, como forma de complementar os ganhos e que contribuem para a excessiva carga de trabalho associada a esse contexto. Mealer, Burnham, Goode, Rothbaum e Moss (2009) destacam ainda que o estresse no trabalho da enfermagem é mais intenso em unidades de terapia intensiva (UTI).

De acordo com o Ministério da Saúde do Brasil (2005), a UTI é um local de grande especialização e tecnologia, de espaço laboral destinado aos profissionais da saúde que têm grande conhecimento, habilidades e destreza para a realização de procedimentos. Nesse sentido, subentende-se que os trabalhadores que atuam nessas unidades precisam de muito preparo técnico, pois, invariavelmente, podem defrontar-se com situações cujas decisões definem o limite entre a vida ou a morte das pessoas.

A UTI foi criada a partir da necessidade de aperfeiçoamento material e humano para o atendimento a pacientes em estado crítico, e pode ser apontada como um dos ambientes mais agressivos, exaustivos e sobrecarregados do hospital; caracteriza-se como ambiente tenso, local onde a morte é uma constante, onde os sentidos estão sempre aguçados e alertas para qualquer situação de urgência, onde há ruídos excessivos, grande fluxo de profissionais, dificuldade nas relações intra e interprofissionais, pouca comunicação e muitos aparelhos, ansiedade dos familiares, rotinas rígidas e inflexíveis e rapidez dos atendimentos que influenciam no cuidado dos trabalhadores da saúde (Elias & Navarro, 2006; Nascimento & Trentini, 2004; Sanches, Carvalho, & Silva, 2007; Santos, Oliveira, & Moreira, 2006).

Os profissionais que trabalham em ambientes considerados críticos, como as unidades de tratamento intensivo (UTI), apresentam alta predisposição para serem acometidos pelo sofrimento psíquico, tendo em vista a complexidade das ações ali realizadas, o estresse gerado durante a sua realização e a ocorrência de morte de pacientes (Gomes, Lunardi, Wilson & Erdmann, 2006).

Para identificar estudos mais recentes sobre o tema que pudessem subsidiar o presente artigo, foi realizada uma revisão bibliográfica nas redes de bases de dados da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e da EBSCO Publising, utilizando os seguintes descritores: trabalhador da saúde, profissional de saúde, unidade de terapia intensiva, centro de terapia intensiva e psicopatologia, em português, e health personnel, intensive care units e psychopathology, em inglês. A BVS é uma rede de fontes de informação científico-técnica em saúde dos países da América Latina e Caribe, e a EBSCO Publising é o principal agregador de base de dados do mundo, que proporciona mais de 200 bases de dados de pesquisa em texto completo e em resumo. A busca foi detalhada, e limitou-se a artigos que tenham sido elaborados de 2006 a 2011. Vinte e duas produções científicas – nas línguas portuguesa e inglesa – foram identificadas, após uma seleção realizada por meio da leitura dos resumos.

Os estudos encontrados apresentam alguns fatores relacionados ao sofrimento psíquico no trabalho em UTI: o rígido controle do tempo (trabalho corrido sem muitas pausas), a forma como o setor é organizado, a falta de materiais, de equipamentos adequados e de pessoal, o excesso de ruídos na unidade, os conflitos no relacionamento entre os membros da equipe, o estado crítico de saúde do paciente, o sofrimento moral, principalmente quando envolve pacientes em estado terminal, a dupla jornada feminina de trabalho (em casa e na organização), o trabalho nos finais de semana e feriados, a utilização inadequada dos equipamentos de proteção individual (EPIs) e questões relacionadas com as famílias dos pacientes (Beumer, 2008; Campos & David, 2011; Gomes, Lunardi, Wilson, & Erdmann, 2006; Hays, All, Mannahan, Cuaderes, & Wallace, 2006; Leitão, Fernandes, & Ramos, 2008; Mc Clendon & Buckner, 2007; Santos, Oliveira, & Moreira, 2006). Algumas das pesquisas localizadas investigaram fatores de estresse ocupacional ou sintomas relacionados à síndrome de burnout em trabalhadores de UTI, sugerindo que o desgaste físico e emocional provocado pelo trabalho, a falta de recursos humanos e de apoio emocional podem desencadear esses quadros, e que o reconhecimento no trabalho, a cooperação entre os membros da equipe, o respeito profissional e o apoio psicológico podem ser elementos de proteção contra o adoecimento (Afecto & Teixeira, 2009; Coronetti, Nascimento, Barra, & Martins, 2000; Santos, Oliveira, & Moreira, 2006).

A síndrome de burnout tem sido definida (Maslach & Jackson, 1981) como um fenômeno multidimensional associado ao estresse crônico no trabalho que atinge os trabalhadores que lidam diretamente com pessoas. Já existem estudos no Brasil que indicam uma associação de tal síndrome entre profissionais de saúde que prestam assistência e que são responsáveis pelo cuidado de outros (Amorim, 2002; Benevides-Pereira, 2002).

Um estudo de revisão da literatura sobre burnout (Trigo, Teng, & Hallak, 2007) em base de dados nacionais e internacionais, entre os anos 1985 e 2006, indicou que essa síndrome apresenta frequentemente depressão associada, como comorbidade. Esta é considerada na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, CID – 10 (1993), um transtorno do humor, em que a perturbação fundamental é uma alteração do humor ou do afeto, perda de interesse e de prazer, e em que a energia é reduzida, o que leva a um cansaço aumentado e a atividade diminuída. Outros sintomas comuns nessa patologia são: concentração e atenção reduzidas, arrefecimento na autoestima e na autoconfiança, ideias de culpa e de inutilidade, visões desoladas e pessimistas do futuro, ideias, atos autolesivos ou suicídio, sono perturbado e apetite diminuído.

Uma revisão das pesquisas publicadas em bases nacionais e internacionais, entre os anos 1995 e 2005 acerca da temática depressão em profissionais de enfermagem (Manetti & Marziale, 2007) indicou que os estudos analisados sugerem índices de maior prevalência de depressão nesses profissionais do que na população em geral. Entre os fatores internos ao ambiente de trabalho desencadeantes desse quadro, encontram-se: os relacionados à organização do trabalho (setor de atuação, turnos de trabalho, números de funcionários, reestruturações organizacionais, sobrecarga de trabalho, problemas na escala, conflito de interesses, insegurança no trabalho), as relações sociais de trabalho (o apoio social e o relacionamento interpessoal com colegas e supervisores) e as condições de trabalho nas instituições hospitalares.

Tendo em vista os argumentos apresentados acima, considera-se relevante que mais estudos que abordem aspectos relacionados ao adoecimento mental sejam desenvolvidos no âmbito da UTI. Dessa forma, esta pesquisa teve como objetivos compreender os aspectos relacionados à organização do trabalho que possam estar contribuindo para o desenvolvimento de psicopatologias (depressão e/ou burnout) no trabalhador de saúde em unidade de terapia intensiva bem como descrever as estratégias defensivas utilizadas pelos trabalhadores para lidar com as dificuldades vivenciadas nesse contexto de trabalho.

Método

A pesquisa desenvolvida utilizou um delineamento de método misto com procedimento sequencial, em que, inicialmente, foi desenvolvido um estudo quantitativo descritivo, com o objetivo de identificar os trabalhadores mais adoecidos, e, posteriormente, um estudo qualitativo descritivo, com o objetivo de explorar e de aprofundar detalhes a respeito de fatores que poderiam estar relacionados ao adoecimento mental desses profissionais.

Participantes

Participaram deste estudo oito trabalhadores da saúde (quatro enfermeiros e quatro técnicos de enfermagem) de unidades de terapia intensiva. Como este estudo faz parte de uma pesquisa mais ampla, os trabalhadores foram selecionados a partir dos resultados obtidos na primeira parte dessa pesquisa. Os participantes que apresentaram maiores escores de depressão e da síndrome de burnout foram entrevistados, observando-se o critério de saturação. Os dados descritivos dos participantes podem ser observados na Tabela 1.

Podemos ressaltar, de acordo com a Tabela 1, que seis dos oito participantes estiveram afastados por motivo de saúde no último ano, sendo que um dos trabalhadores que não havia se afastado mencionou que havia pedido afastamento a sua chefia, mas que não havia recebido autorização, porque foi alegado que trabalhava há pouco tempo na instituição. O outro participante não afastado por atestado optou, logo após a coleta de dados, pelo abandono da profissão de enfermagem.

Instrumentos e procedimentos de coleta de dados

Foi realizada uma entrevista individual que pretendeu extrair visões e opiniões dos participantes sobre questões de trabalho. Nela foi utilizado um protocolo para registro das informações e dos dados sociodemográficos dos sujeitos. Todas as entrevistas foram feitas por dois pesquisadores, nas quais um deles fazia o registro das informações e, logo após a sua ocorrência, o relato era complementado com as observações do outro, para evitar a perda de dados importantes.

Partindo-se de um roteiro semiestruturado, buscou-se priorizar a escuta dos trabalhadores. No roteiro, foram focalizadas questões relacionadas aos motivos que podem ter causado os sintomas/ sofrimento, a caracterização da organização e do contexto de trabalho (aspectos positivos e dificuldades encontradas) e modos de enfrentamento das dificuldades encontradas no trabalho.

Para avaliar a sintomatologia de depressão, foi utilizado o Inventário Beck de Depressão (BDI), que consiste em uma escala de autorrelato com 21 itens, de múltipla escolha, apresentados na forma de afirmativas, e que se destinam a medir a severidade de depressão em adultos e adolescentes. O instrumento, de acordo com Cunha (2001), mostrou características satisfatórias de consistência interna, validade discriminante, validade de critério, validade concorrente e fidedignidade teste-reteste.

O instrumento usado para avaliar a síndrome de burnout foi o Maslasch Burnout Inventory (MBI). O inventário é autoaplicado e totaliza 22 itens, e possui tradução para a língua portuguesa validada por Benevides-Pereira (2001), a qual obteve índices satisfatórios de consistência interna.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (número da aprovação: 09/110), e foram observadas todas as questões éticas inerentes à pesquisa com seres humanos.

Os participantes foram previamente orientados, na primeira parte da pesquisa, a deixarem alguma forma de contato no questionário, pois foram avisados de que poderiam ser selecionados para uma entrevista posterior, e, por meio dessas informações, foram acessados aqueles que obtiveram os maiores escores no BDI e no MBI. Foram marcados dia e hora, por contato telefônico, conforme disponibilidade dentro da carga horária de trabalho dos participantes. As entrevistas foram realizadas em local reservado no local de trabalho e foi utilizado o TCLE no início, explicando-se os objetivos desta segunda parte da pesquisa e os cuidados éticos que seriam utilizados.

Análise dos dados

Os dados coletados por meio das entrevistas foram integrados e analisados pelo método de análise de conteúdo (Bardin, 1994), que consiste na descrição analítica do conteúdo manifesto e na sua posterior interpretação; compreende três fases: a pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos resultados. O material foi organizado utilizando-se categorias a priori, visando a contemplar os objetivos propostos neste estudo.

Os dados obtidos nos dois questionários utilizados – o BDI e o MBI – foram levantados e interpretados conforme as suas validações brasileiras (Cunha, 2001; Benevides-Pereira, 2001).

Resultados e discussão

Neste estudo, foi verificado que cinco trabalhadores possuíam nível de depressão moderado, de acordo com Cunha, e que a totalidade dos participantes preenchiam os critérios (Ramirez, Graham, Richards, Cull, & Gregory, 1996) para diagnóstico da síndrome de burnout. Segundo esses autores, o diagnóstico de burnout é definido quando se encontram altas pontuações nas dimensões de exaustão emocional e despersonalização e baixos escores em realização profissional (Tabela 2).

A organização do trabalho (OT) contém aspectos biopsicossociais que podem ser determinantes nas manifestações do processo saúde-doença dos trabalhadores. Entre esses aspectos, estão presentes: divisão, qualificação e condições de trabalho, aspectos afetivos e relacionais implicados no posto de trabalho ocupado, o grau de iniciativa e autonomia, o grau de ambiguidade sobre os resultados da tarefa, o status social da atividade e a possibilidade de cooperação e de comunicação. O sofrimento, que pode culminar com o adoecimento psíquico, surge quando não é possível a negociação entre o sujeito e a realidade imposta pela organização do trabalho (Dejours, 1988; Mendes, 2007), sobretudo em uma OT rígida, como é o caso da UTI. No que diz respeito aos fatores relacionados à OT que podem ter contribuído para o adoecimento mental nos trabalhadores investigados, encontramos:

Turno noturno

Podemos observar que grande parte dos participantes trabalha no turno noturno (realizando plantões de 12 horas), e esse foi um fator citado como causa de estresse, pois dificulta a quantidade e a qualidade do sono. – Acho que estou muito esgotada, porque trabalho muito no período da noite. Estou há doze anos trabalhando neste turno (S5); – O trabalho noturno prejudica o sono, durmo muito pouco – 4 horas; não consigo dormir à noite quando estou de folga (S1); – De manhã, fico com o meu filho. Só durmo à tarde, quando ele vai pra creche (S7).

Um estudo anterior com trabalhadores de UTI (Lai et al., 2008) também ressaltou a qualidade do sono como um dos elementos mais significativos associado à intenção de deixar o emprego. Além disso, Gomes, Lunardi, Wilson e Erdmann (2006) citam a dupla jornada feminina de trabalho e o trabalho no final de semana e feriados como fatores relacionados ao sofrimento psíquico.

Sobrecarga de trabalho

Houve a menção de que existem períodos de sobrecarga de trabalho, e, em alguns casos, essa sobrecarga é influenciada por fatores externos, como o inverno e à maior quantidade de pacientes internados. Em outros casos, isso ocorre devido ao quadro de pessoal reduzido ou em função de colegas que deixam de fazer o seu serviço e sobrecarregam a outros. A percepção do trabalhador de uma sobrecarga do trabalho configura-se quando as demandas de trabalho são maiores que os recursos materiais e humanos, originando uma situação de estresse laboral que acarreta o aparecimento de sintomas como fadiga, tensão, irritabilidade e ansiedade, o que pode culminar na redução do seu interesse e do desempenho no trabalho (Alvarez & Fernandez, 1991). –Estou trabalhando como uma máquina... Ficamos sufocadas pela quantidade de trabalho (S4); Excesso de trabalho (S5).

Dificuldade de relação entre colegas e chefia

Nos estudos que discutem os fatores estressantes em UTIs, as relações entre colegas e chefias geralmente emergem nas discussões dos resultados. Em uma pesquisa com enfermeiros que trabalham em uma unidade de terapia intensiva, Santos, Oliveira e Moreira (2006) salientaram que o relacionamento intra e intergrupal pode ser desencadeador de conflitos, pois, apesar de todos na equipe terem os mesmos objetivos, as perspectivas e os modos de ver o mundo são diferentes. As relações estabelecidas com outras profissões podem tornar-se complicadas caso não sejam bem administradas, como uma das profissionais entrevistadas nos relatou: – Não me dou tão bem com os colegas; às vezes eu falo e não sou compreendida, tenho certa dificuldade com os médicos. Obedeço ao que pedem, vou levando; tento ser igual com todo mundo, tento manter um clima bom (S6).

Os conflitos com chefia também apareceram nas falas dos enfermeiros: – Eu comecei a ver que ela (enfermeira-chefe) era ríspida, grosseira, tu tava falando com ela e ela virava as costas; ela começou a ter um comportamento estranho... (S7); – Chefias têm que atender melhor; algumas têm uma personalidade muito ríspida e têm um comportamento de ameaça e represália (S4). Gomes et al. afirmam que o estilo de chefia pode ser um dos fatores que interferem na saúde mental dos enfermeiros, e sugerem que “as chefias precisam estar abertas às queixas dos trabalhadores, em constante relação dialógica, de forma a intervir mais prontamente sobre os estressores gerados no trabalho, minimizando seu efeitos sobre a saúde individual e coletiva” (Gomes, Lunardi, Wilson, & Erdmann, 2006, p.98).

Pouco reconhecimento e apoio

Segundo Mendes (2007), o conceito de reconhecimento está atrelado à dinâmica que se estabelece entre o trabalhador, o seu engajamento na realização do trabalho e o reconhecimento da qualidade do seu trabalho pelo outro. Quando o trabalhador realiza uma tarefa, possui expectativas do quanto ele é capaz. A certeza dessa capacidade se dá pelo colega que reconhece socialmente seu feito, o que promove no indivíduo um sentimento de gratificação, ou por aqueles que ocupam uma posição hierárquica mais alta, o que representa reconhecimento de utilidade técnica. Se a dinâmica do reconhecimento não ocorrer, não é possível a transformação do sofrimento em prazer; nesse caso, o trabalhador não encontrará sentido no seu trabalho e, em consequência, poderá sofrer uma descompensação psíquica ou somática (Dejours & Abdoucheli, 1994). A falta de reconhecimento e o pouco respaldo por parte da chefia, mencionados nos relatos dos trabalhadores, evidenciam dificuldades na realização do trabalho, sentimentos de menos valia e desmotivação. – Me senti desvalorizada, como se eu fosse nada..., quando solicitei para ir para a tarde e eles negaram – eu precisava estar uma noite em casa para dormir. Para vir trabalhar, parece que tem que puxar com guindaste... (S2); – Ninguém aqui no hospital sabe como se trabalha dentro da UTI, ninguém nos olha (S4); – Estou estressada com a instituição, não tem um retorno pelo trabalho que faço, tanto financeiro como de reconhecimento (S4); – Quando acontece um erro, tem que avaliar aspectos, contexto e ambiente. (...) Também deveria haver acompanhamento de funcionários. Não é um lugar barbadinha para se trabalhar (S7).

Rigidez e questões institucionais

A instituição de trabalho é vista, por esses profissionais, como um local rígido e pouco flexível, no qual se evidenciam dificuldades em conciliar a rotina de trabalho com questões da vida pessoal, tais como escala de férias e folgas: – Dificuldades de organizar escalas de férias e de conseguir trocas com colegas (...), rigidez que gera estresse (S2); – Fiz muita hora extra, e, quando quis folgar, nenhuma podia ser nos dias que solicitava (S7).

Além das questões relacionadas ao funcionamento organizacional, há relatos de insatisfação e de falta de apoio referentes à relação estabelecida entre instituição e funcionário, que se mostra ineficiente em muitas ocasiões. – Estou insatisfeita/ decepcionada com o trabalho da instituição, e, às vezes, tenho menor interesse em atender. Estou como posso dizer... de ‘saco cheio!' Amo a minha profissão, mas tive desgosto pela instituição! (S4); – Hospital não se preocupa com funcionários. Não ajuda em nada o funcionário (S2); – Se forem fazer uma reclamação minha lá no SAC, eu vou ser advertida sem saber o porquê, se aquilo realmente foi verídico... o nosso lado não é visto (S8).

Outro fator mencionado foi a necessidade de um espaço físico destinado à equipe de enfermagem, seja para a realização de reuniões ou de troca de informações, seja para ser utilizado como local de descanso. – Não há um espaço reservado para falar e fazer contato com colegas de equipe. Às vezes, usamos a sala de dejetos, lixo, material descartável, para podermos conversar alguma coisa... Não tem espaço físico para fazer reunião, falta sala (S4).

Nesses relatos, ficam evidentes alguns aspectos que remetem à rigidez institucional, e estudos anteriores (Gomes et al., 2006; Santos, Oliveira, & Moreira, 2006) já mencionaram que o setor da UTI possui uma organização rígida, no sentido de ter atendimentos urgentes que requerem prontidão e disponibilidade imediata dos profissionais de saúde. Isso faz que esses profissionais, em alguns momentos, se sintam sobrecarregados; além disso, foi mencionado que recebem pouco apoio da instituição, o que poderia amenizar essa situação.

Dificuldade de lidar com familiares de pacientes

Além de o trabalho de UTI ser realizado em um contexto em que os pacientes correm risco de vida, de doença grave ou se encontram em estado terminal, ainda foi destacada a problemática de ter que lidar com os familiares dos pacientes. Os relatos aqui mencionados apareceram sobretudo nos trabalhadores de UTIs neonatal e pediátrica, sendo que, nessas unidades, os familiares podem permanecer mais tempo no local, o que dificulta, muitas vezes, as intervenções clínicas realizadas e constitui um fator de estresse, o que já foi destacado em outro estudo (Hays et al., 2006). – Todo dia tenho que explicar a mesma coisa, os familiares sugam muito, são difíceis de lidar; é estressante (S6); – Muitas vezes os familiares questionam procedimentos técnicos por não terem conhecimento de que o realizado é o melhor para o paciente, é necessário explicar isso (S2); – Os familiares perguntam muito e acabam culpando os enfermeiros pela situação dos seus (S6).

Convivência com a morte iminente

Com relação a este fator, Pitta (1990) destaca que conviver cotidianamente com a dor, com o sofrimento e com a morte evoca sensações dolorosas e desagradáveis nos trabalhadores da saúde que, muitas vezes, tendem a ser desconsideradas ou silenciadas por eles mesmos. Alguns relatos trazidos pelos participantes revelam que a iminência ou a ocorrência da morte mobiliza muitos sentimentos negativos, como: dor, tristeza, impotência e comoção, que são potencializados quando o paciente é mais jovem ou quando a convivência com este e com os familiares foi maior. –Conviver com a morte diariamente é pesado; – Conviver com a morte não é mais possível para mim, me dói muito (S3); – Dificuldade de lidar com a morte, principalmente dos jovens, pois acabo projetando nos filhos, família (S1); – Sinto impotência diante da morte de pacientes (S1); – Quanto mais se sabe da história do paciente, mais se comove com a sua morte (S2).

Além disso, os profissionais citam a observância de sinais precedentes à morte dos pacientes como um agente causador de mobilização e de perturbação. – Corpo dá sinais de que o paciente está morrendo. Tecnicamente, não tem mais o que fazer, isto pode trazer sofrimento ao profissional (S1); – Pacientes dão sinais no corpo quando estão morrendo, e essa percepção me abalou profundamente (S3).

Crise ética entre seus valores e questões profissionais

Neste quesito, foi mencionada a existência de um dilema entre os valores morais e os éticos que a profissão apregoa e um sofrimento moral quando o médico deixa o paciente vivo artificialmente, somente para ter um retorno financeiro para ele e para o hospital. Crise entre ser mais técnico ou mais humano: – O trabalho da UTI me faz sofrer (S3); – A escola de enfermagem proíbe a gente de chorar, somos forçados a ser frios (S3); – Estou insatisfeita, decepcionada com o trabalho da instituição e, às vezes, tenho menor interesse em atender (S4); Chega em casa e fica pensando e falando nos problemas e intercorrências que ocorreram no hospital, nas coisas que crê serem erradas e que no dia seguinte terá de voltar para lá (S7); – Sofro quando médico deixa paciente vivo artificialmente somente para ter um retorno financeiro para ele e para o hospital (S3). Outro estudo, desenvolvido por McClendon e Buckner (2007), citou a situação de sofrimento moral quando o paciente se encontra em estado terminal e a família e o médico optam por continuar com o tratamento agressivo, mesmo que isso não represente um benefício real para o paciente.

Estratégias defensivas

Diante do sofrimento, os trabalhadores buscam proteger-se por meio de estratégias defensivas individuais ou coletivas (Dejours, 1988). Essas estratégias os levam a modificar a percepção da realidade, e culminam com a minimização das pressões e das fontes de sofrimento que os fazem sofrer. Quando estas são utilizadas de forma reiterada, podem esgotar-se e tornar-se nocivas, e também podem gerar uma resistência à mudança e levar à alienação, mascarando uma ansiedade grave (Dejours & Abdoucheli, 1994; Mendes, 2007). Cabe destacar que, nos trabalhadores estudados, elas não foram eficazes o bastante para protegê-los do adoecimento psíquico. Podemos ressaltar várias estratégias utilizadas na tentativa de diminuir ou de suportar algumas adversidades enfrentadas no trabalho na UTI pelos participantes de nosso estudo, como a negação e a banalização do sofrimento: – Acabei me acostumando a lidar com a morte (S1); – Ver outras pessoas com problemas maiores, mais sofridos, ajuda a diminuir os meus (S1); – Quando perdemos um paciente, a gente acaba bloqueando e segue em frente, porque isso é uma coisa normal (S6). Outra estratégia bastante utilizada é a racionalização: – Quando acordo de manhã, fico pensando que, se o plantão não for bom, a culpa não é minha (S7); – Diante do paciente que está para morrer, não há o que fazer, só esperar (S3); necessário criar um escudo, não fazer um contato pessoal/ humano com os pacientes: – A escola de enfermagem proíbe a gente de chorar, somos forçados a ser frios (S3); – Passei a rezar em casa, no ônibus e até no trabalho. Pensei que alguma força teria que me ajudar a passar por isso, que teria de tirá-la de algum lugar (S7), e a fuga ou a desistência da profissão: – Estou entrando de costas, entro nos plantões da UTI querendo ir embora (S3); – Tenho vontade de ir para um lugar novo, respirar e descansar (S2); – Dormi o dia inteiro no último dia de folga que tinha, porque sabia que no dia seguinte teria de voltar para o ambiente de trabalho (S7); – Tenho vontade de desistir da área de UTI, pedir demissão (S3); – Estou procurando trabalho em outro lugar, já avisei que pretendo sair daqui do hospital: ‘há risco de eu sair' – eu disse para a minha chefa (S4).

A presença da negação, nesses profissionais, pode significar a resistência em reconhecer a própria dor e o sofrimento alheio quando a expressão desse afeto pode representar uma situação constrangedora. Mostrar-se humano pode ser mais difícil do que se esconder atrás do procedimento técnico, estratégia essa que já foi destacada em outros estudos com trabalhadores da saúde (Mendes, 2007, Monteiro, 2010); por outro lado, também pode ser o mote de uma crise ética, como observado em nosso estudo, o que acaba não tornando essa estratégia eficaz no amortecimento da dor. Já a racionalização pode representar a diminuição da angústia, do medo e da insegurança (Mendes & Araújo, 2011), nesse caso, de ter que lidar com altos padrões de exigência que envolvem alta complexidade e risco no trabalho prescrito e com situações limítrofes, como a morte (Santos, Oliveira, & Moreira, 2006).

Também foram notadas algumas tentativas individuais de enfrentar e de transformar as situações adversas, buscando o prazer e a fuga do sofrimento, nomeadas por Mendes, de estratégias de enfrentamento, que podem ser reconhecidas nos seguintes relatos: – Tento ficar calma, quieta; evitando ser agressiva. Procuro sempre estar atenta ao trabalho. Quando me sinto esgotada demais, troco de setor e com isso me sinto melhor (S5); – Leio livros de autoajuda (S4); – Faço terapia para ajudar a lidar com a morte de pacientes (S1); Foi em psicólogo quando teve uma crise de choro (S8); – Rezo para que Deus me dê muita saúde (S2); – Tento não pensar em coisas negativas para não atraí-las, tento ser positiva (S7); – Faço natação, tem que cansar o corpo (S4). Essas estratégias poderiam ser consideradas mais eficazes se fossem buscadas no coletivo de trabalho.

Observamos, em nosso estudo, que o adoecimento mental dos participantes também foi influenciado por questões pessoais que estavam enfrentando ou por características pessoais, que acabaram interferindo na sua forma de lidar com as questões vivenciadas no trabalho. – Estou com hérnia de disco, e acredito que o peso, tanto do trabalho quanto do filho de três anos, pode ter contribuído para isso (S6); – Deixo de fazer algumas coisas porque me sinto muito cansada, principalmente em relação à família (S5); – Estou passando por problema financeiro, o que me deixa mais cansada, irritada e acaba influenciando no trabalho (S4); – Buscar coisas certinhas, querer tudo perfeito, causa estresse e cansaço (S2); – Em casa, acabo ficando estressada, por isso venho trabalhar. Quando eu estava de atestado, não aguentava ficar em casa. Durmo pouco e me irrito com o barulho, acho que estou ficando velha. Sou muito agitada, isso atrapalha meu sono (S6). Os relatos reforçam a ideia de que o que acontece fora do trabalho influencia o desempenho profissional, e vice-versa.

Considerações finais

As unidades de terapia intensiva (UTIs) foram criadas para o atendimento a pacientes em estado crítico, e podem ser consideradas um dos ambientes mais agressivos e sobrecarregados do hospital. Em nossa pesquisa, podemos observar que essa OT pode trazer muitos prejuízos à saúde dos profissionais que atuam nesses setores. Nos resultados, destacaram-se como fatores que interferiram no adoecimento mental dos participantes: ter pouco reconhecimento e apoio no trabalho, sobrecarga de trabalho, trabalhar no turno noturno (prejuízo no sono), dificuldades de relacionamento com chefia, crise ética entre seus valores e questões profissionais, rigidez institucional e dificuldade de lidar com a morte. Cabe ressaltar que esses achados não podem ser considerados representativos da categoria, pois dizem respeito aos participantes desta pesquisa. Estudos anteriores (Gomes et al., 2006; Lai et al., 2008; Santos, Oliveira, & Moreira, 2006) já apontaram a depressão, a qualidade do sono, as dificuldades de relacionamento e o estado crítico do paciente como fatores estressores do trabalho em UTI.

Os mecanismos de defesa utilizados pelos trabalhadores estudados não foram eficazes para protegê-los de uma OT danosa, o que culminou com o adoecimento mental desses profissionais. Diante de tais questões estressantes, os participantes desenvolveram um quadro depressivo e/ou a síndrome de burnout, que são consideradas doenças relacionadas a profissionais de saúde (Amorim, 2002; Benevides-Pereira, 2002; Manetti & Marziale, 2007). Foram relatados outros sintomas ou interferências negativas na saúde, como: irritabilidade, choro, dor de cabeça e enxaqueca, azia, náuseas, taquicardia, respiração ofegante, dor lombar, dor nas pernas, cansaço físico e mental, dificuldade para alimentar-se, insônia, sonhar com o trabalho e não conseguir descansar, envelhecimento precoce e uso de medicação.

Já em relação aos sentimentos vivenciados, apareceram: frustração e impotência diante da morte de pacientes, desvalorização pessoal, exaustão física e emocional, angústia não expressa, insatisfação e decepção com o trabalho e com a instituição, desmotivação, fragilidade emocional e tristeza, medo ao chegar no ambiente laboral e vergonha. Percebe-se, nesses sentimentos, o sofrimento psíquico vivenciado por esses trabalhadores e a necessidade de intervenções psicossociais. Como já foi destacado, quase todos os profissionais pediram e foram afastados do trabalho no último ano, no entanto, isso não resolveu a sua situação, pois retornaram às atividades ainda adoecidos, ou seja, não adianta afastar o trabalhador do seu contexto de trabalho se nada for feito para auxiliar/ apoiar esse sujeito ou para modificar o contexto que ameaça o seu equilíbrio mental.

Uma questão que fica evidente é a necessidade de apoio que esses profissionais têm em virtude do seu trabalho e que, muitas vezes, não é levada em conta pela instituição, pois não possuem espaço no local para falar sobre isso. A necessidade de uma escuta profissional e qualificada também merece destaque. Cabe ao clínico acolher os relatos e os gestos como algo suportável, identificar os sintomas e desvelar as estratégias defensivas utilizadas para chegar à origem do trabalho real. À medida que se vai dando voz ao trabalhador, é possível relembrar a sua história para reescrevê-la. Buscar espaços individuais e/ou coletivos, por meio da escuta e da fala, dar um novo sentido ao trabalho vivido, pode possibilitar a re-humanização do sofrimento. Dar maior destaque à comunicação, promovendo discussões dos problemas encontrados entre trabalhadores e chefias e entre colegas, flexibilizar certas normas prescritas e procurar reorganizar alguns procedimentos, a partir de sugestões dos próprios trabalhadores, são exemplos de ações que podem ser utilizadas para ampliar o apoio e a escuta nas instituições (Mendes & Araújo, 2011). No caso dos profissionais estudados, salienta-se que uma escuta qualificada e o apoio institucional poderiam ter evitado o afastamento e o adoecimento mental no trabalho. Um dos participantes (S3) chegou ao extremo de desistir da profissão, logo após a realização da pesquisa, e deu o seguinte depoimento:

Eu optei por sair da área da saúde por um período, pois eu já estava no meu limite e felizmente surgiu uma oportunidade em outra área, e hoje ainda sinto as sequelas de um período em que sofri muito. Minha curiosidade era também saber se sou o único com este sentimento em relação à enfermagem ou se têm outros profissionais que se expressam desta forma.

Considera-se necessário que mais estudos sejam realizados para o entendimento da relação saúde/adoecimento mental e trabalho em contextos hospitalares, que enfoque tanto os adoecidos como aqueles que conseguem manter-se saudáveis, em um ambiente que oferece tantos riscos à saúde.

Recebido 30/11/2011

1ª Reformulação 18/12/2012

Aprovado 23/01/2013

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    Janine Kieling Monteiro
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      2013

    Histórico

    • Recebido
      30 Nov 2011
    • Aceito
      23 Jan 2013
    • Revisado
      18 Dez 2012
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