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Representando as práticas e praticando as representações nos CRAS de Sergipe

Representing the practices and practicing representations in the CRAS of Sergipe

Representando las prácticas y practicando las representaciones en los CRAS de Sergipe

Resumos

Este trabalho analisa as relações entre representações sociais e práticas sociais, enfocando a atividade profissional do psicólogo em um contexto de atuação específico e de inserção recente, os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS). Investigamos as representações sociais que os usuários têm dos psicólogos e suas relações com as práticas desses profissionais nos CRAS de Sergipe. Para tanto, foram realizados dois estudos: um com 27 psicólogos que atuam em CRAS e outro com 20 usuários desse serviço. Os resultados revelaram, no primeiro estudo, a existência de uma dissociação entre as práticas declaradas pelos profissionais e a percepção das práticas de outros psicólogos. No segundo estudo, foi possível evidenciar que a representação social do psicólogo ainda está mais vinculada à atuação na área clínica, que tem como prática fundamental a conversa e o conselho. Tais representações apresentam relação tanto com a percepção dos usuários sobre as práticas dos psicólogos como com a prática real adotada pelos psicólogos no CRAS.

Psicologia; Identidade profissional; Percepção de papel; Representação social


This work analyses the relationship between social representations and social practices, with a focus on the psychologist's professional activity in a specific and recent context: that of the Centros de Referência de Assistência Social - CRAS (Social Assistance Reference Centres). We investigate the social representations psychologists users have towards psychologists and their relationship with the practices of these professionals in Sergipe's CRASs. In order to accomplish this, two studies were carried out: one with 27 psychologists working in the CRASs; and another with 20 users of this service. The results revealed, in the first study, dissociation between what the professionals declared their practices to be and the perception of such practices from other psychologists' perspectives. In the second study, it was possible to demonstrate that the representation of psychology is still associated to the psychologist's role in the clinical area, having conversation and counsel as their fundamental practices. Such representations are related to both the user perceptions of the psychologists' practices as well as with the real practices adopted by the CRAS psychologists.

Psychology; Professional identity; Role perception; Social representation


Este trabajo analiza las relaciones entre representaciones sociales y prácticas sociales, enfocando la actividad profesional del psicólogo en un contexto de actuación específica y de inserción reciente, los Centros de Referencia de Asistencia Social (CRAS). Investigamos las representaciones sociales que los usuarios tienen de los psicólogos y sus relaciones con las prácticas de esos profesionales en los CRAS de Sergipe. Para eso, se realizaron dos estudios: uno con 27 psicólogos que actúan en CRAS y otro con 20 usuarios de ese servicio. Los resultados revelaron, en el primer estudio, la existencia de una disociación entre las prácticas declaradas por los profesionales y las percepciones de las prácticas de otros psicólogos. En el segundo estudio, fue posible evidenciar que la representación social del psicólogo aún está más vinculada a la actuación en el área clínica, que tiene como práctica fundamental la conversación y el consejo. Tales representaciones presentan relación tanto con las percepciones de los usuarios sobre las prácticas de los psicólogos como con la práctica real adoptada por los psicólogos en el CRAS.

Psicología; Identidad profesional; Percepción del rol; Representacione sociale


ARTIGOS

Representando as práticas e praticando as representações nos CRAS de Sergipe

Representing the practices and practicing representations in the CRAS of Sergipe

Representando las prácticas y practicando las representaciones en los CRAS de Sergipe

Marcela Flores Cardoso Sobral* * Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão – SE – Brasil. E-mail: marcelaflores@ig.com.br ; Marcus Eugênio Oliveira Lima** ** Doutor em Psicologia Social (ISCTE – PT) e docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão – SE – Brasil. E-mail: marcuseolima@gmail.com

Universidade Federal de Sergipe

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Marcela Flores Cardoso Sobral Rua Heriberto Rezende Gois, 581, ap. 603, Edifício Dulce Vasconcelos, Coroa do Meio. CEP: 49035-380. Aracaju, SE. E-mail: marcelaflores@ig.com.br

RESUMO

Este trabalho analisa as relações entre representações sociais e práticas sociais, enfocando a atividade profissional do psicólogo em um contexto de atuação específico e de inserção recente, os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS). Investigamos as representações sociais que os usuários têm dos psicólogos e suas relações com as práticas desses profissionais nos CRAS de Sergipe. Para tanto, foram realizados dois estudos: um com 27 psicólogos que atuam em CRAS e outro com 20 usuários desse serviço. Os resultados revelaram, no primeiro estudo, a existência de uma dissociação entre as práticas declaradas pelos profissionais e a percepção das práticas de outros psicólogos. No segundo estudo, foi possível evidenciar que a representação social do psicólogo ainda está mais vinculada à atuação na área clínica, que tem como prática fundamental a conversa e o conselho. Tais representações apresentam relação tanto com a percepção dos usuários sobre as práticas dos psicólogos como com a prática real adotada pelos psicólogos no CRAS.

Palavras-chave: Psicologia, Identidade profissional, Percepção de papel, Representação social.

ABSTRACT

This work analyses the relationship between social representations and social practices, with a focus on the psychologist's professional activity in a specific and recent context: that of the Centros de Referência de Assistência Social – CRAS (Social Assistance Reference Centres). We investigate the social representations psychologists users have towards psychologists and their relationship with the practices of these professionals in Sergipe's CRASs. In order to accomplish this, two studies were carried out: one with 27 psychologists working in the CRASs; and another with 20 users of this service. The results revealed, in the first study, dissociation between what the professionals declared their practices to be and the perception of such practices from other psychologists' perspectives. In the second study, it was possible to demonstrate that the representation of psychology is still associated to the psychologist's role in the clinical area, having conversation and counsel as their fundamental practices. Such representations are related to both the user perceptions of the psychologists' practices as well as with the real practices adopted by the CRAS psychologists.

Keywords: Psychology. Professional identity, Role perception, Social representation.

RESUMEN

Este trabajo analiza las relaciones entre representaciones sociales y prácticas sociales, enfocando la actividad profesional del psicólogo en un contexto de actuación específica y de inserción reciente, los Centros de Referencia de Asistencia Social (CRAS). Investigamos las representaciones sociales que los usuarios tienen de los psicólogos y sus relaciones con las prácticas de esos profesionales en los CRAS de Sergipe. Para eso, se realizaron dos estudios: uno con 27 psicólogos que actúan en CRAS y otro con 20 usuarios de ese servicio. Los resultados revelaron, en el primer estudio, la existencia de una disociación entre las prácticas declaradas por los profesionales y las percepciones de las prácticas de otros psicólogos. En el segundo estudio, fue posible evidenciar que la representación social del psicólogo aún está más vinculada a la actuación en el área clínica, que tiene como práctica fundamental la conversación y el consejo. Tales representaciones presentan relación tanto con las percepciones de los usuarios sobre las prácticas de los psicólogos como con la práctica real adoptada por los psicólogos en el CRAS.

Palavras clave: Psicología, Identidad profesional, Percepción del rol, Representacione sociale.

O quadro de pobreza, miséria e exclusão social no Brasil deve produzir permanente preocupação, e obriga-nos a refletir sobre suas influências na sociedade e na atuação dos psicólogos. A crescente inserção dos profissionais de Psicologia nas políticas públicas e mais especificamente em políticas de assistência social, através dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), faz levantar questionamentos acerca da preparação desses profissionais para lidar com a complexidade do fenômeno da vulnerabilidade social.

A recente conquista desse espaço de atuação profissional no Sistema Único da Assistência Social tem demandado um aparato teórico e metodológico cuja especificidade representa uma novidade para a prática do psicólogo que ainda não se encontra suficientemente delineada (Botarelli, 2008). Esse novo fazer cotidiano dos profissionais de Psicologia incita desafios, tendo em vista a incorporação da pobreza e da assistência à sua atuação, e busca respostas para as novas demandas do contexto social.

O psicólogo inseriu-se no corpo técnico do CRAS com a perspectiva de intervir nos processos de sofrimento instalados na comunidade e de conectar as necessidades dos sujeitos com ações de desnaturalização da violação de direitos em uma perspectiva de atuação preventiva (Botarelli, 2008). Atuar, porém, em uma perspectiva preventiva não tem sido o foco tradicional de uma Psicologia que sofreu, desde sua regulamentação, influências do modelo biomédico, que adota uma perspectiva de atuação mais curativa e voltada para uma prática clínica (Andrade, 2009). As mudanças nas demandas do psicólogo e as urgências para atuar nas situações de exclusão social têm feito surgir debates acerca dos mais variados elementos que podem interferir na atuação desses profissionais.

Neste trabalho, tomamos como elemento central de análise da prática do psicólogo as representações sociais, aqui entendidas como um conjunto de crenças compartilhadas socialmente que visam à elaboração de comportamentos e à comunicação entre indivíduos (Sá, 1996). A função das representações de exercer influências sobre os comportamentos faz com que seja importante analisar as diferentes práticas utilizadas por indivíduos em diferentes contextos, no nosso caso específico, no CRAS. Sabemos que, em muitas pesquisas, a reflexão sobre o papel do psicólogo na comunidade poderia ser remetida apenas à problemática da formação profissional, buscando subsídios para uma formação conscientizadora capaz de dar apoio às diferentes identidades socioprofissionais, ou seja, as soluções seriam em nível de graduação e/ou de cursos de especialização. Entretanto, é igualmente sabido que os psicólogos não constroem sozinhos seus modelos de atuação; segundo Spink, “os limites de sua atuação são também socialmente estruturados em função das representações que os leigos têm da Psicologia” (2003, p.129). É comum ouvir dos psicólogos que atuam na área comunitária que a população, seus diretores ou a equipe de trabalho esperam dele uma atuação compatível com a identidade socioprofissional tradicional, ou seja, uma atuação em nível intraindividual e com o instrumental tradicional do psicodiagnóstico/psicoterapia. E, paralelamente a tais expectativas, geradas em função da veiculação desse modelo de Psicologia, é comum ainda o psicólogo ter de arcar com os preconceitos e a desconfiança face às atividades que desempenha (Spink, 2003). Esse é o aspecto que investigamos neste trabalho, qual seja, as relações entre as representações sociais que os usuários têm dos psicólogos e suas relações com as práticas desses profissionais nos CRAS de Sergipe.

A atuação do psicólogo nos CRAS

A questão da prática do psicólogo no CRAS tem sido objeto de discussão, especialmente, de órgãos públicos federais, como o Conselho Federal de Psicologia (CFP) através dos Centros de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP), como também dos manuais produzidos pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), tendo em vista que esse equipamento público é considerado recente e de perspectiva inovadora para o funcionamento da assistência social. Tais órgãos constituem entidades reguladoras das práticas para os psicólogos, especificamente como é o caso do CFP, e normativos para o bom funcionamento do CRAS, como o MDS. Ambos produziram manuais de referência para a atuação dos profissionais no CRAS e apresentam claramente as práticas que deverão ser adotadas pelos psicólogos. Segundo o Manual de Referências Técnicas para a Atuação do Psicólogo no CRAS produzido pelo CFP (2008), o psicólogo, nos serviços, benefícios e programas desse centro, deve desenvolver as ações de acolhida, entrevistas, orientações, referenciamento e contrarreferenciamento, visitas e entrevistas domiciliares, articulações institucionais dentro e fora do território de abrangência do CRAS, desenvolvendo atividades socioeducativas e de convívio, de facilitação de grupos, estimulando processos contextualizados, autogestionados, práxicos e valorizadores das alteridades; por meio das ações, promover o desenvolvimento de habilidades, potencialidades e aquisições, articulação e fortalecimento das redes de proteção social, mediante assessoria a instituições e grupos comunitários, participar da implementação, elaboração e execução dos projetos de trabalho e fomentar a existência de espaços de formação permanente, entre outros.

Segundo ainda o Manual de Orientações Técnicas para o CRAS (2009), produzido pelo Ministério do Desenvolvimento Social - MDS

Os profissionais da Psicologia não devem adotar o atendimento psicoterapêutico no CRAS. Assim, esses profissionais não devem ‘patologizar' ou categorizar os usuários do CRAS nos seus atendimentos, mas intervir de forma a utilizar dos seus recursos teóricos e técnicos para: a) compreender os processos subjetivos que podem gerar ou contribuir para a incidência de vulnerabilidade e risco social de famílias e indivíduos, b) contribuir para a prevenção de situações que possam gerar a ruptura dos vínculos familiares e comunitários, e c) favorecer o desenvolvimento da autonomia dos usuários do CRAS. Esses profissionais devem fazer encaminhamentos psicológicos para os serviços de saúde, quando necessários (MDS, 2009, p. 65)

A atuação do psicólogo como trabalhador da assistência social tem como finalidade básica o fortalecimento dos usuários como sujeitos de direitos e o fortalecimento das políticas públicas. A Psicologia deve estar comprometida com a transformação social e ter como foco as necessidades, potencialidades, objetivos e experiências dos indivíduos. Os profissionais podem contribuir no sentido de considerar e de atuar sobre a dimensão subjetiva dos indivíduos e de favorecer o desenvolvimento da autonomia e da cidadania, devem buscar compreender e intervir sobre os processos e recursos psicossociais, além de estudar as particularidades e as circunstâncias em que ocorrem (Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas, 2008).

Relações e tensões entre práticas e representações sociais

Os estudos sobre representação social permitem reconhecer os modos e os processos de construção do pensamento social, através dos quais as pessoas constroem e são construídas pela realidade social. Além disso, aproximam-nos da visão de mundo que as pessoas e os grupos têm, pois o conhecimento do senso comum é o referencial que utilizamos para nos comportar e tomar posições frente aos distintos objetos sociais (Umaña, 2002).

Desse modo, a noção de representação social nos situa na interface entre o social e o psicológico. Em primeiro lugar, ela diz respeito à maneira como nós, sujeitos sociais, apreendemos os acontecimentos da vida comum, em poucas palavras, o conhecimento espontâneo, ingênuo, que tanto interessa hoje em dia às ciências sociais, esse que se costuma chamar de conhecimento do senso comum, ou ainda de pensamento natural, por oposição ao pensamento científico, que se constitui a partir das nossas experiências e também das informações que recebemos e transmitimos através da educação e da comunicação social. Dessa maneira, a representação social é um conhecimento socialmente elaborado e compartilhado. Sob seus múltiplos aspectos, visa essencialmente a dominar nosso meio ambiente, a atuar sobre e com outras pessoas, a responder às perguntas que o mundo nos coloca, a saber o que significam as descobertas da ciência, etc. Em outros termos, trata-se de um conhecimento prático (Jodelet, 1986). Assim, ainda segundo a autora, a representação social “... é uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (Jodelet, 2001, p. 246).

Moscovici afirma que a representação social é uma forma de conhecimento que visa a “tornar familiar algo não familiar, ou a própria não-familiaridade” (2007, p. 54). A familiarização é sempre um processo construtivo através do qual o não familiar passa a ocupar um lugar dentro de nosso mundo familiar.

As representações sociais constituem sistemas sociocognitivos, nos quais é possível reconhecer a presença de estereótipos, opiniões, crenças, valores e normas, que estruturam as atitudes sociais; constituemse, portanto, como sistemas de códigos, valores, lógicas classificatórias, princípios interpretativos e orientadores das práticas sociais, que definem a chamada consciência coletiva, instituindo os limites e as possibilidades da forma como mulheres e homens atuam no mundo (Umaña, 2002).

Sá, refletindo sobre o pensamento prático, afirma que as representações sociais são “alguma coisa que emerge das práticas em vigor na sociedade e na cultura e que as alimenta, perpetuando-as ou contribuindo para a sua própria transformação” (1996, p. 50).

Mas o que estamos chamando de práticas sociais? Para Guareschi (2008), a prática é muito mais do que colocar uma ação, pois mesmo a omissão ou a ação passiva, quando impede que algo aconteça, produz um efeito, e, portanto, é uma prática. Entendemos por prática social “toda prática de interação (relação) entre sujeitos sociais, em que uns acabam produzindo efeitos em outros, planejada e conscientemente, ou não” (Frizzo, 2006, p. 199).

O campo das práticas sociais tem se revelado espaço fértil para as pesquisas em Psicologia social. Após a virada dessa área na década de 80, tornou-se relevante investigar a produção das condições sociais de existência, que se dá no terreno das práticas sociais, no entanto, apesar de esse campo ser teoricamente importante, é ainda pouco investigado em Psicologia social, sobretudo no que concerne às relações entre práticas e representações sociais.

Para a análise da relação entre representações sociais e práticas, é necessário ter em conta que as ações dos indivíduos não mantêm uma relação de causalidade linear simples com suas intenções e crenças (Wagner, 2008). É comum, na vida cotidiana, as pessoas dizerem que agem “assim e assim” porque elas pensam que aquele seja o comportamento apropriado e correto para uma dada situação. Tal afirmação popular, alerta Wagner, reflete uma crença dos sujeitos, e não uma afirmação teórica que liga condições mentais e comportamentos.

Assim, pesquisas que concebem as representações sociais como uma variável independente para explicar fenômenos subsequentes, como pode ser o caso dos comportamentos, ajustam-se ao pressuposto clássico de que crenças e intenções de sujeitos sociais podem ser usadas como explicações causais para o comportamento e para a ação. No entanto, Wagner afirma que análises epistemológicas e teóricas têm colocado em dúvida se as representações são legítimas explicadoras do comportamento e da ação a elas relacionadas. A explicação mais aceita seria a de que as representações e os comportamentos a elas relacionadas são entidades altamente integradas, mutuamente dependentes e não podem ser justapostas a explicações causais. Segundo o autor:

(...) enquanto relacionado a crenças, o comportamento manifesto é parte e conteúdo da própria representação social, é a conseqüência do comportamento no mundo social que se necessita explicar pelo complexo representação/ação. O comportamento e a ação estão lógica e necessariamente conectados a crenças representacionais, mas suas conseqüências não estão (Wagner, 2008, p. 178)

Wagner acredita efetivamente em uma indivisibilidade do complexo chamado representação e prática social. Tal complexo une elementos simbólicos, mentais e comportamentais, que somente vão adquirir sentido como um todo e simultaneamente dão origem a seu próprio objeto. Para ele, torna-se claro que, quando vista a partir de um nível coletivo, a representação e o comportamento são um só. Eles não podem ser separados conceitualmente e tampouco empiricamente ligados através de relações causais explicativas. Deixar de lado uma ou outra das partes, seja o sistema simbólico, seja o comportamento coletivo, negaria imediatamente todo o fenômeno: se olharmos para a representação em nível coletivo, sem pressupor o comportamento ligado, o objeto da representação não existiria e, em consequência, também não existiria a representação.

É nesse sentido que Abric (1994 como citado em Sá, 2002) propõe discutir tais relações indagando: são as práticas sociais que orientam as representações ou são as representações que orientam as práticas? Ou ainda: são as duas ligadas e interdependentes? A rigor, privilegia-se a orientação das práticas pelas representações, provavelmente porque as demonstrações empíricas disponíveis no campo das representações sociais se encaminham predominantemente nessa direção (Sá, 2002). No entanto, isso não significa uma exclusão do papel das práticas nas representações, pois entendem que há interdependência entre elas:

(...) a determinação das práticas e dos comportamentos pelo sistema de representações parece – ao menos em certas situações – indiscutível. Vimos mais precisamente que as representações constituídas, e às vezes profundamente ancoradas na história da coletividade, permitem explicar as escolhas efetuadas pelos indivíduos, o tipo de relações que eles estabelecem com os parceiros, a natureza de seu engajamento em uma situação ou suas práticas cotidianas. (...) Mesmo se elas escapam ao analista, as condições de produção dessas representações constituídas – que explicam seu estado atual – são provavelmente grandemente tributárias das práticas sociais que o grupo desenvolveu ou às quais foi confrontado. Essa é a razão porque a quase totalidade dos pesquisadores está de acordo sobre o seguinte princípio: as representações e as práticas se engendram mutuamente (Abric, 1994 como citado em Sá, 2002, p. 89)

As representações sociais nos permitem, então, entender a dinâmica das interações sociais e aclarar os determinantes das práticas sociais, já que compreendemos que as representações e as práticas são entidades altamente integradas e mutuamente dependentes (Wagner, 2008).

Moscovici sugere que essa integração entre representação e ação ocorre devido ao seu conteúdo. Procurando saber por que o indivíduo faz isto ou aquilo, é preciso admitir que sua escolha ou a escolha do grupo é ditada por esta ou por aquela intenção. A articulação se explica de maneira mais ou menos racional como um silogismo prático.

Em resumo, o silogismo prático expressa de que maneira esse gênero de ações representacionais, que não são mais automáticas ou cerimoniais, são plausíveis aos olhos daqueles que as efetuam entre nós (Moscovici, 2005, p. 28)

É necessário, segundo Jodelet (2005), insistir na contribuição decisiva que constitui a demonstração da estreita imbricação entre produções mentais e dimensões materiais e funcionais da vida dos grupos. Essa contribuição reside principalmente no esclarecimento do lugar das representações nas práticas sociais que particularizam, no seio de cada formação social, a mobilização ou a transformação de uma organização estrutural. Isso renova a abordagem da produção social dos conhecimentos e da sua relação com as práticas.

Neste estudo, tentamos abordar a relação entre a representação social da Psicologia e dos usuários e sua relação com a prática de psicólogos, já que entendemos que a representação da profissão é socialmente compartilhada. Indagações tornam-se presentes quando pensamos neste contexto de relações: Será que a representação da Psicologia altera ou interfere nas práticas dos psicólogos? Será que a representação que os usuários têm dos psicólogos se transforma em demandas que interferem nas práticas desses profissionais?

O método, a coleta e a análise dos dados

Analisar a relação entre representações sociais e práticas é uma tarefa complexa. Para atender a esses objetivos, optou-se pela realização de uma pesquisa exploratória, e, para a coleta de dados, utilizamos dois instrumentos em dois diferentes estudos, sendo o questionário no primeiro, que foi feito com psicólogos do CRAS, e a entrevista no segundo, que teve como participantes os usuários do serviço. Nos dois estudos, a técnica de associação livre foi utilizada.

Primeiro estudo: as práticas profissionais dos psicólogos dos CRAS

Este estudo teve por objetivo identificar as práticas declaradas por psicólogos nos CRAS, e foi realizado no período de novembro de 2009 a maio de 2010; participaram 27 psicólogos que atuam nos CRAS de Sergipe, sendo 18 do interior do Estado e 9 da capital, Aracaju. Nesta pesquisa, optamos pela utilização do questionário como instrumento, entendendo que as práticas seriam compreendidas pelo que os psicólogos declarassem como tais. Trata-se, pois, de representações sociais das próprias práticas por parte dos psicólogos. Todavia, consideramos que isso não implica perda de objeto ou de foco, uma vez que utilizamos vários indicadores (perguntas), algumas mais descritivas daquilo que o psicólogo faz no dia a dia e outras mais avaliativas. Indagamos ainda sobre aquilo que ele faz e o que acha que os outros psicólogos do CRAS fazem, tipo de questionamento que permite encontrar o que se acha desejável fazer (prática ideal) e aquilo que efetivamente se faz (prática real).

O instrumento foi adaptado de uma entrevista utilizada por Araújo (1995) e Santana (2005), e foi elaborado de acordo com os objetivos propostos na pesquisa. Sendo assim, através do questionário, procuramos identificar o perfil dos participantes por meio das questões que envolviam indagações sobre idade, sexo, tempo de graduação, Município onde trabalha e vínculo empregatício (natureza, carga horária e tempo na instituição); depois abordamos questões referentes à formação e à experiência profissional, já que entendemos que tais fatores também teriam interferência significativa na prática desenvolvida pelos psicólogos. Em seguida, investigamos questões ligadas às representações sociais dos profissionais acerca da população atendida, que englobaram as características sociais, econômicas e psicológicas. Os aspectos ligados às demandas solicitadas aos psicólogos foram também incluídos por compreendermos que tal fator pode ter relação direta tanto com as representações sociais que as pessoas têm da Psicologia como também com as práticas desenvolvidas pelo psicólogo no CRAS. Por fim, as práticas foram pesquisadas através de questões que envolvem as atividades desenvolvidas e a percepção do trabalho de outros psicólogos no CRAS por entendermos que essa seria uma forma de investigar o que os psicólogos consideram ser a prática utilizada por outros profissionais, mas que, por motivos diversos, podem não querer dizer que as utilizaram.

Através da lista fornecida pela Secretaria de Estado de Inclusão e Desenvolvimento Social que continha os telefones e os endereços dos 95 CRAS que o Estado de Sergipe possuía na época de realização da pesquisa, foi estabelecido contato com todos os CRAS de Aracaju, inicialmente. Os objetivos da pesquisa, os procedimentos e o contato da pesquisadora foram apresentados a todos os psicólogos do Município. Por meio de e-mail, foi enviado o questionário, juntamente ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

As respostas às questões fechadas foram analisadas através do SPSS, e as respostas às questões abertas foram analisadas através da análise de conteúdo. Para a realização desta última, procedemos, inicialmente, a uma pré-análise do material através de uma leitura flutuante, cujo objetivo foi estabelecer um primeiro contato com os documentos, deixando-nos invadir por impressões (Bardin, 1977). Em um segundo momento, a partir dos objetivos propostos na pesquisa, os dados brutos foram sistematicamente transformados e agregados em unidades, através da codificação, tendo o tema como critério de recorte da análise de conteúdo. Utilizou-se como regra de enumeração a frequência com que cada enunciado apareceu.

Para as perguntas que trabalhavam com a associação livre de palavras ou que solicitavam aos participantes que hierarquizassem suas respostas por ordem de importância, os termos foram agrupados a partir da frequência e da ordem em que foram lembrados ou hierarquizados pelos participantes. É válido ressaltar que alguns termos receberam ordem de importância maior do que 3. Para analisar a centralidade de uma enunciação, a ordem em que as palavras foram lembradas pelos participantes era somada e dividida pela frequência com que as palavras foram enunciadas, o que nos permitiu calcular o que foi denominado de ordem média: por exemplo, uma enunciação citada três vezes na seguinte ordem (1º+1º+2º) daria o valor 4, que, dividido pela frequência de enunciação da palavra (i.e., 3), indicaria uma força ou centralidade de = 1,33 na representação formada. Quanto mais próximo do número 1, maior a centralidade da representação. Para analisar os dados, utilizamos como referencial a abordagem estrutural das representações sociais (Sá, 2002).

Resultados e discussão

Para investigarmos a prática do psicólogo no CRAS, utilizamos como indicadores as atividades desenvolvidas, ou seja, o que o psicólogo declara fazer no seu dia a dia e a percepção do trabalho dos outros psicólogos, o que nos permitiu inferir sobre a prática real adotada pelos profissionais. Os participantes da pesquisa declararam utilizar as práticas normatizadas pelos manuais técnicos. Com efeito, quando perguntados sobre suas atividades profissionais mais comuns no CRAS, os psicólogos citaram como mais frequentes: as atividades de grupo (32), sendo que o grupo de idosos é o de maior ocorrência (14), as visitas domiciliares (19), o acolhimento (12), os encaminhamentos (9), as entrevistas (9), o acompanhamento familiar/acompanhamento psicossocial e (8) os cursos/oficinas de inclusão produtiva/geração de emprego e renda (7), dentre outras, como pode ser observado mais detalhadamente na Tabela 1.

Segundo o CREPOP-MG (2011), a realização de grupos é a metodologia prioritária de trabalho com usuários do CRAS, porém o órgão salienta que são bastante diversificados os pressupostos teórico-metodológicos que sustentam essa prática.

Outro ponto que merece ser discutido é a atividade de acolhimento relatada por 12 dos profissionais. Além de essa atividade ter sido a terceira mais citada, se pensarmos na hierarquização feita pelos psicólogos tomando como base de análise a ordem média, essa prática é uma das primeiras ou mais recorrentes nos relatos (ordem média = 1,8), sendo constantemente utilizada no cotidiano de atuação dos psicólogos. Mas o que seria acolhimento? Apesar de a pesquisa não ter indagado como os profissionais estão desenvolvendo tais práticas, o que se tem percebido nesse contexto de atuação é que o acolhimento tem sido a prática dos diversos profissionais que atuam no CRAS de receber os usuários do serviço e de ouvir as necessidades dos mesmos, ou seja, o que os fizeram procurar os serviços do CRAS, e depois de encaminhá-los ao profissional, setor ou órgão competente. Quando essa demanda é para a Psicologia, o psicólogo agenda os atendimentos ou encaminha o usuário para as atividades já desenvolvidas por ele no serviço. É importante salientar que a prática de acolhimento não é exclusiva do profissional de Psicologia, mas de todos os que atuam no CRAS.

Uma das categorias também apresentadas e que diverge do apontado nos manuais foi o atendimento/acompanhamento individual, psicológico e de apoio/escuta, que foi relatado por oito sujeitos. Porém, apesar de mencionar o acompanhamento individual, não foi diretamente utilizado o termo acompanhamento ou atendimento psicoterapêutico ou atendimento clínico. Os dados não nos permitem inferir se isso ocorre porque efetivamente não é o atendimento clínico que acontece ou porque tal prática fere o que é preconizado nos manuais. Além disso, segundo o CREPOP-MG (2011), há uma dificuldade de se estabelecer um limite entre acompanhamento e psicoterapia, e essa é uma das inquietações expressas por muitos psicólogos.

Um dado interessante e que merece destaque diz respeito à percepção dos psicólogos acerca da atuação dos outros colegas (ver Tabela 2). A prática mais frequentemente relatada é o atendimento clínico ou práticas individualistas (9). Nesse caso, o termo atendimento clínico aparece nitidamente nos relatos dos profissionais, como podemos observar nos trechos a seguir:

Sujeito 3 – Com certeza o atendimento clínico individual; minha percepção acerca de boa parte dos serviços desenvolvidos pelo psicólogo é de um profissional elitizado, burguês e que tente assumir uma postura semelhante aos profissionais da saúde, mais especificamente, do médico que fica no consultório e não vai a loco”.

Sujeito 11 – Acredito que em virtude da nossa formação, muitos psicólogos estão fazendo do CRAS uma extensão do ‘consultório dos seus sonhos' e deixando de realizar o que realmente deveriam, e dessa forma não realizam eficazmente nem um, nem outro.

Outro aspecto importante é o fato de os psicólogos perceberem que os outros profissionais estão despreparados para a atuação no CRAS, com dificuldade de reconhecer seu papel nesses centros (7):

Sujeito 22 – A atuação do psicólogo na área da assistência social é recente, e muitos profissionais ainda não sabem qual o seu papel nessa instituição. Percebo isso no meu contato diário com esses profissionais. São necessárias capacitações para os que atuam, além da inclusão dessa temática na nossa graduação. Existem ainda hoje psicólogos desenvolvendo clínica em alguns CRAS.

Outros aspectos, estes negativos, relacionados à atuação também aparecem, como pode ser observado na categoria: muita frustração, malvista, pouco aceita (3).

Comparando os dados das Tabela 1 e 2, podemos perceber que os psicólogos, ao serem indagados sobre a sua prática, não mencionam o atendimento clínico e tampouco que se sentem despreparados para a atuação, embora atribuam tal prática aos outros psicólogos. Podemos afirmar a existência de uma dissociação entre as práticas individuais e as práticas coletivas, ou seja, entre o que eu faço e o que os outros psicólogos fazem, à semelhança da dissociação de crenças proposta por Devine (1989) no estudo dos estereótipos. Como as crenças produzem consequências na cognição, nas emoções e na conduta, podemos entender também que poderia existir uma dissociação de práticas, ou seja, a prática real compartilhada, no caso desta pesquisa, pelos profissionais, e a prática particular, a ideal, que seguirá as normas estabelecidas pela sociedade.

Outros psicólogos, no entanto, mencionam a percepção das atividades dos outros mais coerentes com sua própria prática, como foi o caso das atividades de grupo (7), das visitas domiciliares e do acompanhamento familiar (6) e acolhimento (6).

Conclui-se que, em relação à atuação profissional, os dados apresentados apontam a existência de dissociação de práticas em alguns psicólogos e outros que apresentam suas práticas mais coerentes com sua percepção das práticas dos outros. Analisaremos, a seguir, no segundo estudo, se tal fato apresenta relação com as representações sociais dos usuários acerca dos psicólogos do CRAS.

Segundo estudo: as representações sociais dos psicólogos do CRAS e as práticas profissionais na percepção de usuários

Este estudo teve como objetivos: identificar as representações sociais dos usuários a respeito dos psicólogos bem como as práticas utilizadas por psicólogos na percepção desses usuários. Participaram da pesquisa 20 usuários que foram atendidos no CRAS pelo psicólogo, sendo 10 do interior do Estado e 10 do Município de Aracaju, no período de outubro a novembro de 2010. Como critério de exclusão, foi adotado apenas o fato de o participante ter tido contato com o psicólogo no máximo há um ano do primeiro atendimento.

Nessa fase, foram selecionados dois CRAS do Estado de Sergipe, sendo um no interior do Estado e um na capital. Esses CRAS foram escolhidos pelo contato já existente com os psicólogos que atuavam nesses locais, o que facilitou o acesso aos usuários.

Para a realização dessa etapa, foram utilizadas entrevistas estruturadas com perguntas abertas e que pretendiam identificar aspectos ligados à representação do psicólogo. Foi utilizada também a técnica de associação livre, que tem sido utilizada para identificar os núcleos que estruturam as representações. Para isso, solicitou-se aos participantes que verbalizassem o de que primeiro se lembravam ao ouvir a palavra psicólogo. Os usuários foram abordados pelas entrevistadoras no próprio CRAS ou, quando necessário, o psicólogo da instituição indicava uma pessoa que já tivesse sido atendida por ele, e as entrevistadoras procuravam o usuário em sua residência a fim de colher os dados.

Para investigar a questão da representação social do psicólogo pelos usuários, utilizamos como indicadores: a técnica de associação livre de palavras para o termo psicólogo e os motivos que fazem uma pessoa procurar o psicólogo do CRAS. Para investigar a questão da prática na percepção dos usuários, indagamos onde e como foi realizado o atendimento prestado pelo psicólogo, ou seja, quais atividades foram desenvolvidas.

Aspectos éticos

Todas as diretrizes e as normas regulamentadoras das pesquisas que envolvem seres humanos, previstas na Resolução n° 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, foram rigorosamente cumpridas nesta pesquisa. Foi utilizado, nas duas etapas da pesquisa, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Na primeira etapa, o Termo de Consentimento foi enviado por e-mail juntamente ao questionário; nas demais, o termo foi entregue aos participantes e assinado por todos.

Resultados e discussão

No que se refere à pergunta que solicitava aos participantes dizerem o que vinha à sua mente quando ouviam a palavra psicólogo, a maioria representou o profissional pela prática de conversar (11). É interessante observar que essa não seria uma conversa qualquer, mas sobre problemas ou problemas ligados a algo mental (ver Tabela 3). Outras definições encontradas com frequência colocam o psicólogo em uma área de atuação cuja representação seria a de um conselheiro (5) ou orientador (5), que fornece ajuda (2), com quem as pessoas podem desabafar (2) ou que trabalha com doença mental (2).

Essa representação do psicólogo como um solucionador de problemas por meio de conversas e como profissional que serve para orientar e aconselhar é a representação mais encontrada nos estudos da área (Borsezi et al., 2006; Lahm & Boeckel, 2008; Oliveira & Peres, 2009; Ribeiro & Sarrieira, 1997; Souza & Trindade, 1990). Se tomarmos como dado de análise a frequência e a ordem média, poderíamos afirmar que essas enunciações atuam como núcleo central da representação, já que os entrevistados as consideram como as mais importantes (ordem média menor que 2) e já que elas são também as mais frequentes.

A representação do psicólogo como alguém que fornece ajuda também é muito encontrada nas pesquisas realizadas sobre a representação social da Psicologia (Lahm & Boeckel, 2008; Oliveira & Peres, 2009; Ribeiro & Sarrieira, 1997). Outras representações também aparecem, porém não com muita força: alguém que cura problemas psicológicos, que procura saber como as pessoas estão e que dão conforto, entre outras.

Além disso, dois dos participantes não possuíam qualquer representação do que seria um psicólogo, o que corrobora os dados encontrados nas pesquisas de Cenci (2006) e de Souza e Trindade, na qual a maioria dos entrevistados demonstrou precariedade de conhecimento sobre a atuação do psicólogo, o que reflete uma representação de estranhamento com relação a essa categoria profissional.

Quando indagamos sobre os motivos que fazem uma pessoa procurar o psicólogo no CRAS, percebemos que estes se relacionam com as representações apresentadas. Novamente aparecem com frequência enunciações voltadas para a questão mental (“problemas de cabeça”, “depressão”, “problemas de nervo”, “mente”); a questão da ajuda, conversa e orientação também aparece muito frequentemente.

Os dados encontrados permitem-nos afirmar o que já era esperado para a representação dos psicólogos no CRAS: a representação da Psicologia mesmo em contextos diferenciados de atuação ainda está mais vinculada à atuação do psicólogo na área clínica, como um solucionador de problemas psicopatológicos, que tem como prática fundamental a conversa, a orientação, o conselho.

Tais representações parecem estar vinculadas às práticas adotadas pelos psicólogos do CRAS. Quando perguntamos aos usuários como foi o atendimento prestado pelo psicólogo, ou seja, o que ele/a fez, os entrevistados citaram práticas semelhantes às representações encontradas: conversou (9), perguntou sobre problemas (2), aconselhou (2) e brincou (2). Esta última resposta refere-se aos casos em que crianças foram atendidas. Outras práticas também foram relatadas, como pode ser observado na Tabela 4.

Os dados apresentados nos dois estudos nos permitem fazer algumas considerações a respeito das relações entre práticas e representações sociais.

A primeira delas é quando relacionamos representação social dos usuários e suas percepções das práticas dos psicólogos. Os dados indicam que há coerência entre a representação social do psicólogo e a percepção da prática, já que a maioria dos participantes (11) relatou a conversa como a palavra que mais representa o psicólogo, apontando-a também como a prática mais adotada pelo profissional de Psicologia. Outras práticas também percebidas pelos usuários estão totalmente de acordo com a representação da profissão, como o aconselhamento, a orientação e a conversa sobre problemas.

É importante salientar que o fato de a prática de conversar ter sido a mais apontada pelos usuários não indica que os profissionais tenham adotado uma atuação clínica, já que outras atividades relatadas pelos psicólogos e que fazem parte da atuação no CRAS, como a entrevista, o acolhimento, os encaminhamentos e as visitas domiciliares podem sugerir ao leigo que o psicólogo tenha apenas conversado. O que podemos inferir é que talvez os objetivos das conversas com os psicólogos não sejam claros para os usuários, o que os fazem manter uma representação social da profissão mais voltada para questões clínicas ou até mesmo não terem muita clareza do que é ou do que faz um psicólogo.

Quando relacionamos os dados encontrados nos dois estudos, percebemos que a representação social dos psicólogos mantém mais relação com a percepção das práticas de outros psicólogos do que com a prática declarada pelos profissionais de Psicologia entrevistados. Ao indagarmos aos psicólogos sobre as atividades que são desenvolvidas por eles, a maioria relatou aquilo que é preconizado nos manuais de orientação para a prática no CRAS, o que foge completamente à prática mais individualizante, de perspectiva clínica, como as atividades de grupo, os acolhimentos e as visitas domiciliares. É válido frisar que as atividades de grupo, por exemplo, só foram relatadas por um dos usuários do CRAS, que, ao ser indagado onde tinha sido realizado o atendimento prestado pelo psicólogo, respondeu que havia sido no grupo.

No entanto, ao perguntarmos sobre a percepção das práticas adotadas pelos outros profissionais, a maioria dos psicólogos indicou o atendimento clínico e as práticas psicologizantes como as mais presentes, o que coincide com as representações sociais que os usuários possuem dos psicólogos no CRAS, que ainda são vistos como solucionadores de problemas individuais de ordem interna: “problemas de cabeça, nervos, da mente” do que como profissionais que atuam com problemas externos (relações, conflitos grupais, etc.). Não é mencionada, por exemplo, a resolução de problemas da comunidade ou do grupo.

Outro ponto que merece ser analisado é a falta de clareza dos usuários sobre o que faz efetivamente um psicólogo, não se conseguindo distingui-lo dos outros profissionais que trabalham no CRAS. Essa dificuldade na representação pode estar relacionada também ao que os profissionais declararam perceber nas práticas dos outros psicólogos e ao que categorizamos como uma atuação muitas vezes desencontrada ou fragmentada, que encontra dificuldade de reconhecer o seu papel. Se para os próprios profissionais está sendo difícil reconhecer seu papel no CRAS, imagine para os usuários do serviço. Na verdade, a falta de clareza na representação do psicólogo no CRAS apenas reflete a realidade do trabalho do psicólogo nesse local.

Considerando os dados apresentados, pode-se afirmar que existe uma relação de interdependência entre as representações sociais dos psicólogos feitas pelos usuários e as práticas adotadas por esses profissionais. A relação é percebida tanto nas representações sociais dos usuários e nas suas percepções sobre a prática do psicólogo quanto nas relações entre as representações sociais dos usuários e a percepção dos psicólogos sobre as práticas dos seus colegas. Essa percepção dos psicólogos sobre as práticas dos outros foi o que nos permitiu inferir a prática real adotada pela maioria dos profissionais da área.

Considerações Finais

Este trabalho inicia com um objetivo aparentemente simples: investigar a prática de psicólogos nos CRAS. O passar do tempo, as discussões no grupo de pesquisa, as leituras e os estudos fizeram com que o objetivo proposto fosse reformulado e transformado em um objetivo um tanto quanto audacioso: analisar as relações entre representações sociais e práticas sociais. Na verdade, o termo audacioso foi utilizado porque, apesar de a relação entre representações sociais e comportamentos ser uma premissa fundamental nessa teoria, poucas pesquisas têm enfocado essa relação, sendo essa lacuna um dos elementos mais críticos na teoria das representações sociais.

As discussões na atualidade, ainda sem delimitações precisas, transitam entre concepções sobre uma relação unicamente causal ou intencional entre as ações e as crenças dos sujeitos sobre a interdependência entre esses fatores ou até mesmo sobre a indivisibilidade do complexo representação social, que somente vai adquirir sentido como um todo, integrando suas dimensões simbólicas, mental e comportamental, como afirma Wagner. As próprias discussões teóricas deixam também dúvidas acerca dos métodos investigativos necessários para não se fazer afirmações apressadas ou até mesmo errôneas, que reduzam a complexidade da relação entre representações e práticas a explicações com linearidade causal.

A dificuldade de apreensão do objetivo proposto não se encerra apenas nessa questão. As práticas sociais escolhidas para serem investigadas enfocam um contexto de inserção profissional muito recente para os psicólogos, que utiliza técnicas muitas vezes não conhecidas ou experienciadas na sua formação. O CRAS, por ser uma proposta nacional bastante atual, propõe formas de intervenção distintas dos modelos tradicionais da Psicologia, com objetivos voltados para a promoção da saúde, a prevenção de situações de risco e a atuação nas situações de vulnerabilidade social através da prática comunitária. Essas atuações fora dos settings mais tradicionais convocam os profissionais a lançarem novos olhares sobre suas práticas nesses espaços públicos onde estão sendo inseridos (Andrade, 2009).

Contudo, nesta pesquisa específica, o que se evidenciou é que a prática psicológica tem sido pouco problematizada nos novos contextos de inserção profissional como os CRAS. Em consequência, assim como acontece em outros setores das políticas públicas, a intervenção do psicólogo tem se centrado na reprodução de um modelo clínico convencional. Mais ainda, o modelo psicoterapêutico liberal é o presente no imaginário daqueles com os quais o psicólogo se depara, entre eles equipe, gestores, usuários, e difere completamente do novo delineamento para o trabalho do psicólogo no CRAS, como afirmam Ximenes, Paula e Barros (2009).

A atuação do psicólogo no CRAS tem se caracterizado, portanto, por uma série de limitações. De um lado, as novas exigências do mercado, que demandam uma atuação efetiva nos mais variados espaços sociais, implicando um novo direcionamento da práxis dos psicólogos para que possa fazer frente às potencialidades apresentadas pelas recentes políticas públicas de assistência social; de outro, uma formação deficitária e representações da profissão ainda voltadas para um modelo clínico convencional.

Surgem, assim, exigências completamente divergentes que podem estar relacionadas ao fato de os psicólogos se declararem ainda perdidos quanto à sua função nos CRAS. Moscovici (2007) afirma que as representações sociais se encontram em universos simbólicos reificados e consensuais. Parece que o universo reificado do que deve ser um psicólogo no CRAS, disposto nos manuais de normatização do trabalho no SUAS, se choca com a representação consensuada do que deve ser um psicólogo pela sociedade, e isso tem inegáveis impactos nas práticas desses profissionais. Esse entrechoque de concepções pode ter sido a causa principal de um dos dados encontrados na pesquisa: a dissociação entre as práticas declaradas pelos profissionais e a percepção da prática de outros psicólogos. Todavia, apesar de a pesquisa que apresentamos fornecer um indicativo das práticas utilizadas nos CRAS, a metodologia empregada de aplicação de questionários não nos permite evidenciar como estão sendo desenvolvidas tais práticas e quais são seus verdadeiros objetivos e conteúdos. Não obstante essa limitação do nosso trabalho, é importante ressaltar que os resultados demonstram existir atividades que os psicólogos estão desenvolvendo, mas que, por motivos da própria normatização, não afirmam como suas. A estratégia de indagar sobre as práticas declaradas, a percepção da prática dos outros psicólogos e a prática percebida pelos usuários permitiu-nos inferir aquilo que efetivamente tem sido feito nos CRAS. Além disso, os dados também demonstram que a representação dos usuários também mantém relação com a percepção que possuem da prática do psicólogo, ou seja, um profissional disponível para conversar sobre problemas.

Consideramos que este trabalho abra perspectivas para outras pesquisas em Psicologia que enfoquem a relação entre representações sociais e práticas sociais, relações que podem ser investigadas em diferentes contextos de inserção profissional do psicólogo como também voltadas para várias temáticas relevantes para a sociedade e que interferem nas diferentes práticas adotadas por uma coletividade, com destaque para a atuação dos psicólogos nas diferentes políticas públicas, entre elas o CRAS. O aumento significativo das oportunidades de trabalho para psicólogos nesses espaços revela a necessidade de repensarmos nossas práticas a fim de podermos contribuir para a redução das injustiças sociais que marcam a realidade brasileira.

Recebido 12/01/2012

2ª Reformulação 15/02/2013

Aprovado 11/04/2013

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  • Endereço para correspondência
    Marcela Flores Cardoso Sobral
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    Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão – SE – Brasil. E-mail:
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    Doutor em Psicologia Social (ISCTE – PT) e docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão – SE – Brasil. E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Out 2013
    • Data do Fascículo
      2013

    Histórico

    • Recebido
      12 Jan 2012
    • Aceito
      11 Abr 2013
    • Revisado
      15 Fev 2013
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