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Subjetividades, globalização e urbanização: novos objetos da Psicologia Social Brasileira nos Simpósios da ANPEPP

Subjectivities, globalization and urbanization: new objects of Brazilian Social Psychology in the ANPEPP Symposiums

Subjetividades, globalización y urbanización: nuevos objetos de la Psicología Social Brasileña en los Simposios de la ANPEPP

Resumos

Nosso objetivo é discutir a história da constituição de novos objetos no campo da Psicologia social brasileira, particularmente dos processos de urbanização, globalização, informatização da sociedade e suas interfaces com os processos de subjetivação. Tal discussão é resultado de uma pesquisa realizada nos resumos dos Anais dos Simpósios da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP), abrangendo o período de 1988 a 2010. Nossa metodologia propõe uma genealogia da Psicologia social brasileira. Utilizamos a perspectiva foucaultiana sobre a história, o conhecimento e as subjetividades como ferramentas teóricas e analíticas. A partir dessa análise, afirmamos a possibilidade de uma história da Psicologia social brasileira que não se escreve a partir dos seus grandes representantes ou vertentes teóricas, mas da constituição de novos problemas, objetos e campos de intervenção. Nesse sentido, buscamos acompanhar a constituição de seus múltiplos objetos e perspectivas, assinalando a não linearidade de seu desenvolvimento, mas suas controvérsias e rupturas.

Psicologia Social; História; Foucault, Michel 1926-1984; Pesquisa Científica


Our goal is to discuss the history of creating new objects in the field of brazilian social Psychology, particularly the processes of urbanization, globalization, computerization of society and its interfaces with subjectification processes. This discussion is the result of a research done on the abstracts of the Proceedings of the Symposium of the National Association for Research and Graduate Studies in Psychology (Anais dos Simpósios da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia - ANPEPP), covering the period 1988-2010. Our methodology proposes a genealogy of Brazilian social Psychology. We use the Foucauldian perspective on history, knowledge and subjectiveness as theoretical and analytical tools. From this analysis, we affirm the possibility of a history of Brazilian social Psychology that is not written by its great representatives or theoretical aspects, but by establishing new problems, objects and fields of intervention. In this sense, we seek to accompany the formation of its multiple objects and perspectives, not pointing out the non-linearity of its development, but its controversies and ruptures.

Social Psychology; History; Foucault, Michel 1926-1984; Scientific research


Nuestro objetivo es discutir la historia de la constitución de nuevos objetos en el campo de la Psicología social brasileña, particularmente de los procesos de urbanización, globalización, informatización de la sociedad y sus interfaces con los procesos de subjetivación. Dicha discusión es resultado de una investigación llevada a cabo en los resúmenes de los Anuarios de los Simposios de la Asociación Nacional de Investigación y Posgrado en Psicología (ANPEPP), abarcando el periodo de 1988 a 2010. Nuestra metodología propone una genealogía de la Psicología social brasileña. Hemos utilizado la perspectiva de Foucault acerca de la historia, el conocimiento y las subjetividades como herramientas teóricas y analíticas. A partir de ese análisis, hemos afirmado la posibilidad de una historia de la psicología social brasileña que no se escribe a partir de sus grandes representantes o vertientes teóricas, sino de la constitución de nuevos problemas, objetos y campos de intervención. En ese sentido, hemos tratado de acompañar la constitución de sus múltiples objetos y perspectivas, destacando no la linealidad de su desarrollo, sino sus controversias y rupturas.

Psicología Social; Historia; Foucault, Michel 1926-1984; Pesquisa científica


ARTIGOS

Subjetividades, globalização e urbanização: novos objetos da Psicologia Social Brasileira nos Simpósios da ANPEPP

Subjectivities, globalization and urbanization: new objects of Brazilian Social Psychology in the ANPEPP Symposiums

Subjetividades, globalización y urbanización: nuevos objetos de la Psicología Social Brasileña en los Simposios de la ANPEPP

Simone Maria Hüning* * Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Docente do curso de Psicologia e docente pesquisadora do mestrado em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas, Maceió – AL – Brasil. E-mail: simonehuning@yahoo.com.br ,I; Neuza Maria de Fátima Guareschi** ** Doutora em Educação pela University of Wisconsin-Madison. Docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre – RS – Brasil. E-mail: nmguares@gmail.com ,II; Carolina dos Reis*** *** Doutoranda da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora do Curso de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul – RS – Brasil. E-mail: carolinadosreis@gmail.com ,II; Marcos Adegas de Azambuja**** **** Doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Docente do Centro Universitário Franciscano, Santa Maria – RS – Brasil. E-mail: m_adegas@yahoo.com.br ,III

I Universidade Federal de Alagoas

II Universidade Federal do Rio Grande do Sul

III Unifra - Centro Universitário Franciscano

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Simone Maria Hüning Avenida Lourival Melo Mota, s/n, Tabuleiro do Martins. CEP: 57072-970. Maceió, AL. E-mail: simonehuning@yahoo.com.br

RESUMO

Nosso objetivo é discutir a história da constituição de novos objetos no campo da Psicologia social brasileira, particularmente dos processos de urbanização, globalização, informatização da sociedade e suas interfaces com os processos de subjetivação. Tal discussão é resultado de uma pesquisa realizada nos resumos dos Anais dos Simpósios da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP), abrangendo o período de 1988 a 2010. Nossa metodologia propõe uma genealogia da Psicologia social brasileira. Utilizamos a perspectiva foucaultiana sobre a história, o conhecimento e as subjetividades como ferramentas teóricas e analíticas. A partir dessa análise, afirmamos a possibilidade de uma história da Psicologia social brasileira que não se escreve a partir dos seus grandes representantes ou vertentes teóricas, mas da constituição de novos problemas, objetos e campos de intervenção. Nesse sentido, buscamos acompanhar a constituição de seus múltiplos objetos e perspectivas, assinalando a não linearidade de seu desenvolvimento, mas suas controvérsias e rupturas.

Palavras-chave: Psicologia Social, História, Foucault, Michel 1926-1984, Pesquisa Científica.

ABSTRACT

Our goal is to discuss the history of creating new objects in the field of brazilian social Psychology, particularly the processes of urbanization, globalization, computerization of society and its interfaces with subjectification processes. This discussion is the result of a research done on the abstracts of the Proceedings of the Symposium of the National Association for Research and Graduate Studies in Psychology (Anais dos Simpósios da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia – ANPEPP), covering the period 1988-2010. Our methodology proposes a genealogy of Brazilian social Psychology. We use the Foucauldian perspective on history, knowledge and subjectiveness as theoretical and analytical tools. From this analysis, we affirm the possibility of a history of Brazilian social Psychology that is not written by its great representatives or theoretical aspects, but by establishing new problems, objects and fields of intervention. In this sense, we seek to accompany the formation of its multiple objects and perspectives, not pointing out the non-linearity of its development, but its controversies and ruptures.

Keywords: Social Psychology, History, Foucault, Michel 1926-1984, Scientific research

RESUMEN

Nuestro objetivo es discutir la historia de la constitución de nuevos objetos en el campo de la Psicología social brasileña, particularmente de los procesos de urbanización, globalización, informatización de la sociedad y sus interfaces con los procesos de subjetivación. Dicha discusión es resultado de una investigación llevada a cabo en los resúmenes de los Anuarios de los Simposios de la Asociación Nacional de Investigación y Posgrado en Psicología (ANPEPP), abarcando el periodo de 1988 a 2010. Nuestra metodología propone una genealogía de la Psicología social brasileña. Hemos utilizado la perspectiva de Foucault acerca de la historia, el conocimiento y las subjetividades como herramientas teóricas y analíticas. A partir de ese análisis, hemos afirmado la posibilidad de una historia de la psicología social brasileña que no se escribe a partir de sus grandes representantes o vertientes teóricas, sino de la constitución de nuevos problemas, objetos y campos de intervención. En ese sentido, hemos tratado de acompañar la constitución de sus múltiples objetos y perspectivas, destacando no la linealidad de su desarrollo, sino sus controversias y rupturas.

Palavras clave: Psicología Social, Historia, Foucault, Michel 1926-1984, Pesquisa científica.

Demarcações do campo

A Psicologia social, como a Psicologia de um modo geral, constitui-se como um campo de saber permeado por disputas e contradições acerca de seus métodos, objetos, teorias, histórias etc. Vimos se consolidarem versões oficiais de sua história, tradicionalmente demarcada pelo desenvolvimento das vertentes americana e europeia, ou as formas sociológicas e psicológicas da Psicologia social (Farr, 2000; Camino et al, 2011). Também podemos encontrar referências às especificidades de uma Psicologia social produzida na América Latina, imbricada em um contexto de disputas sociais e políticas, que produziu de forma bastante explícita uma noção de ‘compromisso social' (Scarparo & Guareschi, 2007; Ferreira, 2010).

Tais narrativas históricas que usualmente remetem a nomes, objetos e eventos relevantes para a Psicologia social em suas diferentes vertentes, além de demarcarem especificidades do ponto de vista epistemológico, teórico e metodológico, são permeadas por relações de poder que perpassam a busca da legitimação de discursos nesse campo de conhecimento, bem como a delimitação daquilo que se pode chamar de Psicologia social. Notese, nesse sentido, que mesmo as narrativas que convergem para o que consideramos uma divisão clássica da Psicologia entre as vertentes da Psicologia social psicológica; Psicologia social sociológica e Psicologia social crítica (Ferreira, 2010), frequentemente apresentam posicionamentos divergentes em relação ao que se constitui como “a forma mais legítima” da Psicologia social desde um ponto de vista científico. (Farr, 2000; Camino et al, 2011)

Outro tipo de análise da história da Psicologia social nos é oferecida por Prado Filho (2011) que, ao distanciar-se de uma perspectiva epistemológica, propõe uma arqueologia da Psicologia social brasileira a partir da análise das condições de possibilidade da constituição desse campo. Aproximamonos dessa perspectiva ao percorrermos a emergência de objetos da Psicologia social brasileira, a partir de um aparato institucional específico: os Anais dos Simpósios da Associação Nacional de Pesquisa e Pós- Graduação em Psicologia (ANPEPP).

Evidentemente, nossa tarefa carrega consigo pressupostos que já a inscrevem em uma concepção específica de produção de conhecimento. Propomos uma história da Psicologia social que não a considera como uma unidade possuidora de uma essência, que não atribui uma relação natural entre seus objetos e teorias. Nesse sentido, buscamos discutir a constituição de seus múltiplos objetos e perspectivas, assinalando a não linearidade de seu desenvolvimento, mas suas controvérsias e rupturas. Trata-se, assim, de produzirmos uma perspectiva histórica que não se pretende mais legítima que as outras, mas que se inscreva como outra história possível, uma análise crítica do passado “através de um exame das condições sob as quais nossas formas atuais de verdade tornaram-se possíveis”, o que nos permitiria pensar diferentemente sobre o presente (Rose, 1991, s/p).

Fazemos essas considerações para situar nossa compreensão de que a elaboração de tais narrativas históricas é parte constituinte do contínuo processo de estabelecimento e delimitação do campo disciplinar em questão, bem como daquilo que se define como ciência. Ao assumirmos essa posição inicial em relação à forma de conceber as possibilidades de se fazer a história de um campo do conhecimento, destacamos, em sua produção, o funcionamento do que Foucault (1999) denominou de quatro operações do poder disciplinar sobre os saberes, ou do disciplinamento dos saberes:

a organização interna de cada saber como uma disciplina tendo, em seu campo próprio, a um só tempo critérios de seleção que permitem descartar o falso saber, o não-saber, formas de normalização e de homogeneização dos conteúdos, formas de hierarquização e, enfim, uma organização interna de centralização desses saberes em torno de um tipo de axiomatização de fato (p. 217)

Esses procedimentos, travados por meio de disputas entre diferentes saberes, permitem não apenas a demarcação de fronteiras e domínios, mas também a constituição de novas configurações dos saberes disciplinares. É, segundo o autor, por meio desse controle disciplinar que se pode romper com a “ortodoxia dos enunciados”, passando-se para o controle da regularidade das enunciações. Não se trata mais, portanto, de um controle sobre o conteúdo dos enunciados, mas de um recrudescimento do controle sobre as formas e procedimentos de enunciação. Ainda que possa parecer paradoxal, essas operações que legitimam o saber disciplinar, estabelecendo tanto seus domínios como a homogeneidade de suas regras, são as mesmas que permitem a recusa da ideia de um saber ou de formas de produção de conhecimento naturalmente pertencente a um campo disciplinar específico, permitindo a emergência de novos enunciados. “Quanto mais regularmente formado é o saber, mais é possível, para os sujeitos que nele falam distribuir-se segundo linhas rigorosas de afrontamento, e mais é possível fazer esses discursos, assim afrontados, funcionarem como conjuntos táticos diferentes em estratégias globais” (Foucault, 1999, p. 250).

A partir dessas considerações, se retornarmos às divisões e inscrições nas mencionadas vertentes clássicas da Psicologia social (psicológica, sociológica e crítica), percebemos que estas são frequente e constantemente confrontadas por novos saberes e práticas, que introduzem novos interlocutores teóricos, novos questionamentos, campos de problematização e intervenção - igualmente atreladas aos procedimentos de seleção, normalização, hierarquização e centralização descritos por Foucault. Essas transformações, ainda que correspondam às regras de enunciação desse campo de conhecimento (a despeito da tentativa de muitas perspectivas de romper com tais regras), instituem novos enunciados e, portanto, delineiam a possibilidade de uma nova relação tanto com o presente como com o passado ou, com a história da Psicologia social.

Assim, mesmo reconhecendo a importância dessas narrativas históricas tradicionais, propomo-nos a pensar os percursos da Psicologia social no Brasil a partir de uma perspectiva em que se articulam as políticas de conhecimento com as políticas de subjetivação, com base nos trabalhos de Michel Foucault e Nikolas Rose, aproximandonos da proposta genealógica do primeiro autor, para quem,

o que distingue o que se poderia denominar a história das ciências da genealogia dos saberes é que a história das ciências, se situa essencialmente num eixo que é, em linhas gerais, o eixo conhecimentoverdade, ou, em todo caso, o eixo que vai da estrutura do conhecimento à exigência da verdade. Em contraste com a história das ciências, a genealogia dos saberes se situa num eixo que é diferente, o eixo discurso-poder ou, se vocês preferirem, o eixo prática discursiva-enfrentamento de poder (Foucault, 1999, p. 213)

Tal perspectiva, conforme o autor, não pretende travar uma luta do “conhecimento contra a ignorância”, mas assinalar o “imenso e múltiplo combate dos saberes uns contra os outros” (Foucault, 1999, p. 214). Combate esse que busca instituir, entre outras coisas, “planos de objetos a conhecer” (Foucault, 2001). Nossa proposta neste trabalho converge exatamente para essa história da instituição dos planos de objetos possíveis no campo da Psicologia social, que abordaremos como grandes temáticas em torno das quais o mesmo tem se desenvolvido no Brasil, nas últimas duas décadas.

Realizamos esta tarefa a partir de uma pesquisa realizada nos Anais dos Simpósios da ANPEPP, abrangendo o período de 1988 a 2010. Buscamos levantar junto a tais registros, os resumos de grupos de trabalho (GTs) que dialogam com a Psicologia social. A partir da identificação dos mesmos, iniciamos uma análise de sua constituição considerando o que estava descrito como seus interesses, objetos e objetivos.

Ainda na etapa inicial da pesquisa, pudemos situar três vetores que orientaram e impulsionaram o conhecimento em Psicologia social no país, a partir dos registros da ANPEPP: os movimentos sociais, a política e a economia. Após a discussão desses vetores, realizada em outro trabalho, voltamo-nos para a identificação de temas constituídos como objetos de estudo, relacionados a esses vetores. Naquele momento, identificamos a prevalência de três temas em torno dos quais a Psicologia social se organizou no Brasil: as questões relativas às noções de risco e vulnerabilidade; as questões relativas a identidades e tecnologias; e, por fim, a constituição na Psicologia social de temas relativos aos processos de urbanização, globalização, informatização da sociedade, e suas interfaces com os processos de subjetivação. Cada uma dessas temáticas tem sido discutida em trabalhos específicos, sendo que, no presente artigo, focamos nossa discussão na terceira delas.

Percebemos, ao analisar tais produções, que essas temáticas emergem em momentos específicos, muitas vezes, sendo recolocadas umas pelas outras e em outros momentos dialogando. Cada uma delas, no entanto, delineia diferentes preocupações e alvos por parte da Psicologia social, configurando-a, portanto, de diferentes maneiras, sendo essa a dinâmica que pretendemos analisar. Temos assim, a partir dessa análise, a possibilidade de outra história da Psicologia social brasileira, que não se escreve a partir dos seus grandes representantes ou vertentes, mas a partir da constituição de novos problemas, objetos e campos de intervenção. Dada a especificidade de cada uma dessas temáticas, buscamos apresentá-las em trabalhos distintos. Neste artigo, exploraremos a terceira temática mencionada, analisando sua emergência nesse campo de conhecimento.

História, Psicologia e subjetividades

Antes de seguirmos em nossa análise, consideramos pertinente pontuar algumas considerações sobre a noção de história, de modo a articular as políticas de conhecimento com as políticas de subjetivação, como anteriormente anunciado. Para tanto, retomamos alguns aspectos dos trabalhos de Michel Foucault e Nikolas Rose.

O trabalho de Foucault enfatizou as relações entre o sujeito e a história, tanto a partir da análise das práticas como dos saberes.

Suas investigações históricas recusaram simultaneamente o sujeito transcendental, universal e a história linear, progressiva. “As histórias de Foucault são, assim, histórias das práticas que constituíram historicamente a subjetividade ocidental” (Castro, 2009, p. 204). Buscamos, neste trabalho, retomar essa dimensão histórica que se entrelaça com a constituição dos sujeitos, suas práticas e os saberes que sobre ele incidem, percorrendo tais entrelaçamentos a partir de uma trajetória da Psicologia social brasileira, tal como ela pode ser acompanhada nos registros da ANPEPP.

Foucault situa o saber histórico em oposição à natureza e à unidade. Assim, contrapondose ao discurso histórico tradicional, destaca na história uma nova função de denúncia das lutas, conflitos e enfrentamentos que a constituem, vinculando-a ao âmbito político que articula relações de força e de verdade na constituição de modos de normalização e governamentalidade (Foucault, 1999). Temos aí postulada uma relação intrínseca entre história, subjetivação, poderes e saberes, compondo estratégias de governamentalidade, também destacadas por Rose (1991) ao propor o que chama de uma história crítica da Psicologia.

O objetivo de uma história crítica da Psicologia seria tornar visíveis as relações, profundamente ambíguas nas suas implicações, entre a ética da subjetividade, as verdades da Psicologia e o exercício do poder. No período moderno, tal história crítica abriria um espaço para pensar, no qual poderíamos examinar as conexões constitutivas entre a Psicologia - como uma forma de conhecimento, um tipo de expertise e um terreno da ética - e os dilemas do governo da subjetividade enfrentados nas democracias liberais (s/p)

A partir da compreensão de que a Psicologia não pode ser meramente compreendida como uma disciplina teórica, Rose discute sua penetração no cotidiano, instaurando práticas, modos de pensar e gerir a vida, de nos relacionarmos conosco e com os outros. O autor afirma que a unidade da Psicologia não reside “no nível de seus objetos, conceitos, harmonia teórica, paradigma” (Rose, 1991, s/p), mas em uma unidade institucional e pedagógica, adquirida desde o final do século XIX, que desencadeou novas formas de pensar sobre o mundo e as pessoas que o habitam, o que ele chama de “novos domínios de objetividade” (Rose, 1991). Trata-se da psicologização de diversos locais, práticas e problemas, nos quais a Psicologia penetrou e buscou postular verdades sobre as pessoas a partir dos mais variados modelos psicológicos.

O autor ressalta, no entanto, os efeitos de transformação que a Psicologia produz nesses locais e práticas, ao constituílos como problemas. Para analisar essas transformações postula três dimensões que contemplam as relações entre Psicologia, poder e subjetividade, que consideramos apropriadas para pensarmos a emergência de novos objetos e temas no campo da Psicologia social: uma transformação nas racionalidades e programas de governo; uma transformação na legitimidade da autoridade e uma transformação na ética.

Em relação à primeira dimensão, Rose toma a noção de governamentalidade de Foucault, definindo-o como “certo modo de pensar sobre o poder político e buscar exercê-lo: o território traçado pela multiplicidade de regimes, sonhos, cálculos e estratégias para ‘a conduta da conduta' que proliferou nos últimos dois séculos” (Rose, 1991, s/p). A transformação apontada em relação ao governo das condutas se refere à psicologização de esferas que vão do domínio micro ao macro social, na medida em que “o exercício das formas modernas de poder político tem se tornado intrinsecamente ligado ao conhecimento da subjetividade humana” (Rose, 1991, s/p).

A segunda dimensão, da transformação na legitimidade da autoridade, relaciona-se à produção de “novas autoridades sociais cujo campo de operação é a conduta da conduta, o gerenciamento da subjetividade”; à criação de “novos objetos e problemas sobre os quais a autoridade social pode ser exercida de forma legítima” e, por fim, à “penetração da Psicologia em sistemas de autoridades já existentes” (Rose, 1991, s/p).

A dimensão da transformação na ética trataria da investigação da participação da Psicologia na

construção de diversos repertórios para falar, avaliar e agir sobre pessoas, que têm sua relevância nos diferentes lugares e em relação a diferentes problemas, e têm uma relação particular com os tipos de self que são pressupostos nas práticas contemporâneas de administração dos indivíduos (Rose, 1991, s/p)

No referido trabalho, mas mais especificamente em um texto posterior (Rose, 2008), Rose situa a Psicologia como uma ciência social, ao defini-la como uma disciplina que “ajudou a construir a sociedade em que nós vivemos e também o tipo de pessoas em que nos transformamos” (2008, p. 155). Segundo o autor, mesmo em suas práticas mais individualizantes, a Psicologia esteve “organizada em torno de objetivos sociais” (p. 159), mas destaca outro sentido pelo qual esta se tornou uma ciência social ao “direcionar-se para os processos inerentes às coletividades humanas, grandes e pequenas. Deveria procurar pensá-las e conceituá-las a fim de administrar indivíduos e organizações” (p. 159). Esse segundo sentido pontuado por Rose acabou por constituir certa especificidade da Psicologia social, um novo domínio, esquadrinhado por diferentes problemáticas que, no entanto, permanecem vinculadas à ideia de controle e regulação (Silva, 2004; Rose, 2008).

Esses aspectos são destacados a fim de reiterarmos nossa compreensão de que o conhecimento não se estrutura e desenvolve meramente a partir de um progresso do campo epistemológico. Este é produzido em diálogo com a política, compreendida aqui como as formas de produção e gestão da vida na sociedade. Nesse sentido, tais conhecimentos não podem ser situados como reveladores de uma realidade, mas constituintes desta. Não há, desse modo, uma natureza essencialista nem do conhecimento, nem dos sujeitos. Entrelaçam-se, nesse processo, as políticas de produção de conhecimento, dos sujeitos e suas respectivas histórias.

Percurso metodológico

Nosso campo de pesquisa foi composto pelos Anais da ANPEPP dos anos de 1988 a 2010, disponibilizados on-line1 1 1Os Anais de todos os Simpósios realizados encontram-se disponíveis no site da ANPEPP, em http://www.anpepp.org.br/1-Acervo/pri-acervo.htm. . Consideramos tais registros significativos para este estudo, pois os encontros da ANPEPP congregam de forma ampla os Programas de Pós-Graduação em Psicologia do Brasil, reconhecidos e legitimados pelo governo brasileiro e, consequentemente, as pesquisas produzidas nas suas diferentes áreas, dentre as quais a Psicologia social. Em encontros realizados a cada dois anos, pesquisadores brasileiros da área da Psicologia, discutem, definem e planejam temas e atividades de pesquisa consideradas relevantes. Tais características evidenciam sua relevância na construção e debate das políticas de conhecimento científico da Psicologia no Brasil. Até o ano de 2010, a ANPEPP possuía 61 GTs, que discutiam diferentes temáticas concernentes à Psicologia e envolviam 64 programas de pós-graduação, entre doutorados e mestrados vinculados a essa entidade.

Considerando tal fonte de pesquisa, é importante destacar os diferentes modos de registros nos Anais da ANPEPP ao longo dos anos, bem como o aumento do número de GTs, conforme apresentado no quadro a seguir. Em todos os registros, independentemente de outras especificidades, consta o nome dos participantes e coordenadores dos grupos. Essa informação é relevante, pois, juntamente com as demais informações dos relatórios, também permitiu orientar a inclusão dos GTs no campo da Psicologia social.


A despeito das nuances nas formas de registro do que foi produzido em cada simpósio, esse material nos permitiu identificar, seja por meio dos relatos de pesquisa individuais, ou pelas sínteses e históricos dos GTs, o campo em que tais produções se inscreviam. Assim, a partir da leitura desse material, foi possível, inicialmente, a identificação de grupos que dialogavam com o campo da Psicologia social. A partir dessa seleção, iniciamos a leitura de cada resumo ou relatório, identificando, nas propostas e relatos dos grupos de trabalho, os modos como configuravam seus objetos e temas de pesquisa a partir de diferentes perspectivas teóricas da Psicologia social.

Neste artigo, apresentamos as referências feitas pelos trabalhos sintetizados nos resumos da ANPEPP, relacionados ao terceiro tema em análise, que envolve os processos de urbanização, globalização e modos de vida. O foco é a emergência desses objetos e o modo como são abordados pelos GTs do campo da Psicologia social, buscando evidenciar as descontinuidades dessas produções.

Relacionamos, a seguir, os GTs cujos materiais registrados nos anais foram incluídos nesse eixo de análise, situando, ainda, sua data de criação: Representações Sociais (1990); Psicologia Comunitária (1990); Comunidade meio ambiente e qualidade de vida (1994); Trabalho e construção da subjetividade (1994); Subjetividade, conhecimento e práticas sociais (1998); Subjetividade contemporânea (1998); Psicologia e relações de gênero (1998); Mulher feminino e sexualidade feminina (1998); Comportamento político (2000); Cotidiano e práticas sociais (2000); Políticas de subjetivação, invenção do cotidiano e clínica da resistência (2006); Trabalho e processos organizativos na contemporaneidade (2006); Memória, identidade e representações sociais (2008); e Ócio, tempo e trabalho (2008)2 2 Alguns desses GTs sofreram alterações em seus nomes, porém mantiveram praticamente a mesma composição de pesquisadores. Nesses casos, mantivemos aqui o nome e a data relativa à primeira inserção do GT na análise. .

Organizamos a discussão desses materiais a partir das questões que passam a ser constituídas nesses encontros, sobre as quais a Psicologia social vai se debruçar ao mesmo tempo em que as institui como concernentes ao seu campo. Com isso, buscamos evidenciar os movimentos, visualizar presenças e ausências, abandonos e retomadas, a inclusão e exclusão de objetos e, melhor dizendo, sua constituição no campo da Psicologia social.

Resultados: novos domínios de objetividade

Apesar de podermos identificar perspectivas que situam a constituição da Psicologia social como um conhecimento que vem responder a demandas produzidas por diferentes coletividades humanas, conforme situa Rose (2008), assumimos aqui que, mais que isso, seu desenvolvimento tratou de produzir novos alvos do saber, novas questões, transformando o espaço onde inicialmente se propunha a intervir. Na própria esfera do conhecimento acadêmico vimos a emergência de questões pontuais em relação a essas coletividades, que anteriormente não apareciam como objetos ou problemas do campo da Psicologia social.

Podemos acompanhar tais transformações pela análise dos materiais pesquisados. Nosso foco é identificar quando e como os trabalhos da Psicologia social colocam sua ênfase mais nas mudanças “do mundo” do que nos modos de ser, para, então, discutir os modos de ser como efeitos dessas transformações no mundo. Elencamos, a seguir, as principais questões que, no material e período contemplados por nossa pesquisa (Anais da ANPEPP de 1988 a 2010), constituem o que chamamos de novos domínios de objetividade da Psicologia social brasileira.

A esfera social como produtora de subjetividades

Se hoje encontramos com certa regularidade produções da Psicologia social que definem o sujeito e a subjetividade como produção relacionada aos processos sociais e culturais, recusando a noção de um sujeito transcendental, que, na articulação com o pensamento foucaultiano assumem um “descentramento da unidade-sujeito para a rede discursiva em que este é produzido”, um deslocamento “da internalidade do sujeito para as práticas culturais nas quais ele é produzido” (Hüning e Guareschi, 2009, p.177), vemos que essa abordagem possui uma história relativamente recente.

As produções de conhecimento no campo da Psicologia social que articulam esfera social com a produção de subjetividades vão se delineando timidamente. Se considerarmos essa questão no ano inicial de nossa análise, 1988 encontramos apenas um trabalho que aborda a questão da construção do sujeito atrelada a questões socioculturais, articulando ciências sociais e Psicologia, embora demarcando aspectos como a intimidade e a singularidade do sujeito como sendo especificamente do âmbito psicológico. Lembramos, no entanto, que nesse ano, não há registro de grupos de trabalho e os anais são organizados por programas de pós-graduação (PPG). Notamos que esse trabalho é produzido em um PPG na área de concentração de Psicologia clínica, sob o título Sujeito e cotidiano: um estudo da dimensão psicológica do social,de autoria de Ana Maria Nicolaci da Costa (Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ)) e conforme a síntese da autora, suas pesquisas buscam contemplar “o ponto de vista do sujeito que enfrenta determinadas situações de vida” (1988, p. 64).

Nesse período, os trabalhos que se vinculam a PPGs de Psicologia social abordam questões como desenvolvimento moral, estereótipos, dissonância e mediação cognitiva, movimentos sociais, organizações e grupos, entre outros. Nestes não se afirma uma relação entre tais processos ou fenômenos e noções de subjetividade. Nos anos seguintes, de forma crescente, porém não constante, vemos o estabelecimento da relação da subjetividade com a esfera social se consolidar na Psicologia social. A ênfase na temática da subjetividade ou processos de subjetivação é expressa também pela criação de novos GTs que trazem o termo em seu nome: pela primeira vez no GT Trabalho e construção da subjetividade(1994); em seguida nos GTs Subjetividade, conhecimento e práticas sociais e Subjetividade contemporânea, ambos criados em 1998; e por fim com o GT Políticas de subjetivação,invenção do cotidiano e clínica da resistência (2006).

Esses materiais nos indicam a produção, principalmente a partir da segunda metade da década de 1990, de um tema de pesquisa e intervenção ainda novo para a Psicologia social: a subjetividade e sua relação com a esfera social. A produção de subjetividades e os modos de subjetivação, constituídas como questões para a Psicologia social, abrirão o campo para uma série de outros novos objetos e temas vinculados às transformações pelas quais a sociedade está passando. Assim, ao relacionar a produção das subjetividades às transformações do mundo, as mais diversas dimensões dessa esfera social poderão, por sua vez, também ser objetivadas pela Psicologia social.

Globalização, trabalho e novas tecnologias

Se afirmarmos que são recentes as produções que relacionam a produção de subjetividades à esfera social, percebemos em nossa análise que ainda mais recentes são os trabalhos que relacionam essa produção especificamente aos processos de globalização, industrialização, informatização e trabalho nesses novos contextos sociais. Muito embora, encontremos importantes produções que relacionem o próprio desenvolvimento da Psicologia social com a emergência e administração da vida nas sociedades urbanas modernas, tais como os trabalhos de Silva (2004) e Rose (2008), que passam por alguns desses processos, referimo-nos, aqui, a trabalhos que situam de forma bastante pontual a análise de tais questões particularmente a partir da realidade brasileira.

Nesse sentido, a globalização, como um novo tema para a Psicologia social, aparece como uma categoria ampla que vai abrigar uma série de outros processos já familiares a esse campo de produção de conhecimentos, tais como questões identitárias e trabalho e as novas formas de ser (novas subjetividades) no mundo contemporâneo. Ela é destacada como questão da Psicologia social nos registros da ANPEPP em 1996, no GT Representações Sociais que a introduz como atravessadora das discussões apresentadas que agregariam complexidade à análise dos fenômenos estudados (saúde, envelhecimento, questões étnicas, entre outros). Na síntese desse GT, expressa-se o lugar dado ao fenômeno da globalização “vários fenômenos complexos abordados em nosso GT podem ser abordados a partir dessa temática da globalização e des-territorialização tais como: a questão da identidade dos ecologistas, a identidade étnica dos teuto-brasileiros e a ameaça da AIDS para os homossexuais» (ANPEPP, 1996, p. 160).

No simpósio anterior, em 1994, o GT Trabalho e construção da subjetividade havia discutido as relações entre a modernização do mundo do trabalho e as subjetividades. Naquele momento, no entanto, não houve nesses registros articulações desse processo com o fenômeno da globalização, como foi feito posteriormente pelo GT Comunidade meio ambiente e qualidade de vida, em 1998; pelo GT Subjetividade contemporânea, em 2000 e 2004; e pelo GT A Psicologia Sócio-Histórica e o Contexto Brasileiro de Desigualdade Social, também em 2004.

Ainda em torno da temática da globalização, são constituídos como temas da Psicologia social as transformações que acompanham esse processo, relativas às novas tecnologias, dentre as quais as de informação e de comunicação, assim como aquelas que modificam os processos produtivos, de trabalho e de industrialização.

O GT Comunidade, meio ambiente e qualidade de vida, em 1996, tematiza pela primeira vez o tema da informatização da sociedade e, no simpósio seguinte, retoma a temática a partir da questão da globalização. Essas também estão presentes, em 1998, no GT Subjetividade contemporânea, no qual se coloca a questão da problematização dos efeitos da globalização e das novas tecnologias na produção de subjetividades. Esse grupo retomará essa relação nos trabalhos dos simpósios posteriores. Vemos, assim, que os fenômenos da globalização e das novas tecnologias passam a dialogar com a produção de uma concepção de subjetividade ligada à esfera social, estando tais temas presentes até o material do último simpósio analisado, em 2010, no Gt Cotidiano e Práticas Sociais.

Ao serem trazidas para o campo da Psicologia social, tais questões constituem um novo domínio de interesse e objetividade a partir do qual a problematização da constituição da subjetividade será feita considerando-se explicitamente a economia globalizada e as novas tecnologias. Em outras palavras, temos por um lado a emergência de uma nova forma de compreender a produção das subjetividades a partir da esfera social e, por outro, a caracterização dessa nova esfera social por aspectos como globalização e novas tecnologias. Assim, na segunda metade da década de 1990 e a primeira dos anos 2000, vemos constituir-se na Psicologia social uma nova forma de objetivar suas interrogações acerca da produção das subjetividades, vinculadas agora a processos políticos, econômicos e tecnológicos. Dessa forma, questões como saúde, envelhecimento, adoecimento, sexualidade, etnias, trabalho etc. serão abordadas não apenas com referência ao próprio sujeito, ou como temas isolados, mas como interfaces de tais processos de globalização e desenvolvimento tecnológicos, que dialogarão diretamente com a produção das subjetividades e outros fenômenos tradicionalmente abordados pela Psicologia social.

Reordenações urbanas

A inserção de temáticas relativas a mudanças na chamada sociedade contemporânea também vão constituir e organizar como foco dos estudos da Psicologia social as novas configurações do espaço urbano. Em torno deste, serão produzidos trabalhos tanto sobre as transformações das subjetividades, como da produção do medo, da insegurança e da circulação urbana. Essas questões emergem e destacam-se principalmente a partir de 1998, quando a problematização do social com base nos processos de urbanização transversaliza grande parte das discussões em Psicologia social.

O GT Subjetividade Conhecimento e Práticas Sociais aborda, em 1998, a produção do medo e da insegurança nos grandes centros urbanos e, no simpósio seguinte, retoma tal discussão pontuando a construção de sujeitos a partir das reordenações urbanas sustentadas pelo higienismo, racismo e eugenismo, particularmente no trabalho de Cecília Coimbra. Neste, a autora destaca a ausência desse tipo de problematização nas universidades e sua importância para a formação em Psicologia. Como pudemos perceber no material analisado, tratava-se, de fato, de um objeto novo, que começava a ser constituído no campo da Psicologia social.

Outros GTs que contribuíram com esta produção foram o GT Subjetividade contemporânea a partir do debate sobre a circulação urbana nas grandes cidades, a transformação do espaço urbano e nas relações tempo e espaço, modificações na vida urbana, tecnologias de vigilância e subjetividade, heterogeneidade urbana (1998, 2000, 2002, 2004); e o GT Psicologia Comunitária, por meio de temas como violência urbana e imigrações (2002). Frequentemente, esses e outros trabalhos que dialogam com a questão das reordenações urbanas, trazem como questão as práticas cotidianas de controle, vigilância e de governamentalidade.

Notamos que o desenvolvimento da Psicologia social em torno das reordenações do espaço urbano ocorre de forma concomitante com a inserção das análises sobre os arranjos da economia globalizada e das novas tecnologias e como, nesse caso, formula-se em torno da questão das transformações dos processos de subjetivação por estes engendrados. Desse modo, entendemos que ao recolocar a questão das subjetividades/subjetivações, formulando-a a partir da esfera social, a Psicologia social não constitui apenas um novo objeto em seu domínio, mas o amplia de forma a abarcar os incontáveis aspectos dessa esfera social, estes sempre em movimento, sempre atualizáveis.

O desenvolvimento das cidades e as questões dos novos ordenamentos urbanos vão engendrar a produção de uma nova agenda para a Psicologia social, envolvendo modos de habitar e circular nesses espaços, diferentes formas de exclusão e sua relação com a subjetividade. Nesse sentido, vemos, mais uma vez, o entrelaçamento das três temáticas mapeadas neste estudo (uma nova compreensão da produção da subjetividade, aspectos políticos, econômicos e tecnológicos, novas configurações urbanas), nas produções do campo da Psicologia social nos Anais da ANPEPP. A vida cotidiana nas cidades também fará interface com estudos que discutem espaços públicos e políticas públicas, relacionando-se a discussões que problematizam a produção de formas de vida hegemônicas na sociedade contemporânea. Destacam-se, nessas abordagens, perspectivas de investigação que aliam simultaneamente epistemologia, ética, política e estética.

Transformações sociais como objetos da Psicologia

A pretensão de registro histórico de nosso trabalho, como já discutido, consiste em evidenciar a emergência de novos objetos, problemas, alvos da Psicologia social no Brasil, a partir da análise dos registros da ANPEPP. Isso nos permite perceber a emergência de situações, práticas, discursos contemporâneos que vão transformar os sujeitos e o campo do conhecimento, na medida em que alguns processos do mundo contemporâneo, naquilo que têm de novidade, passam a ser objetivados pela Psicologia social.

As abordagens desenvolvidas a partir da segunda metade da década de 1990, e que ganham força principalmente no início dos anos 2000, envolvendo questões como a organização do espaço urbano, os modos de vida e a globalização, em grande parte deixam de privilegiar o caráter explicativo/ resolutivo dos problemas sociais e a principal questão passa a ser a problematização do social, sua desnaturalização e análise de sua construção histórica, passando a coexistir e ganhar legitimidade junto a outras formas de constituição da Psicologia social brasileira.

Temos a emergência de abordagens da Psicologia social que se deslocam de uma proposta de transformar o social para a análise das transformações sociais/transformações nas subjetividades, bem como da participação desse campo de conhecimento nas estratégias de governo ou de problematização dessas novas subjetividades e configurações sociais emergentes. Começa a ser produzida uma Psicologia social que já não se situa apenas como promotora das transformações sociais, como prática transformadora por meio de processos, tais como os de conscientização, mas uma Psicologia social que toma as transformações sociais como seu objeto. Nesse sentido, assume-se a compreensão de que as novas configurações e dinâmicas do campo social engendram a produção de novas subjetividades e de novas Psicologias que manterão, por sua vez, o campo sempre receptivo e em busca de novos objetos.

O social, por sua vez, passa a ser tomado a partir do questionamento de como suas transformações produzem novas formas de subjetivação. Nesse sentido, muitas dessas análises abandonam o caráter explicativo ou resolutivo dos problemas sociais e a principal questão passa a ser propriamente a problematização do social, sua desnaturalização e análise de sua construção histórica. Nessas perspectivas, a noção de sujeito é também alterada, para uma compreensão da sua produção como efeito do social.

Essa breve e parcial história da Psicologia social aponta para a possibilidade da quebra da ortodoxia dos enunciados, mesmo quando sua produção está inserida em um espaço institucional que, entre outras funções, opera exatamente na preservação das regras de enunciação. Aponta, ainda, para alguns efeitos de transformação nesse campo social que é tomado como problema, ao tornar certas questões concernentes à dimensão da subjetividade e relacioná-las a um campo de saber específico, uma nova autoridade epistemológica - a Psicologia social - por novas e variáveis associações de fenômenos contemporâneos ao estudo da subjetividade: (globalização/trabalho/ subjetividade/Psicologia; espaço urbano/ circulação/violência/subjetividade/Psicologia; sistema econômico/subjetividade/Psicologia; e assim por diante).

Mudanças que podem ser sintetizadas pelas três dimensões apontadas por Rose (1991): uma transformação nas racionalidades e programas de governo; uma transformação na legitimidade da autoridade e uma transformação na ética. Tais posicionamentos convocam a Psicologia social, como unidade institucional, a pensar como o campo político social é produzido por processos científicos e tecnológicos que forjam a vida, os corpos, as subjetividades, a ética e os modos de governo dos sujeitos e suas vidas em coletividades, particularmente, nas novas coletividades urbanas, globalizadas e tecnológicas.

A análise histórica realizada a partir dos Anais da ANPEPP, ao nos permitir acompanhar a produção de alguns novos temas, objetos e teorias, evidencia o caráter dinâmico da produção do campo de conhecimento chamado Psicologia social, sinalizando sua abertura para novas configurações no presente e no futuro. Nesse sentido, considerando a perspectiva adotada nesta análise, ressaltamos o caráter localizado e não definitivo da história aqui proposta, delimitado pelas próprias estratégias de produção deste estudo.

Recebido 19/03/2012

1ª Reformulação 04/11/2013

Aprovado 12/12/2013

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  • Endereço para correspondência
    Simone Maria Hüning
    Avenida Lourival Melo Mota, s/n, Tabuleiro do Martins. CEP: 57072-970. Maceió, AL.
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    Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Docente do curso de Psicologia e docente pesquisadora do mestrado em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas, Maceió – AL – Brasil. E-mail:
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    Doutora em Educação pela University of Wisconsin-Madison. Docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre – RS – Brasil. E-mail:
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    Doutoranda da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora do Curso de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul – RS – Brasil. E-mail:
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    Doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Docente do Centro Universitário Franciscano, Santa Maria – RS – Brasil. E-mail:
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    1Os Anais de todos os Simpósios realizados encontram-se disponíveis no site da ANPEPP, em
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    Alguns desses GTs sofreram alterações em seus nomes, porém mantiveram praticamente a mesma composição de pesquisadores. Nesses casos, mantivemos aqui o nome e a data relativa à primeira inserção do GT na análise.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Out 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014

    Histórico

    • Recebido
      19 Mar 2012
    • Aceito
      12 Dez 2013
    • Revisado
      04 Nov 2013
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